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Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa Universidade Federal da Paraíba 15 a 18 de agosto de 2017 ISSN 2236-1855 439 ENSINO VOCACIONAL: UMA PEDAGOGIA ADIANTE DE SEU TEMPO Angela Rabello Maciel de Barros Tamberlini 1 Introdução Investigamos nesta pesquisa o Ensino Vocacional, projeto implementado na rede pública do Estado de São Paulo na década de 1960. O Serviço de Ensino Vocacional foi criado em 1961 a partir de uma brecha na legislação da reforma do ensino industrial de São Paulo, sob a coordenação da Professora Maria Nilde Mascellani, com o intuito de viabilizar uma nova concepção de educação que rompesse com a formação dual em vigor há muitos anos, caracterizada por cindir a formação geral da formação profissional. Visando instaurar a discussão acerca da renovação das escolas de ensino secundário, objetivando a criação de Centros de Treinamento de Professores e de Pesquisa Educacional, em 1961, o Secretário da Educação do Estado de São Paulo, Luciano Vasconcellos de Carvalho, durante o governo Carvalho Pinto, tomou a decisão de recrutar um grupo de especialistas em educação que pudesse executar tal intento. Ainda vigoravam as Leis Orgânicas do Ensino, editadas na Era Vargas, constituindo um entrave para as mudanças necessárias naquele momento e as discussões e tramitação da nossa primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional ainda estavam em curso. Em 03 de fevereiro de 1961, por meio da Lei 6.052, foi no âmbito estadual que foram aprovadas as diretrizes da reforma do Ensino Industrial de São Paulo, e a partir de então, a Comissão de educadores que reunia especialistas do Ensino Industrial e do Ensino Secundário, passou a redigir o Decreto 38.643, publicado em 27 de junho de 1961, que iria regulamentar a mencionada lei e delinear o novo tipo de ensino médio que, posteriormente, passaria a se respaldar na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, promulgada em 20 de dezembro de 1961. Foi criado o Serviço de Ensino Vocacional, SEV, órgão destinado a coordenar as unidades de Ensino Vocacional, os Ginásios Vocacionais, sob a coordenação da Professora Maria Nilde, que já trazia consigo a bagagem adquirida nas classes experimentais do 1 Doutora em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Professora Associado no Departamento Educação, Sociedade e Conhecimento da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense, Campus Niterói. E-mail: [email protected]

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ISSN 2236-1855 439

ENSINO VOCACIONAL: UMA PEDAGOGIA ADIANTE DE SEU TEMPO

Angela Rabello Maciel de Barros Tamberlini1

Introdução

Investigamos nesta pesquisa o Ensino Vocacional, projeto implementado na rede

pública do Estado de São Paulo na década de 1960. O Serviço de Ensino Vocacional foi criado

em 1961 a partir de uma brecha na legislação da reforma do ensino industrial de São Paulo,

sob a coordenação da Professora Maria Nilde Mascellani, com o intuito de viabilizar uma

nova concepção de educação que rompesse com a formação dual em vigor há muitos anos,

caracterizada por cindir a formação geral da formação profissional.

Visando instaurar a discussão acerca da renovação das escolas de ensino secundário,

objetivando a criação de Centros de Treinamento de Professores e de Pesquisa Educacional,

em 1961, o Secretário da Educação do Estado de São Paulo, Luciano Vasconcellos de

Carvalho, durante o governo Carvalho Pinto, tomou a decisão de recrutar um grupo de

especialistas em educação que pudesse executar tal intento. Ainda vigoravam as Leis

Orgânicas do Ensino, editadas na Era Vargas, constituindo um entrave para as mudanças

necessárias naquele momento e as discussões e tramitação da nossa primeira Lei de

Diretrizes e Bases da Educação Nacional ainda estavam em curso.

Em 03 de fevereiro de 1961, por meio da Lei 6.052, foi no âmbito estadual que foram

aprovadas as diretrizes da reforma do Ensino Industrial de São Paulo, e a partir de então, a

Comissão de educadores que reunia especialistas do Ensino Industrial e do Ensino

Secundário, passou a redigir o Decreto 38.643, publicado em 27 de junho de 1961, que iria

regulamentar a mencionada lei e delinear o novo tipo de ensino médio que, posteriormente,

passaria a se respaldar na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, promulgada em 20

de dezembro de 1961.

Foi criado o Serviço de Ensino Vocacional, SEV, órgão destinado a coordenar as

unidades de Ensino Vocacional, os Ginásios Vocacionais, sob a coordenação da Professora

Maria Nilde, que já trazia consigo a bagagem adquirida nas classes experimentais do

1 Doutora em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Professora Associado no Departamento Educação, Sociedade e Conhecimento da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense, Campus Niterói. E-mail: [email protected]

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Instituto Narciso Pieroni do município de Socorro, no Estado de São Paulo, onde trabalhara

com a professora Olga Bechara, também participante de sua equipe no SEV. Este órgão

surgira em situação privilegiada: era diretamente subordinado à Secretaria Estadual de

Educação e não à Coordenadoria de Ensino Normal, como normalmente acontecia.

A partir de 1962 foram criados os primeiros ginásios, hoje correspondentes ao segundo

segmento do ensino fundamental, seguindo-se a instalação de outras escolas, totalizando seis

unidades ginasiais estaduais, uma na capital e cinco no interior do Estado, em 1968 foram

criados o curso noturno e o segundo ciclo, hoje equivalente ao ensino médio. Voltadas para a

formação do homem brasileiro, visando o engajamento e a transformação social,

profundamente enraizadas na comunidade em que se inseriam, ministrando uma educação

libertária que interagia com a coletividade, promovia a cultura local e a participação social,

estas escolas tinham um currículo diferenciado e uma organização distinta que as tornaram

alvo das perseguições do regime vigente. Caracterizadas por se valer dos métodos ativos,

promovendo alterações na organização curricular, na metodologia, na avaliação e mesmo na

arquitetura escolar, o Ensino Vocacional que vigorou até o final de 1969, quando as escolas

foram invadidas pelo exército até a sua extinção pelo Decreto Estadual 52.460, de 05 de

junho de 1970, que extingue o ensino renovado em todas as escolas experimentais estaduais,

foi pouco estudado durante muitos anos.

