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ROSANA DE PAULA FIRMIANO
ENTRE A ENXADA E A CANETA: REFLEXES SOBRE AS PRTICAS DE LEITURA E A PARTILHA DE
SABERES NO CONTEXTO RURAL
Dissertao apresentada Universidade Federal de Viosa, como parte das exigncias do Programa de Ps-Graduao em Letras, para obteno do ttulo de Magister Scientiae.
VIOSA
MINAS GERAIS - BRASIL
2015
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A Deus, acima de tudo, a Quem eu sirvo e que me guarda diariamente.
minha famlia, meu alicerce desde sempre. Ao meu marido, pelo amor,
amizade e apoio.
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AGRADECIMENTOS
Agradeo a Deus, sem o qual nada sou, pela bno de ter me
concedido a oportunidade de vivenciar o meu to sonhado mestrado em
literatura; pelos livramentos e pela constante e serena presena em minha
vida.
Universidade Federal de Viosa, pela excelncia no ensino e pela
competncia de seus profissionais.
Prof. Dra. Elisa Cristina Lopes, pela orientao e sensibilidade ao
longo desses dois anos, pela seriedade e humanidade com as quais me
auxiliou ao longo desta pesquisa, tornando esse caminho de descobertas mais
interessante e repleto de significados.
minha famlia, que sempre tem sido presente em minha vida,
apoiando-me em todas as decises e oferecendo base e valores suficientes
para que eu possa prosseguir.
Ao meu marido, pelo amor, amizade, apoio e altrusmo, os quais
renovam diariamente as minhas foras e o meu desejo de seguir em frente.
s amigas Dbora Andrade e Maikely Colombini, que fizeram esses dois
anos de mestrado mais leves, pela amizade, apoio e momentos de
descontrao.
secretria Adriana, pela costumeira disposio em ajudar e por sua
inquestionvel competncia.
Ao Colgio Sagrado Corao de Maria, de Ub, pela compreenso e
apoio em relao s demandas do mestrado.
A todos que contriburam direta ou indiretamente para a minha titulao.
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RESUMO
FIRMIANO, Rosana de Paula, M. Sc., Universidade Federal de Viosa, maro
de 2015. ENTRE A ENXADA E A CANETA: REFLEXES SOBRE AS
PRTICAS DE LEITURA E A PARTILHA DE SABERES NO CONTEXTO
RURAL Orientadora: Elisa Cristina Lopes.
O interesse pelo tema surgiu da necessidade de discutir as prticas sociais de
leitura no contexto rural, visto que se percebe uma tendncia de
sobrevalorizao dos conhecimentos cientficos e da cultura urbana nos
estudos acadmicos, de uma maneira geral, em detrimento dos saberes de
carter mais rural. Objetivamos, dessa forma, ampliar a noo de leitura, de
maneira a perceb-la em outros suportes que no apenas o livro. Entendida
dessa forma, foi possvel pensar na prtica da leitura tambm como uma
prtica de leitura de mundo, de compartilhamento de saberes entre indivduos.
Essa troca de saberes costuma ser realizada tanto atravs da escrita, em
diferentes suportes, quanto por meio da oralidade. Entretanto, como nossa
sociedade tende a sobrevalorizar a cultura escrita, comunidades que tm uma
forte base oral ou que no compartilham do acervo cultural escrito e acadmico
tendem a sofrer os efeitos dessa hierarquizao simblica. Elegemos uma
comunidade rural especfica, o distrito de Ubari, MG, para, atravs de
entrevistas com dez idosos e dez jovens, investigarmos suas prticas de
leitura. Partimos da hiptese de que o compartilhamento de saberes no
contexto rural seria de base predominantemente oral, sendo os idosos os
principais responsveis pelo perpetuamento destes entre geraes. Nesse
sentido, supnhamos que o espao para a leitura de livros seria reduzido,
circunscrevendo-se apenas ao contexto dos mais jovens, em decorrncia de
exigncias escolares. Constatamos que a oralidade no mais uma
caracterstica marcante do compartilhamento de saberes na comunidade rural.
Os jovens tm procurado como fonte de informao e lazer principalmente os
suportes tecnolgicos, onde tambm exercem a prtica da leitura,
principalmente de textos mais ligados ao lazer e diverso. Os idosos, por sua
vez, mostraram-se nostlgicos em relao aos tempos em que a oralidade era
uma prtica mais comum para difuso de saberes, principalmente tendo como
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base a prtica de ouvir os mais velhos. Apesar de no sentirem o interesse dos
jovens em ouvir os conhecimentos que tm a transmitir, exercem prticas
especficas de leitura, como leitura bblica e atividades religiosas, simpatias,
benzees, prtica de escrita de memrias pessoais etc. Quando se pensa no
lugar que a leitura de livros acadmicos tem no espao rural, pudemos
perceber que esse tipo de leitura, apesar de estar envolvida por uma urea de
reverncia e respeito, matem-se distante das prticas cotidianas. Constatamos
que reconhecer que ler importante para a insero social do cidado no
suficiente para que um grupo de pessoas leia os textos que a escola e a
universidade elegem como fundamentais; a leitura s se transforma em prtica
efetiva se condizer com a realidade e as necessidades do indivduo. L-se com
mais frequncia, por exemplo, entre os mais velhos, textos de carter religioso;
leitura essa que parte do interesse deles e que vai ao encontro de seus anseios
e valores. Entre os jovens, a leitura de revistas de variedades e sites da
internet tambm representa o anseio por uma leitura voluntria e,
consequentemente, prazerosa.
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ABSTRACT
FIRMIANO, Rosana de Paula, M. Sc., Universidade Federal de Viosa, March, 2015. BETWEEN THE HOE AND THE PEN: REFLECTIONS ON THE PRACTICE OF READING AND THE KNOWLEDGE SHARING IN RURAL CONTEXT Adviser: Elisa Cristina Lopes.
The interest in the subject started from the need to discuss social reading
practices in the rural context, because you can notice an overvaluation trend of
scientific knowledge and urban culture in academic studies, in general, in
contrast to the rural knowledge . Our aim is to expand the notion of reading in
order to see it in other resources that not only the book. This way, it was
possible to think of the practice of reading also as a world of reading practice,
sharing the knowledge among individuals. This exchange of knowledge is
usually done either through writing, using a variety of tools, and through orality.
However, as our society tends to overestimate the written culture, communities
that have a strong oral basis or who do not share the writing and academic
cultural knowledge tend to suffer the effects of symbolic hierarchy. We chose a
specific rural community, the Ubari district, MG, through interviews with ten
elderly and ten young people, to investigate their reading practices and share
knowledge. Our hypothesis is that when sharing knowledge in the rural context
it occurs orally, through speaking, the elderly are the main responsible for the
perpetuation of this knowledge between generations. In this context, we
imagined that the space for reading books would be reduced and limited only to
the youngest, because of school requirements. We found that orality is not a
distinctive feature of the knowledge sharing in the rural community anymore.
Young people have looked for technological supports, where they can practice
the reading as a source of information and entertainment, especially the ones
linked to leisure and fun texts. The elderly, in turn, were nostalgic in relation to
the times in which orality was a common practice for dissemination of
knowledge, mainly based on the practice of listening to the older ones. Although
not feeling young people's interest in hearing the knowledge they have to
transmit, they still perform specific reading practices such as Bible reading and
religious activities, sympathies, blessing, writing practice of personal memories
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etc. When we think about the place that reading of academic books have in
rural areas, we realize that this kind of reading, despite being surrounded by an
aura of reverence and respect, is really away from the daily practices. To
conclude recognizing that reading is important for the social integration of the
citizen is true,but it is not enough to make a group of people read the texts that
the school and the university elected as fundamental; reading only becomes an
effective practice when it matches the realities and needs of the individual. For
example, among older, faith-based texts are read more often; because its part
of their interest and matches their expectations and values. Among young
people, reading magazines varieties and internet sites also represent the desire
for a voluntary and therefore enjoyable reading.
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SUMRIO
1. INTRODUO............................................................................................ 1
1.1 Consideraes iniciais............................................................................... 1
1.2 O problema e sua importncia..................................................................... 6
1.3 Objetivos................................................................................................... 15
1.3.1 Objetivos gerais...................................................................................... 15
1.3.2 Objetivos especficos............................................................................. 15
1.4 Hipteses................................................................................................... 15
2. METODOLOGIA.......................................................................................... 16
3. REFERENCIAL TERICO.......................................................................... 21
3.1 Revisitando o conceito de leitura e suas prticas sociais ........................ 21
3.2 O lugar da memria na sociedade contempornea................................... 32
3.3 Entendendo a vida e o trabalho do campo: uma perspectiva histria e
social............................................................................................................... 43
4. APRESENTAO E ANLISE DE DADOS: AS PRTICAS SOCIAIS DE
LEITURA DE JOVENS E IDOSOS NO DISTRITO DE UBARI MG ............ 55
4.1 A representao simblica do espao rural pelos seus habitantes........... 56
4.2 As fontes de obteno de informao, conhecimento, sabedoria e lazer. 64
4.3 Os suportes de propagao da memria e da tradio no contexto rural.. 77
4.4 O papel da Biblioteca e da Escola como espaos sociais de prticas de
leitura no meio rural........................................................................................ 101
4.5 A recepo do conto Um aplogo, de Machado de Assis: uma esttica
prpria?............................................................................................................107
5. CONSIDERAES FINAIS:OS SABERES PARTILHADOS ENTRE A
ENXADA E A CANETA.................................................................................. 116
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REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS............................................................... 123
APNDICE...................................................................................................... 127
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1. INTRODUO
1.1 Consideraes iniciais
Tem coisas que no se aprende s na escola/uma delas a educao/ tem gente que cursou faculdade/ mas no sabe o que solidariedade/ o que ser irmo/ no pense que eu sou contra a escola/ eu sou a favor da educao/ s estou indo a favor desta gente que no pode ter diploma em suas mos. (Amauri Adolfo)
A epgrafe acima pertence ao poeta mineiro Amauri Adolfo, residente em
uma comunidade rural do municpio de Espera Feliz, Minas Gerais, onde
atualmente dedica-se ao trabalho na roa, gozando do contato direto com a
natureza e com a famlia. Amauri concluiu apenas o primrio, o que no foi
empecilho para que se dedicasse arte; alm de poeta, trabalhou por alguns
anos tambm na rea teatral e compondo msicas.
