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Crises do Capitalismo, Estado e Desenvolvimento Regional Santa Cruz do Sul, RS, Brasil, 4 a 6 de setembro de 2013 ENTRE DESMATAMENTO E DESENVOLVIMENTO: AS POLÍTICAS INDIGENISTAS E O PROCESSO DE “INTEGRAÇÃO” DOS KAINGANG NO CONTEXTO CAPITALISTA (NACIONAL-DESENVOLVIMENTISMO) BRASILEIRO Carina Santos de Almeida 1 Alexandre Luiz Rauber 2 Resumo: Uma constante na trajetória brasileira foi a inserção duvidosa e forçada dos povos indígenas aos modelos de Estado adotados ao longo da história. No século XX as políticas indigenistas brasileiras procuraram “integrar” os índios à sociedade nacional, assim, buscou-se transformá-los em trabalhadores rurais. A tutela tinha por finalidade prestar proteção e assistência por meio da instalação de Postos Indígenas, porém, seus rumos se transformam com a ascensão de Vargas ao poder e a adoção de modelos nacional-desenvolvimentistas. Coube aos índios viverem tutelados e direcionados ao trabalho compulsório. Tradicionalmente, os Kaingang estabeleciam relações com o ambiente distintas dos ocidentais, espacializavam- se por praticamente todo o sul do país e não tinham como sistema o uso intensivo do solo e das florestas. O machado civilizador reduziu suas florestas, cedendo lugar à instalação de serrarias, à exploração madeireira, ao plantio de trigo e soja. De povos com autonomia, passaram à tutelados, sendo inseridos na lógica do desenvolvimentismo. Entre desenvolvimento e políticas indigenistas, restou o desmatamento de suas terras, a integração às avessas e o descompasso entre tradição e modernização. Palavras-chave: Povo Kaingang, Políticas Indigenistas, Desenvolvimento, Desenvolvimentismo e Desmatamento. Considerações iniciais Nos auspícios da República a palavra da ordem foi o progresso. Assim, ao longo dos novecentos, a sociedade brasileira experienciou transformações marcantes com a derrocada da política do café-com-leite, a ascensão de Getúlio Vargas ao poder, a adoção do nacional- desenvolvimentismo, as ditaduras e golpes de Estado e, dessa forma, com a implantação de novas diretrizes políticas direcionadas a modernização da economia. Da idéia de progresso no nascente século XX passou-se à procura do seu correlato herdeiro, o almejado desenvolvimento. Inicialmente o desenvolvimento foi talhado como desenvolvimentismo, com o condicionante político ideológico do nacionalismo. A partir de ideias organicistas que norteavam intelectuais e políticos nos auspícios republicanos, para o Brasil alcançar o progresso e, posteriormente, o desenvolvimento, se fazia 1 Historiadora, mestre em Desenvolvimento Regional (UNISC) e doutoranda em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (PPGH/UFSC). Email: [email protected] 2 Geógrafo e mestre em Desenvolvimento Regional (UNISC). Email: [email protected]

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Crises do Capitalismo, Estado e Desenvolvimento Regional

Santa Cruz do Sul, RS, Brasil, 4 a 6 de setembro de 2013

ENTRE DESMATAMENTO E DESENVOLVIMENTO: AS POLÍTICAS

INDIGENISTAS E O PROCESSO DE “INTEGRAÇÃO” DOS KAINGANG NO

CONTEXTO CAPITALISTA (NACIONAL-DESENVOLVIMENTISMO) BRASILEIRO

Carina Santos de Almeida1

Alexandre Luiz Rauber2

Resumo: Uma constante na trajetória brasileira foi a inserção duvidosa e forçada dos povos indígenas aos modelos de Estado adotados ao longo da história. No século XX as políticas indigenistas brasileiras procuraram “integrar” os índios à sociedade nacional, assim, buscou-se transformá-los em trabalhadores rurais. A tutela tinha por finalidade prestar proteção e assistência por meio da instalação de Postos Indígenas, porém, seus rumos se transformam com a ascensão de Vargas ao poder e a adoção de modelos nacional-desenvolvimentistas. Coube aos índios viverem tutelados e direcionados ao trabalho compulsório. Tradicionalmente, os Kaingang estabeleciam relações com o ambiente distintas dos ocidentais, espacializavam-se por praticamente todo o sul do país e não tinham como sistema o uso intensivo do solo e das florestas. O machado civilizador reduziu suas florestas, cedendo lugar à instalação de serrarias, à exploração madeireira, ao plantio de trigo e soja. De povos com autonomia, passaram à tutelados, sendo inseridos na lógica do desenvolvimentismo. Entre desenvolvimento e políticas indigenistas, restou o desmatamento de suas terras, a integração às avessas e o descompasso entre tradição e modernização. Palavras-chave: Povo Kaingang, Políticas Indigenistas, Desenvolvimento, Desenvolvimentismo e Desmatamento.