Alguns trabalhos acadêmicos o criticaram, de forma bastante genérica, por considerar

estas escolas dispendiosas, mais preocupadas com aspectos psicológicos da formação em

detrimento dos aspectos lógicos (RIBEIRO e WARDE, 1980), sem, no entanto, proceder a

uma análise documental de seus fundamentos teóricos e suas práticas pedagógicas. Poucos

trabalhos foram publicados sobre o tema até a década de 1990 e, a partir de então, surgiram

publicações de ex-professores e ex-alunos que haviam participado do projeto, nos trazendo

contribuições importantes no estudo do tema, dentre eles o fundamental trabalho de

Mascellani (2010).

Ao pesquisar o Ensino Vocacional visamos nos aprofundar na análise de sua proposta

curricular e suas práticas, contextualizando-as, buscando compreender a renovação

pedagógica que empreendeu, a formação ministrada aos seus discentes, os seus objetivos

articulados aos seus pressupostos teórico-metodológicos, procurando desvelar e registrar o

seu sentido social e político e a sua relação com a comunidade e o governo da época, no

intuito de buscar contribuições para repensar o ensino público hoje. Para tal, nos valemos de

fontes documentais pertencentes aos acervos do Centro de Documentação e Informação

Científica “Professor Casimiro dos Reis Filho”, Cedic, da Pontifícia Universidade Católica de

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São Paulo e também do Centro de Memória da Educação, CME, da Faculdade de Educação da

Universidade de São Paulo. Valemo-nos ainda das fontes orais, já que muitos dos partícipes

desta experiência, por meio de seus depoimentos, nos permitiram ampliar a compreensão

acerca desta pedagogia renovada, seus fundamentos e sua relação com o sistema político

vigente. No contexto de supressão das liberdades democráticas, período em que vigorou a

experiência, consideramos a relevância da utilização das fontes orais como fontes históricas

complementares, posto que tivemos uma lacuna nas informações acerca das escolas

renovadas durante o regime militar, sobretudo nos chamados “anos de chumbo”, lacuna esta

agravada pelo fato das instituições escolares terem sido invadidas, tendo muitos documentos

queimados e outros destruídos, concomitante às prisões de pais, alunos e professores. Ainda

que saibamos que a entrevista ou o depoimento não se configuram como “a revelação do real”

(ALBERTI, 2010), achamos pertinente a sua utilização como fonte histórico documental que

nos possibilitasse ouvir diferentes vozes e “comparar as múltiplas verdades” (VILANOVA,

1986). A pluralidade das fontes utilizadas contribuiu para o embasamento de uma análise

elaborada na perspectiva da totalidade da história, tal como concebe Vilar (1992), rechaçando

uma visão fragmentada da realidade social e política, que não abarque as múltiplas

dimensões do real.

Situando o Ensino Vocacional: referências históricas e características

O Ensino Vocacional, escolas experimentais definidas como renovadoras ou de Ensino

Renovado, se inspiram nas proposições da École de Sèvres, trazendo as marcas das

formulações francesas, muito influentes no Brasil, embora tenham se apropriado de algumas

destas ideias, adequando-as à realidade brasileira e lhes dando o seu próprio timbre.

Em 1945, Edmée Hatinguais, Inspetora Geral de Educação na França, idealizadora da

reforma educacional francesa no pós-guerra, criou o Centre International d’Études

Pédagogiques, CIEP, objetivando difundir as concepções das classes experimentais francesas,

as classes nouvelles, além de promover o intercâmbio entre educadores de várias partes do

mundo (TAMBERLINI, 2001; STEINDEL, DALLABRIDA, ARAÚJO, 2013). Convidada pelo

governo brasileiro, Hatinguais esteve no Brasil, em 1954, estabelecendo contato com os

educadores brasileiros, dentre os quais o professor Luiz Contier, que foi bolsista em Sèvres e,

ao assumir a direção do Departamento de Educação no Estado de São Paulo, em 1958, lança

as bases para a instalação das classes experimentais secundárias, criadas em 1959. A primeira

classe experimental foi instalada no “Instituto de Educação Narciso Pieroni”, na cidade de

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Socorro, no interior do Estado de São Paulo e teve a participação da professora Maria Nilde

Mascellani e da professora Olga Bechara na implementação desta pedagogia renovada.

A instalação das classes experimentais foi precedida de uma análise estrutural do

ensino secundário no Brasil, efetuada por Contier (1956, apud TAMBERLINI, 2001, p.48),

que destaca os pontos críticos de nossa legislação.

A legislação do ensino secundário já não corresponde às necessidades da vida cultural presente, nem tão pouco atende ao ritmo precipitado das descobertas científicas dos últimos tempos e muito menos acompanha o desenvolvimento econômico e social que se processa no Brasil em compasso verdadeiramente vertiginoso.

Para reformular o ensino secundário, possibilitando-lhe ministrar uma formação

integral que contemplasse as necessidades de nossa vida cultural de então, à articulação com

as descobertas científicas da contemporaneidade e às demandas de nosso desenvolvimento

econômico e social, era preciso reformular a escola e suas metodologias e concepções. A

adoção dos métodos ativos fazia parte da mudança e, inspirada nas acepções francesas,

consistia em adaptar a pedagogia à democratização do ensino. Os métodos ativos abrangiam

o “aprender também fazendo”, os desenhos, os trabalhos manuais, o trabalho em equipe, o

estudo do meio humano e natural, não separando escola e vida. Era central na proposta a

ideia de que a educação secundária deveria ser democratizada e não apenas voltada para os

extratos sociais mais altos. Os programas e métodos deveriam se adaptar à democratização

do ensino, visando formar o aluno para a vida e o trabalho e a integração no mundo em

transformação. Priorizava-se o trabalho em equipe, recorrendo ao estudo dirigido, ao estudo

do meio e à coordenação de disciplinas. O estudo do meio possibilitava que os educandos

adquirissem noções de espaço e de tempo, permitindo que se situassem na sociedade a que

pertenciam. Na literatura, dava-se prioridade aos autores mais próximos dos jovens, para que

a partir da identificação com os seus interesses, fosse possível conduzi-los, paulatinamente, a

uma diversidade literária maior. Apostando em uma formação integral, que desenvolvesse

não só o intelecto do aluno, mas também transmitisse valores e o integrasse socialmente, as

propostas de Sèvres estiveram presentes nas classes experimentais de Socorro e também

deixaram suas marcas no Ensino Vocacional. Formuladas por educadores vinculados à

