Entendendo Democracia

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DEMOCRACIA Está na hora de examinar o conceito de “democracia” defendido pelos políticos. O leitor se surpreenderá ao verificar que o tabu da “democracia”, que pensam ser oriundo da Grécia clássica, na verdade é uma enganação inventada no século 19, junto com a ideologia comunista. Vamos tratar desse assunto. É o Brasil uma democracia? Os que estão no poder, é claro, dizem que sim. Outros não concordam, e afirmam que falta muito para chegar à “verdadeira” democracia. Os descontentes denunciam: somos uma “falsa” democracia. Os pessimistas dizem que o povo está “despreparado” para a democracia, a qual deveria ser deixada para depois. Não, respondem outros: tem de ser aqui e agora, porque é vivendo a democracia que um povo aprende a praticá-la. Enfim, parece que só existe acordo sobre um ponto: que a democracia é ideal a ser atingido mediante educação, saúde, desenvolvimento, etc. Se a democracia nunca está aqui, mas é sempre ideal a ser atingido, coisa a ser aperfeiçoada, maravilha que todos conhecem, mas ninguém viu, então é provável que não passe de utopia. E utopia, meus amigos, significa “lugar nenhum”. Um local inexistente que todos conhecem e desejam. Não importa que não exista, é um ótimo assunto para animar uma mesa de conversa. Um militante de partido político, no meio da conversa, quis nos convencer das maravilhas da nossa democracia. Tentei explicar-lhe que a democracia não é nossa, é deles, e não passa de fraude; que num país como o Brasil, democracia é erro conceitual tão absurdo quanto um quadrado redondo. Surpreso, retrucou: “Acho que a sua definição de democracia não é igual à minha. Diga-me o que é, no seu entender, democracia.” Respondi que, antes de dar a “minha” definição – que não é minha, é de gente melhor que eu – queria saber qual era a dele. “Simples”, disse, e passou a citar a lista: soberania popular, governo constitucional, separação de poderes, império da Lei, eleições livres, representação, direitos humanos, liberdade de expressão, etc. Pedi um exemplo de democracia, não incompleta e em obras, como a brasileira, mas em pleno funcionamento.

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Entendendo realmente o que é democracia

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DEMOCRACIAEstá na hora de examinar o conceito de “democracia” defendido pelos políticos. O leitor se surpreenderá ao verificar que o tabu da “democracia”, que pensam ser oriundo da Grécia clássica, na verdade é uma enganação inventada no século 19, junto com a ideologia comunista. Vamos tratar desse assunto.

É o Brasil uma democracia? Os que estão no poder, é claro, dizem que sim. Outros não concordam, e afirmam que falta muito para chegar à “verdadeira” democracia. Os descontentes denunciam: somos uma “falsa” democracia. Os pessimistas dizem que o povo está “despreparado” para a democracia, a qual deveria ser deixada para depois. Não, respondem outros: tem de ser aqui e agora, porque é vivendo a democracia que um povo aprende a praticá-la. Enfim, parece que só existe acordo sobre um ponto: que a democracia é ideal a ser atingido mediante educação, saúde, desenvolvimento, etc.

Se a democracia nunca está aqui, mas é sempre ideal a ser atingido, coisa a ser aperfeiçoada, maravilha que todos conhecem, mas ninguém viu, então é provável que não passe de utopia. E utopia, meus amigos, significa “lugar nenhum”. Um local inexistente que todos conhecem e desejam. Não importa que não exista, é um ótimo assunto para animar uma mesa de conversa.

Um militante de partido político, no meio da conversa, quis nos convencer das maravilhas da nossa democracia. Tentei explicar-lhe que a democracia não é nossa, é deles, e não passa de fraude; que num país como o Brasil, democracia é erro conceitual tão absurdo quanto um quadrado redondo. Surpreso, retrucou: “Acho que a sua definição de democracia não é igual à minha. Diga-me o que é, no seu entender, democracia.”

Respondi que, antes de dar a “minha” definição – que não é minha, é de gente melhor que eu – queria saber qual era a dele. “Simples”, disse, e passou a citar a lista: soberania popular, governo constitucional, separação de poderes, império da Lei, eleições livres, representação, direitos humanos, liberdade de expressão, etc. Pedi um exemplo de democracia, não incompleta e em obras, como a brasileira, mas em pleno funcionamento.

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“Bem, democracia perfeita não há nenhuma, mas há países que se podem considerar democráticos…” Interrompi: “Pense nos Estados Unidos. Os Estados Unidos serviram de modelo para centenas de constituições republicanas, especialmente na América Latina. Embora tenha imperfeições, acho que os Estados Unidos são bom exemplo de democracia. Pelo menos é esse o consenso geral. Concorda?”. “Concordo”, respondeu o amigo. “Muito bem. Nesse caso, acho que você também concorda que a democracia americana não saiu do nada nem surgiu por acaso.” Sim, assentiu ele. Realmente a Revolução Americana tinha sido iniciada e conduzida segundo as idéias dos Pais Fundadores, os Founding Fathers, um grupo de homens que reuniam em si as mais nobres qualidades, admirados até mesmo pela dupla Marx & Engels. Homens como George Washington, Thomas Jefferson, Alexander Hamilton, James Madison, Benjamin Franklin, Pelatiah Webster, Charles Pinckney, John Adams, John Jay, Thomas Pai-ne… a lista seria longa.

