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ROSANA DE PAULA FIRMIANO ENTRE A ENXADA E A CANETA: REFLEXÕES SOBRE AS PRÁTICAS DE LEITURA E A PARTILHA DE SABERES NO CONTEXTO RURAL Dissertação apresentada à Universidade Federal de Viçosa, como parte das exigências do Programa de Pós-Graduação em Letras, para obtenção do título de Magister Scientiae. VIÇOSA MINAS GERAIS - BRASIL 2015

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  • ROSANA DE PAULA FIRMIANO

    ENTRE A ENXADA E A CANETA: REFLEXES SOBRE AS PRTICAS DE LEITURA E A PARTILHA DE

    SABERES NO CONTEXTO RURAL

    Dissertao apresentada Universidade Federal de Viosa, como parte das exigncias do Programa de Ps-Graduao em Letras, para obteno do ttulo de Magister Scientiae.

    VIOSA

    MINAS GERAIS - BRASIL

    2015

  • ii

    A Deus, acima de tudo, a Quem eu sirvo e que me guarda diariamente.

    minha famlia, meu alicerce desde sempre. Ao meu marido, pelo amor,

    amizade e apoio.

  • iii

    AGRADECIMENTOS

    Agradeo a Deus, sem o qual nada sou, pela bno de ter me

    concedido a oportunidade de vivenciar o meu to sonhado mestrado em

    literatura; pelos livramentos e pela constante e serena presena em minha

    vida.

    Universidade Federal de Viosa, pela excelncia no ensino e pela

    competncia de seus profissionais.

    Prof. Dra. Elisa Cristina Lopes, pela orientao e sensibilidade ao

    longo desses dois anos, pela seriedade e humanidade com as quais me

    auxiliou ao longo desta pesquisa, tornando esse caminho de descobertas mais

    interessante e repleto de significados.

    minha famlia, que sempre tem sido presente em minha vida,

    apoiando-me em todas as decises e oferecendo base e valores suficientes

    para que eu possa prosseguir.

    Ao meu marido, pelo amor, amizade, apoio e altrusmo, os quais

    renovam diariamente as minhas foras e o meu desejo de seguir em frente.

    s amigas Dbora Andrade e Maikely Colombini, que fizeram esses dois

    anos de mestrado mais leves, pela amizade, apoio e momentos de

    descontrao.

    secretria Adriana, pela costumeira disposio em ajudar e por sua

    inquestionvel competncia.

    Ao Colgio Sagrado Corao de Maria, de Ub, pela compreenso e

    apoio em relao s demandas do mestrado.

    A todos que contriburam direta ou indiretamente para a minha titulao.

  • iv

    RESUMO

    FIRMIANO, Rosana de Paula, M. Sc., Universidade Federal de Viosa, maro

    de 2015. ENTRE A ENXADA E A CANETA: REFLEXES SOBRE AS

    PRTICAS DE LEITURA E A PARTILHA DE SABERES NO CONTEXTO

    RURAL Orientadora: Elisa Cristina Lopes.

    O interesse pelo tema surgiu da necessidade de discutir as prticas sociais de

    leitura no contexto rural, visto que se percebe uma tendncia de

    sobrevalorizao dos conhecimentos cientficos e da cultura urbana nos

    estudos acadmicos, de uma maneira geral, em detrimento dos saberes de

    carter mais rural. Objetivamos, dessa forma, ampliar a noo de leitura, de

    maneira a perceb-la em outros suportes que no apenas o livro. Entendida

    dessa forma, foi possvel pensar na prtica da leitura tambm como uma

    prtica de leitura de mundo, de compartilhamento de saberes entre indivduos.

    Essa troca de saberes costuma ser realizada tanto atravs da escrita, em

    diferentes suportes, quanto por meio da oralidade. Entretanto, como nossa

    sociedade tende a sobrevalorizar a cultura escrita, comunidades que tm uma

    forte base oral ou que no compartilham do acervo cultural escrito e acadmico

    tendem a sofrer os efeitos dessa hierarquizao simblica. Elegemos uma

    comunidade rural especfica, o distrito de Ubari, MG, para, atravs de

    entrevistas com dez idosos e dez jovens, investigarmos suas prticas de

    leitura. Partimos da hiptese de que o compartilhamento de saberes no

    contexto rural seria de base predominantemente oral, sendo os idosos os

    principais responsveis pelo perpetuamento destes entre geraes. Nesse

    sentido, supnhamos que o espao para a leitura de livros seria reduzido,

    circunscrevendo-se apenas ao contexto dos mais jovens, em decorrncia de

    exigncias escolares. Constatamos que a oralidade no mais uma

    caracterstica marcante do compartilhamento de saberes na comunidade rural.

    Os jovens tm procurado como fonte de informao e lazer principalmente os

    suportes tecnolgicos, onde tambm exercem a prtica da leitura,

    principalmente de textos mais ligados ao lazer e diverso. Os idosos, por sua

    vez, mostraram-se nostlgicos em relao aos tempos em que a oralidade era

    uma prtica mais comum para difuso de saberes, principalmente tendo como

  • v

    base a prtica de ouvir os mais velhos. Apesar de no sentirem o interesse dos

    jovens em ouvir os conhecimentos que tm a transmitir, exercem prticas

    especficas de leitura, como leitura bblica e atividades religiosas, simpatias,

    benzees, prtica de escrita de memrias pessoais etc. Quando se pensa no

    lugar que a leitura de livros acadmicos tem no espao rural, pudemos

    perceber que esse tipo de leitura, apesar de estar envolvida por uma urea de

    reverncia e respeito, matem-se distante das prticas cotidianas. Constatamos

    que reconhecer que ler importante para a insero social do cidado no

    suficiente para que um grupo de pessoas leia os textos que a escola e a

    universidade elegem como fundamentais; a leitura s se transforma em prtica

    efetiva se condizer com a realidade e as necessidades do indivduo. L-se com

    mais frequncia, por exemplo, entre os mais velhos, textos de carter religioso;

    leitura essa que parte do interesse deles e que vai ao encontro de seus anseios

    e valores. Entre os jovens, a leitura de revistas de variedades e sites da

    internet tambm representa o anseio por uma leitura voluntria e,

    consequentemente, prazerosa.

  • vi

    ABSTRACT

    FIRMIANO, Rosana de Paula, M. Sc., Universidade Federal de Viosa, March, 2015. BETWEEN THE HOE AND THE PEN: REFLECTIONS ON THE PRACTICE OF READING AND THE KNOWLEDGE SHARING IN RURAL CONTEXT Adviser: Elisa Cristina Lopes.

    The interest in the subject started from the need to discuss social reading

    practices in the rural context, because you can notice an overvaluation trend of

    scientific knowledge and urban culture in academic studies, in general, in

    contrast to the rural knowledge . Our aim is to expand the notion of reading in

    order to see it in other resources that not only the book. This way, it was

    possible to think of the practice of reading also as a world of reading practice,

    sharing the knowledge among individuals. This exchange of knowledge is

    usually done either through writing, using a variety of tools, and through orality.

    However, as our society tends to overestimate the written culture, communities

    that have a strong oral basis or who do not share the writing and academic

    cultural knowledge tend to suffer the effects of symbolic hierarchy. We chose a

    specific rural community, the Ubari district, MG, through interviews with ten

    elderly and ten young people, to investigate their reading practices and share

    knowledge. Our hypothesis is that when sharing knowledge in the rural context

    it occurs orally, through speaking, the elderly are the main responsible for the

    perpetuation of this knowledge between generations. In this context, we

    imagined that the space for reading books would be reduced and limited only to

    the youngest, because of school requirements. We found that orality is not a

    distinctive feature of the knowledge sharing in the rural community anymore.

    Young people have looked for technological supports, where they can practice

    the reading as a source of information and entertainment, especially the ones

    linked to leisure and fun texts. The elderly, in turn, were nostalgic in relation to

    the times in which orality was a common practice for dissemination of

    knowledge, mainly based on the practice of listening to the older ones. Although

    not feeling young people's interest in hearing the knowledge they have to

    transmit, they still perform specific reading practices such as Bible reading and

    religious activities, sympathies, blessing, writing practice of personal memories

  • vii

    etc. When we think about the place that reading of academic books have in

    rural areas, we realize that this kind of reading, despite being surrounded by an

    aura of reverence and respect, is really away from the daily practices. To

    conclude recognizing that reading is important for the social integration of the

    citizen is true,but it is not enough to make a group of people read the texts that

    the school and the university elected as fundamental; reading only becomes an

    effective practice when it matches the realities and needs of the individual. For

    example, among older, faith-based texts are read more often; because its part

    of their interest and matches their expectations and values. Among young

    people, reading magazines varieties and internet sites also represent the desire

    for a voluntary and therefore enjoyable reading.

  • viii

    SUMRIO

    1. INTRODUO............................................................................................ 1

    1.1 Consideraes iniciais............................................................................... 1

    1.2 O problema e sua importncia..................................................................... 6

    1.3 Objetivos................................................................................................... 15

    1.3.1 Objetivos gerais...................................................................................... 15

    1.3.2 Objetivos especficos............................................................................. 15

    1.4 Hipteses................................................................................................... 15

    2. METODOLOGIA.......................................................................................... 16

    3. REFERENCIAL TERICO.......................................................................... 21

    3.1 Revisitando o conceito de leitura e suas prticas sociais ........................ 21

    3.2 O lugar da memria na sociedade contempornea................................... 32

    3.3 Entendendo a vida e o trabalho do campo: uma perspectiva histria e

    social............................................................................................................... 43

    4. APRESENTAO E ANLISE DE DADOS: AS PRTICAS SOCIAIS DE

    LEITURA DE JOVENS E IDOSOS NO DISTRITO DE UBARI MG ............ 55

    4.1 A representao simblica do espao rural pelos seus habitantes........... 56

    4.2 As fontes de obteno de informao, conhecimento, sabedoria e lazer. 64

    4.3 Os suportes de propagao da memria e da tradio no contexto rural.. 77

    4.4 O papel da Biblioteca e da Escola como espaos sociais de prticas de

    leitura no meio rural........................................................................................ 101

    4.5 A recepo do conto Um aplogo, de Machado de Assis: uma esttica

    prpria?............................................................................................................107

    5. CONSIDERAES FINAIS:OS SABERES PARTILHADOS ENTRE A

    ENXADA E A CANETA.................................................................................. 116

  • ix

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS............................................................... 123

    APNDICE...................................................................................................... 127

  • 1

    1. INTRODUO

    1.1 Consideraes iniciais

    Tem coisas que no se aprende s na escola/uma delas a educao/ tem gente que cursou faculdade/ mas no sabe o que solidariedade/ o que ser irmo/ no pense que eu sou contra a escola/ eu sou a favor da educao/ s estou indo a favor desta gente que no pode ter diploma em suas mos. (Amauri Adolfo)

    A epgrafe acima pertence ao poeta mineiro Amauri Adolfo, residente em

    uma comunidade rural do municpio de Espera Feliz, Minas Gerais, onde

    atualmente dedica-se ao trabalho na roa, gozando do contato direto com a

    natureza e com a famlia. Amauri concluiu apenas o primrio, o que no foi

    empecilho para que se dedicasse arte; alm de poeta, trabalhou por alguns

    anos tambm na rea teatral e compondo msicas.