Resistência Francesa, traduziam uma concepção mais aberta e participativa de educação em

que os estudantes, diferente do que ocorre na escola tradicional, fossem sujeitos do processo

de construção do conhecimento. Muitas são as matrizes teóricas das escolas de ensino

renovado, no Brasil as idéias de Dewey, traduzidas e introduzidas entre nós por Anísio

Teixeira, também deixam marcas, mas no Ensino Vocacional as correntes francesas é que se

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tornaram referência e a Professora Maria Nilde se destacou na implementação das classes

experimentais de Socorro e se tornaria a coordenadora do Ensino Vocacional.

Preocupada com a formação do aluno crítico, atuante, participativo e engajado, a

professora Maria Nilde visava construir um projeto pedagógico voltado à nossa realidade,

que possibilitasse aos jovens brasileiros uma formação que lhes propiciasse a auto-realização

e inserção na sociedade e tinha clareza de que apenas as mudanças metodológicas não seriam

suficientes para a consecução de seu projeto arrojado, que se fundava em bases filosóficas.

É na idéia de currículo integrado e de ensino conceitual que as classes experimentais de Socorro se distinguem das demais experiências de Classes Experimentais. A experiência de Socorro incluiu a definição clara de objetivos, o desenho de um currículo que incorpora as grandes noções de cultura geral, as práticas de reconhecimento da realidade local no seu cotidiano, a seleção de conteúdos com destaque de conceitos, considerados elementos mediadores de todo o currículo, o trabalho em grupo, o estudo dirigido, o estudo do meio, as práticas de avaliação (MASCELLANI, 2010, p.84).

Inspirando-se na experiência de Socorro, que propiciara um aprimoramento cultural e

social ao seu alunado, estruturou-se o Serviço de Ensino Vocacional constituindo um

verdadeiro sistema, com sólida estrutura administrativa, tendo uma coordenadoria, equipe

de assessores pedagógicos e administrativos, equipe de pesquisa com sociólogos e

psicopedagogos, setor de pessoal, de publicações, de relações públicas, de despesas, de cursos

e estágios, de biblioteca, de audiovisual e de documentação: todo o trabalho era articulado e

minuciosamente planejado e os professores trabalhavam em tempo integral.

Valorizando as características econômicas, sociais e culturais da localidade em que as

escolas seriam inseridas, a sua criação era sempre precedida de uma pesquisa de

comunidade, em que se buscava detectar as atividades da economia local, o nível cultural dos

habitantes, suas expectativas em relação à escola e a formação de seus filhos, seu nível de

aspiração e assim por diante. As escolas foram instaladas em locais distintos, com realidades

diversas: em 1962, foram criadas as escolas de São Paulo, no Brooklin, o “Ginásio Vocacional

Oswaldo Aranha”, de Americana, o “Ginásio Vocacional João XXIII” e de Batatais, o “Ginásio

Vocacional Cândido Portinari”. Em 1963, foram criados os ginásios de Rio Claro, “Ginásio

Vocacional Chanceler Raul Fernandes” e de Barretos, “Ginásio Vocacional Embaixador

Macedo Soares” e, finalmente, em 1968, o ginásio de São Caetano, conhecido como Ginásio

Vocacional de Vila Santa Maria (não há muitas informações sobre o efetivo nome desta

escola). Em 1968 ainda foram criados o curso noturno e o segundo ciclo, com projetos

aprimorados. Havia interesse em diversificar a experiência educacional em comunidades

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diferentes, buscando atender às necessidades da localidade e adequar a escola às demandas

de seu público e sua realidade.

Os primeiros vocacionais foram os de: São Paulo, com características de um centro mais cosmopolita; Batatais, uma região agrícola e Americana, industrial. Então, o que foi feito? Uma equipe fez, anteriormente, pesquisa de campo nas três comunidades. A equipe designada fez um curso de treinamento para assumir estas unidades, sobretudo o diretor, o orientador educacional, o orientador pedagógico. O trabalho era centralizado em São Paulo(...).Foi feito um trabalho interessante com toda a equipe, inclusive com os professores, a partir da pesquisa de campo. Estudou-se essa realidade para ver que tipo de escola deveria ser organizada naquele lugar. E então, o que aconteceu? Era importante o conhecimento dos alunos também. Analisamos as suas expectativas, interesses e aspirações para definir objetivos e elaborar a proposta de trabalho da escola, das áreas de estudo e disciplinas (GUARANÁ, 1997, apud TAMBERLINI, 2001, p. 58-59).

Os objetivos eram definidos em função da análise das pesquisas de comunidade

efetuadas e a partir deste momento se elaborava um trabalho pedagógico e um currículo

diferenciado. O Ensino Vocacional concebia a educação como um processo contínuo de

modificação de conceitos e formas de conduta, em um processo dinâmico que partia do ser

humano concreto, situado em um contexto social, que norteava a elaboração do currículo que

envolvia, em sua parte diversificada, áreas técnicas definidas em função das características

mais específicas das diferentes comunidades que abrigavam os ginásios, buscando sempre

articular a formação geral a uma formação mais voltada para o trabalho. O currículo era

norteado por uma filosofia e concebido como um todo do processo educativo e não como um

rol de matérias, uma vez que se acreditava que “(...)o processo educativo, por sua natureza,

apresenta situações globais e integradas”.2 Havia uma integração das disciplinas que tinham

como eixo integrador a área núcleo Estudos Sociais, concebida em uma perspectiva

sociológica, ministrada por dois professores, um de história e um de geografia, que

trabalhavam em conjunto. Este currículo nuclear e interdisciplinar visava desenvolver uma

educação que formasse o jovem no entendimento da realidade socioeconômica, política e

cultural do país e, ao mesmo tempo, o tornasse capaz de intervir nessa realidade. Além dos

objetivos gerais, havia os específicos, vinculados às realidades locais de cada ginásio. O

currículo integrado, além das áreas de língua portuguesa, matemática, estudos sociais

(historia e geografia), ciências e inglês, era constituído pela educação física, educação musical

e artes plásticas, que assumiam o papel de “práticas educativas” na relação com a sociedade

local. Outras áreas denominadas técnicas eram: artes industriais, práticas comerciais,

2 Conforme documento “Particularidades Pedagógicas dos Ginásios Vocacionais do Estado de São Paulo” s. d. , p.2. Acervo do Cedic – PUC – São Paulo.