Considerações iniciais

Nos auspícios da República a palavra da ordem foi o progresso. Assim, ao longo dos

novecentos, a sociedade brasileira experienciou transformações marcantes com a derrocada

da política do café-com-leite, a ascensão de Getúlio Vargas ao poder, a adoção do nacional-

desenvolvimentismo, as ditaduras e golpes de Estado e, dessa forma, com a implantação de

novas diretrizes políticas direcionadas a modernização da economia. Da idéia de progresso no

nascente século XX passou-se à procura do seu correlato herdeiro, o almejado

desenvolvimento. Inicialmente o desenvolvimento foi talhado como desenvolvimentismo, com o

condicionante político ideológico do nacionalismo.

A partir de ideias organicistas que norteavam intelectuais e políticos nos auspícios

republicanos, para o Brasil alcançar o progresso e, posteriormente, o desenvolvimento, se fazia

1 Historiadora, mestre em Desenvolvimento Regional (UNISC) e doutoranda em História pela

Universidade Federal de Santa Catarina (PPGH/UFSC). Email: [email protected] 2 Geógrafo e mestre em Desenvolvimento Regional (UNISC). Email: [email protected]

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necessário a solidificação do Estado Nação, com uma identidade e controle de suas gentes e

territórios. Desde o período colonial ao imperial os índios foram atendidos sobretudo pela

catequese missionária por meio da constituição de aldeamentos para a “civilização” do gentio.

Àqueles povos indígenas (índios “hostis” e “bravios” dos sertões) que não confluíssem para a

catequese e civilização foram direcionados à Guerra Justa e consequentemente escravizados.

Por outro lado, no início da República esta tutela (aos índios “mansos”) se laicizou e o Estado

criou o Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN) em

1910.1 Os índios passaram de um atendimento missionário para um que confluísse aos

modelos de desenvolvimento do país.

O foco deste trabalho se concentra na compreensão do que representou o

desenvolvimento e as políticas indigenistas enquanto processo de “integração” dos povos

indígenas, e, especificamente, no caso dos Kaingang, ao contexto capitalista brasileiro. As

políticas indigenistas envolveram os índios na produtividade, com isso, procurou-se transformar

os índios em trabalhadores nacionais, e mais especificamente, rurais. No caso do povo

Kaingang esse direcionamento à produtividade capitalista é mais latente que para os índios das

regiões de fronteira e do norte do país, sobretudo porquanto sofriam a pressão regional sobre

suas terras. O Estado por meio de sua agência (SPI) instalou Postos em territórios ameríndios,

delimitou terras aos índios que não possuíam autonomia jurídica de seus territórios e efetivou o

controle sobre as terras e Postos visando as potencialidades econômicas. Com a finalidade da

promoção dos Postos Indígenas, administrados por agentes tutelares, o governo promoveu a

exploração das terras, extraindo madeira ou concedendo a extração à regionais não indígenas

na exploração, arrendando as terras à terceiros, e, gradativamente, implantando lavouras de

produtos diversos com a justificativa da necessidade de gestão e provimento do Posto e dos

índios. Por conseguinte, a medida que a mata era extraída, a floresta cedeu lugar à introdução

do plantio de trigo e de soja.

1. Para o desenvolvimento do Brasil: a integração dos índios e o poder tutelar

[...] dar ao índio ensinamentos uteis, procurando despertar nele os sentimentos nobres, incutir-lhe a idéia de que faz parte da nação brasileira e, ao mesmo tempo, prestigiar as suas próprias tradições e manter nele, bem vivo, o orgulho de sua raça e de sua tribo; [...] criar um ambiente de respeito recíproco entre o índio e o civilizado; [...] envidar esforços por melhorar as condições materiais da vida indígena, despertando o gosto do índio para a agricultura e indústrias rurais; [...] promover, em colaboração com os orgãos próprios, a exploração das riquezas naturais, das indústrias extrativas ou de quaisquer outras fontes de rendimento, relacionadas com o patrimônio indígena ou dele provenientes no sentido de assegurar, quando oportuno, a emancipação econômica das tribos;

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[...] criar postos, visando atrair o índio e fixá-lo pela cultura sistemática da terra e estabelecimento das indústrias rudimentares mais necessárias. (BRASIL, Decreto nº 10.652, 16/10/1942, Regimento do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), Capítulo I, Art.1º, incisos h, j, l, m e p)

Conforme é possível perceber neste excerto o desenvolvimento do Brasil não estava em

acordo com a questão indígena, por sinal, há um descompasso entre o modo de vida dos

índios e as intenções e práticas dos governos. De qualquer forma, o destino das populações

indígenas já estava posto nas diretrizes do Regimento do SPI e assim se constituiu a

integração dos índios aos modelos de desenvolvimento do Brasil.