    Todas as epgrafes deste estudo fazem parte do primeiro livro editado de

    Amauri Adolfo, Redemoinho, de 2005, em que o poeta, dentre outras

    temticas, aborda com mais nfase a identidade e as memrias do homem do

    campo, representando a voz e a cultura desse sujeito social muitas vezes

    relegado pelos estudos acadmicos.

    Dentre outros atributos que a obra tem, a que mais chama-nos a

    ateno o fato de a temtica rural ser representada por algum que a vive

    diariamente; no se trata, assim, de representar o homem do campo na

    literatura, mas de o prprio homem do campo representar, atravs de sua voz,

    suas culturas, memrias e identidades.

    O livro de Amauri Adolfo ilustra poeticamente um anseio muito

    semelhante ao desta pesquisa, de valorizao da cultura e das leituras do

    homem do campo, visto que pretendemos analisar as prticas de leitura no

    universo rural. Nesse sentido, o contato com uma obra desse tipo bastante

    significativo em relao s questes que sero abordadas ao longo deste

    estudo.

    A pintura de Vermeer, A leiteira, por sua vez, a qual foi usada como

    epgrafe para esta dissertao, representa um dos meus primeiros contatos

    com produes artsticas ainda na infncia. A imagem da moa que se dedica

  • 2

    atenciosamente e com entrega atividade manual e aparentemente diria de

    lidar com as tarefas do lar, em um ambiente rural, interessou-me j na primeira

    vez em que a vi, ainda criana, em uma das casas vizinhas que frequentava.

    Habitantes da zona rural, eu e minha famlia no tnhamos nenhum tipo de

    contato com pintura, mas, mesmo assim, aquela imagem marcou-me

    sobremaneira.

    Anos mais tarde, j cursando a universidade, tive a oportunidade de v-

    la novamente, contextualizada e fazendo parte da anlise de um dos textos

    exigidos por uma disciplina da faculdade. O que foi apenas contato e

    identificao na infncia transformou-se em anlise e aprofundamento

    acadmico na universidade. Esses dois tipos de contato com a pintura de

    Vermeer foram, dessa forma, marcantes na minha trajetria pessoal e

    acadmica. No caso desta pesquisa, a pintura torna-se ainda mais

    emblemtica devido ao entorno campesino de que se compe o espao no

    qual a moa est inserida.

    Em relao a esse espao, foco deste trabalho, interessa-nos investigar

    quais so e como se do as prticas de leitura nesse ambiente, levando em

    considerao a massificao cultural que tanto a urbanizao quanto os meios

    de comunicao, como televiso e internet, tm suscitado nos mais diversos

    espaos.

    Nossos questionamentos perpassam, portanto, no s pela identificao

    dos tipos de leitura cannica/oficial que so (e se so) feitas por estes

    indivduos, mas tambm, partindo de um pressuposto amplo de leitura,

    entendida tambm como forma particular de ler e compreender o mundo que

    nos cerca, intriga-nos a possibilidade de perceber qual a leitura do mundo

    que essas pessoas fazem cotidianamente, quais so os textos, escritos ou

    orais, que lhes do sustento para a formao de sua identidade e, tambm,

    transformam-se em referncia para o compartilhamento de conhecimentos e

    saberes entre os indivduos e entre as geraes.

    As motivaes para o desenvolvimento dessa pesquisa tm uma

    fundamentao tanto acadmica quanto pessoal. Acadmica, pelo interesse

    que as cincias humanas e a rea de linguagens vm demonstrando, no

    decorrer das ltimas dcadas, pelo estudo de grupos que representam

  • 3

    minorias at pouco tempo excludas da escrita da Histria e do conhecimento

    acadmico, de uma forma geral.

    O anseio por dar voz aos saberes e verso que mulheres, negros,

    ndios e camponeses, por exemplo, tm a respeito da realidade que os cerca

    tem, assim, uma base acadmico-poltica bastante forte na atualidade e que

    parece cumprir uma funo democrtica, no apenas no mbito acadmico,

    mas principalmente na esfera poltica, em sentido amplo. Sobre o assunto,

    Santos (2005) pondera que:

    possvel mostrar que apesar das diferenas que a democracia participativa assume em pases distintos a partir de seus processos polticos, h algo que os une, um trao comum que remete teoria contra-hegmonica da democracia: os atores que implantaram a experincia de democracia participativa colocaram em questo uma identidade que lhes fora atribuda externamente por um Estado colonial ou por um Estado autoritrio e discriminador. (p. 57)

    Tais lutas pelo direito voz representativa em uma democracia mais

    participativa vm acontecendo de forma mais incisiva j h algumas dcadas e

    em vrios pases. Essa vertente poltica tem seus efeitos tambm , como se

    sabe, dentro dos estudos acadmicos, em que tanto a Nova Histria quanto o

    Multiculturalismo so representantes de linhas de pesquisa que, nas mais

    diversas reas, desenvolvem um olhar sobre as minorias e suas

    representaes.

    Dentre as vrias minorias que buscam espao representativo ou

    carecem dele, o homem rural e a sua cultura chamam especial ateno. Em

    relao a esse grupo social e forma como designado, cabe ressaltar que,

    ao longo desta pesquisa, as denominaes homem rural, homem do campo

    e campons foram usadas como sinnimas, por fazerem referncia, nesta

    pesquisa, ao habitante da zona rural, em especial ao pequeno produtor e sua

    famlia.

    Tendo isso posto, sabe-se que o homem do campo tem vivido,

    principalmente aps o avano industrial brasileiro, o xodo rural e a

    supervalorizao da vida citadina, uma crescente desvalorizao da sua cultura

    local, bem como uma srie de problemas econmicos, principalmente no que

    diz respeito ao pequeno produtor. Nos dizeres de Queiroz (1978):

  • 4

    Atualmente tem lugar uma sociedade cada vez mais marcada por caracteres urbanos, isto , em que a cidade tende a cada vez mais dominar o campo, reduzido a uma posio no apenas de subordinao como tambm de inferioridade. este, a nosso ver, o perfil atual da sociedade global brasileira, do ponto de vista sociolgico e em suas relaes campo-cidade, que cumpre no esquecer ao empreendermos qualquer pesquisa de meio rural ou urbano, pois tal perfil pesa decisivamente nos processos em curso. (p.64)

    Dentro da problemtica do homem rural, especificamente a do pequeno

    produtor, interessa-me em especial observar e analisar a relao que este

    estabelece com a leitura, entendida neste trabalho, de maneira ampla.

    Investigar as prticas de leitura rurais , nesse sentido, uma tentativa de

    resgate e valorizao da sua cultura, dos seus saberes, enfim, de sua forma de

    significar o mundo.

    Evidentemente, reconhecemos a possibilidade de nos depararmos,

    nesse espao, tambm com pessoas que no dominam a escrita e/ou usam a

    oralidade como forma de compartilhamento de saberes. Ora, acreditamos que

    tanto a leitura de textos materializados em palavras impressas quanto a

    expresso de saberes atravs da oralidade so formas de ler, significar a

    sociedade e, ao mesmo tempo, transmitir saberes.

    So esses dois instrumentos, portanto, que materialmente mais nos

    interessam nesta pesquisa: os textos escritos e orais que circulam no universo

    rural como forma de compartilhamento de conhecimentos.

    Tendo exposto as razes acadmicas para o desenvolvimento desta

    pesquisa, cumpre explicitar as motivaes eminentemente pessoais. Ressalto

    aqui a minha origem rural. Minha famlia toda sempre viveu, desde a poca de

    seus pais, avs e bisavs, no campo, sobrevivendo do cultivo da terra. Dentre

    as inmeras caractersticas campesinas que podem chamar a ateno de um

    observador, a cultura e os hbitos cotidianos sempre foram as que mais me

    encantaram.

    Fao aqui um parntese para falar da influncia significativa dos meus

    avs na minha formao. Tanto os paternos quanto os maternos so de origem

    rural e tiveram como base de sustento o cultivo de caf e a produo de leite,

    basicamente. De toda a nossa convivncia, o que mais me marcou e encantou

  • 5

    foram as histrias que eles sempre nos contavam, histrias de outrora,

    algumas com lio de moral e outras simplesmente para nos fazer rir.

    Entremeadas a essas histrias, eles proferiam sentenas proverbiais e

    expresses de um tempo antigo que, para mim, guardavam extrema sabedoria,

    de uma forma simples e potica. Meu pai, especialmente, herdou de meu av

    essa caracterstica, visto que at hoje tende a usar histrias para ilustrar uma

    determinada situao ou ensinamento, algumas delas repetidas sempre que

    ilustram bem uma situao do presente.

    Alm das histrias, a temporalidade campesina outro aspecto que

    sempre, mesmo inconscientemente, me encantou; associada a ela, o carter

    manual das tarefas, artesanais e pacientemente feitas. A relao com o tempo

    no campo, mais aprofundada, para mim, parecia estar em uma entrega maior

    s atividades a que se propunham meus familiares: desde a lida com o gado

    at um bordado feito ou a receita de uma broa de fub. Entremeadas a isso,

    longas prosas e, portanto, vrias histrias sendo narradas e transmitidas. O

    tempo ali sempre pareceu confortvel e amigavelmente se arrastar pelas horas,

    permitindo um saborear de todas as experincias que tanto o contato com o

    Outro quanto com a natureza poderiam oferecer.

    Mesmo na universidade, diante das disciplinas e contedos acadmicos,

    os saberes rurais ainda despertavam o meu interesse, mesmo no os vendo

    representados nos textos que lia na academia. Intrigava-me especialmente o

    fato de, mesmo no tendo representatividade na Academia, essa linguagem e

    conjunto de conhecimentos ainda permanecerem como modo de organizao

    da vida de inmeras pessoas e serem, tambm, uma forma possvel de

    significar o mundo.