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agrícolas e educação doméstica. A integração curricular era garantida pelas “unidades

pedagógicas”, ferramentas responsáveis pela definição dos conceitos e da sequência de

apresentação dos conteúdos ensinados (MASCELLANI, 2010).

O Ensino Vocacional entendia o currículo como um instrumento para a ação, traduzida

na concepção de “core curriculum”, uma espécie de “coração do currículo”, definido em seus

Planos Pedagógicos e Administrativos (PPA/GVs, 1968, p.82-83, apud NEVES, 2010).

(...) O “core curriculum” será uma ideia ou um grande conceito que poderá vivificar a seqüência de problemas e dar-lhes a desejada unidade. Esta ideia ou conceito deverá ter implicações universais, mas estará vinculada à realidade próxima em que vivem os educandos, pois, somente assim, cada educando poderá treinar a condição de ser universal. (...) O “core curriculum é um instrumento de direção na interpretação da cultura e nos permite interpretar, também, o processo histórico, trazendo para o presente a contribuição dos fatos passados. As recorrências ao passado não devem ser entendidas como apelo à chamada cultura geral ou clássica”, mas como condição indispensável para a compreensão do processo histórico.

Neves (2010) nos explicita que estas ideias se concretizam em uma estrutura

“concêntrica” do currículo, em que o primeiro círculo equivale à primeira série,

compreendendo o município, o segundo círculo equivalendo à segunda série correspondendo

ao Estado de São Paulo, o terceiro círculo vinculado à terceira série correspondendo ao

Brasil, até chegar ao quarto círculo, voltado para o conhecimento do mundo. Esta estrutura,

segundo Neves (2010, p.129), implicaria uma interligação de todos os espaços.

Uma relação muito particular se estabelecia entre o primeiro círculo e o último: o local representava o ponto de vista a partir do qual o mundo seria conhecido e o mundo, uma vez conhecido, forneceria orientação e aporte instrumental, sobretudo conceitual e técnico, para as ações comunitárias, construtivas, que era a forma de intervenção social dos alunos em seu espaço específico e eram praticadas, sistematicamente, na última etapa do curso ginasial. A partir desta estrutura curricular organizava-se a relação escola-comunidade.

Concebida como escola comunitária, esta relação tinha centralidade na proposta do

Sistema Vocacional. A construção curricular era articulada aos objetivos educacionais

previstos em atividades de planejamento de professores e orientadores, permanentemente

avaliadas e reavaliadas, envolvendo tanto os objetivos gerais do sistema, como os objetivos de

cada ginásio, das áreas de estudo, do ano letivo e das unidades pedagógicas bimestrais.

O currículo integrado concebia a aprendizagem como processo global que

necessariamente abrangia o desenvolvimento intelectual, de atitudes e de habilidades e tinha

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o objetivo de possibilitar a elaboração de novos conhecimentos que permitissem a ampliação

crescente da experiência e a percepção e compreensão da complexidade do mundo.

Visando desenvolver as Unidades Pedagógicas, o Ensino Vocacional se valia de técnicas

pedagógicas, utilizava o trabalho em grupo que possibilitava o desenvolvimento do

pensamento operatório, para a formação de atitudes de cooperação, possibilitando treino de

vida social, de opções e condições de propiciar o surgimento da independência, iniciativa e

responsabilidade. Recorria ainda ao estudo dirigido, individual e em grupo, envolvendo

pesquisas de campo e pesquisas bibliográficas. Não eram utilizados livros didáticos e, sim,

livros de consulta variados, ensinando os alunos a pesquisar.

Uma das principais técnicas utilizadas era o Estudo do Meio, que possibilitava um

contato direto com a realidade social e humana, sobretudo com a comunidade da escola. A

partir desta integração na realidade mais simples, os estudos do meio eram ampliados em

seus objetivos e organização abarcando, gradativamente, realidades mais complexas com o

objetivo de ampliar a compreensão da dimensão e profundidade dos vários aspectos da

realidade. O trabalho em grupo era utilizado não só pelos alunos, mas também pelos

professores, no que se refere ao planejamento, execução e avaliação de suas atividades. Para

viabilizar o trabalho em grupo e estudo dirigido foi preciso proceder a uma nova organização

do espaço, com a introdução de inovações no mobiliário da escola, de um novo modelo de

prédio escolar, com nova concepção arquitetônica.