Fixado esse ponto, de que a Revolução Americana foi projeto consciente, de gente que sabia o que queria, convidei-o ao meu escritório e tirei da estante uma parte da coleção intitulada “The Library of America”, publicada pelo National Endowment for the Humanities, cujos grossos volumes, cuidadosamente impressos e editados, incluem as obras completas dos Pais Fundadores, as quais, em milhares de páginas em papel bíblia, reúnem praticamente todos os seus escritos.

“Se é verdade que os Estados Unidos são uma democracia, e se é fato que os Fundadores sabiam disso e conscientemente construíam uma democracia, então, com certeza, deviam discutir esse assunto. Por isso, você encontrará a palavra ‘democracia’ mencionada muitas vezes nas suas obras, não é?”

Em toda a volumosa obra dos fundadores da “democracia” americana, o termo “democracia” é pouquíssimo usado e, nas raras vezes que o mencionam, é sempre em sentido negativo, como mal a ser evitado, atraso de vida, retrocesso, sinônimo de tirania e de desordem. Embora os Estados Unidos fossem o modelo mundial de liberdade, os

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americanos nunca pensaram em viver numa democracia. Tudo indica que, para eles, liberdade e democracia não combinam.

Donde vem, então, o ideal da democracia? Como vê, caro leitor, nossa tarefa será nada fácil.

Ao contrário do que dizem por aí, a Constituição dos Estados Unidos de 1786 não era, nem pretendia ser, democrática. Parece estranho, porque os Estados Unidos são considerados a primeira grande democracia da História moderna. Sua Constituição serviu de modelo para dezenas de países, exatamente porque é democrática. No entanto, se o leitor consultar os textos, artigos, livros, cartas e ensaios legados pelos fundadores dos Estados Unidos, verá que raramente falavam em democracia e, nas poucas vezes em que a ela se referiam, era de modo negativo. Para tirar dúvidas, sugerimos um teste. A obra desses grandes homens foi reunida numa coleção, a Library of America. Se o leitor consultar o índice alfabético, verificará o seguinte.

George Washington, Thomas Jefferson e Benjamin Franklin nunca mencionaram democrático ou democracia em um só dos seus escritos.

Alexander Hamilton falou em democracia apenas 12 vezes em toda a sua obra, sempre de modo negativo: “os vícios da democracia”, fator de “instabilidade” e “dissolução”, a necessidade de frear a “imprudência da democracia”. As antigas democracias populares da Grécia e de Roma, para Hamilton, “nunca tiveram um só traço de bom governo. Seu caráter era tirânico, sua figura, disforme. Nas assembléias, o plenário era multidão desgovernada, incapaz de deliberar mas sempre disposta a aprovar qualquer monstruosidade.” Ao ratificar a Constituição em 1788, Hamilton se congratulava pela solidez suas instituições que, por não serem democráticas, dificilmente poderiam degenerar em ditadura.

James Madison mencionou democracia ou estado democrático 8 vezes. Nos Federalist Papers Madison explicava que a democracia era impraticável porque só funciona em

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pequenas comunidades nas quais não haja antagonismos de interesses. “Uma democracia pura, ou seja, uma sociedade composta de pequeno número de pessoas que se reúnem e administram diretamente os seus negócios comuns, não sobrevive se estiver dividida em facções.” Como os Estados Unidos eram grande nação com muitas facções antagônicas, obviamente a democracia era impossível. Em vez dela, Madison propunha a república. Qual a diferença? Deixaremos essa discussão para mais tarde. Por enquanto, interessa saber que Madison e os demais não confundiam república com democracia, nem cogitavam de híbridos como república democrática.

Até o radical Thomas Paine no panfleto Senso Comum não fala nem uma vez em democracia, embora use república e republicano repetidamente.

Nos Debates sobre a Constituição, que abrangem tudo o que foi escrito pelos fundadores entre 1787 e 1788, quando discutiam acaloradamente a ratificação da Constituição, a palavra democracia é mencionada apenas 6 vezes, sempre de modo negativo. Fisher Ames assim a descreveu: “É um vulcão em cujo interior se oculta a matéria incendiária da sua própria destruição.”

Em harmonia com o pensamento dos seus autores, a Constituição dos Estados Unidos não contém democracia, nem o adjetivo democrático.

E a do Brasil? Como tivemos várias, convém fazer um retrospecto. A do Império obviamente não falava em democracia. A primeira Constituição republicana, de 1891, só a mencionava no preâmbulo: “organizar um regime livre e democrático”. Na Constituição de 1934 também só se citava no preâmbulo: “organizar um regime democrático…”. A de 1937, é claro, não fala em democracia. A de 1946 tem duas referências: no preâmbulo (“organizar um regime democrático”) e no parágrafo 13 do artigo 141, que diz: “É vedada a organização, o registro ou o funcionamento de qualquer Partido Político ou associação, cujo programa ou ação contrarie o regime democrático, baseado na pluralidade dos Partidos e na garantia dos direitos fundamentais do homem.”. Esse dispositivo forneceu

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às autoridades a base legal para cassar o registro do Partido Comunista do Brasil e os mandatos eletivos dos seus membros, em 1947.

A constituição cidadã de 1988, por seu turno, lavou a égua em matéria de democracia. Menciona democrático, democratização e democracia 15 vezes. Nesse aspecto, está em ótima companhia. A constituição da China Comunista contém 11 vezes o substantivo democracia e 23 o adjetivo democrático. A constituição da Albânia de 1976, na pior fase da ditadura de Enver Hodja, mencionava 7 vezes. A da Coréia do Norte, 6 vezes. A de Cuba tem 4 democracias.

