ENTRE A CASA LAR E A ESCOLA: DISCURSOS DE PROFESSORES...
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Trabalho de Conclusão de Curso
ENTRE A CASA LAR E A ESCOLA: DISCURSOS DE PROFESSORES EM TORNO
DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES ACOLHIDAS
Adrielly dos Santos Pinto
Ana Carolina Vilela-Ardenghi
RESUMO:
O presente estudo pretende analisar os discursos em torno de crianças e adolescentes
acolhidos(as) na Casa Lar Vó Sinhá, em Bela Vista/MS, especialmente considerando a vida
escolar deles. Por vezes apresentando comportamentos violentos e até abusivos, além de
baixo rendimento escolar, essas crianças e adolescentes apresentavam, como pudemos
verificar no período em que trabalhamos na instituição, dificuldades de inserção na escola.
Nesse sentido, decidimos perguntar em que medida esse comportamento não era também
reflexo do que era esperado deles. Assim, entrevistamos professores que recebem essas
crianças e adolescentes em suas turmas, a partir de questões abertas; as entrevistas foram
individuais. Os resultados obtidos mostram que, em alguma medida, a escola estigmatiza
esses alunos e nega – em uma operação descritível linguisticamente – qualquer tipo de
abordagem mais voltada à integração deles ao ambiente escolar, o que pode contribuir, como
entendemos, para a manutenção do baixo rendimento e de situações de indisciplina e
violência.
Palavras-chave:Casa Lar. Comportamento escolar. Discurso. Desigualdade.
1 INTRODUÇÃO
Nos dez meses em que trabalhei como Assistente Social em uma instituição que
acolhe crianças e adolescentes vítimas de violências que levaram à ruptura dos vínculos
familiares, percebi que a questão escolar é um aspecto que merece ser mais bem estudado,
uma vez que essas crianças e adolescentes apresentam, frequentemente, baixo rendimento
escolar e, mesmo dentro do abrigo, comportamentos violentos, abusivos.
Por mais que se possa procurar “justificar” esse baixo rendimento e o mau
comportamento a partir das condições vividas por essas crianças e adolescentes – trata-se,
afinal, de pessoas provenientes de lares igualmente (ou mais) violentos, abusivos –, sempre
me pareceu que essa poderia ser uma forma de mantê-los à margem do sistema educacional.
Bacharel em Serviço Social, pós-graduanda do Curso de Especialização em Educação, Pobreza e Desigualdade
Social da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). E-mail: [email protected] Doutora em Linguística, professora orientadora do Programa de Pós-Graduação em Educação, Pobreza e
Desigualdade Social da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). E-mail:
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Crianças e adolescentes vindos, invariavelmente, de famílias em situação de pobreza
ou extrema pobreza, acolhidos em um “lar” temporário, por pessoas desconhecidas – ainda
que bem intencionadas, devotadas, aplicadas: eis o cenário que me fez perguntar se havia
algo que pudesse ser feito para uma mudança efetiva nessas condições. Se a pobreza é um
“ciclo”, que passa de geração em geração, e que pode ser explicada por vários fatores, como
romper com ele?
Certamente, esse questionamento inicial mostrou-se excessivamente amplo e uma
empreitada que não poderia ser concluída no curto período de tempo que tínhamos para
conclusão do curso de especialização Educação, Pobreza e Desigualdade Social. No entanto,
a inquietação causada pelo contato direto com essa realidade levou este trabalho para um
caminho adjacente: como essas crianças e adolescentes são “vistos” na instituição escolar? É
possível que isso tenha reflexos em seus comportamentos – se não os criam, seriam, no
mínimo, responsáveis por sua manutenção?