O Ensino Vocacional ainda compreendia as instituições didático-pedagógicas que

reproduziam vivências próprias do mundo do trabalho nas escolas, também crescendo em

complexidade de acordo com o desenvolvimento dos alunos nas diferentes séries, envolvendo

a administração da cantina do colégio, pelos próprios discentes, articulada às aulas de

Matemática e Práticas Comerciais, a administração de um banco onde os alunos depositavam

as suas pequenas economias, além de outras atividades semelhantes, também trabalhadas de

forma integrada com áreas do conhecimento correlacionadas entre si. O Sistema Vocacional

não dissociava educação e trabalho, ministrando aulas de disciplinas teóricas

articuladamente aos conteúdos das áreas técnicas, também não cindia educação e cultura,

valorizando a cultura local e desenvolvendo vários tipos de atividades culturais abertas à

participação da comunidade, com a qual interagia fortemente. O planejamento pedagógico

escolar ao considerar as demandas e expectativas da comunidade, pretendia ampliar as

oportunidades de acesso aos bens culturais para a população local, com o intuito de favorecer

o seu aprimoramento cultural, tornando-se assim um pólo irradiador de cultura. As escolas

tinham galerias de arte administradas pelos estudantes, onde organizavam mostras de

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trabalhos de alunos e de professores e, por vezes, de artistas renomados, como ocorreu em

Batatais, onde a família de Portinari, residente em Brodósqui, cidade vizinha, contribuiu para

a realização de uma mostra no colégio, ao emprestar algumas obras do artista para esta

exposição. Assim, alunos, pais e moradores da localidade puderam ter acesso à fruição

estética, participando de debates e interpretações da pintura de Portinari. Atividades

culturais, exibição de peças de teatro, com especial destaque para o dramaturgo Jorge

Andrade, que deu aulas de teatro no Ginásio de Barretos, e participação nas festas e eventos

significativos da comunidade tinham sentido relevante no Sistema Vocacional.

Essa participação não era uma obrigação formal, mas correspondia à concepção de educação integral e integrada, implicando em estabelecimento da maior sintonia possível entre a vivência escolar e a vida social em seu sentido amplo. Mas, o sentido de escola comunitária ia além dessa sintonia de vivências. O Ginásio Vocacional se estruturava e atuava como um centro cultural comunitário, de modo a, além de participar das atividades locais, contribuir para o enriquecimento dessas atividades e da própria vida social da comunidade. Assim, o Sistema Vocacional, em todas as unidades escolares, mantinha grupos específicos de atividades que integravam membros de todos os segmentos da comunidade escolar, os pais e membros da comunidade em geral. Em cada ginásio havia: Corais e Grupos Instrumentais, Grupos de Teatro, Galerias de Arte, Grupos de Dança que podiam se estruturar como grupos permanentes ou se organizarem para atividades ou eventos esporádicos. Esses grupos desenvolviam suas atividades no interior da escola e em espaços da comunidade (NEVES, 2010, p.188-189).

Além das festas dos pais, do Festival de Corais e das várias atividades culturais

promovidas pelo Sistema Vocacional, as festas de formatura que encerravam o ano letivo

eram grandes festas coletivas que contavam com a contribuição de todos os envolvidos no

processo: professores, setores da administração, funcionários, pais e os próprios alunos.

Sempre havia a representação de uma peça de teatro vinculada à produção dos alunos e ao

sentido de sua educação no Ensino Vocacional, em eventos marcantes, com repercussão na

comunidade e, por vezes, na imprensa.

A rememoração das aulas de teatro, de artes, das festas e inúmeras atividades coletivas,

deixaram marcas e vínculos ainda hoje presentes nas boas lembranças dos alunos, com

significativos desdobramentos em sua formação pessoal e profissional, como atestam os

depoimentos colhidos no instigante documentário Vocacional: uma aventura humana

(2011), dirigido pelo cineasta Toni Venturi, ex-aluno do Ginásio Vocacional.

Os trabalhos com projetos e as Ações Comunitárias em que os estudantes, envolvidos

com os problemas locais, eram incentivados a se debruçar sobre eles, buscando formas de

solucioná-los, também integravam as práticas pedagógicas deste sistema que, dentre outras

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ideias, se inspirava nas concepções de pessoa e comunidade do filósofo socialista cristão

Emmanuel Mounier. Mascellani (2010, p.104) a entendia “(...) como uma pedagogia social,

crítica e transformadora”, caracterizada por valorizar “(...) as relações de sociabilidade como

suporte da comunicação e a socialização como prática de partilha solidária”.

Nesta acepção, a avaliação também se reveste de outras formas, compreendendo a

auto-avaliação, feita pelo aluno com a ajuda do professor, avaliação pelo grupo, avaliação

pelo professor, priorizando a avaliação qualitativa, processual e emancipatória que visa o

aprimoramento do aluno e não a sua punição. Ao considerar que a ação educativa envolve

uma evolução, a avaliação era global e constante, levando em conta o esforço e o progresso do

aluno em relação a todos os objetivos do sistema de ensino em questão, envolvendo a

elaboração de conceitos, a formação de atitudes, o pensamento crítico e a participação

comunitária. Tratava-se de um processo contínuo, retratando a evolução do aluno durante

todo o curso. Todos os dados eram registrados e analisados pelos educadores e compunham a

ficha de observação do aluno, FOA, que continha todas as observações feitas ao longo dos

quatro anos. Estes dados subsidiavam uma primeira sondagem para a orientação vocacional

do aluno, destacando as suas preferências e desempenho nas várias disciplinas das diferentes

áreas. Não eram utilizadas notas numéricas, apenas o acompanhamento da evolução do

aluno ao longo do curso. Nesse sentido, já se antecipava a ideia de ciclo em educação, em

substituição ao critério excludente de notas e reprovação ou aprovação anual. Rechaçando a

padronização dos currículos, hoje tão em voga, o Sistema Vocacional se baseava na concepção

de que a ação didática deve considerar a diversidade concreta dos alunos, nos aponta Rovai

(2015, p. 129), ao destacar a importância da integração das áreas teóricas às de caráter

prático, propiciando aos alunos a percepção de suas potencialidades e interesses, ao vivenciar

o contato com diversas áreas do conhecimento “ou diferentes expressões da cultura humana”

em processo em “que os conteúdos das disciplinas (...) ganham a dimensão de instrumentos

para a compreensão do meio em que se vive”.

Esta vinculação entre formação intelectual, social, afetiva, ética e política, em interação

com a cultura e a concretude do mundo, também se traduziu nos projetos do curso noturno e

do segundo ciclo, criados em 1968, com uma concepção mais avançada politicamente, porém

em um momento em que o regime militar passa por um recrudescimento, acentuando-se as

perseguições políticas e as restrições à autonomia individual e institucional.