    O ingresso no Mestrado na rea de literatura possibilitou-me, enfim, o

    contato com as vertentes tericas que vm, nas ltimas dcadas, reclamando

    mais espao para as minorias dentro dos estudos universitrios. Deparei-me,

    assim, com a questo do Negro, da Mulher, do Homossexual e de tantas outras

    minorias dignas de serem representadas nos estudos acadmicos, mas ainda

    no via um esforo de tal proporo para que houvesse tambm a insero do

    homem do campo, de forma mais participativa e menos tcnica e extica,

    principalmente no que se refere sua formao cultural.

  • 6

    nesse sentido que a presente pesquisa fruto do anseio de

    representar uma parcela da realidade do homem rural, mais especificamente,

    suas prticas de leitura, seus mecanismos de compartilhamento de

    conhecimentos e cultura, transcendendo o paradigma acadmico de

    sobrevalorizao do conhecimento cientfico em detrimento da cultura e dos

    saberes locais.

    No se trata, como poderia se pensar, de uma dicotomia entre cincia e

    costumes, mas da tentativa de registro, reconhecimento e dilogos entre as

    duas formas de construo de saberes dentro do espao universitrio.

    1.2. O problema e a sua importncia

    Tem gente que abusa do povo da roa/Diz que um povo caipira/ que no tem educao/No sei por que o preconceito/ qual o conceito que se tem de educao. (Amauri Adolfo)

    A questo da linguagem fulcral para uma compreenso efetiva da

    organizao social, visto que ela, a palavra, atravs dos seus modos de

    organizao, que significa o mundo por meio de processos simblicos, culturais

    e polticos. Nesse sentido, o distanciamento entre a linguagem rural e a

    linguagem da grande mdia, da escola e da academia tem um significado

    visivelmente poltico, representando as relaes de poder da esfera social.

    Sobre esse assunto, Rodrigues (2006) nos esclarece que:

    A palavra um ato de poder, o que equivale afirmar que ela no apenas um entre os seus outros smbolos, mas o seu exerccio. O direito de falar e ser ouvido so direitos do senhor. Os sditos calam ou repetem a palavra que ouvem, fazendo seu o mundo do outro. Porque a diferena entre um e outros est em que o primeiro detm a posse do direito de pronunciar o sentido do mundo e, por isso, o direito de ditar a ordem do mundo social. Uma diviso social do poder realiza-se entre os homens como oposies simblicas e nem por isso menos reais de diferenas do poder de falar. (p. 9)

    Pensar a palavra, nas suas mais diversas formas, vista em sua relao e

    simbologia no universo rural , dessa forma, alm de um trabalho de

    investigao das prticas de leitura, uma maneira de perceber politicamente

    como as relaes de poder hierarquizam o discurso do homem do campo, bem

  • 7

    como esse mesmo sujeito representa o mundo e se representa atravs da

    palavra.

    Outrossim, esses questionamentos trazem em seu bojo uma base

    terica a qual, nos ltimos anos, vem buscando compreender as formas pelas

    quais a palavra vem passando por processos de tecnologizao. So

    indagaes, nesse sentido, que, antes de mais nada, reconhecem um curso

    natural da palavra, que do estgio da oralidade passou ao da impresso e, a

    seguir, ao da era da informtica.

    Sem nos atermos a saudosismos ou a dualismos, analisar

    reflexivamente tal realidade histrica da representatividade da palavra e de

    seus suportes torna-se fundamental para perceber criticamente a relao que

    hoje estabelecemos entre cultura letrada e conhecimento socialmente

    legitimado. Significa, portanto, tambm reconhecer a possibilidade de

    existncia de um modo de ler o mundo e de construir tessituras textuais e uma

    tradio fundamentadas em uma base tambm oral, isso sem necessariamente

    criar juzos de valor, mas, de outro modo, desenvolver uma anlise das

    relaes entre essas duas formas de se relacionar e significar o mundo:

    atravs da oralidade e atravs da escrita.

    Sobre o assunto, Walter Ong (1998) nos esclarece que:

    A oralidade no um ideal, e nunca foi. Abord-la positivamente no defend-la como um estado permanente para qualquer cultura. A cultura escrita abre possibilidades palavra e existncia humana de uma forma inimaginvel sem a escrita. As culturas orais atualmente valorizam suas tradies orais e se angustiam diante das perdas dessas tradies, mas nunca encontrarei ou ouvi falar de uma cultura oral que no queira atingir a cultura escrita to logo quanto possvel. (Alguns indivduos, claro, resistem cultura escrita, mas so em nmero cada vez menor.) No entanto, a oralidade no deve ser menosprezada. Ela capaz de produzir criaes que esto fora do alcance dos que pertencem cultura escrita, por exemplo, a Odissia. Tampouco a oralidade pode ser completamente erradicada: ler um texto o oraliza. Tanto a oralidade quanto o desenvolvimento da cultura escrita baseado nela so necessrios evoluo da conscincia. (p.195)

    Apesar da natural coexistncia e do relacionamento entre essas duas

    formas de significar o mundo atravs da palavra, percebemos que, atualmente,

    a cultura ocidental adota um conjunto de autores e textos (escritos) como fonte

  • 8

    principal de construo e compartilhamento de saberes, a princpio,

    necessrios para que o indivduo se integre sociedade, passando a ter

    maiores possibilidades de ascenso social ou, pelo menos, para que vivencie

    mais plenamente a sua cidadania.

    de conhecimento comum que esses textos e saberes so

    tradicionalmente propagados e perpetuados pela Escola, que passa a ter papel

    fundamental nessa homogeneizao dos saberes tidos como essenciais ao

    indivduo, ao que se chama de sua formao cultural.

    O conceito de cultura, entretanto, merece uma reflexo acerca de seu

    significado social. Para Santos (2006):

    Cultura uma dimenso do processo social, da vida de uma sociedade. No diz respeito apenas a um conjunto de prticas e concepes, como, por exemplo, se poderia dizer da arte. No apenas uma parte da vida social como, por exemplo, se poderia falar da religio. No se pode dizer que cultura seja algo independente da vida social, algo que nada tenha a ver com a realidade onde existe. Entendida dessa forma, cultura diz respeito a todos os aspectos da vida social, e no se pode dizer que ela exista em alguns contextos e no em outros. Cultura uma construo histrica, seja como concepo, seja como dimenso do processo social. (p.36)

    Entendida como o conjunto de prticas sociais de um grupo, a noo de

    cultura amplia-se e passa a abranger no apenas aspectos especficos da vida

    social, como arte e religio, mas todas as prticas da esfera social. Nesse

    sentido, associar cultura a apenas manifestaes artsticas ou acadmicas

    revela-se como uma atitude discriminadora e limitada. Todo conjunto social tem

    sua cultura, no sentido de modo de vida e prticas sociais, sendo todas elas

    aspectos relevantes para o estudo geral da cultura de um grupo.

    A adoo de um conjunto de hbitos e prticas como representao de

    uma cultura superior seria, nesse sentido, uma ao discriminatria. Quando se

    afirma, por exemplo, que a leitura de um clssico da literatura universal tem

    mais valor cultural do que um livro de poesias de um autor local,

    hierarquizamos no apenas textos, mas tambm culturas e, portanto, grupos

    sociais.

    Os saberes locais, todavia, sofrem historicamente uma influncia muito

    forte de um conjunto de saberes exteriores que lhes so repassados como

  • 9

    manifestaes culturais legtimas; ao essa que tende a gerar uma

    discriminao em relao ao valor desse saberes autctones em relao aos

    acadmicos ou citadinos.

    Como consequncia, a tendncia que produes culturais especficas,

    ou seja, as culturas locais tendam a enfraquecer e fragmentar crescentemente

    seus elos de identidade, at mesmo dentro de seus espaos de origem;

    adotando produtos culturais, ora divulgados pela mdia, ora estabelecidos pelas

    instituies de ensino.

    No usamos essas proposies a respeito da hierarquizao e

    massificao da cultura pela mdia e pelas instituies de ensino como formas

    de emitir um juzo de valor pejorativo a respeito dos efeitos das mesmas, mas

    apenas de constat-los.

    Nessa mesma linha de raciocnio, Chartier (2003) pondera que:

    Uma outra transformao radical est situada contra e a favor da emergncia de uma cultura de massa, cujas novas mdias so vistas como destruidoras de uma cultura antiga, oral e comunitria, festiva e folclrica ,que era ao mesmo tempo criadora, plural e livre. O destino historiogrfico da cultura popular , portanto, ser sempre sufocada, expulsa, usada e, ao mesmo tempo, tal como Fnix, sempre renascer das cinzas. Isso indica que se deve considerar, para cada poca, como se estabelecem as relaes entre as formas impostas, mais ou menos restritivas e imperativas, e as identidades afirmadas, mais ou menos radiosas ou contidas. (p.146)

    Em sntese, Chartier (2003), ao mesmo tempo em que reconhece o

    quanto o Estado, a Igreja e/ou a mdia interferem na ordem e constituio da

    cultura popular, chama tambm nossa ateno para a necessidade de

    reconhecer que a fora de imposio desses modelos culturais no anula

    integralmente o espao de sua recepo, seja ele no meio acadmico ou no

    meio popular. A tentativa de imposio de uma cultura homogeneizante, nesse

    sentido, no significaria necessariamente uma assimilao passiva por parte

    dos diversos grupos sociais que a recebem.

    Muito pelo contrrio, Chartier (2003) afirma que a maneira pela qual a

    cultura popular assimila tais produtos culturais se modifica pelo modo como

    essas identidades no apenas recebem passivamente uma cultura exterior,

  • 10

    mas principalmente pelo modo como se apropriam dela, transformando-a e

    adaptando-a a seu contexto imediato.

    Certeau (1999), em A inveno do cotidiano: artes do fazer, tambm nos

    prope uma reflexo sobre a dialtica da recepo dos produtos culturais e dos

    textos, de uma forma geral, de maneira a percebemos o carter ativo e rico da

    recepo. O estudioso faz uma anlise que se baseia em estudar prticas

    cotidianas como modos de ao, como operaes realizadas pelo indivduo no

    processo de interao social que, em conjunto, dizem sobre um ser-individual-

    social, que se reapropria de elementos de uma cultura preexistente, a fim de

    torn-la comum a sua prpria vida ordinria.

    Certeau parte do pressuposto de que a relao social que determina o

    indivduo e no o inverso, por isso, s se pode apreend-lo a partir de

    suas prticas sociais. O terico percebe a individualidade como o local onde se

    organizam, s vezes de modo incoerente e contraditrio, a pluralidade da

    vivncia social.