Iremos, assim, apresentar os resultados de uma pesquisa (qualitativa) que entrevistou
os professores que recebem esses alunos em suas salas, descrevendo ainda alguns detalhes
desse tipo de instituição. Pretendemos com isso chamar a atenção para esse tipo de realidade
que, talvez por estar à margem mesmo da sociedade, seja “invisível” nas pesquisas
acadêmicas. Nesse sentido, podemos dizer, juntamente com Bourdieu (2012, p. 11), que:
“os lugares ditos ‘difíceis’ (como hoje o conjunto habitacional ou a
escola[ou a própria Casa Lar]) são, primeiramente, difíceis de descrever e de
pensar”, são lugares que “aproximam pessoas que tudo separa, obrigando-as
a coabitarem, seja na ignorância ou na incompreensão mútua, seja no
conflito, latente ou declarado, com todos os sofrimentos que disso
resultem”. É, de certa forma, de dois lugares “difíceis” que falaremos aqui: a
escola e o abrigo.
2 ENTENDENDO O QUE É UMA CASA LAR
A Casa Lar Vó Sinhá é uma repartição pública de acolhimento institucional Casa Lar,
cujo objetivo é oferecer acolhimento integral às crianças e adolescentes que apresentaram
seus direitos violados, oferecendo-lhes, desta forma, um lar temporário.
O acolhimento institucional é regulamentado de acordo com Estatuto da Criança e do
Adolescente, Lei Federal 8.069/90, que em seu art. 92 estabelece que:
Art. 92. As entidades que desenvolvam programas de acolhimento familiar
ou institucional deverão adotar os seguintes princípios:
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I - preservação dos vínculos familiares e promoção da reintegração familiar;
II - integração em família substituta, quando esgotados os recursos de
manutenção na família natural ou extensa
III - atendimento personalizado e em pequenos grupos;
IV - desenvolvimento de atividades em regime de co-educação;
V - não desmembramento de grupos de irmãos;
VI - evitar, sempre que possível, a transferência para outras entidades de
crianças e adolescentes abrigados;
VII - participação na vida da comunidade local;
VIII - preparação gradativa para o desligamento;
IX - participação de pessoas da comunidade no processo educativo.
A Casa Lar é uma modalidade de abrigo, podendo ser a estrutura de uma residência
privada, própria ou alugada pela instituição responsável pelo programa. Pode ser coordenado
por um casal social, pai social, mãe social – Lei 7.644, de 18 de dezembro de 1987, ou ainda
por educadores com revezamento de horários.
A Lei Orgânica de Assistência Social – LOAS, Lei Federal 8.742 de 07 de dezembro
de 1993, define pela prioridade de organização dos serviços sociais para crianças e
adolescentes em risco pessoal e social, referindo-se, portanto, de modo especial, ao
atendimento em regime de abrigo.
A Casa Lar consiste em um mecanismo para que o acolhido desenvolva uma
identidade e continuidade para seguir sua vida de maneira integrada com a convivência
familiar e comunitária. A entrada no abrigo depende de determinação judicial e funciona de
forma gratuita, continuada e permanente, sendo que a Casa Lar atende a
crianças/adolescentes de ambos os sexos, de zero a dezoito anos de idade, oriundos de
famílias em condição de vulnerabilidade social, que tiveram seus vínculos rompidos e
provenientes do município de Bela Vista ou a cidade vizinha, Caracol-MS, para onde há duas
vagas reservadas.
Conforme art. 3º do atual regimento interno da Instituição de acolhimento, deverão ser
considerados os seguintes princípios norteadores:
I. Garantir a proteção da criança e/ou adolescente;
II. Empreender esforços, para que em um período inferior a 02 (dois)
anos seja viabilizada a reintegração familiar, para família nuclear, extensa
em seus diversos arranjos ou rede primária ou social e na impossibilidade
para família substituta, conforme determinação judicial;
III. Preservar e fortalecer vínculos familiares e comunitários;
IV. Garantir os vínculos de parentesco, observando a não separação de
grupos de irmãos, exceto quando houver claro risco de violência;
V. Garantia de acesso e respeito à diversidade e não discriminação;
VI. Oferta de atendimento personalizado e individualizado;
VII. Garantia de um atendimento humanizado;
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VIII. Garantia de liberdade de crença e culto religioso;
IX. Respeito à autonomia da criança e do adolescente;
X. Evitar sempre que possível à transferência para outras entidades de
acolhimento.