O advento do período republicano brasileiro trouxe renovações importantes na forma de

abordar os povos indígenas. Até então o que regia o tratamento aos silvícolas era o

Regulamento das Missões de 1845. As propostas assimilacionistas ganharam força no século

XIX. De forma crescente desde Pombal, passou-se a direcionar o tratamento aos índios no

contexto de integração à sociedade nacional de forma que estes se tornassem cidadãos com

acesso a terra. A partir de 1861 os índios foram inseridos na esfera do Ministério da Agricultura

e Obras Públicas indicando a predisposição consolidada no século XX em abordar a questão

indígena como uma questão de terras ou agrária (CUNHA, 1992, p.223). De acordo com o

antropólogo Darcy Ribeiro (1996) os primeiros vinte anos da República se apresentaram como

frentes de luta contra os índios em meio à abertura de estradas e ferrovias. Os conflitos entre

índios e brancos no sul do Brasil tomaram contornos de genocídio deflagrado nos jornais e

notícias no Brasil. As populações das zonas pioneiras exigiam medidas de proteção em relação

aos “ataques” dos índios hostis e arredios, ou agiam de forma autônoma em sua própria

defesa.

Tais conflitos e práticas promoveram debates sobre a questão indígena entre políticos e

intelectuais, uns adeptos da defesa do projeto de desenvolvimento assumido pelo Brasil, a

colonização europeia, outros estarrecidos com o extermínio de grupos indígenas invisibilizado

pelos governos estaduais e municipais.

O poder tutelar, nas palavras de Antonio Carlos de Souza e Lima (1995) representa o

poder de um Estado Nacional, este não considera a capacidade dos povos indígenas em se

reconhecerem na sua territorialidade, não admite as especificidades de identidade étnica,

tradições e costumes, rotula populações e procura inserir estas num sistema de atribuições

positivas e negativas. À medida que o poder tutelar dá acesso aos direitos básicos como a

terra, impõe a assistência como forma de justificar a incapacidade dos indígenas de serem

atores políticos de suas próprias trajetórias. As reservas indígenas apesar de serem

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reconhecidas pela administração pública como de posse dos índios, pautadas no sistema

estatizado de controle, representam nas palavras de Lima finalidade disciplinar no acesso as

terras e na utilização das mesmas, se encaminhando para a construção de um modelo

fundiário de abrangência nacional.

O Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN) foi

criado pelo Decreto nº 8.072 de 20 de julho de 1910. O conhecido órgão que a partir de 1918

passou a se chamar apenas Serviço de Proteção aos Índios (SPI) previa a organização de

núcleos de atração de índios hostis e arredios e concedia terras onde índios residiam e

praticavam hábitos sedentários. O Marechal Cândido Rondon foi convidado a dirigir a

instituição federal de assistência, porém, mesmo não tendo permanecido sempre a frente do

órgão indigenista, por décadas o positivista ortodoxo – como qualificou Lima (1995) –, inspirou

as ações da tutela.

Ao longo de sua trajetória o SPI oscilou entre ministérios,2 mas em boa parte de sua

existência se manteve ligado ao Ministério da Agricultura. Em 1967 foi extinto e substituído pela

Fundação Nacional do Índio/FUNAI. Certa condição e inconstância de lugar para tratar a

“questão indígena” indica no mínimo a dificuldade em situar os “silvícolas” no contexto da

sociedade brasileira, por vezes, inclinando-os ao campesinato, noutro momento pensados

como trabalhadores inseridos na cadeia produtiva do comércio e indústria por meio da extração

de recursos naturais (madeireira, serraria, erva-mate, entre outros), e, por fim, como “agentes

sociais” estratégicos na “garantia” do território ao governo brasileiro.

O serviço de proteção tutelar exercido pelo SPI apresenta claramente os índios como um

estrato social transitório à medida que passariam a categoria de trabalhadores nacionais

(LIMA, 1995, p.120). De cunho disciplinar, a tarefa do serviço era transformar de forma

gradiente os transitórios índios em trabalhadores agrícolas, nas palavras de Lima (p.126) “O

‘destino final’ da população indígena seria, pois, o mercado de trabalho rural, sob a rubrica de

trabalhador nacional.”

A FUNAI apesar de ter a incumbência de construir um novo modelo de indigenismo no

Brasil baseado na segurança e desenvolvimento, estava pautada, assim como o SPI, na

necessidade de integração do índio à sociedade nacional, assim, fez prevalecer o estímulo à

mudança (aculturação) (FREIRE e OLIVEIRA, 2010, p.131 e 132). A tutela deste órgão atuou

na administração do patrimônio indígena existente nos Postos Indígenas e promoveu

amplamente o financiamento de projetos indigenistas com base na geração de renda para tais

terras. Na prática, cabia as agências indigenistas a gestão e promoção do patrimônio indígena

dos Postos. Na região sul do Brasil, os Postos Indígenas receberam a implantação de projetos

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agrícolas (trigo e soja principalmente), de extração florestal (serraria) e reflorestamento, e, sob

os auspícios da integração, se tornaram referência de modelo de desenvolvimento econômico

e produtividade implantado pela FUNAI em terras indígenas no Brasil.