Menos estudados do que as proposições e práticas dos ginásios, os cursos noturno e de

segundo ciclo trazem as marcas e contribuições de outros autores, permitindo entrever em

seu currículo e estruturação as concepções gramscianas, como o trabalho concebido como

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princípio educativo, no segundo ciclo e a atenção dada ao jovem e adulto trabalhador no

projeto do curso noturno. Ambos foram instaurados em março de 1968 junto ao Ginásio

Vocacional do Brooklin, na capital do Estado de São Paulo, com programas fortemente

voltados para o mundo do trabalho, inspirados na mesma concepção e abrangência do curso

ginasial.

O período noturno dos ginásios se destinava aos alunos que trabalhavam e a

comprovação deste fato era pré-requisito para a matrícula. Da mesma forma que ocorrera

com a instalação dos ginásios, a dos cursos noturnos foi precedida de pesquisa de

comunidade, de levantamento de dados sobre a sua possível clientela e sua caracterização,

informações estas levadas em conta na estruturação do currículo. O perfil dos alunos revelava

pertencerem a famílias de baixa renda e serem filhos de pais com baixa escolaridade, tendo

cursado apenas o ensino primário. A pesquisa também avaliava as suas expectativas, valores,

aspirações, acesso às atividades culturais e preocupações, procedendo a um levantamento de

sua situação psicossocial.

Entre os componentes desta situação, salientam-se a escala de valores dominantes como ser honesto, trabalhador, bom marido; a dificuldade de expressão; a resistência à formação de grupos de amigos, a insegurança quanto a emprego aliada à preocupação com a subsistência; o imediatismo; o tipo de expressão gráfica; a ignorância dos direitos; a tendência à submissão; os baixos níveis de aspiração; a noção do valor do estudo; a colaboração com

a família; a preocupação sexual. 3

A análise deste levantamento contribuiu para a elaboração do currículo em que se

priorizou o trabalho em grupo, a educação sexual, a ênfase dada à área de português e o

combate ao conformismo detectado nas entrevistas. Os direitos trabalhistas e sua legislação

também compunham o currículo.

Objetivos foram traçados para fazer com que os discentes se conscientizassem de seu

valor como seres humanos e se entrosassem na comunidade, por meio de uma educação que

visava permitir o prosseguimento nos estudos e a inserção profissional. O currículo abrangia

áreas de cultura geral e práticas educativas correspondentes, visando ampliar conhecimentos

e experiências necessárias à vida social, ao trabalho e a estudos posteriores. Os conteúdos de

Estudos Sociais eram desenvolvidos em conformidade com “a maturidade dos alunos

insistindo-se na visão do Homem brasileiro vivendo o processo de desenvolvimento”. A partir

3 Conforme “Ensino Vocacional rompe barreiras”, 1969, p.64.

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da terceira série ginasial o conteúdo era aprofundado “de modo a permitir a visão do

universal adequada à experiência deste tipo de aluno (do curso noturno).”4

A discussão de temas da atualidade de então, a exibição e discussão de filmes e debates

com elementos da comunidade também eram realizados. A realidade específica do aluno do

curso noturno, que trabalha, era levada em consideração na elaboração do currículo e no

desenvolvimento das atividades escolares.

Os alunos do curso noturno saiam para fazer estudo do meio, estudavam disciplinas separadas, mas nas sínteses elaboravam um pensamento globalizante, plural, não fragmentado. Quando cada um contava as suas experiências de trabalho, tínhamos um terreno maravilhoso para que todas as disciplinas se interligassem e trabalhassem os conhecimentos necessários incluindo os conhecimentos que o trabalhador tem que ter a respeito dos seus direitos e deveres, das leis que regem o seu trabalho. Então, isto eles estudavam também. O que era muito bonito era a estrutura deste curso noturno. Ele estava todo organizado para o aluno que ia receber. Quem era esse aluno? Era aquele que chegava cansado, transpirando e com fome. Havia almoçado e chegava sem jantar. Então, havia banho: as primeiras atividades diziam respeito ao conforto pessoal dele como gente. Se eu ensino que todo mundo é uma pessoa eu preciso tratá-lo como uma pessoa dentro das necessidades que ele está mostrando. As primeiras aulas eram de Educação Física, de tomar banho, de comer no primeiro horário, depois vinham os outros horários. (...) grande contingente da população ficava à margem da experiência (da educação) obstaculizada pela experiência do labor cotidiano. Foi pensando nesta população que se elaborou o plano do curso noturno no qual os alunos pudessem refletir sobre o seu trabalho (...) pensavam a sua própria prática. (PIMENTEL, 1997, apud TAMBERLINI, 2001, p. 90-91).

Esta proposta do curso noturno, voltada para o aluno trabalhador, de baixa renda,

valorizando a sua experiência do trabalho e adequada às suas condições de vida, era

extremamente avançada para a época e ainda hoje não encontra experiência similar em

nossas escolas.

Também em março de 1968 foi criado o segundo ciclo, que hoje equivale ao ensino

médio. Com um projeto bastante avançado para a época, esta etapa de ensino traduz as

concepções que caracterizaram a última fase da experiência do Sistema Vocacional: bastante

vinculado às características de seu tempo, com uma estrutura dinâmica e comprometido com

as lutas por transformação social, o Ensino Vocacional recebe novos docentes em seus

quadros e promove a formação permanente dos que se integram à proposta e não passam

impunes pelas ricas discussões e efervescência cultural, política e social da década de 1960.

Assim surge o projeto do segundo ciclo se propondo a fazer uma revisão do primeiro ciclo.

Concebendo o trabalho em acepção muito mais complexa do que a simples formação técnica,

4 Conforme documento “Esquema preliminar do plano do Ginásio Vocacional Oswaldo Aranha”, s.d. p.6.

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endossamos a tese de Neves (2010, p.124), segundo a qual, “no Vocacional o trabalho era

concebido como princípio educativo” (grifo da autora). Reformulações foram feitas nos

fundamentos filosóficos e na metodologia, com um aprimoramento do trabalho neste ciclo

em que a noção de conteúdo também foi revista, passando-se a reconhecer que “o conteúdo é

intrinsecamente educativo”, pois a formulação de objetivos e critérios para a elaboração do

processo de construção do conhecimento que implica escolhas de conteúdos para as diversas

áreas do saber e valores e atitudes almejadas na formação oferecida “não podem prescindir

desta base (do conteúdo) sob pena de se reduzirem a discursos vazios, destituídos de

significado” (NEVES, 2010, p.308).

