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141 RESUMO ENTRE A JUSTIÇA E A SOLIDARIEDADE: A CIDADANIA QUE SE EXERCE NA POLÍCIA CIVIL BRASILEIRA Rev. Sociol. Polít., Curitiba, v. 20, n. 42, p. 141-166, jun. 2012 Recebido em 28 de setembro de 2010. Aprovado em 19 de janeiro de 2011. Ludmila Ribeiro Julita Lemgruber Klarissa Almeida Silva Pretende-se discutir o papel da Polícia Civil em um cenário democrático, quando a cidadania deveria encontrar-se plenamente institucionalizada. Para tanto, serão utilizadas informações (quantitativas e qua- litativas) referentes a 235 delegacias brasileiras, coletadas no âmbito da III Semana de Visitas a Delegacias de Polícia (2009), uma pesquisa internacional que tem como objetivo levar cidadãos, potenciais usuários dos serviços oferecidos por tais agências, a avaliar o atendimento ao público e a transparência dos serviços prestados pelas delegacias de polícia. O objetivo é relacionar as definições teóricas de solidariedade e justiça a determinadas percepções de cidadania que podem ser inferidas das avaliações realizadas. Para tanto, o presente artigo está estruturado em três seções, além da introdução e da conclusão. A primeira apresenta a “Semana de Visitas a Delegacias de Polícia” em suas distintas dimensões. A segunda contextualiza os conceitos a partir dos quais se pretende analisar a atuação da Polícia Civil brasileira, quais sejam: cidadania civil e seu deficit. A terceira reproduz as representações dos indivíduos acerca das práticas observadas nas delegacias de polícia e problematiza em que medida estas coadunam-se ou não com a categoria conceitual “deficit de cidadania”, construída na seção anterior. Ao final, são apresentados alguns apontamentos sobre como a qualidade do atendimento prestado pelas delegacias de polícia pode ajudar no entendimento da dificuldade de se compatibilizar, no Brasil, os ideais de justiça e solidariedade, desde uma perspectiva universal. Os resultados indicam que o atendimento oferecido por essas agências policiais é inadequado e, conseqüentemente, incapaz de coadunar-se com os “princípios de justiça e solida- riedade” que estruturam a própria idéia de cidadania. PALAVRAS-CHAVE: cidadania; justiça; solidariedade; Polícia Civil; qualidade do serviço policial. I. INTRODUÇÃO 1 A proposta deste artigo é problematizar o papel da Polícia Civil em um cenário democrático, quando a cidadania deveria encontrar-se plenamente institucionalizada. O ponto de partida é o processo de reforma das organizações policiais, que tem sido empreendido em toda a América Latina com o final dos regimes ditatoriais nos anos 1980 e 1990. Os estudos já realizados têm constatado que, em boa medida, todos os países latino-americanos caminharam no sentido formal da criação de procedimentos e ações policiais mais compatíveis com a idéia de cidadania civil 2 . Contudo, do ponto de vista material, poucos têm sido os avanços apresentados pelas organizações policiais (FRÜHLING, 2009, p. 465). De acordo com Chevigny (2002, p. 59), isso ocorre porque essas reformas não partem de uma discussão acerca de qual deveria ser, idealmente, o papel da polícia. As causas desse problema são 1 Uma primeira versão deste artigo foi apresentada ao 34º Congresso Anual da Associação Nacional de Pós-Gradua- ção e Pesquisa em Ciências Sociais. Agradecemos aos debatedores do trabalho, bem como aos pareceristas anôni- mos da Revista de Sociologia e Política, os comentários valiosos que levaram à versão que se apresenta nesse peri- ódico. 2 Conforme destacado por Marshall (1967), o conceito de cidadania civil remete à idéia de integridade física, igualdade perante a lei, direito à justiça e liberdade de pensamento. Suas principais instituições estatais são a polícia e o poder Judiciário, as quais devem ser entendidas como organiza- ções suficientemente imparciais e confiáveis para a garan- tia de tais direitos. Esse conceito será melhor explicitado na seção IV deste artigo.

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 20, Nº 42: 141-166 JUN. 2012

RESUMO

ENTRE A JUSTIÇA E A SOLIDARIEDADE:A CIDADANIA QUE SE EXERCENA POLÍCIA CIVIL BRASILEIRA

Rev. Sociol. Polít., Curitiba, v. 20, n. 42, p. 141-166, jun. 2012Recebido em 28 de setembro de 2010.Aprovado em 19 de janeiro de 2011.

Ludmila Ribeiro Julita Lemgruber Klarissa Almeida Silva

Pretende-se discutir o papel da Polícia Civil em um cenário democrático, quando a cidadania deveriaencontrar-se plenamente institucionalizada. Para tanto, serão utilizadas informações (quantitativas e qua-litativas) referentes a 235 delegacias brasileiras, coletadas no âmbito da III Semana de Visitas a Delegaciasde Polícia (2009), uma pesquisa internacional que tem como objetivo levar cidadãos, potenciais usuáriosdos serviços oferecidos por tais agências, a avaliar o atendimento ao público e a transparência dos serviçosprestados pelas delegacias de polícia. O objetivo é relacionar as definições teóricas de solidariedade ejustiça a determinadas percepções de cidadania que podem ser inferidas das avaliações realizadas. Paratanto, o presente artigo está estruturado em três seções, além da introdução e da conclusão. A primeiraapresenta a “Semana de Visitas a Delegacias de Polícia” em suas distintas dimensões. A segundacontextualiza os conceitos a partir dos quais se pretende analisar a atuação da Polícia Civil brasileira,quais sejam: cidadania civil e seu deficit. A terceira reproduz as representações dos indivíduos acerca daspráticas observadas nas delegacias de polícia e problematiza em que medida estas coadunam-se ou nãocom a categoria conceitual “deficit de cidadania”, construída na seção anterior. Ao final, são apresentadosalguns apontamentos sobre como a qualidade do atendimento prestado pelas delegacias de polícia podeajudar no entendimento da dificuldade de se compatibilizar, no Brasil, os ideais de justiça e solidariedade,desde uma perspectiva universal. Os resultados indicam que o atendimento oferecido por essas agênciaspoliciais é inadequado e, conseqüentemente, incapaz de coadunar-se com os “princípios de justiça e solida-riedade” que estruturam a própria idéia de cidadania.

PALAVRAS-CHAVE: cidadania; justiça; solidariedade; Polícia Civil; qualidade do serviço policial.

I. INTRODUÇÃO1

A proposta deste artigo é problematizar o papelda Polícia Civil em um cenário democrático,quando a cidadania deveria encontrar-seplenamente institucionalizada. O ponto de partidaé o processo de reforma das organizações policiais,que tem sido empreendido em toda a AméricaLatina com o final dos regimes ditatoriais nos anos1980 e 1990.

Os estudos já realizados têm constatado que,em boa medida, todos os países latino-americanos

caminharam no sentido formal da criação deprocedimentos e ações policiais mais compatíveiscom a idéia de cidadania civil2. Contudo, do pontode vista material, poucos têm sido os avançosapresentados pelas organizações policiais(FRÜHLING, 2009, p. 465).

De acordo com Chevigny (2002, p. 59), issoocorre porque essas reformas não partem de umadiscussão acerca de qual deveria ser, idealmente,o papel da polícia. As causas desse problema são

1 Uma primeira versão deste artigo foi apresentada ao 34ºCongresso Anual da Associação Nacional de Pós-Gradua-ção e Pesquisa em Ciências Sociais. Agradecemos aosdebatedores do trabalho, bem como aos pareceristas anôni-mos da Revista de Sociologia e Política, os comentáriosvaliosos que levaram à versão que se apresenta nesse peri-ódico.

2 Conforme destacado por Marshall (1967), o conceito decidadania civil remete à idéia de integridade física, igualdadeperante a lei, direito à justiça e liberdade de pensamento.Suas principais instituições estatais são a polícia e o poderJudiciário, as quais devem ser entendidas como organiza-ções suficientemente imparciais e confiáveis para a garan-tia de tais direitos. Esse conceito será melhor explicitado naseção IV deste artigo.

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relacionadas ao fato de que os estudos sobre otema são relativamente recentes. Além disso, existeuma grande dificuldade em definir o papel dessaorganização na sociedade.

Em relação ao primeiro problema, Barreira eAdorno (2010, p. 305) destacam que, até a décadade 1990, o crime e, conseqüentemente, asinstituições responsáveis por sua administraçãonão tinham para as Ciências Sociais estatuto deobjeto relevante se comparado, em termos deimportância, aos temas e questões relacionadosao mercado, ao mundo do trabalho, à indústria eao empresariado, ao lado de outros mais afinadoscom processos de reprodução social nasinstituições sociais (como família e escola), àdominação ou à participação e à representaçãopolíticas (como o estudo dos partidos e dasinstituições dos poderes Executivo e Legislativo).Logo, nessa época, os poucos estudos existentessobre o tema tratavam o crime como patologiasocial e as polícias como forças de repressão dasclasses marginalizadas.

Quanto ao segundo problema, a dificuldade emdefinir-se o papel da polícia resulta da própriapalavra “policiamento”, que implica um duplosignificado: um relacionado à proteção das pessoas– por meio da manutenção da ordem (o que podeocorrer pela via do patrulhamento ou pela detençãode suspeitos) e outro relacionado à investigaçãodos delitos praticados que são reportados à políciajudiciária. No caso brasileiro, essa controvérsia éem parte mitigada pela existência, no âmbitoestadual3, de duas polícias: a Militar e a Civil.

Do ponto de vista legal, como estabelecido no§ 4º do artigo 144 da Constituição Federal, a PolíciaCivil, vinculada aos poderes executivos estaduais,tem a competência de apurar as infrações penais,excetuadas as militares, e executar as funções depolícia judiciária, ou seja, realizar as investigaçõescriminais. A Polícia Militar também é subordinadaao chefe do governo estadual e tem aresponsabilidade de realizar o policiamentoostensivo e preservar a ordem pública (§ 5º, incisoIV do art. 144 da Constituição Federal).

Logo, para que a Polícia Civil possa atuar énecessário que a ocorrência de um delito chegueao seu conhecimento, o que pode implicar a idade um policial militar à delegacia para o registroda ocorrência ou no comparecimento de umcidadão à delegacia de polícia para registrar umcrime ou ser testemunha de algum delito praticado.Apenas a partir desses eventos, denominados porMisse (1999) de “criminação” – ou adequação daletra da lei a uma conduta humana, é que a fase decoleta de provas para incriminação de um indivíduocomo responsável pela prática de um delito podeacontecer. Com essa divisão de tarefas, torna-seevidente que, no caso brasileiro, raras são assituações nas quais a Polícia Civil é chamada àatividade de patrulhamento4.