XI.
Diante dos princípios citados acima, os profissionais da instituição buscam promover
ações que garantamos direitos ali expressos. As políticas públicas estabelecem o modo de
trabalho, procurando respeitar as crenças e valores das vivências de cada cultura em sua
própria realidade, concebendo a todos como sujeitos de direitos e deveres sociais.
No início da pesquisa, a casa encontrava-se com 16 (dezesseis) acolhidos(as) e 08
(oito) cuidadoras, sendo 2 (duas) em cada plantão, um dia sim e outro não, com horário
estipulado das 7h às 19h e outro plantão das 19h às 7h, 1 (uma) auxiliar de serviço gerais, 1
(uma) cozinheira, 2 (dois) vigias, 1 (um) assistente administrativo, 1 (uma) pedagoga, 1
(uma) psicóloga, 1 (uma) assistente social e 1 (uma) coordenadora. Estes dados, porém,
variam muito, devido à entrada e saída dos acolhidos.
Todas as crianças e adolescentes abrigados frequentam a escola municipal Nossa
Senhora do Perpétuo Socorro (Bela Vista-MS). Eles são, geralmente, provenientes de
famílias em situação de violação de direitos, que tiveram seus vínculos rompidos, oriundos de
episódio de violência (física, sexual, psicológica), negligência, decorrência do uso abusivo de
álcool e outras drogas. A situação de vulnerabilidade é, portanto, patente.
Há toda uma rotina e um conjunto de, digamos, “compromissos” que são assumidos
institucionalmente em relação à educação das crianças e adolescentes abrigados, como mostra
o artigo 6º do Regimento Interno da Casa Lar:
I. Quanto ao Direito a Educação, os compromissos são:
a) Não faltar às aulas e aos cursos, salvo situação de doença;
b) Não sair da escola sem autorização e não acompanhado de cuidadora;
c) Fazer as tarefas (pesquisas, trabalhos) diariamente;
d) Estudar para as provas;
e) Respeitar os professores;
f) Não pegar objetos de outras pessoas na escola e trazer para dentro da
unidade.
A Casa Lar tem, como vimos, uma pedagoga concursada. A esta profissional cabe a
organização, em horários e dias diferentes, do acompanhamento individual escolar, sendo que
ela conta ainda com a ajuda de uma orientadora social. Há uma preocupação – nos
documentos que normatizam esse tipo de instituição –em torno da garantia dos direitos
humanos dessas crianças e adolescentes.
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Embora suponhamos que os professores tenham conhecimento referente aos Direitos
Humanos, que os(as) alunos(as) são indivíduos de direitos, é preciso que estejam prontos para
determinar, vigiar e contribuir para essa formação de sujeitos de direito. Segundo a
Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu artigo XXV:
§ 1º Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar-
lhe, e a sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário,
habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à
segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou
outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de
seu controle. (DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS
HUMANOS, 2009, p.13)
A Casa Lar surge, assim, como uma das formas de se garantir a esses sujeitos de
direito as condições favoráveis para que sigam suas vidas, mesmo tendo os vínculos
rompidos. Na instituição, existem projetos em relação a valores estabelecidos na Declaração
Universal dos Direitos Humanos, que estão sendo executados com os acolhidos e familiares,
tais como: orientação, documentação para os que ainda não possuem que é o acesso de
direitos na vida do indivíduo, matrícula escolar e inserção nos SCFV – Serviços de
Convivência e Fortalecimento de Vínculo. Há ainda projetos, cursos, oficinas e grupos que
englobam valores e éticas, buscando fortalecer o protagonismo social, em um processo de
mudança, fortalecendo os vínculos. O objetivo é propiciar ações que estejam de acordo com
os princípios éticos fundamentais como autonomia, liberdade e emancipação dos indivíduos.