    Nas prticas cotidianas de ler, conversar, habitar e cozinhar se

    observam as maneiras de falar e as maneiras de caminhar, pelas quais o

    indivduo pode seduzir, persuadir, refutar. Todo esse potencial enunciativo e

    criativo do indivduo, durante a interao, remete ao que Certeau chama de

    antidisciplina, que vai de encontro ideia de vigilncia, de limites, de

    combinaes restritas e previsveis, desenvolvida por Foucault em Vigiar e

    Punir (1975). O autor chama a nossa ateno para o fato de que as artes do

    fazer sejam, talvez, o lugar por excelncia da liberdade e da criatividade, dois

    elementos fundamentais para a sociedade contempornea.

    Convm aqui ressalvar que Certeau destaca, sobretudo, a necessidade

    de interessar-se no pelos produtos culturais oferecidos no mercado dos bens,

    mas pelas operaes dos seus usurios. Nas palavras do autor:

    mister ocupar-se com as maneiras diferentes de marcar socialmente o desvio operado num dado por uma prtica. O que importa j no , nem pode ser mais a cultura erudita, tesouro abandonado vaidade de seus proprietrios. Nem tampouco a chamada cultura popular, nome outorgado de fora por funcionrios que inventariam e embalsamam aquilo que um poder j eliminou, pois para eles e para o poder a beleza do morto tanto mais emocionante e celebrada quanto melhor encerrada num tmulo. Sendo assim, necessrio voltar-se

  • 11

    para a proliferao disseminada de criaes annimas e perecveis que irrompem com vivacidade e no se capitalizam. (p.13)

    Algum que se proponha, nesse sentido, a investigar culturas

    marginalizadas pelo sistema cultural oficializado teria diante de si um rico

    material de anlise, visto que se constituiria de formas peculiares e criativas de

    se relacionar com o conhecimento e modo de vida institucionalizado.

    Certeau chama nossa ateno para uma espcie de sensibilidade

    esttica diante das revelaes de prticas cotidianas e simples, as quais, para

    ele, revelam ideologias e sentidos para a compreenso da tessitura social. Sua

    incredulidade frente ordem que as autoridades e instituies desejam

    organizar desemboca em um olhar mais atento aos espaos em que as

    prticas cotidianas se fazem e revelam significados para alm da ordem

    imposta.

    Especificamente voltando-nos para a reflexo de Certeau que se

    relaciona diretamente a este estudo, o estudioso tambm reconhece a prtica

    da escrita como algo socialmente associado ao progresso e as prticas orais

    como aquilo que no contribui para o progresso; e, reciprocamente,

    escriturstico aquilo que se aparta do mundo mgico das vozes da tradio.

    (p.224).

    De tal modo a escrita estaria enraizada na nossa cultura que a pgina

    em branco teria o poder sobre a exterioridade da qual fora previamente isolada,

    organizando, pois, a vida social e, a princpio, suas prticas dirias.

    A prtica de escrever, para Certeau, chamada de prtica mtica

    moderna traz consigo, atualmente, uma relao que a escritura tem com a

    perda de uma Palavra identificadora, primeira e, dessa maneira, um novo

    tratamento da lngua pelo sujeito que dela faz uso.

    Essa relao contempornea com a Palavra teria origem, para o

    estudioso, na forte relao que o Ocidente tem com a Escritura de maior

    influncia por muitos sculos em nossa sociedade, a Bblia.

    Antes do perodo moderno, essa Escritura falava, era uma espcie de

    voz e ensinava e era ouvida pelos seus leitores-ouvintes. O questionamento

    desenvolvido na Modernidade acerca da veracidade dessa Palavra e a sua

    relativizao em virtude das corrupes que o texto sofreu ao longo da histria,

  • 12

    quebrou de certa maneira a unidade que tal texto tinha como voz e o lugar que

    o indivduo/leitor tinha como ouvinte da verdade.

    Nas palavras de Certeau (1999):

    O lugar que lhe era outrora fixado por uma lngua cosmolgica, ouvida como vocao e colocao numa ordem do mundo, torna-se agora um nada, uma espcie de vcuo, que obriga o sujeito a apoderar-se de um espao, colocar-se a si mesmo como um produtor da escritura. Devido a esse isolamento do sujeito, a linguagem se objetiva, tornando-se um campo que se deve lavrar e no mais decifrar, uma natureza desordenada que se h de cultivar. A ideologia dominante se muda em tcnica, tendo por programa essencial fazer uma linguagem e no mais l-la. A prpria linguagem deve ser agora escrita. Tal processo implicou em um afastamento do corpo vivido (tradicional e individual) e, portanto, tambm de tudo aquilo que, no povo, continua ligado terra, ao lugar, oralidade ou s tarefas no verbais. O domnio da linguagem garante e isola um novo poder, burgus, o poder de fazer a histria fabricando linguagens. Este poder, essencialmente escriturstico define o cdigo da promoo socioeconmica e domina, controla ou seleciona segundo suas normas todos aqueles que no possuem esse domnio da linguagem. (p. 230)

    A escrita se tornou, dessa forma, uma forma de hierarquizao social

    que privilegiou, em tempos passados, o burgus, atualmente, o tecnocrata.

    Tem funcionado como uma espcie de lei de uma educao gerida e

    administrada pela classe dominante que pode fazer da linguagem o seu meio

    de produo.

    Historicamente, no sculo XVIII, segundo a ideologia das Luzes, o livro

    seria capaz de reformar a sociedade e a ampliao escolar transformaria os

    hbitos e os costumes, moldando toda uma nao ao modo de pensar de uma

    elite. Durante todo esse perodo, de forma geral, acreditou-se na produo da

    sociedade por um sistema escriturstico, com a crena de que o pblico

    moldado pelo escrito.

    Segundo Certeau, no passado, esse texto era escolar, na

    contemporaneidade, a prpria sociedade, com todos os seus signos tcnicos,

    de produo e reproduo massivas. Nesse sentido, a leitura seria apenas um

    aspecto parcial desse consumo, mas de carter fundamentalmente relevante.

    Contrapondo-se crena de que consumidores/leitores receberiam

    passivamente os produtos/textos que lhes so oferecidos, Certeau chama

  • 13

    ateno para o fato de que toda leitura modifica seu objeto, de que o leitor, ao

    iniciar a leitura, percorre caminhos de recepo que so nicos e individuais,

    cuja intepretao e apropriao , pois, pessoal e decorre de uma memria

    cultural, adquirida muitas vezes de ouvido, por tradio oral, o que permite e

    enriquece progressivamente as estratgias de interrogao semntica cujas

    expectativas a exegese de um texto afina, precisa ou corrige.

    Ora, fica evidente que desde a leitura de uma criana at a de um

    especialista, ela precedida e possibilitada pela comunicao oral, o que

    contribui para apropriaes ainda mais pessoais dos textos que nos so

    apresentados diariamente.

    Ampliar a noo de leitura e procurar reconhecer a apropriao que dela

    fazem as pessoas comuns na sua prtica seria, nesse sentido, um rico

    exerccio de compreenso social e do prprio ato de ler, desvinculando-se,

    assim, de uma ideia unvoca de texto e do sentido que lhe pertenceria.

    Certeau (1999) sintetiza esse raciocnio da seguinte forma:

    Com efeito, a leitura no tem lugar: Barthes l Proust no texto de Stendhal; o telespectador l a paisagem de sua infncia na reportagem da atualidade. (...) Assim escapa tambm lei de cada texto em particular, como do meio social. (p.270).

    Walter Ong, por exemplo, (1998), diante dessa mesma realidade, se

    refere s formas de comunicao miditicas contemporneas como oralidades

    secundrias, visto que transmitem formas orais de comunicao ( em

    programas de TV e rdio, por exemplo), mas por intermdio de um suporte

    tecnolgico, sem o contato direto e espontneo com o grupo de interlocutores.

    Nas palavras de Ong (1998):

    Como a oralidade primria, a secundria gerou um forte sentimento de grupo, pois ouvir as palavras faladas transforma os ouvintes em grupo, um verdadeiro pblico, exatamente como a leitura dos textos escritos ou impressos os transforma em indivduos, fazem com que eles se voltem para dentro de si. Porm, a oralidade secundria d sentido a grupos incomensuravelmente mais amplos do que os da cultura oral primria a aldeia global. (p.155)

    Ora, nosso questionamento est exatamente em buscar identificar e

    compreender culturas locais, possivelmente ainda com marcas de leituras de

  • 14

    mundo que sejam tambm produtoras, e no s receptoras, dos mais variados

    textos sociais que nos so apresentados cotidianamente, ou que,

    supostamente, tm e fazem um tipo de apropriao particular da cultura de

    massa midiatizada ou do saber cientfico propagado pela escola.

    A essa possibilidade de pensar em uma leitura entendida como popular,

    Chartier (2003) observa que:

    (...) em sua recepo esse corpus de textos frequentemente entendido e manipulado por seus leitores populares sem respeito pelas intenes que comandaram sua produo ou sua distribuio, seja porque os leitores deslocam para o registro do imaginrio o que lhes foi dado no registro da utilidade, seja porque, inversamente, eles tomam como descrio do real as fices que lhes so impostas.(p.159)

    Importa-nos perceber quais e como se realizam as prticas de leitura e

    compartilhamento de saberes e cultura no meio popular/rural, analisando

    tambm as formas como se relacionam e interagem com a leitura cannica e a

    cultura oficializada pela mdia e pelo Estado.

    O universo rural apresenta-se como espao de maior interesse pelo seu

    tradicional distanciamento geogrfico e hipoteticamente cultural das prticas

    sociais urbanas, sendo estas normalmente mais afetadas pelas influncias da

    globalizao, da mdia e da massificao cultural.

    Evidentemente, reconhecemos que o espao rural atualmente recebe

    tais influncias, em maior ou menor escala, mas exatamente por isso que

    buscaremos compreender de que maneira tem-se compartilhado memrias e

    saberes nesse espao e a partir de quais influncias. Interessa-nos igualmente

    identificar quais so as prticas de leitura, de livros e de mundo mais comuns

    entre os moradores da zona rural. At que ponto e em que sentido ainda existe

    uma cultura oral e uma tradio de compartilhamento de memrias entre esses

    indivduos?

    Em suma, seria a escola ou a mdia que guiariam as leituras dessas

    pessoas ou a memria, o senso de coletividade e a oralidade ainda teriam

    espao privilegiado como forma de leitura de mundo? Teria a leitura de

    suportes tradicionais de leitura, como livros e jornais, espao dentro do

    contexto rural?

  • 15

    Diante desses questionamentos, reconhecemos tambm a possvel

    existncia de pblicos muito distintos, apesar de pertencerem ao mesmo

    espao. Acreditamos que os idosos possivelmente sero uma fonte maior de

    cultura e leitura de mundo mais local, em oposio ao universo dos jovens,

    que, por sua vez, sofreriam maior influncia da cultura urbana, globalizada.