A FUNAI nasceu no Ministério do Interior (MINTER). O MINTER, criado em meio à

reforma ministerial do governo Costa e Silva em 1967, permaneceu atuando enquanto

ministério até o ano de 1985. Esse ministério tinha como pressuposto a expansão das

fronteiras econômicas, ocupação dos espaços e a integração nacional. O SPI foi extinto no

contexto de denúncias em relação ao tratamento aos povos indígenas (invasão de terras,

epidemias, violência e maus tratos, genocídios) e acusações de corrupção do órgão e seus

funcionários. Egon D. Heck (1996) afirma que o “novo modelo de indigenismo” inaugurado pela

regência dos militares experimentou características próprias e distintas assim como fases

diferentes ao longo dos vinte anos do regime militar.

2. Entre desmatamento e desenvolvimento

Certa aptidão econômica oriunda do modelo agrário-exportador não é apanágio do

passado e da história do Brasil. Apesar desta inclinação, o país experimentou outros modelos

de desenvolvimento sobretudo com a ascensão de Getúlio Vargas ao poder. O ano de 1930

representa o divisor de águas no Brasil visto que trouxe aceleração das mudanças sociais e

políticas (CARVALHO, 2012). A criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio como

uma das primeiras medidas do governo de Vargas já manifestava as diretrizes de

desenvolvimento a partir de então. A Era Vargas implantou um projeto de modernização

pautado no nacionalismo e nos setores de base, assim, associava o nacional ao

desenvolvimento de novas atividades econômicas como a industrial. Surge então o nacional-

desenvolvimentismo.

Ao vincular o interesse nacional ao desenvolvimento capitaneado pelo Estado, o

nacional-desenvolvimentismo promulga a promoção de novas atividades econômicas,

sobretudo as industriais com vistas à diversificação do mercado interno. O desenvolvimentismo

se manteve na pauta das agendas governamentais desde Vargas até a “década perdida”, ou,

até os anos de 1980, quando os militares saem do poder.

O Brasil do período militar estava sustentado no binômio segurança e desenvolvimento. A

FUNAI desde sua criação até o período que esteve sob a regência dos militares foi comandada

diretamente por estes. As ações implementadas pela agência no período militar se

direcionavam à coalização de segurança por meio do controle das aldeias e terras indígenas,

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das comunidades e lideranças e, por fim, ao estabelecimento de projetos de desenvolvimento e

integração (agricultura, pecuária, madeira, minérios, entre outros).

A presença do exército nas políticas indigenistas são uma constante desde o período

republicano. Por outro lado, os militares do período do golpe instituem novas políticas

indigenistas que se encaminham para uma integração acelerada do índio ao projeto econômico

do Estado de segurança e desenvolvimento. Ao enfocar o caso da Terra Indígena Xapecó,

reconhecesse que foi sob os auspícios das novas práticas indigenistas da FUNAI que esta

terra se inseriu definitivamente no modelo econômico de desenvolvimento regional capitalista:

índio + produção e produtividade = integração nacional e desenvolvimento do Brasil.

As terras indígenas no Brasil não são corpos exógenos desconectados do processo de

desenvolvimento adotado pelo país. O poder tutelar exercido pelo SPI e pela FUNAI se

incumbiu de inserir os postos indígenas na lógica de produtividade ganhando contornos de

exploração capitalista. O aparelho tutelar brasileiro é o principal responsável pela

transformação ambiental dos territórios indígenas e sua inserção nas cadeias produtivas

regionais. Os mananciais de riquezas das terras expressos em potencialidades agrícola,

pecuária e de extrativismo florestal (madeira) foram explorados direta e indiretamente pelo

órgão indigenista ao seu tempo com a justificativa de benefícios aos nativos por meio do

trabalho dos próprios índios (LIMA, 1995, p.76). O que deveria então pressupor a extirpação

das condições de miserabilidade e pobreza nas terras indígenas, não se apresentou na prática.

As desigualdades socioeconômicas são sentidas ao percorrer as Terras Indígenas no sul

do Brasil. Àqueles indígenas que conseguem acessar trabalho temporário e/ou permanente

nos municípios vizinhos, na cadeia produtiva regional, como professores ou outros cargos

públicos se apresentam em melhores condições. A prática do arrendamento, herança deixada

pelos agentes indigenistas dos Postos aos índios, ainda se caracteriza como a principal renda

para muitas famílias, porém, quanto maior a família, menor será seu acesso às terras internas,

pois a população cresce e o tamanho da terra continua o mesmo.

2.1 As muitas faces da exploração do Povo Kaingang

No sul do Brasil existem mais de quarenta terras indígenas Kaingang, conforme se pode

visualizar na Figura 1 com seus respectivos nomes e localização nos estados e, ainda, sua

condição fundiária. Uma parcela das terras indígenas Kaingang tem décadas de existência, e,

algumas, mais de cem anos. Em geral, as terras Kaingang, ao seu tempo e modo, vivenciaram

processos de luta, autonomia, reconhecimento e de consolidação do direito à terra e de

sobrevivência da comunidade. Este processo de autonomia não se desenrolou sem conflito,

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esbulho, espoliação e grilagem ao longo do século XX, inclusive, com a anuência dos governos

estaduais e o auxílio de funcionários/dirigentes do órgão tutelar que procurou facilitar estes

processos (ALMEIDA e NÖTZOLD, 2011). Para o historiador Leandro Mendes Rocha (2003,

p.150) a grilagem das TIs ocorre onde há frentes pioneiras agindo, terras ameaçadas pelas

frentes de expansão.