Todas as epgrafes deste estudo fazem parte do primeiro livro editado de
Amauri Adolfo, Redemoinho, de 2005, em que o poeta, dentre outras
temticas, aborda com mais nfase a identidade e as memrias do homem do
campo, representando a voz e a cultura desse sujeito social muitas vezes
relegado pelos estudos acadmicos.
Dentre outros atributos que a obra tem, a que mais chama-nos a
ateno o fato de a temtica rural ser representada por algum que a vive
diariamente; no se trata, assim, de representar o homem do campo na
literatura, mas de o prprio homem do campo representar, atravs de sua voz,
suas culturas, memrias e identidades.
O livro de Amauri Adolfo ilustra poeticamente um anseio muito
semelhante ao desta pesquisa, de valorizao da cultura e das leituras do
homem do campo, visto que pretendemos analisar as prticas de leitura no
universo rural. Nesse sentido, o contato com uma obra desse tipo bastante
significativo em relao s questes que sero abordadas ao longo deste
estudo.
A pintura de Vermeer, A leiteira, por sua vez, a qual foi usada como
epgrafe para esta dissertao, representa um dos meus primeiros contatos
com produes artsticas ainda na infncia. A imagem da moa que se dedica
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atenciosamente e com entrega atividade manual e aparentemente diria de
lidar com as tarefas do lar, em um ambiente rural, interessou-me j na primeira
vez em que a vi, ainda criana, em uma das casas vizinhas que frequentava.
Habitantes da zona rural, eu e minha famlia no tnhamos nenhum tipo de
contato com pintura, mas, mesmo assim, aquela imagem marcou-me
sobremaneira.
Anos mais tarde, j cursando a universidade, tive a oportunidade de v-
la novamente, contextualizada e fazendo parte da anlise de um dos textos
exigidos por uma disciplina da faculdade. O que foi apenas contato e
identificao na infncia transformou-se em anlise e aprofundamento
acadmico na universidade. Esses dois tipos de contato com a pintura de
Vermeer foram, dessa forma, marcantes na minha trajetria pessoal e
acadmica. No caso desta pesquisa, a pintura torna-se ainda mais
emblemtica devido ao entorno campesino de que se compe o espao no
qual a moa est inserida.
Em relao a esse espao, foco deste trabalho, interessa-nos investigar
quais so e como se do as prticas de leitura nesse ambiente, levando em
considerao a massificao cultural que tanto a urbanizao quanto os meios
de comunicao, como televiso e internet, tm suscitado nos mais diversos
espaos.
Nossos questionamentos perpassam, portanto, no s pela identificao
dos tipos de leitura cannica/oficial que so (e se so) feitas por estes
indivduos, mas tambm, partindo de um pressuposto amplo de leitura,
entendida tambm como forma particular de ler e compreender o mundo que
nos cerca, intriga-nos a possibilidade de perceber qual a leitura do mundo
que essas pessoas fazem cotidianamente, quais so os textos, escritos ou
orais, que lhes do sustento para a formao de sua identidade e, tambm,
transformam-se em referncia para o compartilhamento de conhecimentos e
saberes entre os indivduos e entre as geraes.
As motivaes para o desenvolvimento dessa pesquisa tm uma
fundamentao tanto acadmica quanto pessoal. Acadmica, pelo interesse
que as cincias humanas e a rea de linguagens vm demonstrando, no
decorrer das ltimas dcadas, pelo estudo de grupos que representam
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minorias at pouco tempo excludas da escrita da Histria e do conhecimento
acadmico, de uma forma geral.
O anseio por dar voz aos saberes e verso que mulheres, negros,
ndios e camponeses, por exemplo, tm a respeito da realidade que os cerca
tem, assim, uma base acadmico-poltica bastante forte na atualidade e que
parece cumprir uma funo democrtica, no apenas no mbito acadmico,
mas principalmente na esfera poltica, em sentido amplo. Sobre o assunto,
Santos (2005) pondera que:
possvel mostrar que apesar das diferenas que a democracia participativa assume em pases distintos a partir de seus processos polticos, h algo que os une, um trao comum que remete teoria contra-hegmonica da democracia: os atores que implantaram a experincia de democracia participativa colocaram em questo uma identidade que lhes fora atribuda externamente por um Estado colonial ou por um Estado autoritrio e discriminador. (p. 57)
Tais lutas pelo direito voz representativa em uma democracia mais
participativa vm acontecendo de forma mais incisiva j h algumas dcadas e
em vrios pases. Essa vertente poltica tem seus efeitos tambm , como se
sabe, dentro dos estudos acadmicos, em que tanto a Nova Histria quanto o
Multiculturalismo so representantes de linhas de pesquisa que, nas mais
diversas reas, desenvolvem um olhar sobre as minorias e suas
representaes.
Dentre as vrias minorias que buscam espao representativo ou
carecem dele, o homem rural e a sua cultura chamam especial ateno. Em
relao a esse grupo social e forma como designado, cabe ressaltar que,
ao longo desta pesquisa, as denominaes homem rural, homem do campo
e campons foram usadas como sinnimas, por fazerem referncia, nesta
pesquisa, ao habitante da zona rural, em especial ao pequeno produtor e sua
famlia.
Tendo isso posto, sabe-se que o homem do campo tem vivido,
principalmente aps o avano industrial brasileiro, o xodo rural e a
supervalorizao da vida citadina, uma crescente desvalorizao da sua cultura
local, bem como uma srie de problemas econmicos, principalmente no que
diz respeito ao pequeno produtor. Nos dizeres de Queiroz (1978):
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Atualmente tem lugar uma sociedade cada vez mais marcada por caracteres urbanos, isto , em que a cidade tende a cada vez mais dominar o campo, reduzido a uma posio no apenas de subordinao como tambm de inferioridade. este, a nosso ver, o perfil atual da sociedade global brasileira, do ponto de vista sociolgico e em suas relaes campo-cidade, que cumpre no esquecer ao empreendermos qualquer pesquisa de meio rural ou urbano, pois tal perfil pesa decisivamente nos processos em curso. (p.64)
Dentro da problemtica do homem rural, especificamente a do pequeno
produtor, interessa-me em especial observar e analisar a relao que este
estabelece com a leitura, entendida neste trabalho, de maneira ampla.
Investigar as prticas de leitura rurais , nesse sentido, uma tentativa de
resgate e valorizao da sua cultura, dos seus saberes, enfim, de sua forma de
significar o mundo.
Evidentemente, reconhecemos a possibilidade de nos depararmos,
nesse espao, tambm com pessoas que no dominam a escrita e/ou usam a
oralidade como forma de compartilhamento de saberes. Ora, acreditamos que
tanto a leitura de textos materializados em palavras impressas quanto a
expresso de saberes atravs da oralidade so formas de ler, significar a
sociedade e, ao mesmo tempo, transmitir saberes.
So esses dois instrumentos, portanto, que materialmente mais nos
interessam nesta pesquisa: os textos escritos e orais que circulam no universo
rural como forma de compartilhamento de conhecimentos.
Tendo exposto as razes acadmicas para o desenvolvimento desta
pesquisa, cumpre explicitar as motivaes eminentemente pessoais. Ressalto
aqui a minha origem rural. Minha famlia toda sempre viveu, desde a poca de
seus pais, avs e bisavs, no campo, sobrevivendo do cultivo da terra. Dentre
as inmeras caractersticas campesinas que podem chamar a ateno de um
observador, a cultura e os hbitos cotidianos sempre foram as que mais me
encantaram.
Fao aqui um parntese para falar da influncia significativa dos meus
avs na minha formao. Tanto os paternos quanto os maternos so de origem
rural e tiveram como base de sustento o cultivo de caf e a produo de leite,
basicamente. De toda a nossa convivncia, o que mais me marcou e encantou
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foram as histrias que eles sempre nos contavam, histrias de outrora,
algumas com lio de moral e outras simplesmente para nos fazer rir.
Entremeadas a essas histrias, eles proferiam sentenas proverbiais e
expresses de um tempo antigo que, para mim, guardavam extrema sabedoria,
de uma forma simples e potica. Meu pai, especialmente, herdou de meu av
essa caracterstica, visto que at hoje tende a usar histrias para ilustrar uma
determinada situao ou ensinamento, algumas delas repetidas sempre que
ilustram bem uma situao do presente.
Alm das histrias, a temporalidade campesina outro aspecto que
sempre, mesmo inconscientemente, me encantou; associada a ela, o carter
manual das tarefas, artesanais e pacientemente feitas. A relao com o tempo
no campo, mais aprofundada, para mim, parecia estar em uma entrega maior
s atividades a que se propunham meus familiares: desde a lida com o gado
at um bordado feito ou a receita de uma broa de fub. Entremeadas a isso,
longas prosas e, portanto, vrias histrias sendo narradas e transmitidas. O
tempo ali sempre pareceu confortvel e amigavelmente se arrastar pelas horas,
permitindo um saborear de todas as experincias que tanto o contato com o
Outro quanto com a natureza poderiam oferecer.
Mesmo na universidade, diante das disciplinas e contedos acadmicos,
os saberes rurais ainda despertavam o meu interesse, mesmo no os vendo
representados nos textos que lia na academia. Intrigava-me especialmente o
fato de, mesmo no tendo representatividade na Academia, essa linguagem e
conjunto de conhecimentos ainda permanecerem como modo de organizao
da vida de inmeras pessoas e serem, tambm, uma forma possvel de
significar o mundo.
O ingresso no Mestrado na rea de literatura possibilitou-me, enfim, o
contato com as vertentes tericas que vm, nas ltimas dcadas, reclamando
mais espao para as minorias dentro dos estudos universitrios. Deparei-me,
assim, com a questo do Negro, da Mulher, do Homossexual e de tantas outras
minorias dignas de serem representadas nos estudos acadmicos, mas ainda
no via um esforo de tal proporo para que houvesse tambm a insero do
homem do campo, de forma mais participativa e menos tcnica e extica,
principalmente no que se refere sua formao cultural.