Por outro lado, é importante destacar que,ademais da definição da “missão constitucional”de cada polícia, muito pouco se discute acercados modus operandi recomendáveis para essainstituição. Em parte, o aumento das taxas decriminalidade, vivenciadas pelo Brasil ao longo dosanos 1980 e 1990 (Gráfico 1), fez que o debateacadêmico deixasse de discutir o que a políciapoderia fazer para analisar o que efetivamente sefazia para reduzir os delitos (CANO, 2006). Afinal,a visão política predominante nessas décadas eraa de que o trabalho da polícia consistia em reduziro crime a partir do combate direto ou, para utilizara metáfora muitas vezes empregada pelos políticos,da “guerra contra o crime”.

3 Já que, para o âmbito federal, nos termos do art. 144 daConstituição Federal, existem as seguintes polícias: PolíciaFederal, Polícia Rodoviária Federal e Polícia FerroviáriaFederal.

4 As exceções seriam, por exemplo, as incursões que aPolícia Civil faz em conjunto com a Polícia Militar nasfavelas do Rio de Janeiro. Um exemplo de intervenção nes-se sentido pode ser conferida em PM FAZ OPERAÇÃO(2010).

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A visão política da polícia, por sua vez, ensejouuma grande quantidade de trabalhos acadêmicosque tinha como objetivo, se não problematizar, pelomenos descrever os problemas do cotidianooperacional da polícia5. De maneira geral,revisando os principais estudos sobre a formacomo a organização policial funciona, é possívelclassificá-los em quatro categorias distintas6.

Em primeiro lugar, situam-se os estudos queabordam as práticas dos policiais civis quando dorecebimento de demandas variadas, jurídicas ounão. Como bem destaca Poncioni, “o trabalhodiário do policial é ‘invadido’ por pequenos e

grandes dramas da população, em especial do seusegmento pobre, o que obriga a polícia a intervirem situações absolutamente descoladas do que seconstitui um problema legal e/ou penal”(PONCIONI, 2006, p. 172). É exatamente essetipo de situação, denominada pela própria políciacarioca de “feijoada”7, que favorece odesenvolvimento de um enorme poderdiscricionário do policial na administração dosconflitos interpessoais.

Em segundo lugar, as análises que enfocam omodelo de investigação utilizado pela políciaacabam por ser um problema em vez de umasolução para a eficiência das investigações. Assimdecorre por enfatizarem a discussão de que oinquérito policial, por sua característicaexcessivamente formal, é recheado de análisesjurídicas que deveriam ser de responsabilidade doMinistério Público.

GRÁFICO 1 – TAXA DE HOMICÍDIOS PARA CADA GRUPO DE 100 000 HABITANTES NO BRASIL (1980-2000)

FONTE: Senasp (2003).

5 De acordo com Lima (2009, p. 2), em abril de 2007, obanco de teses e dissertações do portal Capes possuía 2044 trabalhos contendo “violência” como palavra-chave; 2699 para “direitos humanos”; 1 075 pesquisas para“criminalidade”; 790 para “polícia”; 621 para “justiça cri-minal”; 174 para “prisões”, 124 para “tráfico de drogas” e,finalmente, 18 para “guardas municipais”. Esses dadosapenas evidenciam o maior interesse da comunidade acadê-mica pelo tema em geral e pelas organizações policiais emespecial.6 Para uma análise minuciosa de como as delegacias depolícia funcionam e de como esses quatro tipos de estudospodem se combinar em um único, ver Kant de Lima (1995).

7 De acordo com Poncioni (2006), a “feijoada” é compostapor casos diversos que chegam às delegacias de polícia nosquais, a partir da interação com o público, o policial desen-volve um processo de negociação da lei e da realidade quelhe permite manter a ordem, ainda que não necessariamenteem acordo com a lei.

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A conseqüência perversa desse modelo é oatraso das investigações, já que cada passo daatividade policial deve ser minuciosamentedocumentado, obedecendo a princípios“cartoriais”, absolutamente desnecessários à boainvestigação (MISSE et alii, 2010). Um dosresultados desse conjunto de problemas é abaixíssima taxa de esclarecimento de crimes pelaPolícia Civil. Mesmo crimes graves, como ohomicídio doloso, apresentam taxas deesclarecimento vergonhosamente baixas. Nacidade do Rio de Janeiro, por exemplo, a taxa deesclarecimento deste crime situa-se na faixa de8,1%8.

Os trabalhos que focam as externalidadesproduzidas pelas disfunções da ação policial podemser mencionados como componentes de umterceiro grupo de pesquisa. Esses estudos que têmcomo objetivo compreender como uma interaçãoinadequada (do ponto de vista legal) com a políciaou com os organismos de controle da atividadepolicial (como ouvidorias e corregedorias) faz queesse indivíduo não mais procure o órgão paracomunicar a vitimização por crime ou o testemunhode um delito. Como decorrências desse fenômeno,têm-se o aumento da subnotificação e da própriaimpunidade dos casos de violência policial, já queos civis desacreditam que os policiais possam agirde acordo com a lei e, caso não o façam, quepossam ser punidos por seus superiores(LEMGRUBER, CANO & MUSUMESCI, 2003).

Por fim, têm-se os estudos estatísticos quebuscam desmistificar a relação entre a forma deatuação das polícias e as taxas de criminalidade.Essas análises demonstram que ações policiaismarcadas pelo desrespeito aos direitos humanosnão parecem ser a resposta para o problema daviolência urbana, posto que os locais com maioresincidências criminais são também os locais quesofrem a ação mais repressiva da polícia (PERESet alii, 2008).

Logo, apesar de a cidadania civil ser o elementoque, por definição, torna as pessoas iguais perantea lei, independentemente de seu status, o que osestudos já realizados sobre o tema parecemdenotar é a usual incapacidade da Polícia Civil emfazer valer a igualdade de direitos de todos os

cidadãos. E, pior, muitas vezes ela contribui paraconsolidar as diferenças, ao colaborar para que ajustiça acabe por penalizar indivíduos em funçãode seu perfil (LIMA, 2004).

Em termos teóricos, essa discussão podeenquadrar-se naquilo que Luis Roberto Cardosode Oliveira (2005) rotulou como “déficit decidadania”, ou seja, o desequilíbrio entre as idéiasde justiça e solidariedade. Então, uma Polícia Civilefetivamente democrática deveria ser capaz de darvida a esses dois conceitos sempre que um cidadãoa procura para registrar um delito ou servir detestemunha de um crime. No entanto, o quefreqüentemente se observa, nos referidos estudos,é que essa instituição parece dar vida ao antônimodesses termos.

Como a Semana de Visitas a Delegacias dePolícia é um projeto no âmbito do qual a qualidadedo serviço prestado pela Polícia Civil é captadapelos potenciais usuários do serviço, o objetivodeste artigo é relacionar as definições teóricas desolidariedade e justiça a determinadas percepçõesde cidadania que podem ser inferidas dasavaliações realizadas. Com isso, pretende-sediscutir como, no ano de 2009, em nove capitaisbrasileiras, os participantes do projeto captavamesse deficit de cidadania ou esse desequilíbrio entresolidariedade e justiça.

Para tanto, o presente artigo está estruturadoem três seções, além da introdução e da conclusão.A primeira apresenta a “Semana de Visitas a Dele-gacias de Polícia” em suas distintas dimensões. Asegunda contextualiza os conceitos a partir dosquais se pretende analisar a atuação da Polícia Civilbrasileira, quais sejam: cidadania civil e seu deficit.A terceira reproduz as representações dos indiví-duos acerca das práticas observadas nas delegaciasde polícia e problematiza em que medida estascoadunam-se ou não com a categoria conceitual“deficit de cidadania”, construída na seção anterior.Ao final, são apresentados alguns apontamentossobre como a qualidade do atendimento prestadopelas delegacias de polícia pode ajudar noentendimento da dificuldade de compatibilizar-se,no Brasil, os ideais de justiça e solidariedade desdeuma perspectiva universal.

II. A SEMANA DE VISITAS A DELEGACIAS DEPOLÍCIA

A Semana de Visitas a Delegacias de Polícia éuma pesquisa global, realizada simultânea e

8 Como denota a revisão das pesquisas que mensuraram ataxa de esclarecimento, realizada por Ribeiro e Silva (2010).

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anualmente em mais de 20 países com o objetivode levar cidadãos, potenciais usuários dos serviçosoferecidos por tais agências, a avaliarem oatendimento que estas prestam ao público.

A idéia da pesquisa surgiu do trabalho conjuntode seis organizações distintas, sob coordenaçãodo Vera Institute of Justice9, objetivando a criaçãode indicadores para o monitoramento e avaliaçãodo desempenho do sistema de justiça criminal10.A partir desse estudo pioneiro, começou-se adesenhar a criação de uma aliança de centros depesquisa que, contínua e permanentemente,empreendesse investigações com foco na avaliaçãoda qualidade do serviço prestado pelas agênciasdo sistema de justiça criminal.

Assim nasceu a Altus11, cujo principal projetoé a “Semana de Visitas a Delegacias de Polícia”,um evento global e único organizado para: i) avaliara qualidade de serviços prestados pordepartamentos de polícia; ii) identificar boaspráticas policiais; iii) fortalecer a prestação decontas pela polícia no que diz respeito ao públicoque a mesma serve e iv) promover os direitoshumanos. A decisão de enfatizar o tema da políciaestá relacionada com o fato desta constituir-se naprimeira e decisiva instância do sistema de justiçacriminal, o que torna imprescindível não apenasque a comunidade conheça-a bem, mas que sejacapaz de compreender seu papel e confiar em suaatuação, procurando-a sempre que ocorrer umdelito.

Esse debate entre pesquisa e ação insere-se nadiscussão mais ampla do conceito de “seguridad

ciudadana”, bastante difundido na América Latinacomo pano de fundo para analisar-se e pensar aatuação das organizações policiais12. Dentro dessecontexto, devem ser criados mecanismos capazesde promover uma relação positiva entre polícia ecomunidade, contribuindo para a redução dasubnotificação da criminalidade13 (DAMMERT etalii, 2010).

Assim, para que a polícia pudesse sersimultaneamente avaliada quanto à sua capacidadede efetivar a idéia de cidadania civil e aproximar-se da população por ela atendida, era necessáriodesenvolver um instrumento capaz de viabilizar oalcance de tais objetivos. A proposta da Altuspassou a ser, portanto, a construção de umapesquisa-experimento, na qual os indivíduosfossem chamados a opinar, desde uma perspectivacientífica14, sobre a qualidade do serviço prestadopelas delegacias de polícia. Também, por meiodeste exercício, os cidadãos deveriam conhecermelhor suas polícias.