Figura 1: Mapa de localização das Terras Indígenas Kaingang no sul do Brasil

Fonte: Elaborado pelos autores a partir da localização das Terras Indígenas Kaingang no Brasil da FUNAI e IBGE (2001) e do ISA (2012).

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A Terra Indígena Xapecó alcança uma população de 4.648 habitantes,3 assim, se

constitui na maior terra indígena de Santa Catarina. Os Kaingang enquanto etnia representam

o terceiro maior grupo indígena brasileiro, alcançando 37.470 indivíduos, ultrapassados em

população apenas pelos Tikúna, com 46.045 indivíduos, e pelos Guarani-Kaiowá, com 43.401

indivíduos, segundo o Censo IBGE, 2010.

A paisagem que predomina atualmente no oeste catarinense pouco lembra o bioma Mata

Atlântica, ademais, a paisagem da TI Xapecó, ainda que apresente remanescentes florestais,

acompanhou o processo de exploração da cobertura florestal ao longo do século XX. Este

processo de substituição das florestas por lavouras se intensificou com o incentivo do governo

estadual à colonização do oeste capitaneado por empresas colonizadoras. Tais empresas

foram responsáveis pela comercialização de “terras pertencentes ao Estado”, porém, as terras

que não eram ocupadas por fazendeiros, eram territórios de usufruto de comunidades

sertanejas, ervateiras, caboclas e indígenas sem título de posse. Gradativamente foi se

tecendo os embates por terras. A Guerra Sertaneja do Contestado (1912 – 1916) que findou

com um acordo de limites estaduais entre Santa Catarina e Paraná, conforme afirma Pinheiro

Machado (2004), corroborou para acentuar as inconstâncias da natureza da ocupação

demográfica e do perfil social e político das comunidades do oeste. Essa querela entre estados

não dissipou as disputas pelas terras bem como a precariedade da posse aos pequenos

lavradores e, sobretudo, às populações indígenas, por sinal, com a chegada dos descendentes

de imigrantes, os sertões e florestas do oeste catarinense cederam lugar à colonização

pautada na agricultura familiar.

2.1.1 O desmatamento da Terra Indígena Xapecó (SC)

A cobertura vegetal do oeste catarinense e da TI Xapecó está longe de sua constituição

original, pois foi profundamente alterada em virtude da ação antrópica associada ao

desmatamento para a agricultura intensiva que nas últimas décadas se direcionou ao

agronegócio. A economia regional é baseada em lavouras de monocultivo, principalmente de

soja, com emprego de tecnologias, e na cadeia produtiva da avicultura e suinocultura. A

paisagem da TI Xapecó apresenta vegetação densa nas aldeias próximas ao rio Chapecó e

seu afluente, o rio Chapecozinho, sobretudo na região de confluência, mas em grande parte,

tem áreas de ação antrópica com cultivo, desmatamento, pastagens e vegetação secundária

em estágio de regeneração. As lavouras de monocultura que predominam são de soja,

referenciado no sistema de parceria entre alguns indígenas e agricultores do entorno.

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Sob a administração do órgão indigenista SPI, a TI Xapecó teve em suas terras instalada

uma serraria na década de 1950 que gerava madeira para as madeireiras que a circundavam e

que por fim comercializavam o produto manufaturado. Antes mesmo de haver uma serraria na

terra, a atividade extrativista era realizada por terceiros que com a anuência do SPI exploravam

as florestas. A FUNAI quando assumiu a tutela continuou este processo e se incumbiu de

acirrar a extração da cobertura florestal por meio de editais públicos e contratos.

Em 1964 um agente do SPI encarregado do Posto esclarece que parte das terras eram

aproveitadas para lavouras temporárias, sendo que havia pastagens naturais e áreas

improdutivas. Contudo, o agente ressalta que havia um “grande pinheiral com dois tipos de

coníferas e pequenos bosques de mata arbustiva” e que este Posto tinha “a maior reserva de

pinheiros do Estado de Santa Catarina”. O agente ainda revela que três grupos disputavam a

“tentativa de invasão das terras: um grupo dono de serraria em Xanxerê, o Prefeito de Chapecó

e um outro grupo de madeireiros do Estado” (RELATÓRIO, 05/06/1964). Neste sentido, é

possível afirmar que as terras dos índios eram visibilizadas e cortejadas pelos regionais não

indígenas com interesses capitalistas no potencial bioenergético de suas florestas.