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nesse sentido que a presente pesquisa fruto do anseio de
representar uma parcela da realidade do homem rural, mais especificamente,
suas prticas de leitura, seus mecanismos de compartilhamento de
conhecimentos e cultura, transcendendo o paradigma acadmico de
sobrevalorizao do conhecimento cientfico em detrimento da cultura e dos
saberes locais.
No se trata, como poderia se pensar, de uma dicotomia entre cincia e
costumes, mas da tentativa de registro, reconhecimento e dilogos entre as
duas formas de construo de saberes dentro do espao universitrio.
1.2. O problema e a sua importncia
Tem gente que abusa do povo da roa/Diz que um povo caipira/ que no tem educao/No sei por que o preconceito/ qual o conceito que se tem de educao. (Amauri Adolfo)
A questo da linguagem fulcral para uma compreenso efetiva da
organizao social, visto que ela, a palavra, atravs dos seus modos de
organizao, que significa o mundo por meio de processos simblicos, culturais
e polticos. Nesse sentido, o distanciamento entre a linguagem rural e a
linguagem da grande mdia, da escola e da academia tem um significado
visivelmente poltico, representando as relaes de poder da esfera social.
Sobre esse assunto, Rodrigues (2006) nos esclarece que:
A palavra um ato de poder, o que equivale afirmar que ela no apenas um entre os seus outros smbolos, mas o seu exerccio. O direito de falar e ser ouvido so direitos do senhor. Os sditos calam ou repetem a palavra que ouvem, fazendo seu o mundo do outro. Porque a diferena entre um e outros est em que o primeiro detm a posse do direito de pronunciar o sentido do mundo e, por isso, o direito de ditar a ordem do mundo social. Uma diviso social do poder realiza-se entre os homens como oposies simblicas e nem por isso menos reais de diferenas do poder de falar. (p. 9)
Pensar a palavra, nas suas mais diversas formas, vista em sua relao e
simbologia no universo rural , dessa forma, alm de um trabalho de
investigao das prticas de leitura, uma maneira de perceber politicamente
como as relaes de poder hierarquizam o discurso do homem do campo, bem
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como esse mesmo sujeito representa o mundo e se representa atravs da
palavra.
Outrossim, esses questionamentos trazem em seu bojo uma base
terica a qual, nos ltimos anos, vem buscando compreender as formas pelas
quais a palavra vem passando por processos de tecnologizao. So
indagaes, nesse sentido, que, antes de mais nada, reconhecem um curso
natural da palavra, que do estgio da oralidade passou ao da impresso e, a
seguir, ao da era da informtica.
Sem nos atermos a saudosismos ou a dualismos, analisar
reflexivamente tal realidade histrica da representatividade da palavra e de
seus suportes torna-se fundamental para perceber criticamente a relao que
hoje estabelecemos entre cultura letrada e conhecimento socialmente
legitimado. Significa, portanto, tambm reconhecer a possibilidade de
existncia de um modo de ler o mundo e de construir tessituras textuais e uma
tradio fundamentadas em uma base tambm oral, isso sem necessariamente
criar juzos de valor, mas, de outro modo, desenvolver uma anlise das
relaes entre essas duas formas de se relacionar e significar o mundo:
atravs da oralidade e atravs da escrita.
Sobre o assunto, Walter Ong (1998) nos esclarece que:
A oralidade no um ideal, e nunca foi. Abord-la positivamente no defend-la como um estado permanente para qualquer cultura. A cultura escrita abre possibilidades palavra e existncia humana de uma forma inimaginvel sem a escrita. As culturas orais atualmente valorizam suas tradies orais e se angustiam diante das perdas dessas tradies, mas nunca encontrarei ou ouvi falar de uma cultura oral que no queira atingir a cultura escrita to logo quanto possvel. (Alguns indivduos, claro, resistem cultura escrita, mas so em nmero cada vez menor.) No entanto, a oralidade no deve ser menosprezada. Ela capaz de produzir criaes que esto fora do alcance dos que pertencem cultura escrita, por exemplo, a Odissia. Tampouco a oralidade pode ser completamente erradicada: ler um texto o oraliza. Tanto a oralidade quanto o desenvolvimento da cultura escrita baseado nela so necessrios evoluo da conscincia. (p.195)
Apesar da natural coexistncia e do relacionamento entre essas duas
formas de significar o mundo atravs da palavra, percebemos que, atualmente,
a cultura ocidental adota um conjunto de autores e textos (escritos) como fonte
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principal de construo e compartilhamento de saberes, a princpio,
necessrios para que o indivduo se integre sociedade, passando a ter
maiores possibilidades de ascenso social ou, pelo menos, para que vivencie
mais plenamente a sua cidadania.
de conhecimento comum que esses textos e saberes so
tradicionalmente propagados e perpetuados pela Escola, que passa a ter papel
fundamental nessa homogeneizao dos saberes tidos como essenciais ao
indivduo, ao que se chama de sua formao cultural.
O conceito de cultura, entretanto, merece uma reflexo acerca de seu
significado social. Para Santos (2006):
Cultura uma dimenso do processo social, da vida de uma sociedade. No diz respeito apenas a um conjunto de prticas e concepes, como, por exemplo, se poderia dizer da arte. No apenas uma parte da vida social como, por exemplo, se poderia falar da religio. No se pode dizer que cultura seja algo independente da vida social, algo que nada tenha a ver com a realidade onde existe. Entendida dessa forma, cultura diz respeito a todos os aspectos da vida social, e no se pode dizer que ela exista em alguns contextos e no em outros. Cultura uma construo histrica, seja como concepo, seja como dimenso do processo social. (p.36)
Entendida como o conjunto de prticas sociais de um grupo, a noo de
cultura amplia-se e passa a abranger no apenas aspectos especficos da vida
social, como arte e religio, mas todas as prticas da esfera social. Nesse
sentido, associar cultura a apenas manifestaes artsticas ou acadmicas
revela-se como uma atitude discriminadora e limitada. Todo conjunto social tem
sua cultura, no sentido de modo de vida e prticas sociais, sendo todas elas
aspectos relevantes para o estudo geral da cultura de um grupo.
A adoo de um conjunto de hbitos e prticas como representao de
uma cultura superior seria, nesse sentido, uma ao discriminatria. Quando se
afirma, por exemplo, que a leitura de um clssico da literatura universal tem
mais valor cultural do que um livro de poesias de um autor local,
hierarquizamos no apenas textos, mas tambm culturas e, portanto, grupos
sociais.
Os saberes locais, todavia, sofrem historicamente uma influncia muito
forte de um conjunto de saberes exteriores que lhes so repassados como
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manifestaes culturais legtimas; ao essa que tende a gerar uma
discriminao em relao ao valor desse saberes autctones em relao aos
acadmicos ou citadinos.
Como consequncia, a tendncia que produes culturais especficas,
ou seja, as culturas locais tendam a enfraquecer e fragmentar crescentemente
seus elos de identidade, at mesmo dentro de seus espaos de origem;
adotando produtos culturais, ora divulgados pela mdia, ora estabelecidos pelas
instituies de ensino.
No usamos essas proposies a respeito da hierarquizao e
massificao da cultura pela mdia e pelas instituies de ensino como formas
de emitir um juzo de valor pejorativo a respeito dos efeitos das mesmas, mas
apenas de constat-los.
Nessa mesma linha de raciocnio, Chartier (2003) pondera que:
Uma outra transformao radical est situada contra e a favor da emergncia de uma cultura de massa, cujas novas mdias so vistas como destruidoras de uma cultura antiga, oral e comunitria, festiva e folclrica ,que era ao mesmo tempo criadora, plural e livre. O destino historiogrfico da cultura popular , portanto, ser sempre sufocada, expulsa, usada e, ao mesmo tempo, tal como Fnix, sempre renascer das cinzas. Isso indica que se deve considerar, para cada poca, como se estabelecem as relaes entre as formas impostas, mais ou menos restritivas e imperativas, e as identidades afirmadas, mais ou menos radiosas ou contidas. (p.146)
Em sntese, Chartier (2003), ao mesmo tempo em que reconhece o
quanto o Estado, a Igreja e/ou a mdia interferem na ordem e constituio da
cultura popular, chama tambm nossa ateno para a necessidade de
reconhecer que a fora de imposio desses modelos culturais no anula
integralmente o espao de sua recepo, seja ele no meio acadmico ou no
meio popular. A tentativa de imposio de uma cultura homogeneizante, nesse
sentido, no significaria necessariamente uma assimilao passiva por parte
dos diversos grupos sociais que a recebem.
Muito pelo contrrio, Chartier (2003) afirma que a maneira pela qual a
cultura popular assimila tais produtos culturais se modifica pelo modo como
essas identidades no apenas recebem passivamente uma cultura exterior,
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mas principalmente pelo modo como se apropriam dela, transformando-a e
adaptando-a a seu contexto imediato.
Certeau (1999), em A inveno do cotidiano: artes do fazer, tambm nos
prope uma reflexo sobre a dialtica da recepo dos produtos culturais e dos
textos, de uma forma geral, de maneira a percebemos o carter ativo e rico da
recepo. O estudioso faz uma anlise que se baseia em estudar prticas
cotidianas como modos de ao, como operaes realizadas pelo indivduo no
processo de interao social que, em conjunto, dizem sobre um ser-individual-
social, que se reapropria de elementos de uma cultura preexistente, a fim de
torn-la comum a sua prpria vida ordinria.
Certeau parte do pressuposto de que a relao social que determina o
indivduo e no o inverso, por isso, s se pode apreend-lo a partir de
suas prticas sociais. O terico percebe a individualidade como o local onde se
organizam, s vezes de modo incoerente e contraditrio, a pluralidade da
vivncia social.
Nas prticas cotidianas de ler, conversar, habitar e cozinhar se
observam as maneiras de falar e as maneiras de caminhar, pelas quais o
indivduo pode seduzir, persuadir, refutar. Todo esse potencial enunciativo e
criativo do indivduo, durante a interao, remete ao que Certeau chama de
antidisciplina, que vai de encontro ideia de vigilncia, de limites, de
combinaes restritas e previsveis, desenvolvida por Foucault em Vigiar e
Punir (1975). O autor chama a nossa ateno para o fato de que as artes do
fazer sejam, talvez, o lugar por excelncia da liberdade e da criatividade, dois
elementos fundamentais para a sociedade contempornea.