Desta forma, o projeto é aprimorado, valendo-se ainda da mesma concepção e

abrangência da proposta inicial. As turmas de segundo ciclo eram organizadas em

subconjuntos profissionalizantes de técnicos de nível médio, tendo sido instalados os cursos

de Eletrotécnica e Eletrônica, Comunicações, Edificações, Serviço Social, Administração de

Empresas e de Base.

O currículo era constituído por uma parte geral e uma específica; a parte geral era

formada por áreas básicas destinadas a todos os alunos: Português, Matemática e Estudos

Sociais; por áreas básicas para alguns subconjuntos específicos: Física, Química e Biologia;

por áreas complementares: Línguas Estrangeiras e Artes, que variavam de acordo com o

planejamento de cada curso. Em todos os subconjuntos a Educação Física constituía

atividade obrigatória, sendo oferecida como parte específica para cada conjunto as disciplinas

relativas`a formação técnica.

O currículo continuava se caracterizando pela integração das áreas e “o tema central

estabelecido para o currículo do ensino médio era o Brasil” (NEVES, 2010, p.305). Problemas

específicos da realidade brasileira, vinculados aos campos de conhecimento e atividades

específicas de cada subconjunto, relacionados à inserção no mundo do trabalho compunham

a estrutura do currículo do segundo ciclo.

O grande diferencial desta proposta foi a introdução da exigência da experiência do

trabalho para efetuar a matrícula e esta exigência deveria implicar que houvesse uma relação

entre este trabalho e o conteúdo encontrado no estudo, portanto o segundo ciclo foi

concebido integrando a formação geral e a formação profissional.

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“Trabalho remunerado é também considerado atividade curricular, enquanto previsto

como obrigatório sob a forma de emprego que todo aluno buscará (se já não o tiver) como

condição para a matrícula.”5

Embora muitos alunos da escola sediada na capital, ao contrário dos estudantes das

escolas do interior, não tivessem a necessidade trabalhar durante o segundo ciclo, esta

exigência era, sobretudo, uma opção política.

Não se tratava de uma questão econômica e sim de uma proposta pedagógica que, concebendo o trabalho como o ato criativo fundamental do ser humano, o instituía como constitutivo do processo educativo. Essa concepção implicava um posicionamento político-ideológico, significava reconhecer e valorizar o trabalhador como agente criador da cultura e da história. Era essa visão que se esperava que o aluno fosse capaz de adquirir, por meio de seus estudos, mas com o concurso da experiência própria, a partir de sua integração no mercado de trabalho (NEVES, 2010, p.309).

Destacamos ainda a importância da área de Estudos Sociais, núcleo integrador do

currículo em ambos os ciclos do Ensino Vocacional, que continua tendo centralidade nesta

etapa e operando a crítica das proposições e projetos dos vários subconjuntos. No segundo

ciclo as Ciências Humanas compunham a área de Estudos Sociais com professores de

Geografia, História, Sociologia, Economia, Psicologia Social e Filosofia possibilitando uma

formação integral na perspectiva da formação humana.

O Ensino Vocacional angariou o respeito de educadores progressistas e passou a ter

maior visibilidade, inclusive na imprensa. Na escola de São Paulo, diversamente do que

ocorria nas escolas do interior, pais de alunos de melhor nível socioeconômico passaram a se

interessar por matricular os seus filhos. É importante registrar que, visando corrigir

distorções, ao perceber que uma clientela de maior poder aquisitivo passou a procurar a

escola, a equipe do Ensino Vocacional procedeu a uma reformulação em seu processo de

seleção. Procurou-se adotar um novo critério que assegurasse a representatividade da curva

socioeconômica da comunidade em que a escola se situava, para não privilegiar a clientela de

elite que lograva obter melhores resultados no processo de seleção tradicional, em

detrimento das camadas de menor renda. O processo de seleção reformulado objetivava que

o ginásio se constituísse “numa amostra representativa da área a que tem servido”

(GUARANÁ, 1969, p.2).6 Assim sendo, as vagas foram oferecidas de acordo com o percentual

obtido na caracterização de comunidade da pesquisa inicial, constatando-se após a realização

5 Cf. Planos Pedagógicos e Administrativos dos Ginásios Vocacionais, p. 361. 6 Os professores que compunham a Equipe do SEV produziam textos, participavam de Simpósios nos quais

apresentavam consistentes trabalhos acadêmicos e tinham presença constante em Revistas Acadêmicas como a Revista Educação Hoje, uma coleção com 12 números publicada pela Editora Brasiliense.

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de novas pesquisas, que após a reestruturação do processo seletivo passou a haver uma quase

identidade com a curva socioeconômica da comunidade. Deste modo procurava-se assegurar

o direito à educação de forma mais equitativa. Não se tratava de promover mudanças

estruturais, mas dentro dos limites de poder de um sistema de ensino, constituía uma

concepção de política pública avançada para a época que, ao combater as assimetrias de

oportunidades, visava ampliar o acesso à educação para os segmentos de menor renda.

Procurava reparar distorções pretendendo criar oportunidades participativas menos

desiguais, tentando construir uma nova articulação entre a universalização de direitos e as

carências de grupos socioeconômicos distintos, sem perder de vista o projeto global que

implementava.

Já em sua última fase, sobretudo após a edição do Ato Institucional nº 5, o AI-5 , no

período mais repressor do regime militar, estas escolas que formavam indivíduos críticos,

bastante conscientizados em relação aos problemas de seu tempo, trabalhando em suas aulas

com muitas questões atuais naquela época, tiveram tensões no âmbito interno, pois alguns

professores mais conservadores das unidades do interior não se adaptaram ao sistema e não

foram recontratados, passando então a delatar os seus colegas e a equipe do SEV como

subversivos. O espaço e projeção adquiridos pelo SEV também provocaram controvérsias ou,

na verdade, ressentimentos em alguns educadores receosos de sua visibilidade. Muitas

críticas foram tecidas ao conceito de inovação educacional e às escolas experimentais por

educadores que disputavam espaço e poder com docentes que pertenciam à equipe do SEV.

