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ENSINO MÉDIO EM CENA: OS DESAFIOS PARA UMA AÇÃO DOCENTE A
FAVOR DA FORMAÇÃO HUMANA
RESUMO
Pensar na trajetória da educação brasileira, em especial na maneira como se configurou
historicamente o Ensino Médio, e nos desafios que se apresentam à escola e ao
professor no contexto da contemporaneidade nos faz questionar se é possível, hoje, uma
ação docente que favoreça a formação humana. Os trabalhos que compõem este painel
são fruto de estudos que tomaram a escola de Ensino Médio como campo de
investigação e propõem uma reflexão sobre os obstáculos e possibilidades que se
desdobram em cenas do cotidiano neste âmbito da escolaridade, com todas as suas
marcas e especificidades. O primeiro trabalho, elaborado a partir de um estudo que
investigou o desinteresse dos jovens pelo conhecimento escolar, discute como a escola
de Ensino Médio, fundamentada em seu conjunto de crenças e valores, esvazia o
conhecimento de sentido ao fazer sobrepujar em seu currículo o elemento disciplinador
(no sentido de domesticação e controle), contribuindo, assim, para a produção do
desinteresse e impondo enormes desafios à ação docente. O segundo trabalho elaborado
a partir da análise dos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio
(PCNEM) e suas orientações para o ensino de Biologia, questiona sobre quais são as
contribuições que a disciplina de Biologia e o trabalho do professor desta área podem
fornecer para a formação humana no que se refere à construção de princípios de
cidadania. Finalmente, o terceiro artigo traz para discussão alguns resultados de uma
pesquisa que investigou as relações estabelecidas entre as trajetórias sociais dos jovens e
as possíveis escolhas que farão depois de terminar o Ensino Médio, segundo suas
expectativas de futuro, apontando para a forte influência gerada por meio da ação do
professor nesse processo de escolha.
Palavras-Chave: Ensino Médio, Ação Docente, Formação Humana.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
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EXPECTATIVAS DE UM SUJEITO EM FORMAÇÃO: O ADOLESCENTE, A
SOCIEDADE E A ESCOLA
Marinaldo de Almeida Cunha
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)
RESUMO
O ensino médio é uma etapa de ensino crucial da trajetória escolar, ainda mais na vida
dos jovens que estão concluindo esse grau num momento de grandes transformações
que é o período da adolescência, quando esses sujeitos se veem cercados por novidades,
mudanças e cobranças, seja por parte da família, da sociedade ou da escola; ademais,
nesta fase o jovem experimenta o advento da liberdade e do poder de escolha. O
objetivo desse artigo, então, gira em torno da busca sobre significados que esse período
de formação tem na vida de estudantes concluintes e a influência gerada por meio da
ação do professor. Norteado pelo conceito de capital cultural e pelos conceitos de
socialização primária e socialização secundária, este trabalho traz para discussão
alguns resultados de uma pesquisa sobre trajetórias, na qual se investiga as relações
estabelecidas entre a bagagem social de sujeitos e as possíveis escolhas que farão depois
de terminar o ensino médio, segundo suas expectativas de futuro. Sendo assim, são
observadas as influências que cada meio exerce sobre os jovens, desde a casa, a rua, e a
escola em suas diversas manifestações. Do mesmo modo são observadas as influências
que as relações sociais estabelecidas por esses sujeitos trazem consigo, seja no ambiente
familiar, social (amigos, ídolos), ou escolar (gestão escolar, colegas de classe e,
especialmente, professores). O estudo foi composto por uma pesquisa de campo que
teve entre suas etapas, a aplicação de um questionário socioeconômico e cultural, e
entrevistas semiestruturadas, com o intuito de investigar as influências exercidas sobre o
jovem num momento crítico de sua formação (dando atenção aos seguintes pilares:
social, educacional e profissional) – quando ele tem que decidir qual caminho irá seguir
depois que concluir o ensino médio –, pelos diversos meios que o cerca.
Palavras-chave: Ensino médio e formação. Relações sociais. Influência do professor.
APRESENTAÇÃO
Este artigo foi extraído da minha dissertação de mestrado, na qual eu abordo, por
meio de um estudo de trajetórias, a conclusão do ensino médio, tendo em vista a
formação dos sujeitos e suas perspectivas futuras sobre educação e trabalho. O estudo
foi resultado de uma pesquisa inspirada pela minha trajetória dentro do ambiente
escolar, compreendida desde a minha tenra infância, quando acompanhava minha mãe
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professora nas aulas, depois passando pela vida de estudante, e finalmente em minha
vida profissional, inicialmente como professor polivalente em turmas iniciais do ensino
fundamental, e posteriormente como professor de filosofia no ensino fundamental e
ensino médio.
O tema escolhido para produzir a dissertação surgiu da inquietação que eu como
professor senti em relação aos diferentes destinos que tomavam meus colegas no tempo
de escola ao concluírem o ensino médio, e o mesmo, posteriormente, em relação aos
meus alunos ao finalizarem esta etapa de ensino. Portanto, de um resgate de memória.