    Tais diferenas, entretanto, s tendem a enriquecer tanto nossos

    questionamentos quanto possveis respostas, j que apontam para reflexes

    mais realistas, por reconhecer a complexidade dos sujeitos e tempos

    envolvidos em um mesmo espao e em uma mesma temtica.

    1.3 Objetivos

    1.3.1 Objetivos gerais

    Identificar as prticas de leitura no universo rural;

    Aferir os mecanismos de preservao e difuso da cultura local entre

    seus habitantes;

    Analisar as influncias exercidas pela Escola e pela Mdia na cultura

    rural;

    Confrontar a relao dos jovens e dos idosos com a cultura local e a

    cultura global.

    1.3.2 Objetivos especficos

    Identificar os mecanismos de manuteno e difuso da cultura e

    saberes entre geraes no universo rural;

    Reconhecer tambm na oralidade uma forma de ler o mundo, sendo,

    portanto, uma prtica, dentre outras, de leitura.

    1.4 Hipteses

    As principais hipteses que foram formuladas e guiaram o caminho

    da investigao podem ser apresentadas da seguinte forma:

  • 16

    As prticas sociais de intercmbio de saberes no universo rural

    estariam construdas culturalmente com uma base oral mais forte.

    Qual seria, ento, o espao e a funo da cultura letrada?

    Sendo os idosos os detentores da memria coletiva, qual a insero

    deles no processo de preservao desta? Qual a prtica social por

    eles utilizada para difuso de saberes: histrias, ditos populares,

    Bblia, provrbios?

    Em que medida e com qual significao os jovens da rea rural

    estabelecem relaes entre a cultura local, as prticas de leitura

    autctones e a cultura letrada e do mass media que a televiso e a

    internet lhes fornecem diariamente?

    De que forma a tradio local, bem como das narrativas orais entre

    geraes, tm sobrevivido forte tendncia urbanizao da cultura

    rural?

    2. Metodologia

    A investigao acerca dos questionamentos postulados ter carter

    marcadamente qualitativo, uma vez que a sondagem ser feita a partir de um

    pequeno grupo de jovens e idosos de uma comunidade marcadamente rural, a

    saber, Ubari, um distrito do municpio brasileiro de Ub, estado de Minas

    Gerais. Localiza-se a noroeste da sede municipal, da qual dista cerca de

    20 quilmetros. Foi criado em 27 de dezembro de 1948, pela lei no. 336, que

    elevou o povoado de Convento condio de distrito com o nome de Ubari,

    atualmente contando com uma mdia de mil habitantes.

    A localidade tem uma economia fundamentada principalmente na

    produo de leite, obtida a partir do trabalho de vrios pequenos produtores.

    Ao longo da histria da localidade, entretanto, alm do leite, o cultivo do caf

    era outra atividade comum entre os agricultores da regio. O distrito possui

    uma escola da rede estadual, cujo ensino vai desde a pr-escola at o 9ano

    do Ensino Fundamental.

    http://pt.wikipedia.org/wiki/Munic%C3%ADpiohttp://pt.wikipedia.org/wiki/Brasilhttp://pt.wikipedia.org/wiki/Ub%C3%A1http://pt.wikipedia.org/wiki/Minas_Geraishttp://pt.wikipedia.org/wiki/Minas_Geraishttp://pt.wikipedia.org/wiki/Quil%C3%B4metrohttp://pt.wikipedia.org/wiki/27_de_dezembrohttp://pt.wikipedia.org/wiki/1948

  • 17

    Ao terminarem seus estudos no distrito, os jovens precisam ir para Ub

    ou outras cidades vizinhas, onde costumam cursar o Ensino Mdio, sendo que

    muitos deles, no entremeio desse trajeto, deixam os estudos para trabalhar, em

    lojas ou fbricas, com vistas a constituir independncia financeira mais

    imediata, sendo que normalmente passam a tambm morar em Ub, pela

    maior facilidade e pelos atrativos de lazer, principalmente.

    Com relao ao entretenimento e cultura local, o distrito realiza

    anualmente uma festa religiosa, catlica, o Jubileu de So Francisco de Paula,

    que costuma receber a significativa presena de ubarienses e tambm pessoas

    que j no moram no lugar, tendo a festa como uma justificativa para

    frequentar a localidade durante a semana de comemoraes religiosas.

    O distrito ainda promove um Torneio Leiteiro, em que so montadas

    barracas de alimentos e bebidas, e h a apresentao de bandas locais. A

    festa no atrai muitas pessoas da regio, sendo constituda de um pblico

    muito semelhante ao do Jubileu anteriormente citado. Duas festas anuais so

    as que, desse modo, constituem-se como a principal atrao cultural da

    localidade. Ao que parece, a maior fonte de entretenimento cotidiana dos

    moradores so as pequenas comemoraes familiares, as conversas nos

    bares, as visitas e a televiso.

    Caber-nos- investigar quais so os hbitos de leitura, as formas de

    pensar e se relacionar com sua prpria cultura e com o mundo de uma forma

    geral que essas pessoas, principalmente as que vivem na rea rural do distrito,

    desenvolvem cotidianamente.

    Para tal, os dados usados sero tanto de carter objetivo (quantidade,

    tipo e frequncia de leitura, por exemplo) quanto subjetivos (recepo,

    avaliao e relao com as prticas de leitura). De uma forma geral, entretanto,

    esta pesquisa tem carter marcadamente qualitativo, uma vez que entendemos

    que a apreenso da cultura e dos saberes do homem do campo deve derivar

    da compreenso que as pessoas constroem no contato com a realidade nas

    diferentes interaes humanas e sociais.

    Faz-se, nesse sentido, necessrio encontrar fundamentos para uma

    anlise e para uma interpretao do tema em questo que revele o significado

    atribudo a ele pelas pessoas que partilham do contexto que serve de

  • 18

    motivao para a temtica da presente pesquisa. Pretendemos, assim,

    interpretar o sentido do evento a partir do significado que as pessoas atribuem

    ao que falam e s suas prticas culturais dirias.

    Dentre as estratgias de pesquisa de carter qualitativo, a Histria de

    vida, mais especificamente, a Histria oral a que mais se adequa ao perfil do

    presente estudo. A respeito dessa vertente analtica, Chizzotti (2008) nos

    esclarece que a Histria oral:

    Distancia-se do conceito de passado s como realidade j acontecida que deve ser preservada, recupera a relevncia das fontes orais e introduz novas questes temticas e terico-metodolgicas. Dentre essas questes, ocupa lugar a memria coletiva, como um fenmeno social, construda a partir da insero no grupo social e elaborada pelo sujeito, que articula o acervo de lembranas enraizadas na rede de solidariedades de um grupo. A memria uma reconstruo do passado e, desse modo, cambiante de acordo com o momento atual, sofrendo transformaes e flutuaes constantes. Seu uso em pesquisa no significa a descrio do acontecimento, mas a subjetividade do relato pode revelar muito dos anseios e lutas no visveis dos excludos, o significado do esquecimento e dos silncios. (p.107)

    Na histria oral, portanto, h a reunio de informaes orais de uma ou

    mais pessoas sobre eventos, seus contextos, causas e efeitos, visando

    compreender o contexto vivido para alm das informaes unidimensionais

    oferecidas pelos documentos, com a perspectiva de extrair uma verso no

    oficial, registrar a viso de grupos humanos que, ou no tm tradio escrita,

    ou no tm domnio dela.

    Nesse sentido, a subjetividade das narrativas um fator positivo e

    motivador de uma compreenso mais ampla e complexa das vivncias e

    concepes de mundo de grupos cuja ideologia nos escapa, por no serem

    representados nos textos oficiais.

    Quanto ao mtodo de anlise dos textos recolhidos dos relatos orais, a

    anlise do contedo discursivo constitui-se como um tipo de anlise que

    ultrapassa os aspectos meramente formais da lingustica, para privilegiar a

    funo e o processo da lngua no contexto interativo em que proferida,

    considerando a linguagem, em ltima anlise, como uma prtica social.

  • 19

    Para Chizzotti (2008), o discurso a expresso de um sujeito no mundo

    que explicita sua identidade pessoal e social e expe a ao primordial pela

    qual constitui a realidade. Nas palavras de Chizzotti (2008): para alguns

    autores, o discurso constituinte da realidade deve ser o alvo mais relevante da

    anlise: decifrar a genealogia do poder, segundo Foucault; desvendar as

    relaes de opresso, conforme a anlise crtica, que subjazem ao discurso.

    (p.121)

    Como o discurso situado em um contexto scio histrico e s pode ser

    compreendido se relacionado com o processo cultural, socioeconmico e

    poltico nos quais ele acontece, marcado pelas relaes ideolgicas e de

    poder, importa, nesse sentido, o processo, o ato de fala, o sentido elaborado no

    momento da produo do discurso, com todas as injunes subjetivas,

    determinaes sociais, incoerncias, repeties e omisses.

    Em sntese, a anlise do discurso fornecer sustento terico-

    metodolgico para esta pesquisa principalmente por identificar o processo pelo

    qual as pessoas do forma discursiva s interaes sociais, produzem sentidos

    ao que falam e orientam suas aes no contexto em que vivem. Sendo assim,

    todo discurso, suas definies, conceitos e transformaes revelariam a tenso

    entre indivduos, o contexto histrico e social, bem como o poder e a

    resistncia nas inter-relaes humanas.

    Nas palavras de Chizzotti (2008): A prpria estrutura social, os grupos,

    as concepes e prticas so considerados anlogos estrutura da linguagem

    e, como qualquer comunicao um sistema de signos, so considerados

    como um texto que pode ser lido (p.126).

    Levando em considerao esses postulados tericos, os quais

    fundamentaro a anlise dos dados, materializados em textos escritos e orais,

    o pblico a ser ouvido constituiu-se tanto de jovens quanto de adultos, devido

    possibilidade que tal corpus proporciona de investigar tanto a ideia da

    preservao de saberes e prticas do passado, na figura dos idosos, quanto s

    expectativas de perpetuao de formas de pensamento e hbitos do passado

    ainda no presente e sua tendncia (ou no) a preservar-se no futuro,

    principalmente na figura dos jovens.

  • 20

    Nesse sentido, foram feitas entrevistas com dez idosos, direcionadas a

    questionamentos objetivos acerca da temtica central deste projeto, bem como

    dando abertura para que possam expressar-se livremente sobre o assunto

    investigado.

    Destarte, tanto os dados objetivos quanto a expresso livre desses

    indivduos auxiliaro em uma fundamentao maior de dados para posterior

    anlise a respeito das prticas de leitura e compartilhamento de saberes dentro

    desse universo.