Para desenvolver tal instrumento, a Altusmobilizou uma equipe de pesquisadores de váriospaíses, especialistas na área da polícia. Emseguida, esses indivíduos analisaram osdispositivos de tratados internacionais sobre comoas delegacias de polícia devem funcionar no sentidode garantir que os indivíduos que as procuramtenham um tratamento igualitário para registrarcrimes ou fornecer informações sobre delitos deque foram vítimas ou testemunhas. Entre osprincipais diplomas consultados estão os seguintes:

9 Organização não-governamental sediada em Nova York,hoje coordenadora geral do projeto.10 O projeto era o “Measuring Progress toward Safetyand Justice: A Global Guide to the Design of PerformanceIndicators across the Justice Sector” que contou com aparticipação das organizações que, hoje, são membros fun-dadoras da Altus: Centro de Estudos de Segurança e Cida-dania (Brasil); Centro de Estudos em Segurança Cidadã(Chile); Fundação Cleen (Nigéria); Instituto de Desenvol-vimento e Comunicação (Índia); Fundação Indem (Rússia)e o Instituto de Justiça Vera (Estados Unidos). Para maio-res informações, cf. o sítio da Altus (2012).11 A Altus hoje é uma aliança global que atua em várioscontinentes e adota uma perspectiva multicultural paracontribuir para a melhoria da segurança pública e do siste-ma de justiça criminal. Para maiores informações conferirAltus (2012).

12 Como destacado por Barreira e Adorno (2010, p. 334),o conceito de segurança cidadã não é uma criação brasileira.Trata-se de uma elaboração teórica que vem sendo forjadadesde a Guerra Fria e que tem tido especial impacto nassociedades latino-americanas egressas de regimes autoritá-rios ou de guerra civil. No entender de Tavares dos Santos(2004, p. 172), no caso brasileiro, a incorporação do con-ceito de segurança cidadã como referente para a elaboraçãodas políticas de reforma da polícia representa uma rupturaepistemológica com o conceito de segurança pública que,nessa localidade, é sempre entendida como segurança pro-vida pelo Estado, com o propósito de viabilizar a manuten-ção da lei e da ordem.13 A subnotificação criminal é a diferença entre a quantida-de de crimes que acontecem e a quantidade dos que chegamao conhecimento da polícia.14 Posto que os indivíduos recebem um treinamento parao preenchimento do questionário, como ocorre em qual-quer pesquisa do gênero.

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i) United Nations Body of Principles for theProtection of all Persons Under any Form ofDetention or Imprisonment; ii) United NationsConvention on the Elimination of All Forms ofDiscrimination Against Women; iii) United NationsCovenant on Civil and Political Rights (Iccpr); iv)United Nations Declaration of Basic Principles ofJustice for Victims of Crime and Abuse of Power(“Victims Declaration”); v) United NationsDeclaration on the Elimination of All Forms ofRacial Discrimination (CERD); vi) United NationsDeclaration on the Protection of All Persons fromEnforced Disappearance; vii) United NationsStandard Minimum Rules for Non-CustodialMeasures (“the Tokyo Rules”); viii) UniversalDeclaration of Human Rights15.

A partir desse material, foram formuladas 20perguntas básicas, agrupadas em cinco blocostemáticos: i) orientação para a comunidade; ii)condições materiais; iii) igualdade de tratamentoao público; vi) transparência e prestação decontas; v) condições de detenção. Contudo, paragarantir-se que as opiniões e impressões dosvisitantes pudessem ser registradas de maneirasimultaneamente iguais e diferenciadas, além das20 questões a serem respondidas de acordo coma escala Likert (cinco pontos, variando desdetotalmente inadequada até excelente), esseformulário continha ainda uma seção em que oindivíduo poderia registrar suas impressões maislivremente.

Finalizado o processo de confecção doinstrumento, foi realizado um pré-teste em oitopaíses. Os resultados obtidos demonstraram quea ferramenta era, de fato, capaz de alcançar osobjetivos propostos – de avaliação da qualidadedo serviço prestado pelas delegacias de polícia ede aproximação entre essa agência e a comunidadepor ela servida. Ao final, o questionário foidisponibilizado no sítio das organizações queparticiparam do projeto e no site da Altus.

No ano de 2004, o então Governador do Cearáencontrou o questionário e manifestou o desejode utilizá-lo para avaliar as delegacias da capitalde seu estado, Fortaleza. O mesmo ocorreu com

o Departamento de Segurança Pública da Áfricado Sul. Percebendo o interesse despertado pelaferramenta, a Altus decidiu partir para uma novaetapa do projeto: transformar a utilização doquestionário em um acontecimento global quecongregasse, simultaneamente, instituições depesquisa e cidadãos. Assim, surgiu a Semana deVisitas a Delegacias de Polícia, que vem sendorealizada anualmente desde o ano de 2006.Inicialmente, essa atividade acontecia sob osauspícios de um conjunto de financiadores, mas,desde 2009, a Semana de Visitas é financiada peloDepartment for International Development(DFID), do governo britânico.

No Brasil, em 2009, a Semana de Visitasaconteceu em nove regiões metropolitanas: Belém,Fortaleza, Recife, Goiânia, Brasília, Rio de Janeiro,Belo Horizonte, São Paulo e Porto Alegre. Essascapitais foram escolhidas por possuírem centrosde pesquisa especializados na análise dasorganizações policiais e capazes de replicar ametodologia do projeto, viabilizando a realizaçãodas visitas de maneira simultânea.

No que se refere à escolha das delegaciasavaliadas, estas foram sorteadas aleatoriamente deacordo com os seguintes quantitativos: vintedelegacias distritais e uma Delegacia Especializadade Atendimento à Mulher (DEAM) em cadalocalidade. Em São Paulo e no Rio de Janeiro, emvirtude do tamanho da população e do número dedelegacias, foram sorteadas 40 delegacias distritaise duas DEAMs. São Paulo e Rio de Janeirocontaram com amostras duplicadas porque taiscidades concentram quase metade do total dedelegacias distritais existentes em todo o país.

Uma vez estabelecido o quantitativo dedelegacias a serem visitadas em cada localidade,passou-se à escolha das mesmas. O critérioadotado foi o de amostragem aleatória: a partir deuma listagem das delegacias não especializadas,ou seja, distritais ou seccionais de cada capital eregião metropolitana (essas são as delegacias debairro ou aquelas que fazem atendimento aopúblico de maneira geral), foi gerada uma lista denúmeros aleatórios, sendo que cada númerocorrespondia a uma delegacia. Os 20 primeirosnúmeros foram considerados como elementosintegrantes do conjunto principal de delegacias queseriam visitadas pela Altus. As demais delegaciasforam descartadas (ou não inseridas na amostra).

15 Os nomes foram mantidos em inglês para evitar quais-quer problemas de tradução que pudessem inviabilizar acorreta identificação dos diplomas legais utilizados para aelaboração do questionário.

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Por serem apenas uma as DEAMs de cada capital,elas foram automaticamente incluídas na amostra.

Quanto ao processo de coleta dos dadospropriamente dito, pode-se afirmar que foramempregados os procedimentos característicos daetnometodologia. De acordo com Giddens eTurner (1999, p. 14), os partidários dessametodologia enfatizam a importância da descriçãopormenorizada de processos empíricos,aparentemente desconsiderando o que constituiriaa explicação ou a cientificidade da descrição.Logo, acredita-se que os dados coletados noâmbito da Semana de Visitas a Delegacias dePolícia podem ser considerados válidos eproduzidos dentro da lógica de pesquisaetnometodológica porque os visitantes (querealizam a coletada de informações) recebemtreinamento específico no uso da ferramenta e sãoobrigados a relatar, de maneira pormenorizada, oque observaram e como observaram. Logo, paragarantir-se a realização da avaliação da mesmaforma em todas as localidades, o representante daAltus em cada país treina os coordenadoresregionais que, por sua vez, treinam oscoordenadores de visitas e os visitantes.

Durante a visita que, em média, tem duraçãode uma hora e meia, os indivíduos recrutados paraa avaliação apenas observam, conversam evivenciam a rotina da delegacia de polícia. Após avisita, cada qual responde ao questionário, de

acordo com a escala Likert – que, como jámencionado, varia entre totalmente inadequado(valor um) e excelente (valor cinco). Em seguida,os visitantes discutem suas impressões e a partirdo conhecimento construído de maneiracompartilhada, o coordenador preenche a últimaparte do questionário, que consiste na avaliaçãoda delegacia em uma perspectiva qualitativa.Importante destacar que mesmo após a discussãodo grupo, o indivíduo não pode retornar e mudaras notas anteriormente dadas, já que a proposta éavaliar a impressão inicial dos visitantes acerca dadelegacia de polícia. Logo, esse relatórioqualitativo contextualiza a delegacia em termossocioeconômicos, qualifica cada um dos itensmensurados de maneira quantitativa e aindaapresenta relatos de como a visita impactou apercepção dos visitantes em relação às delegaciasde polícia.

A avaliação realizada por cada indivíduo e orelatório qualitativo de cada delegacia são, ao final,inseridos em um sítio privativo da Altus. A partirdessas informações, são calculados os pontosmédios de cada delegacia, os quais, por sua vez,são contrastados ou balizados com os relatóriosqualitativos. Assim, considerando a média depontos recebida por cada delegacia, é possívelclassificar o atendimento oferecido por essaagência à população em categorias que variamdesde “totalmente inadequada” até “excelente”(Tabela 1).

TABELA 1 – INTERVALOS DE PONTUAÇÃO PARA CLASSIFICAÇÃO DA QUALIDADE DO ATENDIMENTOPRESTADO PELAS DELEGACIAS DE POLÍCIA (2009)

FONTE: Altus (2010, p. 19).

No ano de 2009, com o uso dessa metodologia,foi possível constatar que mais da metade dasdelegacias visitadas no Brasil presta um serviçoque, na perspectiva do próprio usuário, éinadequado. Considerando-se tais parâmetros,51% das delegacias brasileiras foram avaliadas

como inadequadas e 18% como totalmenteinadequadas. Por outro lado, 22% das delegaciasvisitadas foram avaliadas como adequadas e 7%como mais do que adequadas. Apenas 2% dasdelegacias visitadas, de acordo com impressõesdos usuários, possuem um serviço que pode ser

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classificado como excelente (Gráfico 2).

As delegacias de Belém do Pará, Recife, Goiâ-nia, Fortaleza, Porto Alegre e Belo Horizonte alcan-çaram uma média que as classifica como inadequa-das. Por outro lado, as delegacias de Rio de Janeiro,

FONTE: Altus (2010, p. 20).

GRÁFICO 2 – AVALIAÇÃO DA QUALIDADE DO ATENDIMENTO PRESTADO PELAS DELEGACIAS DE POLÍCIA

São Paulo e Brasília alcançaram uma média queas classifica como adequadas. Logo, nenhumadelegacia brasileira foi classificada como excelenteou como totalmente inadequada (Gráfico 3).

GRÁFICO 3 – MÉDIA GLOBAL DE PONTOS ALCANÇADOS PELAS DELEGACIAS DE POLÍCIA DE ACORDOCOM A CIDADE

FONTE: Altus (2010, p. 22)

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No entanto, o que esses dados significam emtermos da capacidade da Polícia Civil brasileiraem institucionalizar o conceito de cidadania civil?Em que medida os resultados apresentados poressa pesquisa parecem indicar dilemas a seremsuperados? De que forma o desequilíbrio entre osconceitos de justiça e solidariedade, queestruturam a idéia de deficit de cidadania faz-sepresente na Polícia Civil brasileira? Essas sãoalgumas das questões que este artigo pretenderesponder. Mas, para tanto, faz-se indispensávelcontextualizar o debate sobre as definições decidadania no âmbito da ciência social brasileira.