Convm aqui ressalvar que Certeau destaca, sobretudo, a necessidade
de interessar-se no pelos produtos culturais oferecidos no mercado dos bens,
mas pelas operaes dos seus usurios. Nas palavras do autor:
mister ocupar-se com as maneiras diferentes de marcar socialmente o desvio operado num dado por uma prtica. O que importa j no , nem pode ser mais a cultura erudita, tesouro abandonado vaidade de seus proprietrios. Nem tampouco a chamada cultura popular, nome outorgado de fora por funcionrios que inventariam e embalsamam aquilo que um poder j eliminou, pois para eles e para o poder a beleza do morto tanto mais emocionante e celebrada quanto melhor encerrada num tmulo. Sendo assim, necessrio voltar-se
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para a proliferao disseminada de criaes annimas e perecveis que irrompem com vivacidade e no se capitalizam. (p.13)
Algum que se proponha, nesse sentido, a investigar culturas
marginalizadas pelo sistema cultural oficializado teria diante de si um rico
material de anlise, visto que se constituiria de formas peculiares e criativas de
se relacionar com o conhecimento e modo de vida institucionalizado.
Certeau chama nossa ateno para uma espcie de sensibilidade
esttica diante das revelaes de prticas cotidianas e simples, as quais, para
ele, revelam ideologias e sentidos para a compreenso da tessitura social. Sua
incredulidade frente ordem que as autoridades e instituies desejam
organizar desemboca em um olhar mais atento aos espaos em que as
prticas cotidianas se fazem e revelam significados para alm da ordem
imposta.
Especificamente voltando-nos para a reflexo de Certeau que se
relaciona diretamente a este estudo, o estudioso tambm reconhece a prtica
da escrita como algo socialmente associado ao progresso e as prticas orais
como aquilo que no contribui para o progresso; e, reciprocamente,
escriturstico aquilo que se aparta do mundo mgico das vozes da tradio.
(p.224).
De tal modo a escrita estaria enraizada na nossa cultura que a pgina
em branco teria o poder sobre a exterioridade da qual fora previamente isolada,
organizando, pois, a vida social e, a princpio, suas prticas dirias.
A prtica de escrever, para Certeau, chamada de prtica mtica
moderna traz consigo, atualmente, uma relao que a escritura tem com a
perda de uma Palavra identificadora, primeira e, dessa maneira, um novo
tratamento da lngua pelo sujeito que dela faz uso.
Essa relao contempornea com a Palavra teria origem, para o
estudioso, na forte relao que o Ocidente tem com a Escritura de maior
influncia por muitos sculos em nossa sociedade, a Bblia.
Antes do perodo moderno, essa Escritura falava, era uma espcie de
voz e ensinava e era ouvida pelos seus leitores-ouvintes. O questionamento
desenvolvido na Modernidade acerca da veracidade dessa Palavra e a sua
relativizao em virtude das corrupes que o texto sofreu ao longo da histria,
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quebrou de certa maneira a unidade que tal texto tinha como voz e o lugar que
o indivduo/leitor tinha como ouvinte da verdade.
Nas palavras de Certeau (1999):
O lugar que lhe era outrora fixado por uma lngua cosmolgica, ouvida como vocao e colocao numa ordem do mundo, torna-se agora um nada, uma espcie de vcuo, que obriga o sujeito a apoderar-se de um espao, colocar-se a si mesmo como um produtor da escritura. Devido a esse isolamento do sujeito, a linguagem se objetiva, tornando-se um campo que se deve lavrar e no mais decifrar, uma natureza desordenada que se h de cultivar. A ideologia dominante se muda em tcnica, tendo por programa essencial fazer uma linguagem e no mais l-la. A prpria linguagem deve ser agora escrita. Tal processo implicou em um afastamento do corpo vivido (tradicional e individual) e, portanto, tambm de tudo aquilo que, no povo, continua ligado terra, ao lugar, oralidade ou s tarefas no verbais. O domnio da linguagem garante e isola um novo poder, burgus, o poder de fazer a histria fabricando linguagens. Este poder, essencialmente escriturstico define o cdigo da promoo socioeconmica e domina, controla ou seleciona segundo suas normas todos aqueles que no possuem esse domnio da linguagem. (p. 230)
A escrita se tornou, dessa forma, uma forma de hierarquizao social
que privilegiou, em tempos passados, o burgus, atualmente, o tecnocrata.
Tem funcionado como uma espcie de lei de uma educao gerida e
administrada pela classe dominante que pode fazer da linguagem o seu meio
de produo.
Historicamente, no sculo XVIII, segundo a ideologia das Luzes, o livro
seria capaz de reformar a sociedade e a ampliao escolar transformaria os
hbitos e os costumes, moldando toda uma nao ao modo de pensar de uma
elite. Durante todo esse perodo, de forma geral, acreditou-se na produo da
sociedade por um sistema escriturstico, com a crena de que o pblico
moldado pelo escrito.
Segundo Certeau, no passado, esse texto era escolar, na
contemporaneidade, a prpria sociedade, com todos os seus signos tcnicos,
de produo e reproduo massivas. Nesse sentido, a leitura seria apenas um
aspecto parcial desse consumo, mas de carter fundamentalmente relevante.
Contrapondo-se crena de que consumidores/leitores receberiam
passivamente os produtos/textos que lhes so oferecidos, Certeau chama
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ateno para o fato de que toda leitura modifica seu objeto, de que o leitor, ao
iniciar a leitura, percorre caminhos de recepo que so nicos e individuais,
cuja intepretao e apropriao , pois, pessoal e decorre de uma memria
cultural, adquirida muitas vezes de ouvido, por tradio oral, o que permite e
enriquece progressivamente as estratgias de interrogao semntica cujas
expectativas a exegese de um texto afina, precisa ou corrige.
Ora, fica evidente que desde a leitura de uma criana at a de um
especialista, ela precedida e possibilitada pela comunicao oral, o que
contribui para apropriaes ainda mais pessoais dos textos que nos so
apresentados diariamente.
Ampliar a noo de leitura e procurar reconhecer a apropriao que dela
fazem as pessoas comuns na sua prtica seria, nesse sentido, um rico
exerccio de compreenso social e do prprio ato de ler, desvinculando-se,
assim, de uma ideia unvoca de texto e do sentido que lhe pertenceria.
Certeau (1999) sintetiza esse raciocnio da seguinte forma:
Com efeito, a leitura no tem lugar: Barthes l Proust no texto de Stendhal; o telespectador l a paisagem de sua infncia na reportagem da atualidade. (...) Assim escapa tambm lei de cada texto em particular, como do meio social. (p.270).
Walter Ong, por exemplo, (1998), diante dessa mesma realidade, se
refere s formas de comunicao miditicas contemporneas como oralidades
secundrias, visto que transmitem formas orais de comunicao ( em
programas de TV e rdio, por exemplo), mas por intermdio de um suporte
tecnolgico, sem o contato direto e espontneo com o grupo de interlocutores.
Nas palavras de Ong (1998):
Como a oralidade primria, a secundria gerou um forte sentimento de grupo, pois ouvir as palavras faladas transforma os ouvintes em grupo, um verdadeiro pblico, exatamente como a leitura dos textos escritos ou impressos os transforma em indivduos, fazem com que eles se voltem para dentro de si. Porm, a oralidade secundria d sentido a grupos incomensuravelmente mais amplos do que os da cultura oral primria a aldeia global. (p.155)
Ora, nosso questionamento est exatamente em buscar identificar e
compreender culturas locais, possivelmente ainda com marcas de leituras de
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mundo que sejam tambm produtoras, e no s receptoras, dos mais variados
textos sociais que nos so apresentados cotidianamente, ou que,
supostamente, tm e fazem um tipo de apropriao particular da cultura de
massa midiatizada ou do saber cientfico propagado pela escola.
A essa possibilidade de pensar em uma leitura entendida como popular,
Chartier (2003) observa que:
(...) em sua recepo esse corpus de textos frequentemente entendido e manipulado por seus leitores populares sem respeito pelas intenes que comandaram sua produo ou sua distribuio, seja porque os leitores deslocam para o registro do imaginrio o que lhes foi dado no registro da utilidade, seja porque, inversamente, eles tomam como descrio do real as fices que lhes so impostas.(p.159)
Importa-nos perceber quais e como se realizam as prticas de leitura e
compartilhamento de saberes e cultura no meio popular/rural, analisando
tambm as formas como se relacionam e interagem com a leitura cannica e a
cultura oficializada pela mdia e pelo Estado.
O universo rural apresenta-se como espao de maior interesse pelo seu
tradicional distanciamento geogrfico e hipoteticamente cultural das prticas
sociais urbanas, sendo estas normalmente mais afetadas pelas influncias da
globalizao, da mdia e da massificao cultural.
Evidentemente, reconhecemos que o espao rural atualmente recebe
tais influncias, em maior ou menor escala, mas exatamente por isso que
buscaremos compreender de que maneira tem-se compartilhado memrias e
saberes nesse espao e a partir de quais influncias. Interessa-nos igualmente
identificar quais so as prticas de leitura, de livros e de mundo mais comuns
entre os moradores da zona rural. At que ponto e em que sentido ainda existe
uma cultura oral e uma tradio de compartilhamento de memrias entre esses
indivduos?
Em suma, seria a escola ou a mdia que guiariam as leituras dessas
pessoas ou a memria, o senso de coletividade e a oralidade ainda teriam
espao privilegiado como forma de leitura de mundo? Teria a leitura de
suportes tradicionais de leitura, como livros e jornais, espao dentro do
contexto rural?
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Diante desses questionamentos, reconhecemos tambm a possvel
existncia de pblicos muito distintos, apesar de pertencerem ao mesmo
espao. Acreditamos que os idosos possivelmente sero uma fonte maior de
cultura e leitura de mundo mais local, em oposio ao universo dos jovens,
que, por sua vez, sofreriam maior influncia da cultura urbana, globalizada.
Tais diferenas, entretanto, s tendem a enriquecer tanto nossos
questionamentos quanto possveis respostas, j que apontam para reflexes
mais realistas, por reconhecer a complexidade dos sujeitos e tempos
envolvidos em um mesmo espao e em uma mesma temtica.