É necessária, portanto, a realização de um trabalho de apoio às crianças e adolescentes
e suas famílias, pois eles têm direito a uma vida mais digna e cabe ao Estado e à sociedade a
garantia dos vínculos, independente das circunstâncias instituídas. Assim, políticas sociais
voltadas às famílias devem visar a um trabalho em rede, para um melhor atendimento e
acompanhamento. Desta forma, é preciso construir, juntamente com as famílias – sejam elas
de origem, extensas ou substitutas –, alternativas para as situações de vulnerabilidade e risco
apresentadas, tendo em vista a autonomia dos sujeitos.
Faz parte dessa busca pelo melhor atendimento a inserção dessas crianças e
adolescentes em escolas regulares, de modo que não interrompam seus estudos, mesmo em
situação de vulnerabilidade e risco. A contribuição deste trabalho vai, assim, no sentido de
investigar de que modo esses sujeitos são “vistos” no ambiente que deveria acolhê-los.
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3 QUESTÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS
É inegável que os discursos – ou, se quisermos, as ideologias – têm papel importante
na modificação (ou, correlativamente, na manutenção) das desigualdades sociais. Há, por
certo, um discurso acerca dessas crianças e adolescentes no ambiente escolar. Aqui interessa
analisar os discursos dos professores sobre esses alunos.
Um problema que enfrentamos para a definição dos caminhos deste trabalho foi à
decisão por entrevistar os professores. Isso porque, como observa Eitler, Brandão, Lazaro
(2014, p. 54), é comum que se defina pobreza
como ausência do que é necessário para o bem-estar do ponto de vista
material – alimentação, moradia, terra, dentre outros. Soma-se o aspecto
psicológico da situação de pobreza – ausência de voz, poder e
independência. A exploração e os maus tratos (humilhações e tratamento
desumanos) sofridos por parte de agentes públicos e privados também foi
destacada. Somam-se as dificuldades em conservar a identidade cultural
(com destaque para tradições, festivais e rituais) e a ruptura das relações
sociais devido à ausência de capacidade de participação na vida
comunitária. (Grifo nosso).
Nesse contexto, como poderíamos “dar voz” às pessoas diretamente afetadas pela
situação analisada? Ou, nas palavras de Spivak (2010), como fazer o subalterno falar?
Inicialmente, pensamos em propor – sabendo dos riscos de incorporação da voz das crianças
e adolescentes por um discurso (acadêmico) dominante – a entrevista das próprias crianças e
adolescentes. No entanto, esse tipo de empreitada depende de autorização judicial, em um
processo que levaria mais tempo do que dispúnhamos para tanto. A opção foi, então,
entrevistar os professores, mesmo porque acreditamos, como já dito antes, que são parte
decisiva no processo sob análise aqui.
Entrevistamos, então, as professoras que recebem em suas salas de aula essas crianças
e adolescentes – cinco, no total. Como dissemos, há apenas uma escola da cidade para onde
eles são encaminhados. Elaboramos questões abertas que foram aplicadas em entrevistas
individuais a essas professoras. As perguntas procuravam saber como as profissionais “viam”
esses alunos, como avaliam a inserção deles na escola e sua relação com os demais colegas.
Procuramos fazer com que as professoras “comparassem” a realidade desses alunos com a
dos demais. As entrevistas, é preciso dizer, foram bastante rápidas, uma vez que nos
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deparamos com a seguinte situação: os profissionais da educação do município estavam com
seus salários atrasados há dois meses – indo para o terceiro mês sem receber! – e realizavam,
então, a chamada “operação tartaruga”. Nesse contexto, precisei ir por diversas vezes até a
escola e, com a autorização da direção, tentar convencer as professoras a conceder a
entrevista. Além disso, pedi ainda se era possível ter acesso ao registro de notas dos alunos –
não apenas os abrigados, mas também dos demais alunos da turma, a fim de verificar,
comparativamente, se havia diferenças significativas entre eles. Esses dados, contudo, não
puderam ser fornecidos, segundo informação da direção da escola.