III. A QUESTÃO DA CIDADANIA E DO SEUDÉFICIT OU A DIFICULDADE EM EQUI-LIBRAR-SE JUSTIÇA E SOLIDARIEDADE

De acordo com Coutinho (2000), cidadania éa capacidade conquistada por alguns ou por todosos indivíduos de apropriarem-se dos bens social-mente criados, de atualizarem todas as potenciali-dades de realização humana abertas pela vida socialem cada contexto historicamente determinado.

Na formulação de T. H. Marshall (1967), umdos primeiros a abordar a questão da cidadania doponto de vista teórico, esse conceito possui trêsdimensões fundamentais, que se traduzem em trêstipos de direito: os civis, os políticos e os sociais.Cada uma das três dimensões, por sua vez, institu-cionalizam-se na prática cotidiana dos indivíduosde um dado país por intermédio de determinadasinstituições estatais, que podem ser apresentadas,de maneira esquemática, da seguinte maneira:

TABELA 2 – ELEMENTOS DA CIDADANIA, DE ACORDO COM A DEFINIÇÃO DISSEMINADA POR MARSHALL(1967) E AS INSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS A ELA ASSOCIADAS

FONTE: os autores, a partir de De La Paz (2004).

De La Paz (2004), por sua vez, argumenta queo conceito de cidadania deve ser entendido comostatus legal e identidade. Assim, para cada conjuntode direitos há um conjunto de deveres. Logo, acidadania possuiria uma dimensão muito objetiva,relacionada a direitos e deveres específicos diantedo Estado, representando, portanto, uma relaçãoem que os dois entes possuem direitos e obrigaçõesrecíprocas. Então, como argumenta Reis (1999),ser cidadão significa, de uma maneira mais geral,ser portador de direitos e obrigações e, de umaforma mais específica, compartilhar de umaidentidade com os demais membros de umacomunidade política.

Desse modo, se por um lado a cidadaniaimplica que o Estado ofereça instituiçõessubstantivamente capazes de assegurar oprovimento dos direitos mencionados, por outro,a cidadania implica que os indivíduos sob seugoverno sejam capazes de i) conhecer os direitosda cidadania, inclusive no que diz respeito àsresponsabilidades que eles implicam; ii) identificarno aparelho estatal quais são as instituiçõesresponsáveis pelo provimento de cada categoriade direitos; iii) possuir instituições estataisefetivas, eficientes e confiáveis do ponto de vistade garantia dos direitos civis e iv) exercer os seusdeveres e direitos de maneira legítima, de acordocom as regras da democracia.

ELEMENTOSDA CIDADANIA

Direitos Civis

Direitos Políticos

Direitos Sociais

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Portanto, a cidadania tem mais chances deser institucionalizada quanto maior a probabilidadede os indivíduos assumirem as regras e asinstituições criadas pela democracia de maneiraplena. Ou seja, não basta ter instituiçõesfuncionando. É necessário ainda que os indivíduosreconheçam-se em tais instituições e a elasrecorram.

De acordo com Marshall (1967), o elementocivil da cidadania compõe-se dos direitosrelacionados à liberdade da pessoa, liberdade deexpressão, de pensamento, de religião e depropriedade. Relaciona-se, portanto, ao direito àsegurança, ao direito à justiça.

Nesse sentido, como destacado por Comparato(1981, p. 9), a segurança, como a justiça, é umvalor-condição e não um valor-escopo, pois nãose busca a segurança pela segurança, mas comomeio de fruição e manutenção de um interesse.Assim, pode-se dizer que o direito subjetivo àsegurança é uma das manifestações maiselementares da justiça. Então, todos os homenstêm direito à segurança na posse ou no gozo debens essenciais ao pleno desenvolvimento de suapersonalidade. Como para que exista liberdade énecessário segurança, para que essa possamaterializar-se é necessário que existam normase agências coercitivas capazes de zelar pelo bomcumprimento dessas normas. Exatamente por isso,as instituições diretamente relacionadas com osdireitos civis são as organizações policiais e ostribunais de justiça.

Logo, o direito à justiça é de natureza diferentedos restantes porque se trata do direito de defendere de fazer valer o conjunto dos direitos de umapessoa em relação aos demais, mediante os devidosprocessos legais. Em um cenário ideal, osindivíduos seriam considerados como portadoresde cidadania plena se, além de compreenderem oconteúdo desse direito, fossem capazes deposicionar-se de acordo com as instituiçõesresponsáveis pela administração de conflitos naordem pública.

Alguns autores afirmam que isso não ocorreno Brasil porque existe um deficit de cidadania,termo que deve ser entendido como o desequilíbrioentre o justo e o solidário. Essa idéia é derivada daobra de Cardoso de Oliveira (1995), segundo oqual qualquer experiência de cidadania que pretendacontemplar o respeito aos direitos usualmenteatribuídos ao cidadão, deverá promover um

equilíbrio entre os princípios de justiça esolidariedade.

Para definição da dimensão justiça, Cardosode Oliveira (idem) lança mão da crítica à teoriahabermasiana que, de acordo com ele, éexcessivamente tímida em relação à incorporaçãoda dimensão valorativa da ética em suas propostasde equacionamento da moralidade. Apesar dessedebate parecer bastante profícuo do ponto de vistateórico, para a definição desse primeiro elementorecorreu-se ao trabalho de Fraser (2009), já queeste pareceu adequar-se melhor ao objetivo deconstituir um arcabouço analítico que permita acompreensão do atendimento prestado pelasdelegacias de polícia dentro da idéia de cidadania.

Para Fraser (idem), a justiça requer arranjossociais que permitam a todos participarem comopares na vida social. Assim, para a superação dainjustiça é necessário romper os obstáculosinstitucionalizados que impedem alguns sujeitosde participar, em condições de paridade com osdemais, nos processos de interação social. A autoraargumenta que, nesse cenário, dois são oselementos que precisam ser considerados para umaadequada compreensão do significado de justiça:i) o elemento distributivo, de acordo com o qualas pessoas não podem ser impedidas da plenaparticipação na vida social por estruturaseconômicas que lhes negam os recursosnecessários para interagir com os demais nacondição de pares; ii) o elemento doreconhecimento, segundo o qual as pessoas nãopodem ser coibidas de interagir em termos deparidade por hierarquias institucionalizadas devaloração cultural. A essas duas dimensões dejustiça (distribuição e reconhecimento), éacrescentada uma dimensão política, que dizrespeito à natureza da jurisdição do Estado e dasregras de decisão pelas quais se estruturam asdisputas sociais. Ou seja: “Ao estabelecer o critériode pertencimento social, e, portanto, determinarquem conta como um membro, a dimensão políticada justiça especifica o alcance daquelas outrasdimensões: ela designa quem está incluído, e quemestá excluído, do círculo daqueles que são titularesde uma justa distribuição e de reconhecimentorecíproco. Ao estabelecer regras de decisão, adimensão política também estipula osprocedimentos de apresentação e resolução dasdisputas tanto na dimensão econômica quanto nacultural: ela revela não apenas quem pode fazerreivindicações por redistribuição e

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reconhecimento, mas também como taisreivindicações devem ser introduzidas no debatee julgadas” (idem, p. 19).

Portanto, no contexto deste artigo, o conceitode justiça será entendido como elementoplenamente realizado quando um indivíduo,independentemente de sua situação econômica oude seu status social, é capaz de realizar-seplenamente como ser político e parte integrantede determinada comunidade, sem nenhum tipo deconstrangimento institucional. Logo, a escolha doconceito de justiça de Fraser (idem), emdetrimento do elaborado por Cardoso de Oliveira(1995), tem como justificativa o fato de que asdelegacias de polícia possuem como principaisusuários pessoas de baixa renda e que, por isso,compartilham de um sentimento de injustiçaperante distintas instituições estatais. Então, adimensão justiça será compreendida desde umponto de vista mais pragmático do que filosófico,afinal, a proposta aqui é argumentar em que medidao atendimento prestado pelas delegacias de PolíciaCivil cumpre ou não o pressuposto de equilíbrioentre justiça e solidariedade.

A forma como a atividade política é recebidapor parte das instituições estatais também seconstitui como elemento importante para aestabilização da cidadania. Em algumas situações,o indivíduo não se vê impedido de realizar as suasatividades políticas por motivos econômicas oude status, mas percebe-se injustiçado por não sentirque existe reciprocidade em sua relação com osentes públicos. Essa seria exatamente a dimensãoda solidariedade, como apresentada no contextodo trabalho de Cardoso de Oliveira (idem).

Na construção da definição de solidariedade, oautor toma como ponto de partida a ênfase dadapor Mauss ao caráter relacional do direito, expressona noção de reciprocidade, por meio da obrigaçãode dar, receber e retribuir. A partir dessa definição,Cardoso de Oliveira argumenta que “a realizaçãodas trocas e/ou a institucionalização da relaçãoentre as partes demanda, ao lado da afirmação dosdireitos e deveres que condicionam a interação, oreconhecimento mútuo dos envolvidos enquantopessoas merecedoras do tratamento especial/individualizado reciprocado ao longo dos diferentesmomentos que marcam a transação. Isto é, a ideiade que a implementação e/ou o reconhecimentodos direitos em pauta depende, em alguma medida,da consideração mútua da dignidade das partes

enquanto membros legítimos de uma comunidadeou totalidade determinada, com a qual seidentificam através da comunhão de valores evisões de mundo minimamente compartilhados”(idem, p. 5).

Compatibilizando essas abordagens teóricas,é possível afirmar que o desequilíbrio entre o justoe o solidário ocorre no Brasil dada a existência deum descompasso entre questões de ordemnormativa e questões de ordem valorativa queterminam por fazer que determinadas regrasprescritas não impliquem o reconhecimento mútuodos envolvidos enquanto pessoas merecedoras detratamento igualitário.

No contexto dessa análise, acredita-se que acompreensão desse desequilíbrio entre justiça esolidariedade possa ser mais bem explicitadaquando a relação entre os indivíduos e asinstituições policiais é tomada como focoprivilegiado de estudo. Nesse sentido,considerando o trabalho de alguns autores sobreo tema, é possível afirmar que, especialmente aolongo da década de 1990, esse desequilíbrio tornou-se ainda mais evidente, especialmente do pontode vista do esgarçamento das relações desolidariedade e da própria concepção de cidadaniacivil16.

De acordo com Leite (2000), em razão doaumento expressivo das taxas de criminalidade(Gráfico 4), sobretudo dos crimes contra a pessoa(que são ou causam maior clamor público), o quese percebe é a disseminação de fortes reclamospor ordem e segurança como garantia dos direitose das liberdades individuais17. Assim, poucoimporta se o serviço policial oferecido à populaçãocumpre os requisitos de justiça e solidariedade, oque interessa, em dadas circunstâncias, é que apolícia seja eficiente na atividade de contenção aocrime.