1.3 Objetivos
1.3.1 Objetivos gerais
Identificar as prticas de leitura no universo rural;
Aferir os mecanismos de preservao e difuso da cultura local entre
seus habitantes;
Analisar as influncias exercidas pela Escola e pela Mdia na cultura
rural;
Confrontar a relao dos jovens e dos idosos com a cultura local e a
cultura global.
1.3.2 Objetivos especficos
Identificar os mecanismos de manuteno e difuso da cultura e
saberes entre geraes no universo rural;
Reconhecer tambm na oralidade uma forma de ler o mundo, sendo,
portanto, uma prtica, dentre outras, de leitura.
1.4 Hipteses
As principais hipteses que foram formuladas e guiaram o caminho
da investigao podem ser apresentadas da seguinte forma:
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As prticas sociais de intercmbio de saberes no universo rural
estariam construdas culturalmente com uma base oral mais forte.
Qual seria, ento, o espao e a funo da cultura letrada?
Sendo os idosos os detentores da memria coletiva, qual a insero
deles no processo de preservao desta? Qual a prtica social por
eles utilizada para difuso de saberes: histrias, ditos populares,
Bblia, provrbios?
Em que medida e com qual significao os jovens da rea rural
estabelecem relaes entre a cultura local, as prticas de leitura
autctones e a cultura letrada e do mass media que a televiso e a
internet lhes fornecem diariamente?
De que forma a tradio local, bem como das narrativas orais entre
geraes, tm sobrevivido forte tendncia urbanizao da cultura
rural?
2. Metodologia
A investigao acerca dos questionamentos postulados ter carter
marcadamente qualitativo, uma vez que a sondagem ser feita a partir de um
pequeno grupo de jovens e idosos de uma comunidade marcadamente rural, a
saber, Ubari, um distrito do municpio brasileiro de Ub, estado de Minas
Gerais. Localiza-se a noroeste da sede municipal, da qual dista cerca de
20 quilmetros. Foi criado em 27 de dezembro de 1948, pela lei no. 336, que
elevou o povoado de Convento condio de distrito com o nome de Ubari,
atualmente contando com uma mdia de mil habitantes.
A localidade tem uma economia fundamentada principalmente na
produo de leite, obtida a partir do trabalho de vrios pequenos produtores.
Ao longo da histria da localidade, entretanto, alm do leite, o cultivo do caf
era outra atividade comum entre os agricultores da regio. O distrito possui
uma escola da rede estadual, cujo ensino vai desde a pr-escola at o 9ano
do Ensino Fundamental.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Munic%C3%ADpiohttp://pt.wikipedia.org/wiki/Brasilhttp://pt.wikipedia.org/wiki/Ub%C3%A1http://pt.wikipedia.org/wiki/Minas_Geraishttp://pt.wikipedia.org/wiki/Minas_Geraishttp://pt.wikipedia.org/wiki/Quil%C3%B4metrohttp://pt.wikipedia.org/wiki/27_de_dezembrohttp://pt.wikipedia.org/wiki/1948
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Ao terminarem seus estudos no distrito, os jovens precisam ir para Ub
ou outras cidades vizinhas, onde costumam cursar o Ensino Mdio, sendo que
muitos deles, no entremeio desse trajeto, deixam os estudos para trabalhar, em
lojas ou fbricas, com vistas a constituir independncia financeira mais
imediata, sendo que normalmente passam a tambm morar em Ub, pela
maior facilidade e pelos atrativos de lazer, principalmente.
Com relao ao entretenimento e cultura local, o distrito realiza
anualmente uma festa religiosa, catlica, o Jubileu de So Francisco de Paula,
que costuma receber a significativa presena de ubarienses e tambm pessoas
que j no moram no lugar, tendo a festa como uma justificativa para
frequentar a localidade durante a semana de comemoraes religiosas.
O distrito ainda promove um Torneio Leiteiro, em que so montadas
barracas de alimentos e bebidas, e h a apresentao de bandas locais. A
festa no atrai muitas pessoas da regio, sendo constituda de um pblico
muito semelhante ao do Jubileu anteriormente citado. Duas festas anuais so
as que, desse modo, constituem-se como a principal atrao cultural da
localidade. Ao que parece, a maior fonte de entretenimento cotidiana dos
moradores so as pequenas comemoraes familiares, as conversas nos
bares, as visitas e a televiso.
Caber-nos- investigar quais so os hbitos de leitura, as formas de
pensar e se relacionar com sua prpria cultura e com o mundo de uma forma
geral que essas pessoas, principalmente as que vivem na rea rural do distrito,
desenvolvem cotidianamente.
Para tal, os dados usados sero tanto de carter objetivo (quantidade,
tipo e frequncia de leitura, por exemplo) quanto subjetivos (recepo,
avaliao e relao com as prticas de leitura). De uma forma geral, entretanto,
esta pesquisa tem carter marcadamente qualitativo, uma vez que entendemos
que a apreenso da cultura e dos saberes do homem do campo deve derivar
da compreenso que as pessoas constroem no contato com a realidade nas
diferentes interaes humanas e sociais.
Faz-se, nesse sentido, necessrio encontrar fundamentos para uma
anlise e para uma interpretao do tema em questo que revele o significado
atribudo a ele pelas pessoas que partilham do contexto que serve de
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motivao para a temtica da presente pesquisa. Pretendemos, assim,
interpretar o sentido do evento a partir do significado que as pessoas atribuem
ao que falam e s suas prticas culturais dirias.
Dentre as estratgias de pesquisa de carter qualitativo, a Histria de
vida, mais especificamente, a Histria oral a que mais se adequa ao perfil do
presente estudo. A respeito dessa vertente analtica, Chizzotti (2008) nos
esclarece que a Histria oral:
Distancia-se do conceito de passado s como realidade j acontecida que deve ser preservada, recupera a relevncia das fontes orais e introduz novas questes temticas e terico-metodolgicas. Dentre essas questes, ocupa lugar a memria coletiva, como um fenmeno social, construda a partir da insero no grupo social e elaborada pelo sujeito, que articula o acervo de lembranas enraizadas na rede de solidariedades de um grupo. A memria uma reconstruo do passado e, desse modo, cambiante de acordo com o momento atual, sofrendo transformaes e flutuaes constantes. Seu uso em pesquisa no significa a descrio do acontecimento, mas a subjetividade do relato pode revelar muito dos anseios e lutas no visveis dos excludos, o significado do esquecimento e dos silncios. (p.107)
Na histria oral, portanto, h a reunio de informaes orais de uma ou
mais pessoas sobre eventos, seus contextos, causas e efeitos, visando
compreender o contexto vivido para alm das informaes unidimensionais
oferecidas pelos documentos, com a perspectiva de extrair uma verso no
oficial, registrar a viso de grupos humanos que, ou no tm tradio escrita,
ou no tm domnio dela.
Nesse sentido, a subjetividade das narrativas um fator positivo e
motivador de uma compreenso mais ampla e complexa das vivncias e
concepes de mundo de grupos cuja ideologia nos escapa, por no serem
representados nos textos oficiais.
Quanto ao mtodo de anlise dos textos recolhidos dos relatos orais, a
anlise do contedo discursivo constitui-se como um tipo de anlise que
ultrapassa os aspectos meramente formais da lingustica, para privilegiar a
funo e o processo da lngua no contexto interativo em que proferida,
considerando a linguagem, em ltima anlise, como uma prtica social.
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Para Chizzotti (2008), o discurso a expresso de um sujeito no mundo
que explicita sua identidade pessoal e social e expe a ao primordial pela
qual constitui a realidade. Nas palavras de Chizzotti (2008): para alguns
autores, o discurso constituinte da realidade deve ser o alvo mais relevante da
anlise: decifrar a genealogia do poder, segundo Foucault; desvendar as
relaes de opresso, conforme a anlise crtica, que subjazem ao discurso.
(p.121)
Como o discurso situado em um contexto scio histrico e s pode ser
compreendido se relacionado com o processo cultural, socioeconmico e
poltico nos quais ele acontece, marcado pelas relaes ideolgicas e de
poder, importa, nesse sentido, o processo, o ato de fala, o sentido elaborado no
momento da produo do discurso, com todas as injunes subjetivas,
determinaes sociais, incoerncias, repeties e omisses.
Em sntese, a anlise do discurso fornecer sustento terico-
metodolgico para esta pesquisa principalmente por identificar o processo pelo
qual as pessoas do forma discursiva s interaes sociais, produzem sentidos
ao que falam e orientam suas aes no contexto em que vivem. Sendo assim,
todo discurso, suas definies, conceitos e transformaes revelariam a tenso
entre indivduos, o contexto histrico e social, bem como o poder e a
resistncia nas inter-relaes humanas.
Nas palavras de Chizzotti (2008): A prpria estrutura social, os grupos,
as concepes e prticas so considerados anlogos estrutura da linguagem
e, como qualquer comunicao um sistema de signos, so considerados
como um texto que pode ser lido (p.126).
Levando em considerao esses postulados tericos, os quais
fundamentaro a anlise dos dados, materializados em textos escritos e orais,
o pblico a ser ouvido constituiu-se tanto de jovens quanto de adultos, devido
possibilidade que tal corpus proporciona de investigar tanto a ideia da
preservao de saberes e prticas do passado, na figura dos idosos, quanto s
expectativas de perpetuao de formas de pensamento e hbitos do passado
ainda no presente e sua tendncia (ou no) a preservar-se no futuro,
principalmente na figura dos jovens.
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Nesse sentido, foram feitas entrevistas com dez idosos, direcionadas a
questionamentos objetivos acerca da temtica central deste projeto, bem como
dando abertura para que possam expressar-se livremente sobre o assunto
investigado.
Destarte, tanto os dados objetivos quanto a expresso livre desses
indivduos auxiliaro em uma fundamentao maior de dados para posterior
anlise a respeito das prticas de leitura e compartilhamento de saberes dentro
desse universo.
Por outro lado, tambm foram entrevistados dez jovens da mesma
localidade, partindo de perguntas com o mesmo carter das que foram feitas
aos idosos, buscando, assim, um contraponto reflexivo sobre as prticas de
leitura e a formao cultural destes dois pblicos distintos.