Que ninguém pense, porém, que a democracia é só do Brasil e das ditaduras comunistas. Depois da 2ª Guerra Mundial, qualquer país que se preze tem de enfiar pelo menos meia dúzia de democracias na sua constituição.

Vejam só. Todos se inspiraram nos Estados Unidos. Mas, como vimos, os fundadores dos Estados Unidos não queriam nada com a democracia. É parecido com o familiar hambúrguer, que todos pensavam ser proveniente de Hamburgo. Nada disso. Estive lá em 1970 e posso assegurar que ninguém sabia o quer era hambúrguer. Mais tarde descobri que na Grécia o arroz à grega é desconhecido. O mesmo ocorre com o filé à cubana, do qual ninguém ouviu falar em Cuba. E, por incrível que pareça, nenhum restaurante na Noruega serve o bacalhau da Noruega.

Sendo assim, só nos resta concluir que a tão falada democracia foi inventada noutro lugar, com outro propósito.

Mostramos que a maior democracia do mundo, os Estados Unidos, cujo regime político serviu de modelo à maioria das nações independentes e novas repúblicas surgidas nos últimos 200 anos, não menciona uma só vez a palavra democracia na sua Constituição. Mostramos que os fundadores dos Estados Unidos não queriam saber de democracia, porque consideravam que democracia não combina com liberdade.

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Vimos também que, por outro lado, o termo democracia é insistentemente mencionado nas “constituições” das piores ditaduras da História, tais como China comunista, Coréia do Norte, Cuba e Albânia.

E, é claro, a democracia é repetidas vezes invocada na constituição brasileira de 1988. E terminávamos: Sendo assim, só nos resta concluir que a tão falada democracia foi inventada noutro lugar, com outro propósito.

É o que veremos a seguir:

Bem, democracia é palavra grega; e o mais abrangente tratado sobre a organização do Estado e os diversos regimes políticos possíveis é, sem dúvida, a Política de Aristóteles.

Na época de Aristóteles a Grécia já era país antigo, com séculos de história. Embora os gregos se identificassem como uma só nacionalidade, seu país era subdividido em dezenas de cidades-estados independentes que, na sua diversidade, haviam experimentado de tudo em matéria de regimes, constituições, ideologias e sistemas de governo: comunismo, repúblicas, teocracias, ditaduras, monarquias absolutas, monarquias liberais, oligarquias, aristocracias e, é claro, democracias. Pequeno território onde se falava uma só língua, no qual as cidades, interligadas por mar, podiam rapidamente ser visitadas, a Grécia clássica era um laboratório político inigualável, de cuja fervilhante atividade Aristóteles participava. Pode-se afirmar que nunca mais na História existiu algo igual à Grécia, em matéria de experimentos políticos; e nunca mais aconteceu outro Aristóteles.

Essa é a razão pela qual, nesta série de artigos sobre democracia, vamos apegar-nos à definição dada por Aristóteles, mais tarde retocada por Políbio. São autores antigos. Será que seus conceitos ainda têm validade? A história do pensamento político nos 23 séculos seguintes diz que sim, enfaticamente. E, quando passarmos ao exame da fraude que é o conceito moderno, e mais ainda o pós-moderno, de democracia, veremos que a chave para desmontar o sofisma está no seu confronto com a definição ortodoxa de Aristóteles.

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Na Política, Aristóteles evidentemente discute a democracia praticada na Grécia. Considerava-a como regime instável, exposto à degeneração ou à corrupção e, por essas razões, difícil de manter. Uma democracia estável só poderia existir em raros casos, quando aplicada a comunidades com as seguintes características: (1) compostas de indivíduos naturalmente iguais, (2) cujo número permitisse que, quando reunidos em assembléia, a voz de cada um pudesse ser ouvida por todos os demais, (3) que vivessem dispersos (como, por exemplo, pastores, agricultores ou navegadores), (4) que só se reunissem esporadicamente, para tratar dos assuntos de interesse comum, (5) que fossem individualistas, auto-suficientes e aptos para defender-se por si mesmos, (6) cujo governo jamais se intrometesse nas suas vidas privadas, (7) cujos tributos fossem pagos de modo equitativo, e despendidos exclusivamente no interesse comum, (8) regidos por contrato solene, cujas regras ninguém pudesse quebrar ou modificar, ainda que a maioria o quisesse.

Na democracia assim descrita o poder do governo é mínimo. Os cargos políticos são encarados como obrigação ou serviço à comunidade. Governar é abacaxi que ninguém deseja, de modo que todos se afastam da política. Os que aceitam não são remunerados, não enriquecem, nem sequer adquirem poder sobre os demais e, ao término do mandato, só ganham agradecimentos e votos de louvor. Quando ganham.

Longe de considerar a democracia como regime desejável ou virtuoso, Aristóteles a enumerava apenas como mais uma forma de governo, entre outras. Forma peculiar, que só servia em casos excepcionais e, se fosse aplicada fora das suas condições naturais, seria impraticável, ou pior, não seria regime, mas doença política degenerativa.

A democracia degenerativa, ou a degeneração democrática, é coisa que muito nos interessa porque começa a indicar o rumo das nossas investigações. (Lembre-se o leitor: nosso objetivo é revelar o que é, afinal, essa democracia que todos elogiam tanto nos tempos atuais.)