É verdade que esse tipo de método de coleta de dados não costuma ser o mais
utilizado por analistas do discurso. No entanto, para a questão que nos interessa, não há
muitos dados “institucionais” disponíveis: a maioria dos documentos dessas crianças e
adolescentes são protegidos por sigilo judicial. Talvez essa seja a razão de que esse tipo de
situação seja, como dissemos, “invisível” de certa forma a pesquisas acadêmicas.
Assumiremos, do ponto de vista teórico, que o discurso é um “efeito de sentido” com
existência material (PÊCHEUX: 2002[1983]), no caso “linguística”. Para analisar as
manifestações das professoras entrevistadas, olharemos, então, com especial cuidado para a
“forma” como se diz o que se diz, uma vez que, como observa Possenti (2002, p. 18), a
materialidade linguística e o discurso não mantêm entre si uma relação biunívoca: um mesmo
recurso da língua pode materializar diferentes discursividades e, correlativamente, um mesmo
discurso pode se apoiar sobre diferentes recursos da língua.
A partir das considerações de Franchi (2002):
É possível apontarmos a importância que tem o professor nesse processo,
uma vez que é, em geral, deles que surgem as situações que mais atingem a
imagem que os alunos fazem de si. Para a autora, as crianças que
externavam atitudes de revolta “se sentiam distantes, esquecidas dos
professores, a não ser quando tornadas objeto de repreensão ou ‘sacos de
pancada’ (na expressão delas)” (FRANCHI: 2002, p. 3).
Podemos verificar que esta situação, embora preocupe toda a sociedade, pode ser
também reforçada por essa mesma sociedade – mesmo que de forma inconsciente. Em razão
de terem seus vínculos familiares rompidos, essas crianças e adolescentes necessitam de
atendimento especializado, para que não sejam revitimizados, assegurando a integridade
física, garantindo assistência médica, odontológica, psicológica e outras quando for
necessário, garantindo assim, a promoção ao lazer e cultura, mediante participação em
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atividades da comunidade. Nesse sentido, interessa-nos verificar se os professores, de fato,
constituem-se em elementos de mudança positiva na vida dessas crianças e adolescentes ou
se, ao contrário, acabam por reforçar a situação de exclusão vivida por elas, por meio de
atitudes que reforcem os sentimentos de desvalorização neles. O papel da educação no
processo de ruptura das desigualdades é fato bastante destacado, tanto em textos legais
quanto acadêmicos, já que
a educação, ao reconhecer as diferenças, pode colaborar para que todos
tenham direitos iguais de aprender, de conhecer e de ser conhecido, de
valorizar e ser valorizado. A educação pode e deve afirmar o valor superior
da justiça em relação às diferenças que nos distinguem. (EITLER,
BRANDÃO, LAZARO: 2014, p. 13).
No entanto, parece haver uma distância ainda entre os discursos mais
institucionalizados e o modo como eles são incorporados pelos sujeitos que estão, digamos,
na ponta (de baixo) desse ciclo.
4 COM A PALAVRA, AS PROFESSORAS.
Durante o período em que estive trabalhando na Casa Lar, observei que as crianças e
adolescentes ali acolhidos tinham dificuldades na escola, apresentando, com bastante
frequência, notas baixas e comportamentos agressivos e abusivos entre si. Esse contexto me
fez perguntar o que – além do óbvio – poderia estar associado a esse tipo de comportamento.