Para se ter uma compreensão da transformação da paisagem da TI Xapecó em tempos

de FUNAI realizou-se a análise multi-temporal da cobertura florestal para os anos de 1975,

1985, 1995 e 2008 a partir da classificação da mata por imagens de satélite. A cobertura

florestal na TI Xapecó alcançou em 1975 um total de 40,93% (6.665,64 ha), na década

seguinte, em 1985, apresentou regeneração, alcançando 44,56% (7.256,70 ha). A partir de

então, a cobertura florestal apresentou tendência de redução, em 1995 baixou para 41%

(6.676,74 ha) e em 2008 diminuiu para 36,22% (6.095,09 ha).4

Em 1975 a análise multi-temporal evidencia que havia um total de 40,93% de cobertura

florestal na TI Xapecó. Porém, o geógrafo Roberto M. Klein (1978) indicou que a região desta

Terra Indígena – coberta pela Floresta de Araucária (Floresta Ombrófila Mista) e Floresta

Subtropical (Floresta Estacional Semidecidual) –, apresentava uma cobertura florestal densa

originalmente. Dessa forma, ainda que a cobertura florestal da TI Xapecó não alcançasse

100% do total, certamente sua representatividade chegava a quase isso, o que indica que a

ação antrópica alterou circunstancialmente a fitogeografia da TI Xapecó antes mesmo de

1975.5 A Tabela 1 esclarece os dados e apresenta a oscilação de aumento e redução em

comparação ao ano de 1975.

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Tabela 1: Perspectiva Multi-Temporal da cobertura florestal da TI Xapecó e Glebas A e B

ANO SATÉLITE HECTARES

(HA) PORCENTAGEM

(%) REDUÇÃO/AUMENTO COM BASE EM 1975

1975 LandSat – MSS, 08/11/1975, resolução 80m

6.665,64 40,93 ---

1985 LandSat – TM5, 01/03/1985, resolução 30m

7.256,70 44,56 + 3,63

1995 LandSat – TM5, 30/04/1995, resolução 30m

6.676,74 41,00 + 0,07

2008 Cbers – HRC, 30/05/2008, resolução 2,5m

6.095,09 36,22 - 4,71

TOTAL --- 16.283,95 --- ---

Fonte: Elaborada pelos autores a partir de classificação multi-temporal para a TI Xapecó, anos de 1975, 1985, 1995 e 2008.

Em quatro décadas alguns fatores implicaram no aumento e na redução da cobertura

florestal nas terras dos índios. Em mais de quarenta anos (1975 a 2008) ocorreu uma redução

de 4,71% da cobertura florestal, porém, entre em 1985 e 2008, pouco mais de duas décadas, a

cobertura passou de 44,56% para 36,22%, apresentado uma redução significativa de 8,34%.

A TI Xapecó está inserida numa região do bioma Mata Atlântica, com predominância da

cobertura vegetal pela Floresta Ombrófila Mista (79,40%) e em menor parte pela Floresta

Estacional Decidual (20,60%) (ISA, 2012). A Figura 2 com o mapa da perspectiva multi-

temporal, com a classificação das imagens de satélite para os anos de 1975, 1985, 1995 e

2008, evidencia onde há cobertura florestal na TI Xapecó bem como onde sofreu redução, com

isso, deve-se considerar algumas características sobre a cobertura florestal:

a) Floresta Subtropical ou Floresta Estacional Semidecidual:6 se mantém mais

constituída conforme a análise multi-temporal, sobretudo na confluência do rio

Chapecozinho com o rio Chapecó, situada em altitudes de 300 até 500 m, porção

sudoeste da TI.

b) Floresta de Araucária ou a Floresta Ombrófila Mista:7 floresta que teve maior redução

de área, por se apresentar em altitudes entre 500 até 900m com relevo e declividade

menos acentuados, sua degradação gerou espaços para roçados, pastagens e para

as mencionadas lavouras de parceria. Deve-se considerar também que em virtude da

sede do PI Xapecó estar situada dentro desta floresta, em direção centro ao nordeste,

e mais distante da Floresta Estacional Semidecidual, a paisagem da Floresta

Ombrófila Mista foi a mais recorrente da ação antrópica. Klein (1978) indica que as

árvores desta floresta produzem madeiras com considerável valor econômico.

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Figura 2: Perspectiva multi-temporal da TI Xapecó e Glebas A e B para os anos de 1975, 1985, 1995 e 2008

Fonte: Elaborado pelos autores a partir das imagens de satélites LandSat – MSS, 08 de novembro de 1975 com resolução espacial de 80m, LandSat – TM5, 01 de março 1985 com resolução espacial de 30m, LandSat – TM5, 30 de abril de 1995 com resolução espacial de 30m e Cbers – HRC, 30 maio de 2008 com resolução espacial de 2,5m, todas disponibilizadas pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais/INPE, 2012.