16 Talvez um indicativo desse esgarçamento seja a disse-minação da seguinte expressão “direitos humanos para oshonestos, cadeia para o resto” ou “direitos humanos nessepaís é coisa para proteger bandido”.17 Nesse sentido, ver também Zackseski (2009).

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Esse sentimento torna-se ainda mais reveladorquando contrastado com os dados coletados pelosurvey Lapop-Brasil (LAPOP, 2006), administradopela Vanderbilt University. Tal estudo revela que:i) 43% da população apóiam, em alguma medida,que as pessoas façam justiça com suas própriasmãos quando o Estado não castiga os criminosos;ii) 40% da população afirmam que seria justificávelos militares tomarem o poder no caso de umexcesso de crime sem adequada resposta doaparelho estatal. Esses dados parecem indicar quea população brasileira apóia fortemente medidasde ordem e segurança, assim como medidasautoritárias, quando crime e violência crescem demaneira significativa. Ou seja, quando o indíviduoé um bandido, as dimensões de justiça e recipro-cidade parecem ser esquecidas pelos próprioscidadãos , já que ele [bandido] “não é qualquersujeito incriminado, mas um sujeito por assim dizer‘especial’, aquele cuja morte ou desaparecimentopodem ser amplamente desejados. Ele é agente depráticas criminais para as quais são atribuídos ossentimentos morais mais repulsivos, o sujeito aoqual se reserva a reação moral mais forte e, porconseguinte, a punição mais dura: seja o desejo desua definitiva incapacitação pela morte física, sejao ideal de sua reconversão à moral e à sociedadeque o acusa” (MISSE et alii, 2010, p. 17).

Logo, os indivíduos classificados nessacategoria são aqueles cujos direitos de cidadaniaparecem ser negados por um entendimentodistorcido da dimensão de solidariedade. É comose nesse caso fosse necessário retribuir, aosindivíduos que infringiram a lei, a violênciasimbólica que eles infligiram à sociedade com oseu crime. Tal violência, contudo, é diferenciadade acordo com a posição que o “bandido” ocupana estrutura econômica e na estrutura de statusde uma dada sociedade. Esse fenômeno, por suavez, implica reconhecer uma injustiça dentro dopróprio conceito de justiça que se pretende realizarao aniquilar esse ator político do ponto de vistafático e simbólico. Em última instância, asoperacionalizações que os bandidos, em regra,engendram na sociedade brasileira oferecem umexemplo de como, em nome da cidadania, nega-se a cidadania de maneira injusta e pouco solidária.

Pandolfi (1999) afirma que esse cenário podeser decorrente da falta de entendimento doconceito de cidadania de maneira global, o que,por sua vez, explica-se pela forma como acidadania civil institucionalizou-se no Brasil. Esseprocesso distorcido traduziu-se em uma percepçãofrouxa dos direitos e das garantias individuais ena inexistência ou ineficácia dos mecanismos paraprotegê-los. Assim, sob o argumento da eficiência

FONTE: Organização Panamericana de Saúde (2012).

GRÁFICO 4 – TAXAS DE HOMICÍDIO NO BRASIL E NA AMÉRICA LATINA (1994-2005)

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absolvem-se as ações policiais que não estão emacordo com os princípios de justiça esolidariedade, entendendo-as como “acidentes depercurso”, inevitáveis sob o argumento daproteção. Logo, em diversas situações, a populaçãoparece não conceber as dimensões de justiça esolidariedade como duas faces de uma mesmamoeda, já que o componente da justiça é muitomais forte do que o componente da reciprocidade.

Portanto, o que se pretende, na seção seguinte,é trazer impressões, abordar questões e exploraralguns paradoxos suscitados a partir dosresultados da III Semana de Visita a Delegaciasde Polícia, realizada em outubro de 2009, com oobjetivo de auferir-se a qualidade do serviçoprestado por essas unidades, a partir da perspectivado próprio cidadão. Com isso, pretende-seproblematizar em que medida as delegacias depolícia institucionalizam o deficit de cidadania, aoprover ao indivíduo um atendimento que não seenquadra dentro dos paradigmas de justiça esolidariedade.

IV. QUAL CIDADANIA EXERCE-SE NOCONTEXTO DAS DELEGACIAS DEPOLÍCIA BRASILEIRA?

O argumento a ser desenvolvido nessa seção éque, se não existisse um deficit de cidadania noBrasil, o atendimento prestado pelas delegacias depolícia seria sempre classificado como adequadopelos próprios usuários do serviço, já que cumpririaos requisitos de justiça e solidariedade, de acordocom as definições apresentadas na seção anterior.Ou seja, se no processo de visita às delegacias depolícia os indivíduos encontram constrangimentos

econômicos, sociais ou institucionais para oexercício da sua cidadania, esses fatos podemindicar que, no âmbito da Polícia Civil, o deficitde cidadania civil está presente.

Para a realização dessa discussão, serãoutilizados os dados quantitativos e qualitativoscoletados no âmbito da III Semana de Visitas aDelegacias de Polícia. Conforme destacadoanteriormente, essa pesquisa tem como objetivoavaliar a qualidade do atendimento que a PolíciaCivil presta aos seus usuários a partir de cincodimensões: i) orientação para a comunidade; ii)condições físicas; iii) tratamento igualitário dapopulação; iv) transparência e prestação de contase v) condições de detenção.

Em primeiro lugar, a delegacia precisa seracessível à população. O indivíduo precisa poderlocalizá-la imediatamente quando precisa dela. Umavez na unidade, é necessário saber quais são osprocedimentos e documentos que serãorequisitados para que a sua queixa possa seradequadamente registrada. É preciso ainda queuma equipe esteja esperando pela chegada dosindivíduos que desejam registrar crimes ou prestartestemunho de delitos.

Esses são exatamente os critérios avaliados pelaAltus no item orientação para a comunidade(Gráfico 5). De maneira geral, os cidadãosconsideraram que as delegacias atendem osrequisitos estabelecidos e, por isso, avaliam amaioria delas como “adequada”. Apenas no item“informações disponíveis sobre como registrarqueixas” as unidades visitadas foram classificadasem sua maioria como “inadequada”.

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Quando se procura compreender como, deuma perspectiva empírica, os conceitos de justiçae solidariedade são materializados no itemorientação para a comunidade, o ponto de apoioanalítico passa a ser como as delegacias percebemquem é o seu usuário.

Considerando os dados coletados pelapesquisa, talvez o exemplo mais interessante daausência de justiça e solidariedade seja como asdelegacias administram o dia do funcionáriopúblico, 28 de outubro. Em todas as capitais, asvisitas anteriormente agendadas para essa datativeram de ser reagendadas a pedido dos própriospoliciais. Como justificativa, alguns afirmavam queno dia do servidor público as delegacias contamcom número reduzido de funcionários (emesquema de plantão, já que se trata de pontofacultativo), o que prejudicaria a avaliação daqualidade do atendimento. Outros alegavam queas delegacias fecham as portas para o atendimentoao público nos feriados e, assim, a visita nãopoderia acontecer. Essas afirmativas evidenciamque os policiais não levam em conta que pessoaspodem ser vítimas de delitos mesmo em feriadose que precisarão do serviço da delegacia de polícia,tornando impossível o exercício da cidadania nessadata.

O dilema sobre quem é o público principal dadelegacia também se fez presente na cidade doRio de Janeiro por outro motivo. Na véspera daSemana de Visitas, o integrante de um importanteprojeto social foi morto no centro da cidade, apósum assalto. Minutos depois do crime, uma viaturada Polícia Militar passou pelo local e, além de nãoprestar socorro ao ferido, tomou dos ladrões oproduto de seu roubo, liberando-os em seguida.Os policiais e os ladrões, presos posteriormente,seriam conduzidos a uma das delegacias sorteadaspara a visita. Como as datas coincidiam, o delegadoentrou em contato com a coordenação explicandoque, devido à tomada de diversos depoimentos de“pessoas importantes”, a delegacia seria fechadapara atendimento ao público e, por isso, nãopoderia ser avaliada. Depois de muita insistência,o delegado liberou a visita do grupo, mas apergunta ficou: o que faz que uma pessoa sejamais importante que as demais, ainda que asituação (no caso, ser vítima de um crime) seja amesma? Quem é o público da delegacia? As“pessoas importantes” ou todos os cidadãos?Afinal, como dizer que as delegacias são orientadaspara a comunidade se elas fecham-se para estadependendo do momento ou das pessoas que estãoenvolvidas em uma dada ocorrência?

GRÁFICO 5 – CLASSIFICAÇÃO DAS DELEGACIAS DE POLÍCIA VISITADAS EM TERMOS DE ORIENTAÇÃOPARA A COMUNIDADE

FONTE: Altus (2010).

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Esse caso poderia ser, inclusive, um exemplodo desequilíbrio entre os princípios de justiça esolidariedade, já que a falta de respeito com osdireitos dos indivíduos em geral é contrastada como favorecimento de determinadas “pessoasimportantes” que se mostram especialmente dignasde consideração. Esse seria o exemplo privilegiadodaquilo que Cardoso de Oliveira denomina de“situação onde se tem pouca justiça no acesso aosdireitos, mas onde sobra solidariedade, ainda queexcessivamente circunscrita e bem localizada naconsideração da pessoa do cidadão que merecereconhecimento” (CARDOSO DE OLIVEIRA,1995, p. 7).

Portanto, se de maneira geral as delegacias sãoadequadas em termos de orientação para acomunidade, para vários visitantes, muitasdelegacias têm de melhorar o atendimento aopúblico para tornarem-se acessíveis: “O grupoavaliou inadequadas as condições da delegaciaquanto à acessibilidade, faltam elevadores erampas. Não há informações disponíveis sobrecomo registrar queixas e/ou obter serviçospúblicos; e os funcionários não estavamdevidamente identificados. Existe um Cartaz narecepção indicando os serviços que a delegaciapresta, alguns destes não existem como abrinquedoteca e auditório, estes são usados comodepósito de apreensões. O banheiro para o público

é único com separação de sexo interno. Possuiuma sala grande de espera com um balcão para oprimeiro atendimento, no momento semfuncionários, e outro balcão para atendimentopropriamente dito, não havia salas separadas paraatendimento individual de casos delicados. Osusuários reclamaram da demora no atendimento”(Coordenador da visita ao 83º Distrito Policial, SãoPaulo).

Uma vez que o indivíduo consegue ser recebidopor um policial em uma delegacia, é necessárioque esta conte com mecanismos adequados paraatender o cidadão. Logo, no item condições físicassão avaliados: i) o grau de organização e limpezada delegacia; ii) o estado de conservação do prédioe da mobília; iii) as condições de trabalho para aequipe da delegacia e, por fim, iv) a infraestruturada unidade para vítimas ou testemunhas fazeremo reconhecimento de suspeitos, sem seremidentificadas. Em todos os critérios, pelo menosum quarto das delegacias foram classificadascomo “mais do que adequadas” ou “excelentes”(Gráfico 6), denotando que, talvez, as condiçõesmateriais que viabilizam o exercício da justiçaestejam presentes em uma grande parte dasdelegacias, cabendo aos policiais desenvolveremas habilidades necessárias para viabilizar o itemsolidariedade.