Embora seja comum associar esse baixo rendimento escolar à situação de vida dessas
crianças e adolescentes, acredito que a maneira como os professores as recebem – e,
eventualmente, as “rotulam” – é fator que não pode ser deixado de lado. Nesse sentido,
Franchi (2002) observa, a respeito de crianças de uma escola de periferia com as quais
trabalhou, que seu comportamento decorria, em grande medida, de um sentimento da
desvalorização vivenciado pelas crianças e adolescentes, por sentirem-se rebaixadas, seja
pelos professores seja pelos demais alunos. A pesquisadora depara-se com o desafio de lidar
com crianças que se encontram desacreditadas e que “devolvem” para o sistema escolar o
comportamento que esse sistema lhes atribui (são crianças “mais fracas”, “indisciplinadas” e
até com “problemas mentais”). Franchi (2002) relata que:
“as crianças se preveniam e agiam segundo as expectativas” que tinham de
seu comportamento como “maus alunos”; uma atitude de reação constante
que gera revolta em tais comportamentos negativos, frequentemente não
obtendo sucesso algum em seu percurso escolar.
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As discussões sobre a escola, especialmente levando-se em consideração o seu papel
frente às desigualdades sociais, vêm sendo cada vez mais debatidas atualmente. Uma das
questões importantes é o fato de que a escola pode funcionar como lugar de “opressão”, na
medida em que, tentando ser “igual e para todos”, acaba por promover uma cultura
hegemônica, já que não existe uma “cidadania universal” (LEITE: 2014, p. 18).
Entrevistei cinco professoras; na maioria das entrevistas, elas afirmam que não há
qualquer forma de discriminação em relação a esses alunos. No entanto, algumas fazem
afirmações que indiciam exatamente o contrário: “são avaliados igualmente aos demais”, “é o
mesmo tratamento com as demais crianças”, “não tem muita diferença [...] sem fazer
distinção a ninguém”, “se houver [programas ou projetos específicos para atender essas
crianças] vai ter uma discriminação aí”. Além disso, é interessante notar que essas respostas
surgem à pergunta: “como você avalia o comportamento das crianças e adolescentes
acolhidos?”. Ou seja, os professores entenderam esse “como” relativo ao modo de avaliação e
não à descrição do comportamento propriamente dito.
A presença de diferentes formas de negação é bastante significativa nas entrevistas e
foram elas que acabaram servindo de entrada para as análises. Vejamos os recortes abaixo:
Professora 01:
Não querem parar em sala de aula
Não são vítimas de discriminação escolar
Professora 02:
Sai da sala sem pedir
Nunca presenciei discriminação dos colegas com eles e nem um professor
e funcionário da escola.
Professora 03:
Com o decorrer do tempo, a gente trabalha com eles pra que isso [mau
comportamento] não ocorra dentro de sala de aula.
A gente não vê dificuldade nisso [na interação com os demais colegas].
Ao ver... a gente não nota isso... a discriminação dos colegas. Dentro da
escola não...
[Não há] nada tão grave que agente não possa resolver dentro da escola.
Professora 04:
Não tem muita diferença, não. A avaliação é em conjunto, com todas as
crianças, sem fazer distinção a ninguém.
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Professora 05:
Não[é diferente do comportamento dos demais alunos], eles têm o mesmo
comportamento: têm interação com os demais, não têm problema de
agressão nem nada...
Não são vítimas...
Não são discriminados...
Não sofrem bullying...
Como se nota, nega-se qualquer diferença existente entre os alunos em situação de
abrigo e os demais. As professoras – ou a maioria delas, como veremos – dizem que não
diferença, mas na forma de dizer acabam revelando que essas crianças e adolescentes são,
sim, estigmatizadas de alguma maneira. É negado a elas qualquer possibilidade de tratamento
“diferenciado” – justamente porque são consideradas “iguais” às demais, mesmo que não
sejam – pois, isto sim “seria discriminação”. As professoras parecem se colocar em uma
posição de “interrogadas”, na medida em que não “testemunham” nenhum tipo de situação
“problemática”: “dentro da escola não”, “eu nunca presenciei”. Assim, esse lugar do diferente
não é dado a essas crianças e elas devem se adequar ao sistema, como as demais.