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Crises do Capitalismo, Estado e Desenvolvimento Regional

Santa Cruz do Sul, RS, Brasil, 4 a 6 de setembro de 2013

O desmatamento da TI Xapecó se apresentou menos drástico se comparado ao contexto

regional e do Estado catarinense, pois conforme esclarece o biólogo Medeiros (2006, p.45)

85% do território catarinense estava coberto pela Mata Atlântica e, neste limiar de século XXI,

restam 17,46% da área original. Por outro lado, isso indica a pressão regional e interesses

velados nos quais os índios foram envolvidos.8 A transformação da cobertura florestal da

paisagem da TI Xapecó contou com a conjugação de vários fatores intervenientes, como:

a) parceria ou arrendamento por parte da agência tutelar das terras dos índios à terceiros

não indígenas com vistas ao cultivo(agricultura) e criação de animais;

b) implantação das lavouras e currais do Posto Indígena com o emprego do trabalho

compulsório dos indígenas;

c) gradativa extração das florestas por conta dos agentes do Posto com vistas a atender

à demanda regional por madeira;

d) instalação de serrarias de terceiros dentro das terras dos índios a partir de acordos

com os encarregados do Posto;

e) instalação de uma serraria pela agência indigenista na qual os próprios índios

trabalhavam para extrair madeiras para a comercialização do Posto.

Estes fatores se originaram e estão associados a intervenção do poder tutelar,

especificamente representado na atuação do SPI e da FUNAI. Tais fatores foram estratégias

de “geração de renda” aos Postos Indígenas, visto que na maioria dos governos a agência

indigenista não tinha verba suficiente para promover a assistência, proteção, nacionalização e

integração dos índios à sociedade nacional. Assim, a “necessidade” de manutenção da

estrutura dos Postos Indígenas – que contava com uma sede, escola, enfermaria, “cadeia” e

“polícia indígena”, mas também funcionários, e outras demandas, como a compra de materiais

e utensílios de trabalho na lavoura, criação de animais, etc –, forjou a auto-subsistência e o

incremento da renda do patrimônio indígena. Por outro lado, fica expresso nestes fatores os

interesses exógenos aos dos índios e da agência indigenista, como a demanda de terceiros por

terras e madeiras.

A extração de cobertura florestal na TIX, por conta de suas reservas naturais de madeira

de lei, aos poucos, em virtude também da escassez de madeira na região (que já vinha sendo

explorada há algum tempo), representou umas das alternativas de renda ao Posto. Verifica-se

em vários documentos da década de 1950 do Posto Indígena Xapecó, endereçados à 7ª

Inspetoria Regional do SPI (IR7), a cobiça e a invasão de madeireiros regionais às reservas

florestais da TI Xapecó.9 Num Ofício de 02/07/1954 o encarregado do Posto Xapecó reforça a

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importância da instalação de uma serraria em vista de que a “[...] madeira está num preço

extraordinário”.10 Porém, desde o final da década de 1940 já havia “editais” promovidos pela

IR7 para proposta de venda de “[...] pinheiros tostados pelo fogo e sem vitalidade vegetativa,

mas ainda aproveitáveis para fins industriais [...]” em várias terras indígenas desta inspetoria.11

O que de certa forma chama a atenção é a incidência nos documentos de incêndios nas matas.

Os incêndios desvitalizam e tostam pinheiros e madeiras de lei que passam a ser vendidos

para as madeireiras regionais, porém, há documentos que indicam que tais incêndios também

eram criminosos.12

Considerações Finais

O SPI sofreu com a falta de verbas para patrocinar sua assistência aos índios no Brasil, o

período da FUNAI, administrado pelos governos militares, foi um pouco distinto (POZZOBON,

1999). Ainda que os militares tenham buscado combater os desvios de verbas da renda

indígena e livrar as terras dos potentados locais e regionais, as estratégias de controle,

integração nacional e modernização dos governos militares promoveram, com mais recursos

financeiros para a FUNAI, a implementação de projetos de grande impacto e possibilitaram a

inserção dos postos indígenas – sobretudo no sul do Brasil –, na lógica de produção e

produtividade que pairava no modelo desenvolvimentista do “milagre econômico”.

O governo militar quando buscou compreender os meandros do órgão indigenista do SPI

e se propôs a renovar a forma de administrar e controlar os postos indígenas no Brasil acirrou

o processo de integração destas comunidades no modelo (nacional) desenvolvimentista. Ao

descobrir em que condição estava a administração dos Postos, trocou os encarregados ou

chefes e procurou demandar políticas de cima para baixo, por meio dos já comentados

projetos. Eis que surgem os projetos de Agricultura, Serraria, Reflorestamento, entre outros,

nitidamente orientados pelas políticas indigenistas de militares coordenando a FUNAI. Sob

controle, as atividades dos postos ganharam ares de exploração capitalista.

Esse processo de desmatamento aqui exposto está estreitamente vinculado aos modelos

de desenvolvimento adotados pelos governos brasileiros a partir de Getúlio Vargas, ademais,

para atender a “questão indígena”, da proteção, assistência e integração dos índios se fez

necessários investimentos de infra-estrutura e financeiros. Para muitos governos brasileiros

eram os próprios índios que deveriam arcar com tais investimentos, uma vez que os

“benefícios da civilização” eram para estes mesmos e, consequentemente, serviam de modelo

de integração e desenvolvimento.