GRÁFICO 6 – CLASSIFICAÇÃO DAS DELEGACIAS DE POLÍCIA VISITADAS EM TERMOS DE CONDIÇÕESMATERIAIS

FONTE: Altus (2010).

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ENTRE A JUSTIÇA E A SOLIDARIEDADE: A CIDADANIA QUE SE EXERCE NA POLÍCIA CIVIL

Os relatórios qualitativos indicam que, emgeral, as delegacias possuem boas instalações eequipamentos em estado razoável de conservação,fatores estes que são importantes para o adequadodesempenho do trabalho policial. No entanto,diversos visitantes constataram que váriasdelegacias ainda reproduzem o estereótipo“repartições sujas, desorganizadas e hostis aopúblico”: “A delegacia é bem equipada, dispõe debons equipamentos nas salas: computadores, ar-condicionado, telefones. Apesar disso, as salas sãomuito desorganizadas e pequenas. Tem materiaisapreendidos espalhados pelas salas e corredores,inclusive na sala do delegado. As armas não têmlugar específico, ficam num armário que oferecepouquíssima proteção. Essas armas, por sinal, jáestavam bem velhas. [...] A recepção não é bemestruturada, o balcão e as cadeiras já estão velhose em mau estado de conservação, tempouquíssimos cartazes e informativos no mural(apenas referentes a notificações internas dadelegacia)” (Coordenador da visita ao 48º DistritoPolicial, Recife).

Nesse contexto, um ponto importante a serdestacado é como a institucionalização de direitoscomo privilégios desigualmente distribuídos nasociedade brasileira faz com que os própriosvisitantes esperem condições materiaisdiferenciadas dependendo de onde a delegacia estálocalizada. É como se os mecanismos institucionaisde acesso à justiça tivessem que ser diferenciadosnecessariamente de acordo com as característicaseconômicas e sociais da população a que essasestruturas servem. Ou, para considerar o elementoda solidariedade, é como se os mecanismosinstitucionais de administração de conflitos, paraatenderem ao ideal de reciprocidade, tivessem de“dar aos pobres a sua pobreza e aos ricos a suariqueza”18. Essa idéia parece estar especialmenteilustrada nas seguintes assertivas:

- “Pensávamos que as condições físicas seriammelhores por estar em um bairro nobre dacidade” (Coordenador da visita ao 224º DistritoPolicial, Brasília).

- “A equipe acreditava antes da visita que estadelegacia, por se situar em uma região nobre,estaria equipada com todos os recursos

disponíveis para o trabalho, mas percebeu umquadro oposto durante a visita. Faltavam váriosequipamentos e pessoal para o trabalho”(Coordenador da visita ao 66º Distrito Policial,Belo Horizonte).

- “A delegacia causou uma ótima impressão.Talvez por se tratar de uma região empobrecidado município de São Paulo, não se esperavauma delegacia com condições tão adequadasde atendimento e tão bonita e organizada”(Coordenador da visita ao 100º Distrito Policial,São Paulo).

- “Para alguns dos visitantes, a visita serviuapenas para confirmar suas expectativasnegativas sobre o local, para outros a situaçãoera pior do que imaginavam. As condições doprédio e da carceragem impressionaramnegativamente. Além disso, acreditam que o fatode estar localizada num bairro pobre da cidadejustifica o descaso e reflete a discriminação coma população mais pobre” (Coordenador da visitaao 105º Distrito Policial, Recife).

Em seguida, a pesquisa avalia a capacidade dadelegacia em oferecer um tratamento igualitário àpopulação, sem viés de raça, gênero, idade eorientação sexual. A idéia é que a delegacia deve,impreterivelmente, possuir serviços eequipamentos que sejam capazes de garantir quepúblicos diferenciados recebam tratamentoigualitário. Nesse quesito são avaliados os serviçosdisponíveis para grupos específicos (mulheres,idosos e pessoas com dificuldade de locomoção);para pessoas com necessidades especiais; paramulheres e, ainda, a existência de espaços eequipamentos para entrevistar vítimas de crimeem casos em que a privacidade é importante.

É importante destacar que, especialmente emcomparação com os critérios apresentadosanteriormente, um quantitativo substancial dedelegacias foi classificado como totalmenteinadequado. Se pelo menos um quarto das unidadesvisitadas destacavam-se em termos de condiçõesmateriais, nesse caso, pelo menos um quarto dasdelegacias foram consideradas como “totalmenteinadequada” em termos de tratamento igualitário(Gráfico 7).

18 Frase de Roberto Lyra Filho no documentário O direitoachado na rua. Para mais informações, cf. Lyra Filho (2012).

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Os visitantes consideraram que a maioria dasdelegacias não oferece tratamento igualitário aopúblico que a procura. Eles notaram a ausênciade informações, serviços e encaminhamentos parapessoas ou grupos considerados como aqueles emcondição vulnerável, como crianças, mulheres,homossexuais, deficientes físicos e idosos.Novamente, percebeu-se aquilo que Cardoso deOliveira (1995) denomina como excesso desolidariedade em relação a determinados grupos:“O que muito impressionou aos visitantes foramos comentários de ambos policiais quereconheceram que a abordagem na zona sul deveser diferenciada do que na zona norte e percebeu-se também muito preconceito em relação ausuários de entorpecentes e dependentes químicos.Relataram que a descriminalização da maconha fezcom que os policiais fossem desmoralizados, assimcomo o tratamento igualitário a prostitutas etravestis” (Coordenador da visita ao 123º DistritoPolicial, Rio de Janeiro).

Da mesma forma, foi observado que váriasdelegacias não possuem espaços específicos paraentrevistar vítimas ou testemunhas de crimes, noscasos em que a privacidade é importante. Aausência desse elemento encontra-se diretamenteem desacordo com a idéia de justiça, comocunhada por Fraser (2009), já que, em razão da

ausência de determinados elementos institucionais,o indivíduo não é capaz de exercer plenamenteseus direitos enquanto ator político: “Não haviaserviços especializados disponíveis, tais comopsicólogos, assistentes sociais, atendimentoespecializado para mulheres, ou local para se deixarcrianças. Nem funcionários nem presos estavamidentificados por meio de crachás. Também foinotado que, no local onde o boletim de ocorrênciaé registrado, não há privacidade alguma para avítima. Conversamos com um casal, que disseter demorado mais de duas horas para que fossematendidos” (Coordenador da visita ao 85º DistritoPolicial, São Paulo).

Por fim, uma vez realizado o atendimento, apopulação deve ser informada tanto dosdesdobramentos do seu registro como daexistência de mecanismos institucionaisespecíficos para registro de queixas e desvios deconduta dos policiais. Desse modo, nesse item,são avaliadas ainda a adequada identificação daequipe da delegacia e a disponibilidade deinformações sobre o trabalho que a delegaciarealiza no combate ao crime. Os resultados indicamque essa é a dimensão na qual as delegacias tiverampior desempenho, já que em diversos quesitosmetade das unidades visitadas foram classificadascomo totalmente inadequadas (Gráfico 8).

GRÁFICO 7 – CLASSIFICAÇÃO DAS DELEGACIAS DE POLÍCIA VISITADAS EM TERMOS DE TRATAMENTOIGUALITÁRIO

FONTE: Altus (2010).

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ENTRE A JUSTIÇA E A SOLIDARIEDADE: A CIDADANIA QUE SE EXERCE NA POLÍCIA CIVIL

O item transparência e prestação de contas foiaquele em que os visitantes fizeram as maiorescríticas. De acordo com eles, os problemascomeçam logo na entrada da delegacia. Comopoucos são os exemplos de policiais uniformizadose com crachás, destacando qual a função que oindivíduo exerce na unidade, a primeira dificuldadedo usuário é identificar quem é o policial: “Aoentrarmos na delegacia havia um bom movimentojá que algumas pessoas estavam sendo atendidas.Os policiais estavam atendendo várias pessoas enós tivemos dificuldade de identificar quem eramos policiais e quem eram os civis já que aquelesnão tinham nenhuma identificação como cracháou uniforme – apenas posteriormente vimos quehavia uma mulher com uma camisa da PolíciaCivil, porém esta não estava na recepção quandochegamos. Neste momento ocorreu um fatocurioso: quando me aproximei da mesa de recepçãoe logo percebi quem poderia ser um possívelpolicial me identifiquei a ele e perguntei sobre quempoderia nos receber. Eles estavam atendendomuitas pessoas ao mesmo tempo e tivemos queesperar algum tempo. Mas neste primeiromomento em que abordei o policial e conversamossobre quem poderia nos atender, entra na delegacia

GRÁFICO 8 – CLASSIFICAÇÃO DAS DELEGACIAS DE POLÍCIA VISITADAS EM TERMOS DETRANSPARÊNCIA E PRESTAÇÃO DE CONTAS

FONTE: Altus (2010).

um homem de terno, que parecia ser umadvogado, e me pede uma informação, como seeu fosse um policial, justamente porque não haviauma identificação clara e em torno de toda aquelamistura entre policiais e civis, tudo ficou aindamais confuso” (Coordenador da visita ao 228ºDistrito Policial, Belo Horizonte)

O exemplo acima é revelador do que podeacontecer quando a equipe da delegacia não seencontra previamente identificada. Esse quadrotorna-se ainda mais dramático em cenários ondenão existe nenhum tipo de cartaz ou informativosobre como registrar queixas em relação ao serviçooferecido. De acordo com os visitantes, caso opúblico pergunte sobre a existência de tal órgão,os policiais encaminham para o delegado asqueixas, indicando uma forte dose decorporativismo. “O discurso do delegado soouestranho, voltado para nos convencer sobre suadedicação, a qualidade de seu trabalho e índolemoral. Algumas cenas mostraram o contrário,como, por exemplo, a omissão dele diante de uminvestigador que destratou um rapaz emaveriguação na delegacia na frente da equipe devisitas, ou a falta de cartazes sobre ouvidoria oucorregedoria acompanhada do discurso do

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delegado de que isso é desnecessário, pois sealguém tiver reclamação a fazer, tem de tercoragem para falar com ele” (Coordenador davisita ao 88º Distrito Policial, São Paulo).

No que diz respeito à prestação de contas, omaior problema não é a dificuldade em produzir-se a informação, mas em construir uma visão deque esta é de interesse público e não de interesseprivado. Os policiais temem a publicidade dasinformações especialmente pelo que ela podeimplicar em termos de cobrança da comunidadepor maior efetividade da ação policial. “Os policiaisargumentam que um mapa criminal facilitará ainformação dos criminosos e irá alardear apopulação inutilmente. Mas o argumento é frágil,uma vez que não possibilita à população qualquertipo de informação sobre crimes cometidos e/ouorientações sobre como se comportar diante dealgum tipo de delito. Além disso, a delegacia nãoapresenta informativos quanto ao número de casossolucionados, inquéritos concluídos ou afim. Éimportante ressaltar que há resistência dos policiaisnesse tipo de esclarecimento à população”(Coordenador da visita ao 124ª Distrito Policial,Rio de Janeiro).