A transcrio das respostas desses entrevistados seguiu a grafia da
forma mais fiel possvel s marcas da oralidade e da variedade lingustica
usada por eles no momento em que responderam s perguntas, de maneira a
tentar preservar o mximo possvel a atmosfera das narrativas.
Por fim, foi realizada uma consulta biblioteca do distrito, inaugurada
em 2011, para que pudssemos relacionar os dados obtidos atravs das
entrevistas aos registros da biblioteca, de modo a compreender mais
amplamente como se do as prticas de leitura nessa localidade.
Em suma, este estudo se dividir em trs etapas, a saber:
Anlise do lugar e do papel da memria na sociedade
contempornea.
Entendendo a vida e o trabalho no campo: uma perspectiva histrica
e social.
Prticas de leitura entre jovens e idosos no meio rural: formas de
produo e recepo.
O papel da Biblioteca e da Escola como espaos de prticas de
leitura no meio rural.
A recepo do conto Um aplogo, de Machado de Assis: uma
esttica prpria?
Consideraes finais: os saberes partilhados entre a enxada e a
caneta.
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3. REFERENCIAL TERICO
3.1. Revisitando o conceito de leitura e de suas prticas sociais
Quantos saberes tm estes sabores/ mos que acolhem, recolhem a semente/ o fruto./ No milagre da vida/ faz a transformao artes da oficina/ de saciar o corpo e alimentar a alma/ Quantos saberes tm estes sabores/saber da vida/ sabor do cheiro/ Mos que mexem, temperam/ (...) Esto em todo lugar/Em cada movimento da vida/ Em toda luz do olhar. (Amauri Adolfo)
O ato da leitura , hoje, para a sociedade ocidental, algo percebido como
extremamente natural e, sobretudo, necessrio ao cumprimento das exigncias
sociais que nos so impostas diariamente. De uma maneira geral, pensa-se a
leitura, de forma tradicional e acadmica, como um meio privilegiado das
construes tcnicas e culturais, de maneira que no ter acesso a ela estar, a
princpio, excludo desse universo simblico, tanto em termos tcnicos, mais
prticos, quanto culturais.
Ao discorrer sobre a sociologia da leitura, Horellou-Lafarge e Segr
(2010) afirmam que para que a prtica da leitura fosse concretizada, o
surgimento e desenvolvimento de um suporte para a mesma foi fundamental:
Tornar a prtica da leitura acessvel a todos ou a quase todos foi um longo combate, uma luta dura. Para que o texto fosse lido, era preciso que existisse o suporte que lhe permite ganhar vida sob uma forma concreta, que tivesse regras na maneira de dispor as frases ou as palavras, a fim de possibilitar que o texto, que todos os textos fossem acessveis, fossem compreensveis ao leitor. (HORELLOU-LAFARGE E SEGR, 2010, p.16).
Entretanto, cabe aqui ressaltar que a noo de leitura, por mais que
historicamente esteja associada ao suporte livro, no necessariamente dele
depende para que tal ato se realize. Basta consultar o dicionrio e verificar, por
exemplo, as definies elencadas para a palavra leitura, a saber:
(latim tardio lectura, do latim lectio, -onis, escolha, eleio, leitura) substantivo feminino
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1. O que se l. 2. Arte ou ato de ler. 3. Conjunto de conhecimentos adquiridos com a leitura. 4. Maneira de interpretar um conjunto de informaes. 5. Registro da medio feita por um instrumento. 6.[Tecnologia].Decodificao de dados a partir de determinado suporte (ex.: aparece um erro na leitura do disco). ("leitura", in Dicionrio Priberam da Lngua Portuguesa, 2008 2013, http://www.priberam.pt/DLPO/leitura [consultado em 28-11-2013]).
Percebe-se claramente a partir das definies acima que a compreenso
da leitura em nossa sociedade mais ampla do que o que normalmente nos
damos conta; indo desde o ato em si at o objeto da leitura, ou mesmo o
conjunto de conhecimentos que se extrai de uma determinada obra.
Mas, em especial, cabe aqui ressaltar a possibilidade de interpretao
da leitura como a maneira de interpretar um conjunto de informaes.
Informaes essas que no necessariamente precisam estar vinculadas a um
determinado suporte. Da falar-se na expresso leitura de mundo, muito
comum entre os educadores, e em especial em Paulo Freire, quando este
afirma que a leitura do mundo deve preceder a leitura da palavra. (FREIRE,
1989, p.15)
Reconhece-se, portanto, que pensar em leitura como uma prtica
fundamental na sociedade no significa necessariamente restringir a sua
realizao a um nico meio e/ou possibilidade. Mesmo reconhecendo a
importncia do livro na veiculao de saberes, parte-se da premissa de que
cada indivduo traz consigo leituras especficas de mundo, relacionadas sua
vivncia, valores, grupo social, etc, leituras essas que se alteram ao longo de
sua vida e que podem ou no ser enriquecidas a partir tambm de prticas
associadas ao livro.
O presente trabalho, portanto, procura analisar as prticas de leitura
partindo de uma concepo ampla deste conceito, tanto em sentido
contextual/vivencial quanto literalmente associado ao livro. Nosso principal
interesse est em investigar a maneira como essas formas de leitura
acontecem em contextos sociais especficos.
http://www.priberam.pt/DLPO/leitura
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importante ressaltar, nesse sentido, que, embora a existncia do
suporte tenha sido fundamental para a realizao cannica da leitura, na
compreenso tradicional da mesma a partir dos livros, os modos como esse
meio foi utilizado para a prtica da leitura variaram consideravelmente ao longo
da histria.
A leitura individual, solitria e silenciosa que se pratica, principalmente
desde o sculo XIX, at os dias atuais, por exemplo, difere consideravelmente
de uma prtica de leitura oral e coletiva, muito comum at por volta do sculo
XVIII. Esse segundo tipo de leitura, segundo HORELLOU-LAFARGE E SEGR
(2010), na Frana, mantm-se ainda hoje nos meios populares e entre os
adolescentes que praticam, s vezes, uma leitura coletiva (p.16).
De um modo ou de outro, parece consensual a noo de que o livro,
como suporte, tem um papel fundamental, apesar de no exclusivo, no
compartilhamento dos saberes. curioso, entretanto, observar que, antes da
generalizao da leitura, essa difuso tambm se dava, valendo-se muito mais
da memria prtica que acabamos perdendo pela comodidade oferecida pelo
livro:
A escrita permite aliviar o trabalho da memorizao. Antes da generalizao da leitura, os eruditos usavam sua memria com uma facilidade que acabamos perdendo. Passar da tradio oral para a escrita no apenas mudar de foco de comunicao e de memorizao, tambm transformar a qualidade das mensagens e modificar as relaes com o pensamento. A escrita favoreceria o esprito crtico e o distanciamento, a construo de estruturas lgicas e o progresso do conhecimento. (Horellou-Lafarge e Segr, 2010, p.23).
Mas, se por um lado, o livro torna-nos mais relapsos em termos de
memorizao de saberes pela facilidade em consult-lo h estudiosos que
afirmam que, de certa maneira, a escrita favoreceu a construo de um esprito
crtico e racional, pelo distanciamento que lhe caracterstico entre autor e
texto produzido maior, evidentemente, do que na oralidade: Na poca do
Iluminismo, os intelectuais lhe atribuam a capacidade de, substituindo a
tradio oral, substituir as crenas e as supersties que aquela veiculava por
uma concepo racional do mundo. (Horellou-Lafarge e Segr, 2010, p.23).
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importante observar que a escrita, em seu surgimento, como qualquer
mdia nova, causou certo desconforto. Scrates, por exemplo, considerava os
livros um empecilho instruo. Para ele, o dilogo base da construo do
conhecimento, e o livro conservar-se-ia mudo diante dos questionamentos do
leitor. O trecho abaixo esclarecedor em relao ao que pensava o filsofo
sobre este assunto:
que a escrita, Fedro, tem, da mesma maneira que a pintura, um grave inconveniente. As obras pictricas parecem vivas; mas, se tu as interrogas, elas mantm um vulnervel silncio. Ocorre o mesmo com os discursos escritos. Acreditariam, por certo, que falam com pessoas sensatas. Mas, se quiseres pedir-lhes a explicao do que dizes, eles te respondem sempre a mesma coisa. (apud Horellou-Lafarge e Segr, 2010, p.24)
certo, sobre tais consideraes, que luz da Esttica da Recepo, a
ideia de Scrates, segundo a qual o texto permanece mudo em face do leitor,
parece muito ingnua, exatamente por vivenciar ainda um perodo de transio,
o qual normalmente nos leva a desconfiar de novos meios de prticas do
saber. Entretanto, a valorizao do dilogo, como forma de enriquecimento
cultural e pessoal, propiciado pela prtica oral da difuso da memria, chama-
nos especial ateno.
Ao analisarmos a Histria, percebemos que a leitura , na verdade,
apenas uma das prticas histricas de difuso do saber, de tal modo que,
quando se balizava, causou medo em um dos maiores filsofos da
humanidade, justamente por, supostamente, suplantar outro modo de
propagao de conhecimento: a oralidade, o dilogo, associados a uma
valorizao da memria e da necessidade de sua difuso.
Em nosso contexto atual, mais precisamente, a questo do suporte
quando se pensa em leitura tornou-se ainda mais complexa. Alm da
possibilidade de compartilhamento de conhecimentos e saberes por meio da
oralidade ou do livro, outros suportes, mais modernos e tecnolgicos, tm
alcanado grande espao de circulao: desde smarthphones, a computadores
e tablets, isso sem mencionar manifestaes artsticas que esto inscritas no
espao urbano, como pichaes e o grafite.
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Esses meios modernos de leitura, apesar de estarem presentes em
praticamente todos os lugares, so mais comuns nas cidades, em espaos
urbanos. Quanto s localidades mais rurais, cogitamos neste trabalho a
hiptese de que, mesmo em face modernizao e tecnologia, a oralidade e
a propagao de conhecimentos pela oralidade seria uma prtica ainda comum
nesses tipos de comunidades.
A oralidade foi, por muitos anos, em vrios pases, uma das principais
formas, por exemplo, de se propagar narrativas de carter ficcional, embora
quase sempre que tratamos de literatura nos venha mente a imagem do livro
como suporte indispensvel para a sua realizao.