Chama a atenção, porém, a fala da professora 05 quando questionada sobre o
comportamento dessas crianças e adolescentes. Ela diz que é “o mesmo” dos demais, mas
complementa dizendo que “não têm problema de agressão”. Ora, se é o mesmo, por que falar
em agressão? Ou a agressão é algo comum a todos na mesma faixa etária ou, ao contrário, é
algo que foge ao padrão do considerado “normal”. Isso mostra que, como supúnhamos no
início, há um comportamento “esperado” dessas crianças e adolescentes, e mais: um mau
comportamento! Mas isso só aparece na fala das professoras como “deslize”, pois elas estão
em uma posição “defensiva”. Elas sentem, na verdade, como se estivessem sendo
avaliadas/analisadas: negam tudo; eles não têm problemas etc. Tanto que ao questionamento
“como avalia?” elas entendem que a pergunta se refere ao “modo” de avaliação delas e não à
avaliação que elas fazem dessas crianças.
Apenas uma única professora fala que o comportamento dos alunos em situação de
abrigo é diferente dos demais. Segundo a professora 03,relata que é “notável” isso, mas isso
com o decorrer do tempo, agente trabalha com eles pra que isso não ocorra dentro da sala de
aula. Esse contraste com as demais declarações coloca, mais uma vez, a suspeita de que as
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professoras estariam assumindo uma posição “defensiva”, como se estivessem, elas mesmas,
sendo avaliadas enquanto profissionais.
Como dissemos no início, a escola é um “lugar difícil” porque coloca em um mesmo
lugar pessoas que tudo o mais separa. Nesse sentido, como fazer para que as representações
homogeneizadoras deem lugar às múltiplas? Essa é uma questão que ainda inquieta e que este
trabalho não resolve, mas traz para o debate. Por que essas professoras “lutam” tanto para
dizer que tratam todos da mesma forma?
Além da questão comportamental, enquanto trabalhei na Casa Lar, notei que elas
tinham muitos problemas de rendimento escolar. Em razão disso, uma das perguntas feitas às
professoras era se havia algum trabalho ou projeto voltado para essas crianças –
naturalmente, elas poderiam dizer que havia outras crianças com o mesmo problema ou com
as mesmas dificuldades.
Selecionamos alguns trechos, como seguem:
Professora 05:
Não tem um programa específicos pra elas.
Professora 01:
Não existe programa projeto específicos para as crianças acolhidas; é o
mesmo tratamento como as demais crianças.
Professora 02:
Aqui na escola não tem não tem nenhum projeto nenhum programa
específico para as crianças da Casa Lar
Professora 04:
Não [tem projetos específicos para atender a essas crianças e adolescentes],
porque, se houver, vai ter uma discriminação aí.
Professora 03:
Aqui nós não temos esse programa ou projeto específico, até mesmo pra
gente não discriminar, porque, automaticamente, se a gente, fizer um
projeto em cima disso, focado neles, a gente já vai estar discriminando eles,
tirando à parte eles... Então a gente não faz esse projeto, mas tenta trabalhar
no todo pra que isso [as dificuldades apresentadas em relação ao processo de
aprendizagem] não ocorra na escola.
É possível notar aqui mais uma vez a presença das negações, que incidem sobre a
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existência de projetos específicos para as crianças. O interessante, porém, é que algumas
professoras justificam a não existência dizendo que, se eles fossem oferecidos a essas
crianças, haveria uma discriminação em processo. Ou seja, há a sobreposição de uma imagem
homogeneizadora dessas crianças e adolescentes, como se todos os que estivessem na escola
tivessem os mesmos desejos, valores e dificuldades. No entanto, ao não conseguirem o
mesmo rendimento dos demais colegas, eles talvez possam apresentar os problemas de
comportamento – tão negados quanto reais! –, já que não conseguem se conformar à imagem
considerada ideal ou adequada naquele contexto. É, como afirma Leite (2014, p. 18), um
“déficit” a ser superado. Ao não olhar para eles como “diferentes”, a escola acaba excluindo-
os do processo de aprendizagem, já que eles não conseguirão acompanhar o ritmo dos demais
colegas – considerando que estes tenham um rendimento mais ou menos próximo.