Algumas delegacias justificam o segredo de taisinformações e, ainda, a não identificação dospoliciais como uma prática que tem por objetivogarantir a “segurança” da própria população usuáriadesse serviço. “O distrito policial conta com ummapa de sua circunscrição no saguão deatendimento. No entanto, não conta com qualquerinformação a respeito de: tendências de crime naregião; desempenho e trabalho da delegacia; e,informações de como relatar desvios de condutada equipe policial. O delegado relatou que não podeexpor na delegacia, os dados sobre os locais decrime na região por que: primeiro, o público nãoia mudar os seus hábitos cotidianos; segundo, seriacontra produtivo, uma vez que, os criminososteriam acesso a esta informação e saberiam ondenão agir; terceiro, os comerciantes se sentiriamprejudicados, pois caso o público mudasse os seushábitos, ele poderia deixar de consumir emdeterminados locais. Cabe destaque que osfuncionários da delegacia não estavamuniformizados e não estavam identificados. O

delegado disse que os funcionários não utilizavamo ‘cagueta’, por motivos de segurança”(Coordenador da visita ao 124º Distrito Policial,São Paulo).

Em suma, os dados coletados no item“transparência e prestação de contas” evidenciamque os indivíduos que querem conhecer melhor oque a polícia faz a partir dos seus próprios dados,ou ainda, aqueles que querem entender a dinâmicada criminalidade na localidade onde residem sãoimpedidos de realizar tais atividades por inúmerosconstrangimentos institucionais criados pelospróprios policiais. Ou seja, o elemento justiça aque se referia Cardoso de Oliveira (1995) não seencontra presente nessa dimensão. Por outro lado,aqueles indivíduos que sentirem que a polícia nãooferece um serviço solidário o suficiente tambémnão encontram meios de reclamar ou expressarsua insatisfação, já que os próprios policiaisprocuram bloquear ao limite o acesso a tais canaisinstitucionais.

Por fim, são consideradas as condições dedetenção. Esse tema é inserido no formulárioporque, em diversos lugares do mundo, a políciaainda se ocupa da guarda de presos e, por isso, éimportante compreender como essa instituiçãotrata esses indivíduos do ponto de vista dos ideaisde justiça e solidariedade. Logo, nesse item, sãoavaliadas questões como: condições sanitárias dasáreas de detenção; condições e espaços paraadvogados, familiares ou amigos visitaremdetentos; identificação dos detentos e condiçõesde segurança da área de detenção.

Mais uma vez, os dados coletados indicamcomo as delegacias brasileiras possuemdificuldades em operacionalizar um tratamentojusto e solidário aos detentos. Por exemplo, ascondições sanitárias da área de detenção foramavaliadas como totalmente inadequadas em 50%das unidades visitadas. Se não há higiene paraencarceramento do preso, não há que se falar emespaços para esse indivíduo conviver com outraspessoas ou mesmo na sua identificação. Logo, osdados a seguir apenas confirmam essa asserção(Gráfico 9).

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Os relatórios narrativos destacam que ascondições carcerárias são sofríveis e estão emdesacordo com as regras mínimas para oencarceramento de presos, estabelecidas pelostratados internacionais de direitos humanos: “Osdetentos não apresentavam algum tipo deidentificação, não existe uma sala adequada parareceberem os advogados e familiares, não existevisita, somente no final de cada semana e que osfamiliares podem levar algum material de limpezaindividual. Durante a visita, pode-se notar ascondições precárias das celas, não apresentavamnenhum tipo de limpeza, estavam superlotadas,ventilação mínima e o banheiro inadequado”(Coordenador da visita ao 18º Distrito Policial,Belém). “Os presos são mantidos em uma pequenacela, que mais parece uma jaula, no mesmoambiente onde são registradas as ocorrências. Oespaço é apertado, pouco iluminado e apesar deter três cadeados, não parece muito seguro. Nãohá banheiro específico nem local para visitas”(Coordenador da visita ao 227º Distrito Policial,Belo Horizonte).

Um problema apontado foi a dificuldade dasdelegacias distritais em administrar a questão da

mulher que, presa em flagrante, deve ser detidaem alguma cela ou sala de custódia. Essefenômeno é um grande problema para as delegaciasporque, ainda hoje, a maioria da populaçãocarcerária é composta por homens e, por isso,poucos são os casos de celas destinadasespecificamente às mulheres. Em situações comoessas, o improviso parece ser a regra. “Asmulheres, o comissário nos informou que não sãoencaminhadas para o xadrez, costumam seralgemadas em alguma sala até serem transferidas”(Coordenador da visita ao 4º Distrito Policial,Recife).

Problema semelhante é vivenciado nasdelegacias que não contam com carceragens, masque devem administrar a questão do indivíduopreso em flagrante. Nesse caso, o detento éalgemado em instalações da unidade, devendopermanecer em pé, sem a possibilidade de ir aobanheiro ou se alimentar. “A delegacia não possuicarceragem. Os presos em flagrante permanecemalgemados a uma barra de ferro em um banco deconcreto até que todo o procedimento seja feito.Essa estrutura está localizada no corredor dadelegacia” (Coordenador da visita ao 14º DistritoPolicial, Goiânia).

FONTE: Altus (2010).

GRÁFICO 9 – CLASSIFICAÇÃO DAS DELEGACIAS DE POLÍCIA VISITADAS EM TERMOS DE CONDIÇÕESDE DETENÇÃO

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No caso das condições de detenção, emboraos regulamentos já publicados sobre o tema sejamclaros e precisos a respeito de como procederperante todos os “tipos” de presos (provisórios,flagrante, mulheres, entre outros), os dadoscoletados indicam que, na prática rotineira, cadadelegacia administra o fenômeno de maneiradiferenciada, mas sempre com pouca preocupaçãose o atendimento destinado ao preso coaduna-secom os critérios de justiça e solidariedade.

Portanto, de maneira geral, o que os dadosquantitativos e qualitativos parecem evidenciar éa precariedade da cidadania brasileira no âmbitoda discussão sobre acesso à justiça e relações coma polícia. Essas informações sugerem não apenasum desequilíbrio entre as noções de justiça esolidariedade, como também a impossibilidade detraduzir esses conceitos em práticas na rotina dasdelegacias de polícia de todo o Brasil.

A análise apresentada indica que a posturadiscriminatória da polícia revela-se em detalhesquando se observa a rotina das delegacias depolícia: os problemas vão desde a ausência de umaequipe preparada para receber quem procura aunidade até a linguagem cifrada ou bacharelescados policiais que impedem que o cidadão comumcompreenda o que está ocorrendo.

Por fim, é interessante destacar que, na décadade 1980, Fischer, após extenso trabalho de camponas delegacias de polícia de São Paulo, afirmouque diversos policiais consideram que o linguajare o tratamento ofensivo correspondem ao padrãode relacionamento com o qual o povo estáhabituado e, por isso, muitos desses agentes nãoconsideravam que as condições físicas dascarceragens fossem precárias, posto que estasassemelhavam-se àquelas que os detentos viviam.Ao final, a autora concluía dizendo que “o serviçopolicial segue muito pouco as prescrições legais eos regulamentos, permitindo que o arbítrio, oinstinto e o quadro de valores dos seus agentesdeterminem efetivamente a sua ação” (FISCHER,1985, p. 41).

Quase 30 anos após a publicação dessa primeirapesquisa, os resultados coletados pela Altus nãoforam muito diferentes, indicando que a dificuldadedas delegacias de polícia em viabilizar ainstitucionalização das idéias de justiça esolidariedade seja, talvez, algo histórico e nãocircunscrito à realidade dos anos 2000.

V. CONCLUSÕES: AS DELEGACIAS DEPOLÍCIA COMO ESPAÇO PARA O (NÃO)EXERCÍCIO DA CIDADANIA

A proposta deste artigo foi verificar como asdelegacias de polícia equacionam ou não osconceitos de justiça e solidariedade, já que acombinação desses elementos indica a existênciada cidadania ou do seu deficit.

O ponto de partida da discussão foi aconstatação de que, no Brasil, a transição daditadura militar para a democracia foi acompanhadada explosão de conflitos sociais de várias ordense que as organizações responsáveis pelaadministração institucional desses conflitospermaneceram inalteradas, sendo realizada pelospoliciais como o faziam há anos. Os dados indicamque durante a transição para o Estado de Direito eao longo do processo de consolidação democráticatodas as modalidades de crime cresceram, comespecial destaque para os homicídios dolosos.Apesar do aumento de tais violações (demonstradopelos gráficos 1 e 2), a polícia permaneceuoperando como fazia há décadas, sem preocupar-se em prestar um atendimento de melhor qualidadeaos seus usuários.

De acordo com vários autores19, durante todoo período 1980-1990, o que se observou foi aausência de uma agenda de reforma da segurançapública em geral e da polícia em especial, o quefez que as propostas do período ficassemconfinadas aos confrontos políticos partidários ede opiniões, cuja maior expressão foi o embateentre políticas de direitos humanos e políticas delei e ordem. Do ponto de vista do funcionamentocotidiano das organizações policiais, desde os anos1990, as pesquisas realizadas sobre o tema têmindicado que as delegacias de polícia podem serclassificadas em dois grupos: as que respeitam osdireitos humanos e as que agem ao arbítrio da lei,com a justificativa de que o mais importante émanter a ordem (KANT DE LIMA, MISSE &MIRANDA, 2000).

Logo, com o objetivo de verificar como aPolícia Civil realiza, na atualidade, o atendimentoinicial aos indivíduos que procuram os seusserviços e como os cidadãos percebem esse

19 Como apresentado na revisão de Barreira e Adorno(2010).

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atendimento, os dados coletados no âmbito da IIISemana de Visitas a Delegacias de Polícia foramutilizados como base empírica dessa reflexão. Esseprojeto reúne informações quantitativas equalitativas acerca de como as delegacias depolícia encontram-se em termos de orientação paraa comunidade, condições materiais, tratamentoigualitário do público, transparência e prestaçãode contas e condições de detenção na perspectivado próprio cidadão, já que é ele quem visita asunidades e preenche o formulário desenvolvidopela Altus.

Utilizando as informações coletadas por meiodo formulário da Altus, procurou-se problematizarcomo a qualidade do atendimento prestado pelasdelegacias de polícia pode ajudar no entendimentoda dificuldade de compatibilizarem-se, no Brasil,os ideais de justiça e solidariedade que, emconjunto, formam a ossatura do conceito decidadania, como postulado por Cardoso de Oliveira(1995). Logo, a primeira pergunta que esse artigoprocurou responder foi o que os dados coletadosdurante a Semana de Visitas a Delegacias de Políciasignificam em termos da capacidade da PolíciaCivil brasileira em institucionalizar o conceito decidadania civil.