    Por outro lado, tambm foram entrevistados dez jovens da mesma

    localidade, partindo de perguntas com o mesmo carter das que foram feitas

    aos idosos, buscando, assim, um contraponto reflexivo sobre as prticas de

    leitura e a formao cultural destes dois pblicos distintos.

    A transcrio das respostas desses entrevistados seguiu a grafia da

    forma mais fiel possvel s marcas da oralidade e da variedade lingustica

    usada por eles no momento em que responderam s perguntas, de maneira a

    tentar preservar o mximo possvel a atmosfera das narrativas.

    Por fim, foi realizada uma consulta biblioteca do distrito, inaugurada

    em 2011, para que pudssemos relacionar os dados obtidos atravs das

    entrevistas aos registros da biblioteca, de modo a compreender mais

    amplamente como se do as prticas de leitura nessa localidade.

    Em suma, este estudo se dividir em trs etapas, a saber:

    Anlise do lugar e do papel da memria na sociedade

    contempornea.

    Entendendo a vida e o trabalho no campo: uma perspectiva histrica

    e social.

    Prticas de leitura entre jovens e idosos no meio rural: formas de

    produo e recepo.

    O papel da Biblioteca e da Escola como espaos de prticas de

    leitura no meio rural.

    A recepo do conto Um aplogo, de Machado de Assis: uma

    esttica prpria?

    Consideraes finais: os saberes partilhados entre a enxada e a

    caneta.

  • 21

    3. REFERENCIAL TERICO

    3.1. Revisitando o conceito de leitura e de suas prticas sociais

    Quantos saberes tm estes sabores/ mos que acolhem, recolhem a semente/ o fruto./ No milagre da vida/ faz a transformao artes da oficina/ de saciar o corpo e alimentar a alma/ Quantos saberes tm estes sabores/saber da vida/ sabor do cheiro/ Mos que mexem, temperam/ (...) Esto em todo lugar/Em cada movimento da vida/ Em toda luz do olhar. (Amauri Adolfo)

    O ato da leitura , hoje, para a sociedade ocidental, algo percebido como

    extremamente natural e, sobretudo, necessrio ao cumprimento das exigncias

    sociais que nos so impostas diariamente. De uma maneira geral, pensa-se a

    leitura, de forma tradicional e acadmica, como um meio privilegiado das

    construes tcnicas e culturais, de maneira que no ter acesso a ela estar, a

    princpio, excludo desse universo simblico, tanto em termos tcnicos, mais

    prticos, quanto culturais.

    Ao discorrer sobre a sociologia da leitura, Horellou-Lafarge e Segr

    (2010) afirmam que para que a prtica da leitura fosse concretizada, o

    surgimento e desenvolvimento de um suporte para a mesma foi fundamental:

    Tornar a prtica da leitura acessvel a todos ou a quase todos foi um longo combate, uma luta dura. Para que o texto fosse lido, era preciso que existisse o suporte que lhe permite ganhar vida sob uma forma concreta, que tivesse regras na maneira de dispor as frases ou as palavras, a fim de possibilitar que o texto, que todos os textos fossem acessveis, fossem compreensveis ao leitor. (HORELLOU-LAFARGE E SEGR, 2010, p.16).

    Entretanto, cabe aqui ressaltar que a noo de leitura, por mais que

    historicamente esteja associada ao suporte livro, no necessariamente dele

    depende para que tal ato se realize. Basta consultar o dicionrio e verificar, por

    exemplo, as definies elencadas para a palavra leitura, a saber:

    (latim tardio lectura, do latim lectio, -onis, escolha, eleio, leitura) substantivo feminino

  • 22

    1. O que se l. 2. Arte ou ato de ler. 3. Conjunto de conhecimentos adquiridos com a leitura. 4. Maneira de interpretar um conjunto de informaes. 5. Registro da medio feita por um instrumento. 6.[Tecnologia].Decodificao de dados a partir de determinado suporte (ex.: aparece um erro na leitura do disco). ("leitura", in Dicionrio Priberam da Lngua Portuguesa, 2008 2013, http://www.priberam.pt/DLPO/leitura [consultado em 28-11-2013]).

    Percebe-se claramente a partir das definies acima que a compreenso

    da leitura em nossa sociedade mais ampla do que o que normalmente nos

    damos conta; indo desde o ato em si at o objeto da leitura, ou mesmo o

    conjunto de conhecimentos que se extrai de uma determinada obra.

    Mas, em especial, cabe aqui ressaltar a possibilidade de interpretao

    da leitura como a maneira de interpretar um conjunto de informaes.

    Informaes essas que no necessariamente precisam estar vinculadas a um

    determinado suporte. Da falar-se na expresso leitura de mundo, muito

    comum entre os educadores, e em especial em Paulo Freire, quando este

    afirma que a leitura do mundo deve preceder a leitura da palavra. (FREIRE,

    1989, p.15)

    Reconhece-se, portanto, que pensar em leitura como uma prtica

    fundamental na sociedade no significa necessariamente restringir a sua

    realizao a um nico meio e/ou possibilidade. Mesmo reconhecendo a

    importncia do livro na veiculao de saberes, parte-se da premissa de que

    cada indivduo traz consigo leituras especficas de mundo, relacionadas sua

    vivncia, valores, grupo social, etc, leituras essas que se alteram ao longo de

    sua vida e que podem ou no ser enriquecidas a partir tambm de prticas

    associadas ao livro.

    O presente trabalho, portanto, procura analisar as prticas de leitura

    partindo de uma concepo ampla deste conceito, tanto em sentido

    contextual/vivencial quanto literalmente associado ao livro. Nosso principal

    interesse est em investigar a maneira como essas formas de leitura

    acontecem em contextos sociais especficos.

    http://www.priberam.pt/DLPO/leitura

  • 23

    importante ressaltar, nesse sentido, que, embora a existncia do

    suporte tenha sido fundamental para a realizao cannica da leitura, na

    compreenso tradicional da mesma a partir dos livros, os modos como esse

    meio foi utilizado para a prtica da leitura variaram consideravelmente ao longo

    da histria.

    A leitura individual, solitria e silenciosa que se pratica, principalmente

    desde o sculo XIX, at os dias atuais, por exemplo, difere consideravelmente

    de uma prtica de leitura oral e coletiva, muito comum at por volta do sculo

    XVIII. Esse segundo tipo de leitura, segundo HORELLOU-LAFARGE E SEGR

    (2010), na Frana, mantm-se ainda hoje nos meios populares e entre os

    adolescentes que praticam, s vezes, uma leitura coletiva (p.16).

    De um modo ou de outro, parece consensual a noo de que o livro,

    como suporte, tem um papel fundamental, apesar de no exclusivo, no

    compartilhamento dos saberes. curioso, entretanto, observar que, antes da

    generalizao da leitura, essa difuso tambm se dava, valendo-se muito mais

    da memria prtica que acabamos perdendo pela comodidade oferecida pelo

    livro:

    A escrita permite aliviar o trabalho da memorizao. Antes da generalizao da leitura, os eruditos usavam sua memria com uma facilidade que acabamos perdendo. Passar da tradio oral para a escrita no apenas mudar de foco de comunicao e de memorizao, tambm transformar a qualidade das mensagens e modificar as relaes com o pensamento. A escrita favoreceria o esprito crtico e o distanciamento, a construo de estruturas lgicas e o progresso do conhecimento. (Horellou-Lafarge e Segr, 2010, p.23).

    Mas, se por um lado, o livro torna-nos mais relapsos em termos de

    memorizao de saberes pela facilidade em consult-lo h estudiosos que

    afirmam que, de certa maneira, a escrita favoreceu a construo de um esprito

    crtico e racional, pelo distanciamento que lhe caracterstico entre autor e

    texto produzido maior, evidentemente, do que na oralidade: Na poca do

    Iluminismo, os intelectuais lhe atribuam a capacidade de, substituindo a

    tradio oral, substituir as crenas e as supersties que aquela veiculava por

    uma concepo racional do mundo. (Horellou-Lafarge e Segr, 2010, p.23).

  • 24

    importante observar que a escrita, em seu surgimento, como qualquer

    mdia nova, causou certo desconforto. Scrates, por exemplo, considerava os

    livros um empecilho instruo. Para ele, o dilogo base da construo do

    conhecimento, e o livro conservar-se-ia mudo diante dos questionamentos do

    leitor. O trecho abaixo esclarecedor em relao ao que pensava o filsofo

    sobre este assunto:

    que a escrita, Fedro, tem, da mesma maneira que a pintura, um grave inconveniente. As obras pictricas parecem vivas; mas, se tu as interrogas, elas mantm um vulnervel silncio. Ocorre o mesmo com os discursos escritos. Acreditariam, por certo, que falam com pessoas sensatas. Mas, se quiseres pedir-lhes a explicao do que dizes, eles te respondem sempre a mesma coisa. (apud Horellou-Lafarge e Segr, 2010, p.24)

    certo, sobre tais consideraes, que luz da Esttica da Recepo, a

    ideia de Scrates, segundo a qual o texto permanece mudo em face do leitor,

    parece muito ingnua, exatamente por vivenciar ainda um perodo de transio,

    o qual normalmente nos leva a desconfiar de novos meios de prticas do

    saber. Entretanto, a valorizao do dilogo, como forma de enriquecimento

    cultural e pessoal, propiciado pela prtica oral da difuso da memria, chama-

    nos especial ateno.

    Ao analisarmos a Histria, percebemos que a leitura , na verdade,

    apenas uma das prticas histricas de difuso do saber, de tal modo que,

    quando se balizava, causou medo em um dos maiores filsofos da

    humanidade, justamente por, supostamente, suplantar outro modo de

    propagao de conhecimento: a oralidade, o dilogo, associados a uma

    valorizao da memria e da necessidade de sua difuso.

    Em nosso contexto atual, mais precisamente, a questo do suporte

    quando se pensa em leitura tornou-se ainda mais complexa. Alm da

    possibilidade de compartilhamento de conhecimentos e saberes por meio da

    oralidade ou do livro, outros suportes, mais modernos e tecnolgicos, tm

    alcanado grande espao de circulao: desde smarthphones, a computadores

    e tablets, isso sem mencionar manifestaes artsticas que esto inscritas no

    espao urbano, como pichaes e o grafite.

  • 25

    Esses meios modernos de leitura, apesar de estarem presentes em

    praticamente todos os lugares, so mais comuns nas cidades, em espaos

    urbanos. Quanto s localidades mais rurais, cogitamos neste trabalho a

    hiptese de que, mesmo em face modernizao e tecnologia, a oralidade e

    a propagao de conhecimentos pela oralidade seria uma prtica ainda comum

    nesses tipos de comunidades.