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Examinando a lista de requisitos da democracia estável, o leitor verificará que a primeira é que a comunidade seja constituída de pessoas naturalmente iguais. Que acontece quando se tenta aplicar a democracia a uma sociedade de pessoas naturalmente desiguais? Simples: essa coisa – pois não é democracia, é coisa cujo nome aprenderemos adiante – automaticamente iguala por baixo os desiguais, de modo que os piores elementos, que nesse caso são a maioria, passam a dominá-la.

Eis como Aristóteles descrevia a degeneração democrática:

Há uma forma de república (...) na qual o poder supremo não emana da Lei, mas da multidão, cujas reivindicações passam por cima da Lei. Pois nas repúblicas constitucionais, os melhores cidadãos ocupam os primeiros lugares, e não há espaço para demagogos; mas onde a Lei não é suprema, os demagogos prosperam. Esse tipo de regime é degeneração da república, assim como a tirania é degeneração da monarquia. O espírito de ambas as degenerações é o mesmo. Os decretos da multidão se assemelham aos éditos do tirano; e o demagogo que corteja o povo corresponde ao cortesão que bajula o ditador. (...) Os demagogos, submetendo as decisões políticas às assembléias populares, fazem que as vontades da multidão fiquem acima da Lei. E como o povo é conduzido pelos demagogos, estes se engrandecem. Se alguém não se conforma e recorre à Justiça, os demagogos dizem: “que o povo decida.” E o povo aceita com prazer a incumbência. Desse modo as autoridades constituídas se desmoralizam. Essas democracias, na verdade, não têm Constituição; pois onde a Lei não tem autoridade, não há Constituição. (Aristóteles, Política, livro IV, 4). No próximo artigo verificaremos que a degeneração democrática tem um nome, aplicado por Políbio, um dos sucessores de Aristóteles na linhagem de grandes autores politicos. Trata-se da oclocracia, a ditadura da ralé.

Oclocracia. – s.f. Do grego okhlokratia: governo em que o poder reside nas multidões ou na população; período histórico em que governa a populaça. [Caldas Aulete, Diccionario Portuguez, vol. 2, 1881].

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O objetivo deste artigo é demonstrar que o produto que os políticos nos vendem como democracia não tem nenhuma relação com a democracia definida pelos clássicos, a qual seria impossível, por razões aritméticas, em qualquer país do mundo atual. A coisa que eles denominam democracia não passa de fraude inventada por intelectuais no século 19, junto com o comunismo. Os dois conceitos surgiram juntos, não por coincidência: democracia e comunismo são crias da mesma ninhada, e servem, alternativamente, aos mesmos objetivos de poder. Quando um não cola ou não funciona, impingem o outro. E ambos têm tanto em comum que, como os leitores já devem ter reparado, as oligarquias políticas nas ditas democracias são todas esquerdistas, e vivem a empurrar as suas sociedades para o comunismo; e as oligarquias dos países comunistas, quando sentem que seu regime está naufragando, tratam de ajeitar as coisas para que tudo termine em democracia.

Examinamos a definição ideal de democracia segundo Aristóteles. Vimos que esse regime só pode existir em pequenas sociedades de pessoas individualistas, independentes e naturalmente iguais entre si, que se juntam para formar governo de poderes bastante limitados, que lhes permita realizar certos objetivos comuns, mas não interfira na liberdade de cada um. Se o leitor um dia quiser conhecer a autêntica democracia, não precisa voltar à antiga Grécia. Aqui mesmo, ao redor, existem centenas de pequenas democracias que funcionam exatamente conforme a definição clássica. O mais corriqueiro é o familiar condomínio residencial. Confira: no condomínio, o número de membros é limitado; a administração não interfere na vida dos condôminos, restringindo-se a cuidar dos interesses comuns, coisas triviais, como elevadores, lixeiras, portarias, etc. Os condôminos só se reúnem em assembléia uma ou duas vezes por ano. Nelas, todos deliberam e votam diretamente. As finanças podem ser fiscalizadas por quem quiser. A contribuição mensal é decidida diretamente pelos que terão de pagá-la, ou seja, pelos contribuintes. O síndico não pode gastar além do autorizado. Só os condôminos com mensalidades em dia podem votar nas assembléias. O cargo de síndico, longe de ser cobiçado, geralmente é abacaxi que ninguém deseja, pois só dá trabalho, sem compensação.

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Democracia, caro leitor, é isso aí. Nada mais. Não é desapontador? O ideal dos políticos, a miragem dos intelectuais, o horizonte prometido, é isso? Não é à toa que Aristóteles tratava a democracia assim mesmo, como isso, apenas um dos três regimes políticos possíveis – além da monarquia e da aristocracia – sem outra qualidade transcendente.

É fácil entender porque a democracia não pode ser aplicada em grande escala. Imagine o leitor se os utopistas profissionais se encantassem com o modelo brasileiro de condomínio residencial e quisessem estender ilimitadamente o regime, de modo que todos pudessem usufruir dos benefícios da democracia. Digamos que uma lei decretasse o fim dos condomínios residenciais e criasse condomínios comunitários, que abrangessem cidades inteiras, fundindo num só bloco milhares de edifícios, casas, favelas, cortiços, invasões e loteamentos. Digamos também que, para tornar o sistema ainda mais aberto e igualitário, a nova lei abolisse a regra de um voto por domicílio e estendesse esse direito a todos, sem distinção entre os que pagam e os que não pagam as despesas. Digamos que, generosamente, a lei outorgasse direito automático de residência e voto a qualquer invasor que acampasse em qualquer local do condomínio. E, mais generosamente ainda, decretasse que o condomínio – ou seja, os moradores pagantes – teriam obrigação de alimentar, abrigar, vestir e cuidar dos invasores e dos não pagantes, e de todos os filhos que estes viessem a gerar no futuro.