Seria interessante aqui, diante dos inmeros tericos e crticos que
tentaram definir a essncia do literrio, resgatar o conceito de Antonio Candido,
em Direitos Humanos e Literatura:
Chamarei de literatura, da maneira mais ampla possvel, todas as criaes de toque potico, ficcional ou dramtico em todos os nveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que chamamos de folclore, lenda, chiste, at as formas mais complexas e difceis da produo escrita das grandes civilizaes. Vista deste modo, a literatura aparece claramente como manifestao universal de todos os homens em todos os tempos. No h povo e no h homem que possa viver sem ela, isto , sem a possibilidade de entrar em contato com alguma espcie de fabulao. (...) Ora, se ningum pode passar vinte e quatro horas sem mergulhar no universo da fico e da poesia, a literatura concebida no sentido amplo a que me referi parece corresponder a uma necessidade universal, que precisa ser satisfeita e cuja satisfao constitui um direito. Alterando o conceito de Otto Ranke sobre o mito, podemos dizer que a literatura o sonho acordado das civilizaes. Portanto, assim como no possvel haver equilbrio psquico sem o sonho durante o sono, talvez no haja equilbrio social sem a literatura. (CANDIDO, Antonio. Vrios escritos, p. 174).
Ora, reconhecendo a literatura, em seu sentido amplo, como a
realizao de uma necessidade humana de fabulao, de recriao criativa da
realidade, especialmente no universo da linguagem, seja ela oral ou escrita,
tem-se a possibilidade de reconhecermos a existncia tanto de uma literatura
escrita quanto de uma oral.
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A existncia dessa literatura oral remonta aos gregos, quando
pensamos, por exemplo, que a Odisseia nada mais do que a juno de vrias
narrativas orais, transmitidas popularmente na Grcia, e reunidas em forma de
livro por Homero.
Fbulas de La Fontaine e contos infantis universais dos irmos Grimm
so apenas mais alguns exemplos da histrica existncia de uma literatura
oral.
Nesse sentido, a existncia da literatura no dependeria exclusivamente
de um suporte, mas, a princpio, da memria e de um interesse, em termos de
tradio, de transmiti-la e perpetu-la.
Cabe a ns, neste trabalho, investigar como as prticas de leitura de
mundo, de fabulao e recriao acontecem ainda hoje, mais precisamente no
espao rural, percebendo como e se estas prticas convivem com meios mais
modernos de leitura.
Como vimos ao longo dessa exposio, a difuso oral de conhecimento,
entendida no no sentido miditico (cinema, msica, rdio ou TV), mas no da
cultura de se transmitir saberes e experincias atravs da narrao direta entre
indivduos, mais comum em meios mais populares e rurais, mesmo na
contemporaneidade (Horellou-Lafarge e Segr, 2010, p.16).
Esta constatao, apesar de fazer referncia ao contexto francs, cabe
aqui como referncia de anlise e hiptese a ser investigada em nosso
contexto atual, alm de tratar-se de um dado fundamental para
compreendermos a conjuntura social e poltica que nos distancia de uma
valorizao e reconhecimento maiores dessa literatura oral.
Para Walter Benjamim, em seu clebre texto O narrador, as melhores
narrativas escritas so aquelas que menos diferem das histrias orais,
contadas pelos narradores annimos. Narradores esses que, para Benjamim,
so homens que sabem aconselhar, os quais se valem da narrativa para a
comunicao de experincias e, consequentemente, enriquecimento pessoal. A
fabulao narrativa teria, portanto, certo sentido prtico, que aos nossos olhos
hoje parece algo antiquado para a literatura. Para Benjamim, entretanto, essa
nossa viso pouco prtica das narrativas seria fruto de uma construo
histrico-ideolgica:
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O primeiro indcio que vai culminar na morte da narrativa o surgimento do romance no incio do perodo moderno. O que separa o romance da narrativa que ele est essencialmente vinculado ao livro (...) a tradio oral tem uma natureza fundamentalmente distinta da que caracteriza o romance. O que distingue o romance de todas as outras formas de prosa (...) que ele nem procede da tradio oral, nem a alimenta. Ele se distingue especialmente da narrativa. O narrador retira da experiencia o que ele conta (...) e incorpora coisas narradas experincia dos seus ouvintes. O romancista segrega-se. A origem do romance o indivduo isolado. (BENJAMIM, p.201)
O fato de a literatura, hoje, ser vista e valorizada especialmente em
suportes fsicos, como livro e computador, tem, portanto, uma ligao direta
com a ascenso burguesa, segundo Benjamim, e sua crescente valorizao do
individualismo e da experincia pessoal/existencial, em detrimento das
experincias coletivas e populares. O romance um gnero que representa
muito bem essa perspectiva burguesa, de mergulho no universo individual,
tanto no contedo das obras, como tambm na maneira como sua leitura se
d, s e silenciosamente.
O narrador tradicional, para Benjamim, compartilhava narrativas,
prezava pelo maravilhoso/miraculoso, pelo encantamento e por partilhar
valores e perpetuar tradies, em gneros como lendas, contos de fadas e
algumas novelas. Nesse contexto, a literatura era elaborada coletivamente,
atravs de homens que transmitiam essas narrativas, baseando-se
principalmente na oralidade e na memria.
A ascenso burguesa, alm de consagrar o romance, trouxe outras
consequncias que, de certa forma, completam a nossa percepo sobre os
motivos que levaram ao desprestgio das narrativas orais. A institucionalizao
da escola, por exemplo, como espao de educao das crianas um fato
histrico marcado especialmente por motivaes burguesas.
Pierre Bourdieu (1974) aponta em seus estudos que o espao escolar,
originalmente burgus, nasceu como forma de legitimao dessa mesma
classe social. Logo, os contedos escolhidos e ensinados em sala de aula, os
quais por vezes parecem neutros e universais, so, na verdade, escolhas
convenientes dos valores e produes culturais dessa mesma classe.
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A suposta democratizao do ensino no incio do sculo XX, portanto,
com vistas a possibilitar o acesso universal ao sistema escolar, seria, na
verdade, desde o princpio, excludente. No universo da literatura mais
precisamente, as escolhas dos temas, autores, gneros e suportes teriam
tambm, na verdade, motivaes sociais e polticas. Segundo Bourdieu (1974):
A educao exerce um papel fundamental, uma vez que mediante o sistema escolar o Estado instaura e inculca formas e categorias de pensamento. (...) Podemos compreender, portanto, que a escola constitui uma instituio de classificao social bastante eficiente, porque geradora do habitus que, de modo geral, cria disposies extremamente favorveis com relao cultura legtima e, ao mesmo tempo, provocam a desvalorizao da cultura de origem quando esta no corresponde ao habitus escolar. Nesse sentido, compreende-se que as formas de classificao constituem formas de dominao simblica. (BOURDIEU, 1974, p.57)
O que entendemos por literatura legtima, segundo esse raciocnio, seria
uma construo social burguesa, a qual busca legitimar sua forma de lidar com
a literatura, e, aqui, especialmente, legitimando um suporte especfico para a
sua veiculao e modo de leitura: o livro.
Desse modo, possvel entender melhor a razo de, muitas vezes, o
espao escolar no valorizar a tradio oral que muitos alunos trazem, por
exemplo, de suas comunidades rurais, ou manifestaes artsticas de origem
perifrica, cujo grupo produtor pertence s margens sociais.
Paulo Freire (1989), em uma linha de raciocnio muito prxima a
de Bourdieu (1974), defendeu uma nova forma de educar, que partisse das
vivncias e do universo dos prprios alunos, atribuindo assim maior
significao ao processo educativo. Em A importncia do ato de ler, Freire
dedica um captulo especial para uma proposta sobre a experincia de
alfabetizao de adultos atravs da criao de uma biblioteca popular.
A proposta de Paulo Freire tem como essncia o objetivo democrtico
de construo de saberes, leituras e narrativas, de maneira a perceber tambm
na literatura popular um centro de produo, e no apenas um receptculo da
cultura dominante, ou um depsito silencioso de livros. Sobre esse tipo de
iniciativa, de valorizao da cultura popular e oral, Freire afirma que:
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Um dos inmeros aspectos positivos de um trabalho como este , sem dvida, fundamentalmente, o reconhecimento do direito que o povo tem de ser sujeito da pesquisa que procura conhec-lo melhor. E no objeto da pesquisa que os especialistas fazem em torno dele. Nesta segunda hiptese, os especialistas falam sobre ele; quando muito, falam a ele, mas no com ele, pois s o escutam enquanto ele responde s perguntas que lhe fazem. claro que uma pesquisa como esta demanda uma metodologia que no cabe aqui discutir que implique aquele reconhecimento acima referido o do Povo como sujeito do conhecimento de si mesmo. (FREIRE, 1989, p.19).
A ideia de uma biblioteca popular, formada por um trabalho com o
objetivo de reunir narrativas e experincias da populao de uma determinada
localidade uma proposta bastante atrativa e coerente com o anseio de tentar
resgatar e dar espao a uma literatura oral submergida pela cultura dominante,
imposta em muitas escolas.
O presente trabalho busca analisar exatamente essas narrativas que
surgem do povo enquanto sujeito de sua prpria vivncia e produtor de
histrias que o representem e a sua concepo de mundo e saberes.
Interessa-nos, pois, perceber, principalmente no espao rural, meio ainda
estigmatizado em relao aos seus saberes quando relacionados cultura
urbana, quais so e como se realizam suas prticas de leitura, tanto no sentido
de recepo quanto no sentido de produo de textos dos mais diversos tipos.
Em especial, o livro de Ecla Bosi, Memria e Sociedade, um modelo
inicial de inspirao para o presente trabalho. As histrias dos idosos que
narram suas vivncias, no livro de Bosi (1994) evidenciam o quanto o papel
social desempenhado no decorrer da vida toma parte expressiva nas memrias
desses idosos. Lembranas essas que, na terceira idade, so um constructo de
indivduos j envelhecidos, os quais j trabalharam. Dessa forma, trata-se de
uma narrativa de pessoas as quais no so mais componentes funcionais da
sociedade, apesar de j o terem sido.