Segundo relato da professora 01, as crianças/adolescentes que estão acolhidas são, no
ambiente escolar, “agressivas”, “bagunceiras” e “revoltosas”, alguns não querem nem parar
em sala de aula. Já a professora 03 relata que o comportamento no ambiente escolar dessas
crianças e adolescentes é diferenciado, mas ainda consegue trabalhar em sala de aula.
Quando se olha para essa população de baixa renda em situação mais precária que as
demais é possível notar que a discriminação é ainda maior, como não se espere nada deles,
qualquer tratamento especial é indevido, como se eles não merecessem.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Através deste trabalho pretendemos lançar um olhar para os discursos que contribuem
para formar a identidade de crianças e adolescentes acolhidos pela Casa Lar Vó Sinhá, em
Bela Vista-MS. Espero ter, com ele, contribuído, não para resolver, mas para promover a
reflexão em torno desse tema, para que, tomando consciência de uma situação que pode
reforçar a exclusão, essa questão seja recolocada na pauta da formação dos professores que
atuam junto a essas crianças e adolescentes.
Mesmo diante das constantes negativas do problema – que deixaram um rastro na
materialidade linguística –, foi possível perceber que há uma expectativa (muitas vezes
silenciada) do comportamento dessas crianças e adolescentes, revelando uma imagem
altamente estigmatizada. Embora sejam “notados” como “diferentes”, a eles é reservado um
tratamento “igual” na escola, o que acaba, muitas vezes, por aprofundar as desigualdades e
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negar o acesso a mudanças de vida que rompam com o ciclo de pobreza e violência em que se
inserem.
Nessa situação de vulnerabilidade social é preciso promover os direitos humanos no
meio de trabalho, iniciando com avanços, como promoção da igualdade de gênero, raça,
inclusão das pessoas com deficiência, constituindo-se contribuições fundamentais para toda
sociedade. Atualmente, muitas conquistas foram alcançadas no Brasil em relação à proteção
dos direitos humanos, sendo que a diminuição dos níveis de miséria e pobreza também
representou um enorme avanço.
Há ainda, por certo, muito trabalho a ser feito, determinando a ação não apenas dos
governos, mas também da sociedade civil, das empresas e das organizações de trabalhadores,
para que o respeito aos direitos humanos seja tema prioritário.
6 REFERÊNCIAS
BERROS, Eloisa Castro. Serviço Social. Valinhos: Anhanguera Publicações 2010.
BELA VISTA/MS. Regimento Interno: Casa Lar Vó Sinhá, 2016.
BOURDIEU, Pierre (Org.). A miséria do mundo. Petrópolis: Vozes, 2012.
BRASIL. Estatuto da Criança e Adolescente. Lei nº 8.069, de 13 de julho de
1990.Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/Ensfund/indag2.pdf>.
Acesso em 24 de novembro de 2016.
________. Presidência da República. Lei Orgânica da Assistência Social- LOAS, n. 8.742,
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Trabalho de Conclusão de Curso
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PÊCHEUX, Michel. O discurso: estrutura ou acontecimento. Campinas: Pontes, 2002[1983].
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SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2010.
Trabalho de Conclusão de Curso
APÊNDICE:
Instrumentos
I. Entrevistas abertas, iniciando-se com as seguintes perguntas:
1. Como avalia o comportamento no ambiente escolar das crianças e adolescentes
acolhidas na Casa Lar Vó Sinhá? É diferente do comportamento das demais crianças
da mesma faixa etária?
2. Como é a interação com os demais colegas?
3. Essas crianças e adolescentes são vítimas de discriminação no ambiente escolar?
Explique?
4. Como recebem essas crianças, sabendo que se encontram acolhidas e com seus
vínculos rompidos? Há um programa/projeto específico para elas?
5. Há algum tipo de problema detectado no desenvolvimento das atividades escolares
em relação a esses alunos (ex: dificuldade de concentração, etc.)? Discorra?