Como assinala Chiozzini (2014, p. 50-51):

Algo que merece ser investigado é a relação dos Ginásios com a rede pública de ensino e como isso levou o SEV a ocupar, ainda que de maneira embrionária, um lugar institucional concorrente ao das Faculdades de Educação. O significado mais amplo desse processo pode ser não apenas revelador do fim dos Ginásios, mas também dos interesses políticos por trás das definições de algo como “inovador” ou “experimental” na educação brasileira.

No âmbito externo, as relações com o regime militar que já eram difíceis, após as

denúncias passaram a atrair ainda mais a desconfiança dos governantes. O Ensino

Vocacional passou a ser visado pelos militares e as perseguições se avolumaram: em

27/01/1969, pelo decreto nº 51.319, o Serviço Vocacional passou a ser subordinado à

Coordenadoria do Ensino Básico e Normal e não mais à Secretaria de Educação, perdendo

autonomia e força política. Alvo de denúncias, as professoras Maria Nilde Mascellani e Áurea

Sigrist foram afastadas de seus cargos em 19/06/1969. Em um clima de repressão, prisões

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arbitrárias e supressão de direitos, muitos professores perdem o direito à cátedra tanto nas

universidades, quanto na educação básica.

Em 12/12/1969, houve, simultaneamente, a invasão policial-militar nas seis escolas,

com prisão de pais, professores, funcionários e alunos e apreensão de livros e documentos da

experiência pedagógica.

Em 05/06/1970, o Decreto 52.460, fez com que os Ginásios Vocacionais passassem a

integrar a rede comum de ensino, com a instauração de vários inquéritos policial-militares,

IPMs, que ainda se estenderam por muito tempo e a professora Maria Nilde foi cassada e

aposentada com base no AI-5, interrompendo uma das mais significativas experiências

pedagógicas já implementadas na rede pública no Brasil.

Considerações Finais

Constituindo um sistema complexo de educação, bastante estruturado, propiciando

sólida formação geral, na perspectiva da formação humana, assentada em valores

substantivos, tais como o compromisso com a transformação social e o enraizamento na

comunidade em que a escola estava inserida, se auto-avaliando com freqüência e

acompanhando as transformações constantes que ocorrem na economia, na cultura, nas

tecnologias e no mundo do conhecimento, o Ensino Vocacional traz em si uma forte carga de

atualidade.

Não só cumpriu as expectativas da época, preconizadas nos documentos e análises

efetuadas pelo professor Luiz Contier, atendendo “as necessidades da vida cultural” de então,

acompanhando “o ritmo precipitado das descobertas científicas” do período e o rápido

“desenvolvimento econômico e social” que se processavam rapidamente naquele momento,

como, ao mapear as atividades econômicas das comunidades em que instalavam as escolas,

as suas aspirações e carências nos planos social e cultural, buscando atendê-las, iam além dos

desígnios do referido professor, atuando no sentido de transmitir valores de solidariedade

humana e social. Destacaram-se por enfrentar a dualidade estrutural de nosso sistema

educacional, preponderante sobretudo no ensino médio na história da educação brasileira,

formando os educandos “pelo” trabalho e não “para” o trabalho, em um projeto que se

aproximou do conceito gramsciano de politecnia, propiciando uma formação que permitia

que os discentes tivessem acesso aos fundamentos da produção moderna, sendo capazes de

articular teoria e prática, antecipando as previsões legais da atual Lei de Diretrizes e Bases da

Educação Nacional, a LDB em vigor, que vem sendo desfigurada na atualidade.

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Ao propor uma outra forma de avaliação, processual, contínua, sem a utilização de

notas numéricas, voltada para o acompanhamento permanente e atento do desenvolvimento

dos alunos, o Ensino Vocacional também antecipou a idéia de ciclos, por vezes mal

compreendida ao ser associada à promoção automática, sem o devido acompanhamento do

discente e atendimento de suas necessidades. No que se refere ao ensino noturno, o Sistema

Vocacional efetivamente o adequou às condições do educando, como prevê a nossa

Constituição, previsão esta que na prática jamais foi implementada.

Esta escola que não dissociava escola e vida, com forte inserção na comunidade, se

destacou por valorizar a cultura, ministrar aulas de artes, teatro, música, educação física,

áreas fundamentais que propiciam o contato com as diferentes dimensões da cultura

humana, permitindo que o jovem fizesse as suas escolhas, descobrisse e desenvolvesse os

seus talentos, nesta pedagogia que acolhia e respeitava as diferenças. Criou critérios de

seleção mais justos, que buscavam minorar as assimetrias de oportunidades, antecipando, de

certa forma, as ações afirmativas, em uma espécie de cota socioeconômica.

Destacamos ainda a centralidade da história no Ensino Vocacional, a sua capacidade de

articulação com a dinâmica dos acontecimentos, a sensibilidade e integração com as

manifestações culturais locais, a estruturação do currículo e da prática pedagógica do

segundo ciclo embasados na concepção do trabalho como princípio educativo que, ao se opor

à visão tecnicista do regime militar, destinada a formar as classes populares para a execução

de tarefas mecânicas, ministrou uma formação que permitia “que cada cidadão possa se

tornar governante e que a sociedade o coloque, ainda que abstratamente, nas condições

gerais de poder fazê-lo (...)” (GRAMSCI, 1985, p.126).

Muitos são os legados que herdamos do Ensino Vocacional que, ao valorizar a história,

a formação integral que abrangia a razão, a emoção, a imaginação, a formação profissional, a

cultura e a inserção social nesta proposta de educação igualitária, nos mostrou ser possível

ter uma educação de qualidade na escola pública.

Referências

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Filme

VOCACIONAL: uma aventura humana. Direção: Toni Venturi. Brasil, 2011, 77 minutos.