A definição de cidadania civil, por sua vez, foioperacionalizada a partir de dois termos principais:i) justiça, entendida como a percepção doindivíduo de que, independentemente de suasituação econômica ou de seu status social, eleserá capaz de realizar-se plenamente como sujeitoque integra uma comunidade, sem nenhum tipo

de constrangimento institucional; ii) solidariedade,compreendida como a percepção que o indivíduofaz da existência de reciprocidade na relação queele possui com os entes públicos. Logo, seriapossível afirmar que as delegacias de políciabrasileiras são capazes de viabilizar o exercício dacidadania civil se os indivíduos que a procuramentendem que estão recebendo um tratamento justoe solidário.

De um ponto de vista ideal, se justiça esolidariedade estivessem presentes na realidade dasdelegacias visitadas, estas seriam avaliadas comoadequadas em uma escala de pontuação que variaentre (1) totalmente inadequada, (2) inadequada,(3) adequada, (4) mais do que adequada e (5)excelente. Contudo, os resultados apresentadossão bastante distintos, tanto quando as unidadessão comparadas com as demais existentes naregião, como quando as regiões são comparadasentre si. Em geral, as delegacias brasileiras sãoclassificadas como inadequadas (Tabela 3).Contudo, dentro de cada localidade, as pontuaçõesmáximas e mínimas, bem como o valor do desviopadrão apresentam uma idéia de como essasmedidas são discrepantes. Por exemplo, no Riode Janeiro a variação inclui desde delegaciasclassificadas como totalmente inadequadas (36pontos) até delegacias classificadas comoexcelentes (96 pontos). Quando a comparação éfeita entre regiões, destaca-se a discrepância entreas delegacias de Belém do Pará (no limiar de seremclassificadas como totalmente inadequadas) e asdelegacias de Brasília (adequadas).

FONTE: Altus (2010).

TABELA 3 – ESTATÍSTICAS DESCRITIVAS DAS AVALIAÇÕES REALIZADAS, POR REGIÃO

CIDADE NÚMERO DE CASOS

VALOR MÍNIMO

VALOR MÁXIMO MÉDIA DESVIO-

PADRÃO Belém 21 27 50 38 7 Belo Horizonte 21 34 61 49 9 Brasília 21 38 73 56 9 Fortaleza 21 23 67 45 11 Goiânia 21 30 52 39 5 Porto Alegre 21 33 65 45 9 Recife 21 25 52 41 5 Rio de Janeiro 43 36 96 54 13 São Paulo 42 30 69 51 9 Total 235 23 96 48 11

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A segunda pergunta que o artigo procurouresponder foi em que medida os resultadosapresentados pela Semana de Visitas parecemindicar dilemas a serem superados. Para respondera essa questão cumpre destacar que a metodologiada pesquisa baseia-se nos procedimentos daetnometodologia, ou seja, no acompanhamento daspráticas sociais dos policiais a partir de uminstrumento especialmente desenvolvido paraacoplar as distintas atividades que uma pesquisaação dessa natureza envolve, quais sejam, a deman-da de que o pesquisador contribua diretamente paraa ação e a reflexão dos objetivos da Polícia Civil edos meios de implementá-los (FISCHER, 1985,p. 12).

As citações retiradas dos relatórios narrativosde distintas localidades indicam que os dilemas,especialmente, quanto a quem é o público dadelegacia e como este deve ser tratado de maneiradiferenciada dependendo do seu perfil (ou comexcesso de solidariedade, como afirmado porCardoso de Oliveira (1995)) são uma decorrênciadireta dos usos que os policiais fazem de suasprerrogativas institucionais.

Em certa medida, esses relatos apenas confir-mam os escritos pioneiros de Paixão (1982),reafirmados recentemente por Barreira e Adorno(2010, p. 324). Utilizando as perceptivas dessesautores, as situações com as quais os cidadãosdepararam-se no decorrer da III Semana de Visitasocorrem porque a ação dos policiais dá-se emambientes institucionais caracterizados por frágeismecanismos de inspeção, por generalização domodelo patrimonial de organização e pela ausênciade articulação entre estruturas formais e atividadespráticas. O resultado é que as tarefas de investiga-ção e repressão orientam-se por uma espécie de“lógica-em-uso” nos meios policiais, que compre-endem um estoque de conhecimento baseado emcategorias estereotipadas sobre quem são oscriminosos, onde se concentram e como agem, oque, por sua vez, estimula a criminalização docomportamento justamente dos grupos sociaispouco preparados para ter assegurados direitoscivis contra o arbítrio das organizações policiais.

Logo, os relatos (científicos dos cidadãos queparticiparam da Semana de Visitas) sobre a

maneira como a Polícia Civil vem agindocotidianamente perante os cidadãos que a procu-ram, espontaneamente, para formalizar suas quei-xas, demonstram o desequilíbrio entre os concei-tos de justiça e solidariedade que estruturam a ideiade deficit de cidadania civil.

No que diz respeito ao elemento justiça, emdiversas situações os próprios usuários esperamque o tratamento que a polícia dispensa ao indiví-duo seja diferenciado dependendo de sua situaçãosocioeconômica. Parece que eles já se acostuma-ram às limitações institucionais apresentadas emrazão das condições socioeconômicas ou de classedo cidadão que procura a polícia. Os relatóriosnarrativos, por sua vez, surpreenderam ao demons-trar como o atendimento prestado era contraintui-tivo: nos bairros mais pobres, foi possível encon-trar delegacias com condições adequadas deatendimento, enquanto nos locais mais ricos, nemsempre as delegacias eram bem equipadas.

No que se refere à solidariedade diferenciada,os próprios policiais acham justificável que oatendimento realizado nas áreas mais nobres dacidade seja distinto do que ocorre na zonas perifé-ricas. Logo, os constrangimentos econômicos esociais não são, na visão dos próprios policiais,compensados por uma estrutura institucionaladequada, mas são reificados por esta.

Contudo, a dificuldade em eqüalizar-se justiçae solidariedade aparece de maneira especialmenteinteressante quando se constata que as deficiênciasdas delegacias brasileiras concentram-se nos itens“transparência e prestação de contas” e “condiçõesde detenção”. Parece evidente que algunsindivíduos têm mais acesso a um tratamento deacordo com as regras constitucionais e outros,em razão de seu perfil, acabam sendo tratados demaneira diferenciada.

Portanto, o que as informações coletadas aolongo da III Semana de Visita a Delegacias dePolícia evidenciam é a dificuldade em instituciona-lizar um tratamento justo e igualitário para toda apopulação. Tanto os policiais, como os própriosusuários, justificam a existência de particularismose de graus diferenciados de solidariedade comomecanismo de (in)justiça, posto que permite tratardesigualmente os desiguais.

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Ludmila Ribeiro ([email protected]) é Doutora em Sociologia pelo Instituto Universitário dePesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj) e Pesquisadora da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

Julita Lemgruber ([email protected]) é Mestre em Sociologia pelo Instituto Universitáriode Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj) e Professora da Universidade Cândido Mendes (UCAM).

Klarissa Almeida Silva ([email protected]) é doutoranda em Ciências Humanas pela UniversidadeFederal do Rio de Janeiro (UFRJ).

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 20, Nº 42: 215-219 JUN. 2012

BETWEEN JUSTICE AND SOLIDARITY: CITIZENSHIP FROM WITHIN THE BRAZILIANCIVIL POLICE FORCE

Ludmila Ribeiro, Julita Lemgruber and Klarissa Almeida Silva

Our paper discusses the role of the Civil Police within a democratic scenario in which citizenship issupposed to be completely institutionalized. For these purposes, we use quantitative and qualitativedata on 235 different Brazilian police stations, collected as part of the Third “Week of Visits to PoliceStations” (2009) and international research that seeks to engage citizens, as potential users, to evaluatethe way police stations deal with the public and the transparency of the services they offer. We seekto relate theoretical definitions of solidarity and justice to particular perceptions of citizenship thatcan be inferred from the evaluations that were carried out. We thereby structure the followingarticle into three sections, including introduction and conclusion. The first section explains the “Weekof Visits to Police Stations” in its different dimensions. The second contextualizes the conceptsthrough which we plan to analyze Brazilian Civil Police actions, that is, civil citizenship and its deficits.The third section discusses how individuals represent the practices they observe in police stationsand questions the extent to which these representations converge with the concept of “citizenshipdeficit” introduced in the previous section. Finally, we present some notes on how the quality ofpublic services provided through police stations can help us understand how in Brazil it is hard tomake ideals of justice and solidarity compatible, from a universal perspective. Our results indicatethat the attention police stations provide is inadequate and therefore does not mesh with the “principlesof justice and solidarity” that give shape to the notion of citizenship itself.

KEYWORDS: Citizenship; Justice; Solidarity; Civil Police; Quality of Police Services.

* * *

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 20, Nº 42: 223-228 JUN. 2012

ENTRE LA JUSTICE ET LA SOLIDARITÉ : LA CITOYENNETÉ EXERCÉE DANS LA POLICECIVILE BRÉSILIENNE

Ludmila Ribeiro, Julita Lemgruber et Klarissa Almeida Silva

On discute le rôle de la Police Civile dans un contexte démocratique, quand la citoyenneté devrait setrouver pleinement institutionnalisée. Pour cela, seront utilisées des informations (quantitatives etqualificatives), qui font référence à 235 commissariats brésiliens, recueillies dans le contexte de la« Troisième Semaine de Visites aux Comissariats de Police » (2009), une recherche internationalequi a l’objectif de faire les citoyens, des usagers potentiels des services offerts par ces bureaux,évaluer l’accueil au public et la transparence des services offerts par les commissariats de police.L’objectif c’est de lier les définitions théoriques de solidarité et justice à certaines perceptions decitoyenneté qui peuvent être observées à partir des évaluations réalisées. Pour cela, cet article eststructuré en trois sections, en plus de l’introduction et de la conclusion ; la première en présente la« Semaine de Visites aux Commissariats de Police » dans ses différentes dimensions. La deuxièmesection remet dans leur contexte les concepts à partir desquels on a l’intention d’analyser l’action dela Police Civile brésilienne, c’est à dire, la citoyenneté civile et son déficit. Et enfin, la troisièmesection reproduit les représentations des individus autour des pratiques observées dans lescommissariats de police, et problématise la mesure dans laquelle ces pratiques se concilient ou pasavec la catégorie conceptuelle nommée « déficit de citoyenneté », construite dans la sectionprécédente. Enfin, quelques observations sont présentées sur comment la qualité de l’accueil offertpar les commissariats de police peut aider à la compréhension de la difficulté existante par rapport àla compatibilité au Brésil, des idéaux de justice et solidarité, à partir d’une perspective universelle.Les résultats indiquent que l’accueil offert par ces bureaux de police est inapproprié et, par conséquent,incapable de se concilier avec les « principes de justice et solidarité » qui structurent l’idée decitoyenneté elle même.

MOTS-CLÉS�: citoyenneté ; justice ; solidarité ; Police Civile ; qualité du service policier.