    A oralidade foi, por muitos anos, em vrios pases, uma das principais

    formas, por exemplo, de se propagar narrativas de carter ficcional, embora

    quase sempre que tratamos de literatura nos venha mente a imagem do livro

    como suporte indispensvel para a sua realizao.

    Seria interessante aqui, diante dos inmeros tericos e crticos que

    tentaram definir a essncia do literrio, resgatar o conceito de Antonio Candido,

    em Direitos Humanos e Literatura:

    Chamarei de literatura, da maneira mais ampla possvel, todas as criaes de toque potico, ficcional ou dramtico em todos os nveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que chamamos de folclore, lenda, chiste, at as formas mais complexas e difceis da produo escrita das grandes civilizaes. Vista deste modo, a literatura aparece claramente como manifestao universal de todos os homens em todos os tempos. No h povo e no h homem que possa viver sem ela, isto , sem a possibilidade de entrar em contato com alguma espcie de fabulao. (...) Ora, se ningum pode passar vinte e quatro horas sem mergulhar no universo da fico e da poesia, a literatura concebida no sentido amplo a que me referi parece corresponder a uma necessidade universal, que precisa ser satisfeita e cuja satisfao constitui um direito. Alterando o conceito de Otto Ranke sobre o mito, podemos dizer que a literatura o sonho acordado das civilizaes. Portanto, assim como no possvel haver equilbrio psquico sem o sonho durante o sono, talvez no haja equilbrio social sem a literatura. (CANDIDO, Antonio. Vrios escritos, p. 174).

    Ora, reconhecendo a literatura, em seu sentido amplo, como a

    realizao de uma necessidade humana de fabulao, de recriao criativa da

    realidade, especialmente no universo da linguagem, seja ela oral ou escrita,

    tem-se a possibilidade de reconhecermos a existncia tanto de uma literatura

    escrita quanto de uma oral.

  • 26

    A existncia dessa literatura oral remonta aos gregos, quando

    pensamos, por exemplo, que a Odisseia nada mais do que a juno de vrias

    narrativas orais, transmitidas popularmente na Grcia, e reunidas em forma de

    livro por Homero.

    Fbulas de La Fontaine e contos infantis universais dos irmos Grimm

    so apenas mais alguns exemplos da histrica existncia de uma literatura

    oral.

    Nesse sentido, a existncia da literatura no dependeria exclusivamente

    de um suporte, mas, a princpio, da memria e de um interesse, em termos de

    tradio, de transmiti-la e perpetu-la.

    Cabe a ns, neste trabalho, investigar como as prticas de leitura de

    mundo, de fabulao e recriao acontecem ainda hoje, mais precisamente no

    espao rural, percebendo como e se estas prticas convivem com meios mais

    modernos de leitura.

    Como vimos ao longo dessa exposio, a difuso oral de conhecimento,

    entendida no no sentido miditico (cinema, msica, rdio ou TV), mas no da

    cultura de se transmitir saberes e experincias atravs da narrao direta entre

    indivduos, mais comum em meios mais populares e rurais, mesmo na

    contemporaneidade (Horellou-Lafarge e Segr, 2010, p.16).

    Esta constatao, apesar de fazer referncia ao contexto francs, cabe

    aqui como referncia de anlise e hiptese a ser investigada em nosso

    contexto atual, alm de tratar-se de um dado fundamental para

    compreendermos a conjuntura social e poltica que nos distancia de uma

    valorizao e reconhecimento maiores dessa literatura oral.

    Para Walter Benjamim, em seu clebre texto O narrador, as melhores

    narrativas escritas so aquelas que menos diferem das histrias orais,

    contadas pelos narradores annimos. Narradores esses que, para Benjamim,

    so homens que sabem aconselhar, os quais se valem da narrativa para a

    comunicao de experincias e, consequentemente, enriquecimento pessoal. A

    fabulao narrativa teria, portanto, certo sentido prtico, que aos nossos olhos

    hoje parece algo antiquado para a literatura. Para Benjamim, entretanto, essa

    nossa viso pouco prtica das narrativas seria fruto de uma construo

    histrico-ideolgica:

  • 27

    O primeiro indcio que vai culminar na morte da narrativa o surgimento do romance no incio do perodo moderno. O que separa o romance da narrativa que ele est essencialmente vinculado ao livro (...) a tradio oral tem uma natureza fundamentalmente distinta da que caracteriza o romance. O que distingue o romance de todas as outras formas de prosa (...) que ele nem procede da tradio oral, nem a alimenta. Ele se distingue especialmente da narrativa. O narrador retira da experiencia o que ele conta (...) e incorpora coisas narradas experincia dos seus ouvintes. O romancista segrega-se. A origem do romance o indivduo isolado. (BENJAMIM, p.201)

    O fato de a literatura, hoje, ser vista e valorizada especialmente em

    suportes fsicos, como livro e computador, tem, portanto, uma ligao direta

    com a ascenso burguesa, segundo Benjamim, e sua crescente valorizao do

    individualismo e da experincia pessoal/existencial, em detrimento das

    experincias coletivas e populares. O romance um gnero que representa

    muito bem essa perspectiva burguesa, de mergulho no universo individual,

    tanto no contedo das obras, como tambm na maneira como sua leitura se

    d, s e silenciosamente.

    O narrador tradicional, para Benjamim, compartilhava narrativas,

    prezava pelo maravilhoso/miraculoso, pelo encantamento e por partilhar

    valores e perpetuar tradies, em gneros como lendas, contos de fadas e

    algumas novelas. Nesse contexto, a literatura era elaborada coletivamente,

    atravs de homens que transmitiam essas narrativas, baseando-se

    principalmente na oralidade e na memria.

    A ascenso burguesa, alm de consagrar o romance, trouxe outras

    consequncias que, de certa forma, completam a nossa percepo sobre os

    motivos que levaram ao desprestgio das narrativas orais. A institucionalizao

    da escola, por exemplo, como espao de educao das crianas um fato

    histrico marcado especialmente por motivaes burguesas.

    Pierre Bourdieu (1974) aponta em seus estudos que o espao escolar,

    originalmente burgus, nasceu como forma de legitimao dessa mesma

    classe social. Logo, os contedos escolhidos e ensinados em sala de aula, os

    quais por vezes parecem neutros e universais, so, na verdade, escolhas

    convenientes dos valores e produes culturais dessa mesma classe.

  • 28

    A suposta democratizao do ensino no incio do sculo XX, portanto,

    com vistas a possibilitar o acesso universal ao sistema escolar, seria, na

    verdade, desde o princpio, excludente. No universo da literatura mais

    precisamente, as escolhas dos temas, autores, gneros e suportes teriam

    tambm, na verdade, motivaes sociais e polticas. Segundo Bourdieu (1974):

    A educao exerce um papel fundamental, uma vez que mediante o sistema escolar o Estado instaura e inculca formas e categorias de pensamento. (...) Podemos compreender, portanto, que a escola constitui uma instituio de classificao social bastante eficiente, porque geradora do habitus que, de modo geral, cria disposies extremamente favorveis com relao cultura legtima e, ao mesmo tempo, provocam a desvalorizao da cultura de origem quando esta no corresponde ao habitus escolar. Nesse sentido, compreende-se que as formas de classificao constituem formas de dominao simblica. (BOURDIEU, 1974, p.57)

    O que entendemos por literatura legtima, segundo esse raciocnio, seria

    uma construo social burguesa, a qual busca legitimar sua forma de lidar com

    a literatura, e, aqui, especialmente, legitimando um suporte especfico para a

    sua veiculao e modo de leitura: o livro.

    Desse modo, possvel entender melhor a razo de, muitas vezes, o

    espao escolar no valorizar a tradio oral que muitos alunos trazem, por

    exemplo, de suas comunidades rurais, ou manifestaes artsticas de origem

    perifrica, cujo grupo produtor pertence s margens sociais.

    Paulo Freire (1989), em uma linha de raciocnio muito prxima a

    de Bourdieu (1974), defendeu uma nova forma de educar, que partisse das

    vivncias e do universo dos prprios alunos, atribuindo assim maior

    significao ao processo educativo. Em A importncia do ato de ler, Freire

    dedica um captulo especial para uma proposta sobre a experincia de

    alfabetizao de adultos atravs da criao de uma biblioteca popular.

    A proposta de Paulo Freire tem como essncia o objetivo democrtico

    de construo de saberes, leituras e narrativas, de maneira a perceber tambm

    na literatura popular um centro de produo, e no apenas um receptculo da

    cultura dominante, ou um depsito silencioso de livros. Sobre esse tipo de

    iniciativa, de valorizao da cultura popular e oral, Freire afirma que:

  • 29

    Um dos inmeros aspectos positivos de um trabalho como este , sem dvida, fundamentalmente, o reconhecimento do direito que o povo tem de ser sujeito da pesquisa que procura conhec-lo melhor. E no objeto da pesquisa que os especialistas fazem em torno dele. Nesta segunda hiptese, os especialistas falam sobre ele; quando muito, falam a ele, mas no com ele, pois s o escutam enquanto ele responde s perguntas que lhe fazem. claro que uma pesquisa como esta demanda uma metodologia que no cabe aqui discutir que implique aquele reconhecimento acima referido o do Povo como sujeito do conhecimento de si mesmo. (FREIRE, 1989, p.19).

    A ideia de uma biblioteca popular, formada por um trabalho com o

    objetivo de reunir narrativas e experincias da populao de uma determinada

    localidade uma proposta bastante atrativa e coerente com o anseio de tentar

    resgatar e dar espao a uma literatura oral submergida pela cultura dominante,

    imposta em muitas escolas.

    O presente trabalho busca analisar exatamente essas narrativas que

    surgem do povo enquanto sujeito de sua prpria vivncia e produtor de

    histrias que o representem e a sua concepo de mundo e saberes.

    Interessa-nos, pois, perceber, principalmente no espao rural, meio ainda

    estigmatizado em relao aos seus saberes quando relacionados cultura

    urbana, quais so e como se realizam suas prticas de leitura, tanto no sentido

    de recepo quanto no sentido de produo de textos dos mais diversos tipos.

    Em especial, o livro de Ecla Bosi, Memria e Sociedade, um modelo

    inicial de inspirao para o presente trabalho. As histrias dos idosos que

    narram suas vivncias, no livro de Bosi (1994) evidenciam o quanto o papel

    social desempenhado no decorrer da vida toma parte expressiva nas memrias

    desses idosos. Lembranas essas que, na terceira idade, so um constructo de

    indivduos j envelhecidos, os quais j trabalharam. Dessa forma, trata-se de

    uma narrativa de pessoas as quais no so mais componentes funcionais da

    sociedade, apesar de j o terem sido.