Será necessário desdobrar essas hipóteses para que o leitor tenha idéia do resto? Obviamente, os requisitos da democracia condominial cairiam por terra, e os condomínios residenciais rapidamente virariam cortiços de crime, sujeira, doença, ignorância e depravação.

Aristóteles falava da corrupção democrática, que era o processo pelo qual, nas repúblicas, o voto majoritário degenera em ditadura da maioria. A ditadura da maioria não é, por si, um mal, quando os cidadãos são naturalmente iguais.

Mas quando são naturalmente desiguais e os melhores são minoria, essa ditadura é a pior forma de opressão porque, motivada pelo ódio e pela inveja, seu único propósito é

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destruir e nivelar tudo por baixo. Não importa, ao povão, que o mesmo processo arruíne a nação e traga miséria e atraso a todos. Para os ressentidos, a miséria anárquica é o mais confortável dos mundos, pois nela não há desigualdade. É o estado que, em Física, corresponde à máxima entropia, ou seja, ao caos absoluto, a partir do qual o progresso e a ordem são impossíveis.

Políbio, historiador grego, dois séculos e meio após Aristóteles, criou o termo oclocracia para designar a democracia degenerada, na qual o poder emana dos piores elementos da sociedade – a tal populaça, ou ralé, da definição. E é claro que a ralé elege, para o executivo e os legislativos, os piores elementos da nação, tanto moral como intelectualmente; os quais, por seu turno, nomeiam seus afins para as altas cortes judiciárias, fechando assim o círculo de poder da oclocracia.

Analisaremos agora as panacéias da representação e da divisão de poderes, com as quais muitos teóricos pensam que a democracia pode funcionar, apesar de tudo.

Os modelos vigentes de democracia, ora inventados por teóricos, ora inspirados na História antiga, são impraticáveis no mundo atual. No entanto, a denominada comunidade internacional – os países ricos, a ONU, a mídia, as entidades globalistas - prosseguem firmes em seu propósito de democratizar o mundo, impondo esse regime a todos os países, pela persuasão ou pela força.

Vamos examinar os dois principais instrumentos da prática democrática, governo representativo e divisão de poderes. Comecemos pelo governo representativo.

Vimos que o familiar condomínio residencial brasileiro é bom modelo de organização democrática, na qual se contêm todos os requisitos da definição clássica de Aristóteles. Insistiremos no modelo, porque dele poderemos extrair princípios e conceitos úteis à nossa análise.

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Nos condomínios, as decisões são tomadas em assembléias nas quais os que votam são os mesmos que pagam as mensalidades. Esse ponto é importantíssimo: só vota quem paga, e quem não paga não vota. Uma das principais causas da Revolução americana foi a inobservância desse princípio por parte da Coroa britânica, a qual pretendia aumentar os impostos sobre a população das colônias sem lhes dar assento no Parlamento em Londres. Daí um dos principais refrões dos revolucionários: No taxation without representation, ou seja: quem não está representado no Parlamento não tem obrigação de pagar impostos. Pense bem, leitor: é o princípio fundamental da cidadania. Pagar impostos consentidos pelo Legislativo é dever de cidadão. Mas ser arbitrariamente extorquido é sujeição de servo.

Os livros de História falam muito sobre quem não vota, não paga. Mas é essencial entender que a recíproca – quem não paga, não vota – também é verdadeira. Se quem não vota não tem obrigação de pagar, quem não paga não tem o direito de votar. É lógico.

Acontece que a democracia brasileira se baseia na violação institucional desse princípio.

Quem paga impostos no Brasil? A questão é complicada porque o nosso sistema tributário é uma colcha de remendos. A maioria dos tributos é indireta, e o grosso da arrecadação provém de tributos indiretíssimos, incidentes sobre o faturamento bruto das empresas. Por isso, a carga tributária se distribui por toda a economia e finalmente recai sobre quase todos os produtos e serviços, como componente final dos seus preços de venda ao consumidor. Esse modo de tributar retrata, logo de cara, a covardia e a índole de parasitas extorsionários dos nossos políticos, todos cevados no negócio da “redistrbuição da renda”, na “justiça social” e noutras vigarices. A alegoria do Leão, usada pela Receita Federal, é falsa. Leão ataca de frente. Leonino seria o fisco que cobrasse impostos diretos de indivíduos com capacidade contributiva. O sistema subreptício utilizado no Brasil mais parece coisa de lombrigas, sanguessugas, de parasitas que drenam a vítima por dentro.

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Vistas as coisas por esse ângulo, todos pagam impostos no Brasil, portanto todos têm direito ao voto. Mas, devido à natureza distorcida do sistema tributário, não é o pagamento que mede a contribuição de cada um ao Estado. Pagar, todos pagam. O que divide a população brasileira é a proporção em que uns trabalham e pagam sem nada receber, e outros – a maioria – não produz e vive a custa do governo, ou seja, a custa da minoria produtiva. Ou seja, o que divide não é a origem da receita, mas a distribuição da despesa.