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Crises do Capitalismo, Estado e Desenvolvimento Regional

Santa Cruz do Sul, RS, Brasil, 4 a 6 de setembro de 2013

A proteção e assistência tutelar ao longo do século XX não passaram de uma falácia. Em

nome da integração e do desenvolvimento os povos indígenas perderam autonomia política,

territorial e se afastaram do habitus social. A modernização do Brasil foi cunhada a partir do

cerceamento da tradição e liberdade dos ameríndios. Os Kaingang estabeleciam relações entre

sociedade e ambiente muito distintas dos pressupostos europeus ocidentais, por sinal, seu

cotidiano estava submerso nas relações com a natureza. Para manter a organização social

bem como a autonomia e ecologia humana necessitavam do contato com as florestas ou o

“mato virgem”. Do domínio das florestas extraiam não somente “remédios do mato” como

também pautavam suas expressões cosmológicas e mitológicas, religiosas e culturais. Do

domínio da natureza passaram, sob a tutela indigenista, à natureza dominada. Suas restritas

florestas na contemporaneidade não dão conta das necessidades do povo e não respondem

mais a subsistência social e cultural. Outras relações foram tecidas, outras formas de vida

foram cunhadas, mas ainda assim, necessitam de suas terras para continuar vivendo.

Referências

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Kaingang: os conflitos na Terra Indígena Xapecó (SC/Brasil) ao longo do século XX. Revista

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OFÍCIO, 02/07/1954. Posto Indígena Xapecó, encarregado Nereu Moreira da Costa à 7ª

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RELATÓRIO, 50/06/1964. Posto Indígena Dr. Selistre de Campos. Documento 0576 ao

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RELATÓRIO, 30/12/1968. Delegado da 4ª DR/FUNAI, Rubens Teixeira Ramos, e pelo

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TELEGRAMA, 01/06/1951. Posto Indígena Xapecó, elaborado pelo encarregado Nereu Costa à

7ª Inspetoria Regional do SPI. Planilha 703, Microfilme 064, Acervo Documental do Museu do

Índio/FUNAI, Rio de Janeiro.

1 A partir de 1918 passou a se chamar apenas Serviço de Proteção aos Índios (SPI).

2 O SPI integrou o Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio de 1910 até 1930, depois o Ministério

do Trabalho, Indústria e Comércio de 1930 a 1934, posteriormente passou para o Ministério da Guerra por meio da Inspetoria Especial de Fronteiras de 1934 até 1939 e em 1936 ao Estado Maior do Exército. Em 1940 retornou ao Ministério da Agricultura passando a contar com a ajuda do órgão assessor e normativo Conselho Nacional de Proteção aos Índios (CNPI), criado pelo Decreto nº. 1.794, 22/11/1939. 3 Se considerou nestes dados de população além dos indígenas da Terra Indígena Xapecó, ainda os das

Glebas A e B, Canhadão e Pinhalzinho, terras lindeiras e que há algumas décadas integravam a TI Xapecó. Canhadão e Pinhalzinho estão declaradas e com reconhecimento do Ministério da Justiça, aguardando homologação (Censo IBGE, 2010). 4 Considerou-se para fins de análise multi-temporal o conjunto de 16.283,95 ha, oriundos da soma de

15.623,95 ha da TI Xapecó e os 660 ha das Glebas A e B. 5 Não há imagens de satélite disponíveis pelo INPE da área de estudo para serem incluídas nesta

interpretação multi-temporal antes de 1975. 6 A Floresta Estacional Semidecidual é reconhecida por Klein (1978) como Floresta Subtropical da Bacia

do Uruguai, “mata branca”. 7 A Floresta Ombrófila Mista é nominada por Klein (1978) como Floresta de Araucária ou dos Pinhais,

“mata preta”. 8 Ainda que tardio, o desmatamento da TI Xapecó acompanhou a devastação regional, por sinal, sofreu

a pressão de terceiros quanto às suas terras e florestas. 9 Denúncia de invasão das terras do Chapecozinho por oito homens munidos de serras, machados,

outras ferramentas e armas de fogo. Esse grupo, à mando de Berthier de Almeida, derrubou pinheiros e outras madeiras de lei, sendo que estas foram levadas a serraria do respectivo nas cercanias da terra indígena (OFÍCIO, 03/06/1951; TELEGRAMA, 01/06/1951). 10

O encarregado do Posto Indígena Xapecó Nereu Moreira da Costa argumentando em correspondência à IR7 da importância da instalação de uma serraria na TI (OFÍCIO, 02/07/1954). 11

Sobre venda pinheiros tostados pelo fogo no Posto Indígena Apucarana (PR) (DOCUMENTO, 30/04/1947). 12

A querela dos incêndios na TIX aparece constantemente nos documentos como motivo para a venda e comercialização de madeiras que estavam apodrecem devido as intempéries do tempo. O Relatório 30/12/1968 afirma veementemente em sua análise sobre as condições do Posto Indígena Dr. Selistre de Campos que tais incêndios são criminosos e denotam interesses alheios (RELATÓRIO, 30/12/1968).