    Isso significa que os idosos, por mais que no sejam mais pessoas

    ativas, no sentido produtivo do capitalismo, no tempo presente, teriam um novo

    papel social: lembrar e narrar aos mais novos a sua histria, de onde vieram, o

    que fizeram e aprenderam. Na terceira idade, esses indivduos transformam-se

    na memria da famlia e da sociedade como um todo.

  • 30

    J o cidado jovem e produtivo, de uma forma geral, no se detm em

    lembranas justamente por no ter tempo suficiente e disponvel para tal.

    Desses jovens, o meio social espera produo. Dos idosos, busca-se a

    lembrana. Todavia, essa funo social no reconhecida; como vem

    acontecendo, h um esvaziamento dessa etapa da vida.

    Partindo desse entendimento da relao que essas duas fases da vida,

    hoje, estabelecem com a produo de memrias, surge o questionamento

    acerca de como se relacionam com o mundo a partir de prticas de leituras

    especficas. Quais seriam as leituras realizadas por jovens e idosos no meio

    rural? Difeririam em termos de quantidade e qualidade? Seriam ambos, mais

    que leitores, tambm produtores de sentido e de narrativas sobre sua prpria

    realidade? Poder-se-ia ainda hoje falar de uma cultura de narrativas rurais? Se

    sim, que as produz e quem as recebe?

    Sobre essa relao entre juventude e terceira idade com a produo e

    recepo de textos e narrativas, Bosi (1994), em seu livro, chama ateno para

    o fato de que os idosos tm uma memria social atual mais abrangente e

    determinada, j que so observadores de uma pintura j finalizada e bem

    demarcada no tempo. No que tange aos mais novos, estes estariam ainda

    submergidos nas aflies e contrassensos do presente, o qual os invoca

    constantemente; careceriam, pois, de experincia para se envolverem com a

    memria.

    Aps uma introduo terica, Bosi (1994) menciona depoimentos de oito

    homens e mulheres, com mais de 70 anos, dentre os quais, todos sempre

    viveram em So Paulo; presenciaram esta cidade crescendo. A estudiosa d

    voz a esse grupo de idosos, cuja maior fortuna a memria pessoal. Ecla

    restaura um tempo, revigora um perodo social coletivo, costurando memrias

    individuais.

    A respeito do livro de Bosi, Benedito Nunes faz uma pertinente

    observao:

    A sociedade industrial em que vivemos rompeu esse liame [de elo entre geraes], desvalorizou o saber de experincia, corroeu a memria coletiva, desvalorizou a lembrana; portanto, desapossou a velhice de seu dom sociedade e cultura. Da natural condio de sobrevivente de uma gerao

  • 31

    que ele , [...] o homem idoso, porque improdutivo [...] passa, acobertado pela etiqueta clnica da terceira idade, ao anonimato dos excludos sem voz. (NUNES, In SILVA, 2003, p. 4).

    Pretende-se tambm, atravs do presente estudo, desenvolver-se uma

    reflexo a respeito de como os idosos vm desempenhando seu tradicional

    papel social de transmissores da memria, do conhecimento e de certo tipo de

    sabedoria. Interessa-nos especialmente observ-los como narradores por

    excelncia, no sentido benjaminiano. Mas, nos desperta tambm o interesse de

    saber quais so, por outro lado, suas prticas de leitura, quais so os textos

    que ainda hoje os alimentam.

    Em contrapartida, o mesmo questionamento se estende juventude

    tambm do meio rural: que tipo de narrativas produz? Quais prticas de leitura

    os tm formado hoje? At que ponto e de que maneira a cultura urbana e

    globalizada tem interferido e transformado as narrativas e prticas de leitura

    rurais?

    Tal escolha tem como propsito tentar perceber qual o lugar da

    recepo e do compartilhamento de conhecimentos e de saberes no

    cientficos, especificamente na sociedade rural contempornea.

    Acreditamos justamente na possibilidade de encontrar uma resposta

    afirmativa para essas questes, mais especificamente no universo dos idosos,

    tanto pela experincia acumulada como tambm pelo fato supracitado de eles

    j estarem fora do sistema de produo capitalista, que normalmente nos

    satura de presente e preocupaes futuras. Os idosos, ao contrrio, vivem

    mais livres dessa opresso temporal presente/futuro, ligando-se mais

    fortemente ao passado e, consequentemente, tornando-se potenciais

    observadores do presente e transmissores de memrias, experincias e

    conhecimento.

    Por outro lado, o tipo de relao que adolescentes e jovens tm

    estabelecido com essas narrativas, o valor que atribuem a elas e as relaes

    que tm desenvolvido com outras prticas de leitura torna-se fonte de

    constataes e hipteses acerca da preservao ou no de culturas

    locais/rurais em um contexto de globalizao e homogeneizao da cultura e

    das experincias.

  • 32

    3.2. O lugar da memria na sociedade contempornea.

    J fui menino da roa/ andei de cavalo/ montei em carroa/ mergulhei nas guas da cachoeira/ cantarolava com os passarinhos/ noite voltava pro ninho pras belas histrias escut./ Era histria sem p nem cabea/ tanta coisa engraada/ agora nis at d risada/mas na hora o medo era certeiro./ De manhzinha, escutava o ronco do engenho/onde a cana passava ligeira/ s vezes sinto-me cana neste engenho social/ meu sangue e suor alimentam a fome/ e sede insacivel do capital. (Amauri Adolfo)

    Pensar o passado, de uma forma geral, j no tem sido mais uma

    prtica inocente como fora outrora, uma vez que os estudiosos vm

    percebendo que nem a histria nem a memria so objetivas. Tem-se

    trabalhado, sobretudo, com o reconhecimento de que na representao do

    passado h sempre uma seleo consciente ou inconsciente, interpretaes e

    distores dos fatos que so apresentados nos mais diversos suportes,

    cientficos ou no.

    Essa parcialidade na escrita da histria, hoje encarada como algo

    natural prpria representao lingustica, tem uma relao direta com o

    reconhecimento do quanto trabalhar com Histria trabalhar com memrias,

    no sendo simplesmente uma memria singular, nica e universal. Ao

    contrrio, as memrias so construdas por grupos sociais. So indivduos que

    lembram, mas so grupos que determinam o que memorvel. Segundo Burke

    (2000):

    Considerando-se o fato de que a memria social, como a individual, seletiva, precisamos identificar os princpios de seleo e observar como eles variam de lugar para lugar, ou de um grupo para outro, e como mudam com o passar do tempo. As memrias so maleveis, e preciso compreender como so concretizadas, e por quem, assim como os limites dessa maleabilidade. (BURKE, 2000, p.73).

    Esse movimento crtico dos historiadores est em desenvolvimento

    desde a dcada de 1960. A partir da, os historiadores passam a analisar a

    memria sob dois pontos de vista: como fonte histrica e como fenmeno

  • 33

    histrico. Quanto ao seu carter de fonte, alguns historiadores passaram a

    conferir mais espao para a histria oral, como forma de estar consciente dos

    testemunhos e tradies orais implcitos em diversos registros histricos.

    Quanto ao seu carter de fenmeno, a memria vem sendo analisada como

    processo e dando nfase aos seus mecanismos de funcionamento.

    Tais memrias, para Burke (2010), podem ser influenciadas por meio da

    organizao social e pelos meios de comunicao, sendo eles: as tradies

    orais, a esfera de atuao dos historiadores, as imagens e monumentos

    pblicos, as comemoraes nacionais e regionais datadas, bem como o prprio

    espao, que ofereceria em si elementos que conservam e/ou criam memrias.

    Segundo Burke (2010) do ponto de vista de memrias, cada veculo tem

    suas prprias foras e fraquezas (p.76). Apesar dessa variabilidade de

    veculos transmissores, haveria um elemento comum a vrios meios de

    comunicao: o esquema, que consiste em representar um determinado fato

    ou pessoa em termos de outro.

    Tal elemento presente em muitas formas de difuso de memrias no

    s escritas, mas tambm orais. Um exemplo elucidativo de Burke (2010) o

    que ocorreu na Europa moderna, em que muitas pessoas liam com tal

    frequncia a Bblia que o livro se tornava parte delas, de modo que elas

    organizavam suas percepes dos fatos presentes, suas memrias e at

    mesmo seus sonhos a partir de modelos esquemticos das narrativas bblicas.

    Assim, a construo da memria, na verdade, se daria por uma dialtica

    da memria coletiva e da memria individual. Segundo Halbwacks (2006):

    Portanto, existiriam memrias individuais e, por assim dizer, memrias coletivas. Em outras palavras, o indivduo participaria de dois tipos de memria. No obstante, como participa de uma e de outra, ele adotaria duas atitudes muito diferentes e at opostas. Por um lado, suas lembranas teriam lugar no contexto de sua personalidade ou de sua vida pessoal as mesmas que lhes so comuns com outras s seriam vistas por ele apenas no aspecto que o interessa enquanto se distingue dos outros. Por outro lado, em certos momentos, ele seria capaz de se comportar simplesmente como membro de um grupo que contribui para evocar e manter lembranas impessoais, na medida em que estas interessam ao grupo. (p.71)

  • 34

    Essa relao dialtica entre memria coletiva e individual seria o que

    marca a memria como um todo do indivduo, bem como sua prpria

    identidade. O passado, portanto, teria fundamental importncia no s para a

    solidificao do Estado-Nao, mas tambm para a prpria formao do

    indivduo dentro dos diversos grupos aos quais ele pertence na sociedade. O

    indivduo, em sntese, para evocar seu passado, precisa recorrer a outras

    lembranas, sejam elas de outras pessoas, ou at mesmo memrias nacionais,

    que servem muitas vezes, como fonte de apoio ou de abrangncia para a

    compreenso da sua histria individual.

    Haveria, portanto, dois tipos essenciais de memria, uma interior e outra

    exterior, ou mais precisamente uma memria pessoal e uma memria social.

    Nos dizeres de Halbwacks (2006): Pelo menos em aparncia, as datas e os

    fatos histricos ou nacionais que elas representam podem ser inteiramente

    exteriores s circunstncias de nossa vida; no entanto, mais tarde, quando

    refletimos sobre eles, fazemos muitas descobertas, entendemos o porqu de

    muitos acontecimentos. (p.76)

    A construo da nossa memria se daria, segundo Halbwacks (2006),

    durante um contnuo natural da vida, da sucesso de fatos mais ou menos

    significativos, bem como atravs do nosso contato com a histria nacional e

    com a figura de pessoas mais velhas, guardadoras de uma tradio tambm

    nossa, mas que, ao mesmo tempo, no a vivemos.