Esse tema exigiria páginas de estatísticas. Não fugiremos ao assunto: no devido tempo, os leitores terão os números. Por enquanto, porém, limitar-nos-emos a indicar o seguinte: (1) Só cerca de um terço da população brasileira pode ser considerada como produtiva e contribuinte. (2) Essa minoria produtiva, além de ser a força motriz da economia nacional, paga todos os tributos, diretos ou indiretos, mas praticamente não recebe contrapartida do Estado e é obrigada a custear, com os recursos que lhe sobram, suas despesas de saúde, educação, segurança, transporte, previdência e demais serviços básicos. (3) A maioria improdutiva só paga tributos indiretos sobre os bens e serviços que consome; mas esse consumo é subsidiado – quando não inteiramente custeado – pelo Estado, de modo que os beneficiários não podem ser considerados como contribuintes. (4) Além de subsidiada, a maioria improdutiva usa e abusa dos serviços públicos gratuitos – saúde, educação, transporte e previdência. Embora de má qualidade, esses serviços correspondem à expectativa dos usuários, especialmente a educação, que por muitos é encarada apenas como pretexto para fazer jus a bolsas e subsídios. (5) As duas populações são distintas e distinguíveis. (6) Essa separação, que nenhum antropólogo ousaria delinear sem se arriscar a linchamento moral pela máfia acadêmica, cada vez mais se define na prática, atropelando os escrúpulos politicamente corretos dos especialistas.

O processo pelo qual a federação brasileira distribui aos improdutivos o dinheiro arrancado do setor produtivo tem estabelecido, dentro do território nacional, uma outra nação marginal, encabeçada por imensa estrutura política dedicada ao parasitismo e à corrupção. No mapa da votação no segundo turno das últimas eleições presidenciais, os próprios eleitores, sem querer querendo, como diria o Chaves da tevê infantil, se

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encarregaram de desenhar o novo Brasil dividido em duas populações, ou dois povos, como queiram. Não se trata apenas de diferenças regionais ou de opinião política. Trata-se de crescente antagonismo, exacerbado não somente pela contradição de interesses – são, afinal, explorados e exploradores – mas também de ressentimento dos segundos contra os primeiros.

Num país cujo Congresso é majoritariamente composto de representantes dos que não pagam tributos mas votam, a minoria que paga, na prática, não tem representação.

É essa a democracia representativa do Brasil.

Falamos sobre a democracia representativa, mostrando a aberração desse regime no caso brasileiro. Vejamos agora um modelo alternativo.

Atenas foi, desde o século V até 322 AC, uma estável e próspera democracia, tão autêntica que operava mediante a participação dos cidadãos em todos os escalões do governo, sem intermediação de representantes ou deputados. A democracia ateniense é até hoje o modelo universal mais admirado como ideal em matéria de governo.

A democracia ateniense era exercida diretamente pelos cidadãos de Atenas, e somente por eles. Todos os demais – estrangeiros residentes e escravos – eram excluídos. E a exclusão era para valer, porque a coisa mais difícil na Grécia clássica era tornar-se cidadão de qualquer das cidades-Estados nas quais a nação se dividia. Em Atenas, por exemplo, o estrangeiro só obtinha a cidadania mediante aprovação da assembléia popular; e ainda assim, a decisão podia ser contestada judicialmente, caso houvesse suspeita quanto ao mérito da concessão. O naturalizado podia participar da política, mas o exercício de cargos públicos só seria permitido aos seus descendentes, se fossem filhos de mãe ateniense.

Note que na Grécia o conceito de estrangeiro não se referia apenas a gente estranha, vinda de longe. Qualquer oriundo de outra cidade da própria Grécia era estrangeiro nas

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demais. Testemunho desse fato é a célebre oração de Sócrates no Crito, de Platão. Tendo Sócrates sido condenado à morte pelo tribunal popular de Atenas, seus discípulos tramam plano de fuga, mediante o qual poderia asilar-se noutra cidade grega. Sócrates recusa, demonstrando que, embora injustamente condenado, era melhor morrer dignamente como cidadão na sua pátria, do que viver de favor, como estrangeiro, noutro lugar.

Pergunta: era especificamente grego esse arraigado sentimento de apego à comunidade? Não. Os gregos, convém lembrar, eram povo jovem, recém-saído do estágio tribal; e cada cidade-Estado era habitada por clã cujos membros se consideravam descendentes de antepassado comum. O sangue determinava a identidade do grupo; e a sua sobrevivência começava pela defesa e preservação dessa identidade. O apego às tradições, o culto dos antepassados, o arraigado patriotismo – afinal, pátria é termo de origem grega - eram os fundamentos da ordem social. Ora, traços semelhantes podem ser observados em todos os povos no mesmo estágio histórico, desde as doze tribos de Israel aos povos nórdicos da Europa, os indígenas brasileiros, as tribos africanas, etc. Trata-se de característica universal, indelevelmente determinada pelo fato de que a Humanidade viveu a sua longa pré-história – mais de 150 mil anos – nessa condição.Outra pergunta: a exclusão política em Atenas não era incompatível com democracia? Muito ao contrário, a exclusão era essencial à democracia ateniense. Para entender, é preciso relacionar exclusão com identidade e igualdade.

Comentando o conceito de democracia de Aristóteles, vimos que esta só é praticável no caso de comunidade em que todos os membros sejam naturalmente iguais. Ou seja, a igualdade não é estabelecida por lei, nem imposta de cima para baixo: é algo preexistente, a partir de que se institui a democracia. É o que ocorre no exemplo do condomínio residencial brasileiro, nosso modelo de mini-democracia: todos são iguais na condição de proprietários. Da mesma forma, na democracia ateniense todos eram iguais na de cidadãos. Não é o condomínio que faz o proprietário, nem é a democracia que nomeia o cidadão; ao contrário, é o proprietário que estabelece o condomínio, e é o cidadão que institui a democracia.