Isso significa que os idosos, por mais que no sejam mais pessoas
ativas, no sentido produtivo do capitalismo, no tempo presente, teriam um novo
papel social: lembrar e narrar aos mais novos a sua histria, de onde vieram, o
que fizeram e aprenderam. Na terceira idade, esses indivduos transformam-se
na memria da famlia e da sociedade como um todo.
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J o cidado jovem e produtivo, de uma forma geral, no se detm em
lembranas justamente por no ter tempo suficiente e disponvel para tal.
Desses jovens, o meio social espera produo. Dos idosos, busca-se a
lembrana. Todavia, essa funo social no reconhecida; como vem
acontecendo, h um esvaziamento dessa etapa da vida.
Partindo desse entendimento da relao que essas duas fases da vida,
hoje, estabelecem com a produo de memrias, surge o questionamento
acerca de como se relacionam com o mundo a partir de prticas de leituras
especficas. Quais seriam as leituras realizadas por jovens e idosos no meio
rural? Difeririam em termos de quantidade e qualidade? Seriam ambos, mais
que leitores, tambm produtores de sentido e de narrativas sobre sua prpria
realidade? Poder-se-ia ainda hoje falar de uma cultura de narrativas rurais? Se
sim, que as produz e quem as recebe?
Sobre essa relao entre juventude e terceira idade com a produo e
recepo de textos e narrativas, Bosi (1994), em seu livro, chama ateno para
o fato de que os idosos tm uma memria social atual mais abrangente e
determinada, j que so observadores de uma pintura j finalizada e bem
demarcada no tempo. No que tange aos mais novos, estes estariam ainda
submergidos nas aflies e contrassensos do presente, o qual os invoca
constantemente; careceriam, pois, de experincia para se envolverem com a
memria.
Aps uma introduo terica, Bosi (1994) menciona depoimentos de oito
homens e mulheres, com mais de 70 anos, dentre os quais, todos sempre
viveram em So Paulo; presenciaram esta cidade crescendo. A estudiosa d
voz a esse grupo de idosos, cuja maior fortuna a memria pessoal. Ecla
restaura um tempo, revigora um perodo social coletivo, costurando memrias
individuais.
A respeito do livro de Bosi, Benedito Nunes faz uma pertinente
observao:
A sociedade industrial em que vivemos rompeu esse liame [de elo entre geraes], desvalorizou o saber de experincia, corroeu a memria coletiva, desvalorizou a lembrana; portanto, desapossou a velhice de seu dom sociedade e cultura. Da natural condio de sobrevivente de uma gerao
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que ele , [...] o homem idoso, porque improdutivo [...] passa, acobertado pela etiqueta clnica da terceira idade, ao anonimato dos excludos sem voz. (NUNES, In SILVA, 2003, p. 4).
Pretende-se tambm, atravs do presente estudo, desenvolver-se uma
reflexo a respeito de como os idosos vm desempenhando seu tradicional
papel social de transmissores da memria, do conhecimento e de certo tipo de
sabedoria. Interessa-nos especialmente observ-los como narradores por
excelncia, no sentido benjaminiano. Mas, nos desperta tambm o interesse de
saber quais so, por outro lado, suas prticas de leitura, quais so os textos
que ainda hoje os alimentam.
Em contrapartida, o mesmo questionamento se estende juventude
tambm do meio rural: que tipo de narrativas produz? Quais prticas de leitura
os tm formado hoje? At que ponto e de que maneira a cultura urbana e
globalizada tem interferido e transformado as narrativas e prticas de leitura
rurais?
Tal escolha tem como propsito tentar perceber qual o lugar da
recepo e do compartilhamento de conhecimentos e de saberes no
cientficos, especificamente na sociedade rural contempornea.
Acreditamos justamente na possibilidade de encontrar uma resposta
afirmativa para essas questes, mais especificamente no universo dos idosos,
tanto pela experincia acumulada como tambm pelo fato supracitado de eles
j estarem fora do sistema de produo capitalista, que normalmente nos
satura de presente e preocupaes futuras. Os idosos, ao contrrio, vivem
mais livres dessa opresso temporal presente/futuro, ligando-se mais
fortemente ao passado e, consequentemente, tornando-se potenciais
observadores do presente e transmissores de memrias, experincias e
conhecimento.
Por outro lado, o tipo de relao que adolescentes e jovens tm
estabelecido com essas narrativas, o valor que atribuem a elas e as relaes
que tm desenvolvido com outras prticas de leitura torna-se fonte de
constataes e hipteses acerca da preservao ou no de culturas
locais/rurais em um contexto de globalizao e homogeneizao da cultura e
das experincias.
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3.2. O lugar da memria na sociedade contempornea.
J fui menino da roa/ andei de cavalo/ montei em carroa/ mergulhei nas guas da cachoeira/ cantarolava com os passarinhos/ noite voltava pro ninho pras belas histrias escut./ Era histria sem p nem cabea/ tanta coisa engraada/ agora nis at d risada/mas na hora o medo era certeiro./ De manhzinha, escutava o ronco do engenho/onde a cana passava ligeira/ s vezes sinto-me cana neste engenho social/ meu sangue e suor alimentam a fome/ e sede insacivel do capital. (Amauri Adolfo)
Pensar o passado, de uma forma geral, j no tem sido mais uma
prtica inocente como fora outrora, uma vez que os estudiosos vm
percebendo que nem a histria nem a memria so objetivas. Tem-se
trabalhado, sobretudo, com o reconhecimento de que na representao do
passado h sempre uma seleo consciente ou inconsciente, interpretaes e
distores dos fatos que so apresentados nos mais diversos suportes,
cientficos ou no.
Essa parcialidade na escrita da histria, hoje encarada como algo
natural prpria representao lingustica, tem uma relao direta com o
reconhecimento do quanto trabalhar com Histria trabalhar com memrias,
no sendo simplesmente uma memria singular, nica e universal. Ao
contrrio, as memrias so construdas por grupos sociais. So indivduos que
lembram, mas so grupos que determinam o que memorvel. Segundo Burke
(2000):
Considerando-se o fato de que a memria social, como a individual, seletiva, precisamos identificar os princpios de seleo e observar como eles variam de lugar para lugar, ou de um grupo para outro, e como mudam com o passar do tempo. As memrias so maleveis, e preciso compreender como so concretizadas, e por quem, assim como os limites dessa maleabilidade. (BURKE, 2000, p.73).
Esse movimento crtico dos historiadores est em desenvolvimento
desde a dcada de 1960. A partir da, os historiadores passam a analisar a
memria sob dois pontos de vista: como fonte histrica e como fenmeno
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histrico. Quanto ao seu carter de fonte, alguns historiadores passaram a
conferir mais espao para a histria oral, como forma de estar consciente dos
testemunhos e tradies orais implcitos em diversos registros histricos.
Quanto ao seu carter de fenmeno, a memria vem sendo analisada como
processo e dando nfase aos seus mecanismos de funcionamento.
Tais memrias, para Burke (2010), podem ser influenciadas por meio da
organizao social e pelos meios de comunicao, sendo eles: as tradies
orais, a esfera de atuao dos historiadores, as imagens e monumentos
pblicos, as comemoraes nacionais e regionais datadas, bem como o prprio
espao, que ofereceria em si elementos que conservam e/ou criam memrias.
Segundo Burke (2010) do ponto de vista de memrias, cada veculo tem
suas prprias foras e fraquezas (p.76). Apesar dessa variabilidade de
veculos transmissores, haveria um elemento comum a vrios meios de
comunicao: o esquema, que consiste em representar um determinado fato
ou pessoa em termos de outro.
Tal elemento presente em muitas formas de difuso de memrias no
s escritas, mas tambm orais. Um exemplo elucidativo de Burke (2010) o
que ocorreu na Europa moderna, em que muitas pessoas liam com tal
frequncia a Bblia que o livro se tornava parte delas, de modo que elas
organizavam suas percepes dos fatos presentes, suas memrias e at
mesmo seus sonhos a partir de modelos esquemticos das narrativas bblicas.
Assim, a construo da memria, na verdade, se daria por uma dialtica
da memria coletiva e da memria individual. Segundo Halbwacks (2006):
Portanto, existiriam memrias individuais e, por assim dizer, memrias coletivas. Em outras palavras, o indivduo participaria de dois tipos de memria. No obstante, como participa de uma e de outra, ele adotaria duas atitudes muito diferentes e at opostas. Por um lado, suas lembranas teriam lugar no contexto de sua personalidade ou de sua vida pessoal as mesmas que lhes so comuns com outras s seriam vistas por ele apenas no aspecto que o interessa enquanto se distingue dos outros. Por outro lado, em certos momentos, ele seria capaz de se comportar simplesmente como membro de um grupo que contribui para evocar e manter lembranas impessoais, na medida em que estas interessam ao grupo. (p.71)
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Essa relao dialtica entre memria coletiva e individual seria o que
marca a memria como um todo do indivduo, bem como sua prpria
identidade. O passado, portanto, teria fundamental importncia no s para a
solidificao do Estado-Nao, mas tambm para a prpria formao do
indivduo dentro dos diversos grupos aos quais ele pertence na sociedade. O
indivduo, em sntese, para evocar seu passado, precisa recorrer a outras
lembranas, sejam elas de outras pessoas, ou at mesmo memrias nacionais,
que servem muitas vezes, como fonte de apoio ou de abrangncia para a
compreenso da sua histria individual.
Haveria, portanto, dois tipos essenciais de memria, uma interior e outra
exterior, ou mais precisamente uma memria pessoal e uma memria social.
Nos dizeres de Halbwacks (2006): Pelo menos em aparncia, as datas e os
fatos histricos ou nacionais que elas representam podem ser inteiramente
exteriores s circunstncias de nossa vida; no entanto, mais tarde, quando
refletimos sobre eles, fazemos muitas descobertas, entendemos o porqu de
muitos acontecimentos. (p.76)
A construo da nossa memria se daria, segundo Halbwacks (2006),
durante um contnuo natural da vida, da sucesso de fatos mais ou menos
significativos, bem como atravs do nosso contato com a histria nacional e
com a figura de pessoas mais velhas, guardadoras de uma tradio tambm
nossa, mas que, ao mesmo tempo, no a vivemos.