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Igualdade, em democracias como a de Atenas, não passa de outro nome para identidade, a qual consiste abraçar os interesses do seu grupo, os quais existem em permanente confronto com interesses antagônicos. É preciso que todos se sintam do mesmo lado. E, naturalmente, para que exista um lado, é necessário que exista o outro. Democracias não existem no vácuo: são Estados nacionais. E toda a nação, com seus próprios interesses, só existe em contraposição a outras nações, com seus respectivos e simétricos interesses nacionais. Nesse universo, nações sem identidade condenam-se a desaparecer. Daí a essencial importância da identidade nacional, a qual, nas democracias, se materializa na coletividade de cidadãos, por ela, e somente por ela, unidos no interesse comum. É, portanto, na identidade nacional que reside a igualdade natural com a qual se constróem as democracias.

Esses conceitos nos permitem considerar sob nova luz a questão crucial das democracias: a sua irresistível tendência a degenerar em tiranias populistas. O principal fator de degeneração das democracias é a contínua ameaça da maioria contra a minoria, impossível de evitar, por mais “freios e contrapesos” que as Constituições inventem para impedir a ditadura da maioria. Como se explica, então, a estabilidade da democracia em Atenas?

A democracia ateniense não degenerava porque todos estavam do mesmo lado, ligados pela condição exclusiva de cidadãos. Na Grécia, onde cada cidade-Estado só cuidava de si, ser cidadão implicava acima de tudo ser incondicionalmente patriota, ou seja, estar do lado da sua pátria com relação às dos outros. Nesse contexto, o domínio da maioria nunca chegava a ser opressivo para a minoria porque todos tinham idêntico interesse comum.

Se isso for verdade, duas questões pairam no ar. Primeira: sendo a participação na democracia ateniense exclusiva dos cidadãos, qual a sorte dos estrangeiros e dos escravos nesse regime? Segunda: sendo Atenas tão diferente do Brasil, que utilidade tem para nós o seu modelo de democracia? Não dá para responder neste espaço, mas já podemos adiantar algumas conclusões.

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O leitor atento terá notado que as características da democracia ateniense – espírito de identidade, patriotismo, culto às tradições, reverência pelo passado, supremacia do interesse nacional – são requisitos essenciais de cidadania, bastante familiares aos nossos militares. E são também – não é estranho? – completamente opostos ao projeto dos apátridas e ongueiros que nos governam.

Essa gente, que fala em nome da “democracia”, é visceralmente contrária a tudo isso. Para chegar ao poder, exploram a desunião nacional e o ódio de classes e de raças. Uma vez no governo, empenham-se absurdamente em construir, sempre em nome da sua “democracia”, utopias universais, sem limites ou fronteiras, nas quais só haverá “minorias” sem maioria, a conviver num mundo “multicultural” e sem antagonismos, no qual sequer haverá lados a escolher. É óbvio que há algo errado nessa história.

Quem são, então, os verdadeiros defensores da democracia?

Este é o sétimo artigo sobre democracia. No último, falamos sobre a democracia da antiga Atenas, que funcionou durante três séculos e estabeleceu o modelo clássico desse regime. Verificamos que a democraciaateniense só durou tanto tempo porque tinha características que hoje seriamabominadas pelos políticos e seus currupacos intelectuais.

Em Atenas os estrangeiros e os escravos não tinham direitos políticos nem esperança de vir a adquiri-los, porque a democracia ateniense era exclusiva dos cidadãos, e só era considerado cidadão o descendente de famílias locais de muitas gerações. Mostramos também que esses requisitos, longe de prejudicar a democracia, eram o seu mais importante fator de estabilidade. Em seguida, deixamos duas perguntas no ar: Qual a sorte dos estrangeiros e dos escravos nesse regime? Que utilidade tem para o Brasil esse modelo de democracia?

Não há números confiáveis sobre a população ateniense. As estimativas sugerem que a população

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da Ática no apogeu era de 300 mil habitantes, grosso modo divididos em três terços: cem mil cidadãos, cem mil estrangeiros e cem mil escravos.

Os estrangeiros livres gozavam de plenos direitos civis, em igualdade com os cidadãos atenienses. O fato de não terem direitos políticos os livrava de servir nas assembléias e tribunais, bem assim das obrigações militares. Por isso, podiam dedicar-se ao comércio e à indústria, onde acumulavam fortunas e dominavam o mercado. A democracia era a sua proteção. Sendo o poder dividido e contestado, não havia possibilidade de surgir tirano que lhes confiscasse os bens e a liberdade.

Quanto aos escravos, a primeira noção a descartar é o que dizem os livros didáticos, que a democracia ateniense só existia porque o trabalho era incumbido aos escravos, permitindo que os cidadãos ociosos se dedicassem à política. É o que os marxistas denominam “modo de produção escravista”.

Na verdade nunca houve na Antiguidade nenhum sistema econômico em que o trabalho escravo fosse a principal força produtiva. Ironicamente para os marxistas, o maior exemplo histórico de nação autônoma dependente de trabalho escravo foi a União Soviética, onde em 30 anos – de 1929 a 1959 – cerca de 18 milhões de prisioneiros passaram pelos campos de trabalho do GULAG. Esse total equivale ao dobro dos 9 milhões de escravos fornecidos pela África às plantações coloniais, em 300 anos.

Na Antiguidade os setores mais dependentes de trabalho escravo eram a agricultura latifundiária, as galés (trabalhos forçados como remadores) e a mineração. Mas na Grécia não havia latifúndios e a penosa faina dos remadores nas naves militares era “privilégio” dos cidadãos livres. Só restava a mineração, setor em que a maioria dos escravos era “terceirizada”, e por isso relativamente bem tratada.

A escravidão era considerada como natural e necessária. E a relação entre amo e escravo era mais de simbiose do que de exploração. Em Atenas, além dos domésticos, que eram

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parte da família, havia inúmeros a trabalhar como cambistas, banqueiros, corretores, educadores, artesãos, funcionários públicos, etc., juntando dinheiro para a alforria.

Partindo da convicção então vigente, de que a escravidão era instituição natural, não há razão para supor que os escravos fossem particularmente infelizes sob a democracia ateniense. Tanto que, na longa história da cidade-estado, nunca se revoltaram.

Antes de responder a segunda pergunta – a importância da democracia ateniense para o Brasil – faremos um parêntese para tratar da questão da escravidão, já que esse ainda é tema recorrente nos ressentimentos e e ilusões da política brasileira. Fica para o próximo Inconfidência.

Este é o nono artigo da série sobre democracia. Sendo o Inconfidência publicação mensal, já transcorreram nove meses desde o início. É tempo para uma gestação, mas até agora o paciente leitor não viu a criança nascer. Minha culpa. Em vez de tratar de tópicos, como fazem os outros articulistas – mais competentes, diga-se – pretendi abordar tema intricado, que exigiria talvez um livro, não uma série de artigos tão longa e sem fim a vista. Por isso, proponho aos lei-tores, à maneira das marchas militares, um alto, não para descansar, mas para rever o nosso roteiro. Assim, pelo menos, saberemos aonde pretendemos chegar.

O objetivo da série é demonstrar que a democracia estabelecida no Brasil pela Constituição de 1988 não tem relação com a antiga democracia da Grécia clássica, nem com as instituições republicanas da Roma idem, nem muito menos com a Constituição americana de 1787, o grande paradigma de todas as constituições modernas.

Nos primeiros artigos, mostramos que o termo democracia, além de não ser usado na Constituição dos Estados Unidos, era considerado regime tão ruim quanto a tirania. E também que, sintomaticamente, as piores ditaduras do século 20 não só se intitulavam democracias, como usavam essa palavra dúzias de vezes nas suas pseudo-constituições.

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Em seguida verificamos que a democracia pode existir, e é largamente praticada noutro nível, mais familiar: os condomínios residenciais brasileiros, os quais oferecem exemplo trivial de como é uma democracia de verdade, moldada – sem querer, é claro – na definição clássica de Aristóteles. Vimos também que o mesmo condomínio nos dá a prova de que a democracia só pode ser praticada em pequenas comunidades coesas e homogêneas, e qualquer tentativa de estendê-la a escala municipal, estadual ou federal automaticamente a transformaria na pior das ditaduras.

Nessa altura, concluímos que a tal democracia, na versão da Constituição de 1988, é conceito novo, inventado no século 19 pelos mesmos que inventaram as doutrinas totalitárias que viriam a assolar o mundo no século 20. E prometemos que esse nexo seria examinado mais a fundo ao final da série de artigos.

Em seguida abordamos o caso da democracia ateni-ense, que existiu até 322 AC, mostrando que ela funcionou, mas com princípios opostos aos da democracia que nos impingem no século 21. Se fosse aplicada nos dias de hoje, a democracia ateniense seria considerada elitista, exclusiva, machista, opressiva, chau-vinista, mais um monte de palavrões pós-modernos.

Muito bem: o regime inventado pela constituição brasileira de 1988 não é democracia. O que é, então? Para responder, entramos em novo terreno: o das fórmulas de divisão de poderes. Tal como idealizada desde a Antiguidade, era uma combinação de dois ou três dos regimes clássicos definidos por Aristóteles, a qual garantiria, pelo mútuo equilíbrio de forças, a estabilidade que a democracia jamais poderia proporcionar. Mostramos que o Brasil copiou em 1824, via Constituição dos Estados Unidos, o sistema de três poderes existente na Inglaterra desde séculos; mas, entendendo que essa divisão seria artificial, Dom Pedro I acrescentou o quarto poder, que nos deu setenta anos de estabilidade. Esse foi o tema do último artigo.

Aonde vamos, daqui em diante? Vejamos. Após demonstrar que a divisão de poderes de jure no Brasil é artificial porque não corresponde às forças políticas existentes de facto,

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mostraremos que, além de estar em contradição com a realidade nacional, o regime brasileiro não é nada do que diz: não é Estado de direito, não é federação, não é sequer república. Em seguida, investigaremos donde vêm as ideologias em que se baseia esse regime, inclusive a real origem e o verdadeiro propósito da democracia que nos impõem, mostrando que não passa de estágio preparatório dum programa apátrida de degradação e dissolução da Nação brasileira. Finalmente, tentaremos esboçar o real quadro de forças existente por trás da ilusória fachada constitucional, e mostrar que, em várias ocasiões do nosso passado histórico, houve quem enxergasse esse quadro através da bruma de ilusões, teorias e ideologias. Então, se o paciente leitor aguentar até lá, sugeriremos que essas visões lúcidas sejam reestudadas, porque realmente indicam o rumo a seguir.