Essa questão virou um problema científico depois que fiz as leituras iniciais do
mestrado, de trechos, por exemplo, como da obra do sociólogo francês Pierre Bourdieu,
especificamente o que compreendia o conceito de capital cultural. Por essa razão,
então, resolvi pesquisar sobre o porquê de as escolhas dos destinos se distanciarem
umas das outras, mesmo num ambiente onde os perfis dos estudantes são muito
próximos, ou seja, os pequenos fatores, características ou minúcias que de alguma
maneira distingue as perspectivas de um sujeito em meio às perspectivas de seus
semelhantes.
Baseado no problema que a inquietação resultara, lancei a seguinte hipótese para
a pesquisa: mais do que uma simples escolha, as perspectivas de futuro do jovem
baseiam-se, mesmo que não sejam conscientes, no conjunto das condições materiais
desse indivíduo e nas relações sociais que ele mantém dentro e fora da escola. São
determinadas pelo conjunto dessas ações e práticas cotidianas: aspectos do capital
cultural e social, do poder econômico e da socialização primária e secundária. Ou seja,
pela singularidade que cada um se distingue do outro no decorrer de sua trajetória.
Portanto, orientei o trabalho no sentido de verificar esta hipótese, identificando
como essas minúcias apareciam nos perfis dos estudantes analisados e de seus
familiares, e como elas tinham influência direta ou indireta sobre as futuras escolhas que
eles planejavam fazer. Então o objetivo geral do estudo foi identificar como as
características dos estudantes (indícios de capital cultural, relações sociais) distinguiam
as suas trajetórias e orientavam suas expectativas quanto ao futuro educacional e
profissional.
Seguindo esta linha de pensamento, o presente artigo pretende trazer à luz a
relação entre o adolescente, o meio social onde ele vive, e a escola, num momento
crucial para a formação humana, no nosso modelo de sociedade, que é a conclusão da
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educação básica. Portanto, o ensino médio é o grande palco no qual este enredo está
apresentado aqui.
CONSTITUIÇÃO E FORMAÇÃO DO SER: CAPITAL CULTURAL,
SOCIALIZAÇÃO E EDUCAÇÃO
Na etapa de análise do material obtido por meio dos relatos nas entrevistas, foi
necessário dialogar com uma base teórica que contemplasse três dimensões: o estudo de
trajetórias, a transmissão do capital cultural, e o processo de socialização dos
indivíduos. Portanto, trouxe para esse estudo os conceitos de capital cultural e capital
social de Bourdieu, assim como suas abordagens nos estudos de trajetórias. Outra base
teórica, e complementar, que trouxe para dialogar com os dados empíricos foram os
conceitos de socialização primária e socialização secundária de Berger e Luckmann.
Para que falemos sobre constituição do ser e sobre formação, é necessário que
atentemos para os conceitos de capital cultural e social de Bourdieu. Devemos
compreendê-los como conceitos interligados, que juntos trazem uma compreensão
detalhada sobre o status de um indivíduo no estrato social. Ou seja, como podemos
hierarquizar ou localizar os sujeitos de acordo com o volume de capital que possuem, a
exemplo de escolaridade, bens materiais, inserção em grupos sociais.
Falar em capital cultural é lidar com um sistema de valores que são passados de
geração em geração, e pode ser considerado cruel, de certa forma, posto que o indivíduo
não escolhe sua sorte ao nascer, já que sua localização no estrato social está definida
pela posição que sua família ocupa nesse estrato, e isso refletirá em todas as suas
relações posteriores, dentre elas a escola. Como diz Bourdieu a respeito dessa
transmissão hereditária:
A herança cultural, que difere, sob os dois aspectos, segundo as
classes sociais, é a responsável pela diferença inicial das crianças
diante da experiência escolar e, consequentemente, pelas taxas de
êxito. A influência do capital cultural se deixa apreender sob a forma
da relação, muitas vezes constatada, entre o nível cultural global da
família e o êxito escolar da criança. (BOURDIEU, 2007a, p. 42)
Embora sem consciência da herança dos valores carregados pela família, a
criança, o jovem, acaba reproduzindo de forma tácita as ações, os pensamentos, as
escolhas que são características das gerações anteriores, como se seu lugar na sociedade
fosse aquele, sem necessidade, ou possibilidade, de alteração. E esse pensamento não é
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apenas o olhar do indivíduo para si mesmo, ele está em toda a sociedade, como se todos
soubessem onde é o devido lugar de cada um. Desta forma, um determinado indivíduo,
pertencente a uma determina classe possui uma determinada posição social, de acordo
com a posição que ele e sua família ocupam. Essa lógica de pertencimento social é
explicada por Bourdieu em A escolha do destino:
Esse destino é continuamente lembrado pela experiência direta ou
mediata e pela estatística intuitiva das derrotas ou dos êxitos parciais
das crianças do seu meio e também, mais indiretamente, pelas
apreciações do professor, que, ao desempenhar o papel de conselheiro,
leva em conta, consciente ou inconscientemente, a origem social de
seus alunos e corrige, assim, sem sabê-lo e sem desejá-lo, o que
poderia ter de abstrato um prognóstico fundado unicamente na
apreciação dos resultados escolares. (BOURDIEU, 2007a, p. 47)
Por esta razão tive como norte da pesquisa os sonhos e a realidade dos jovens e,
assim, minha maior reflexão girou em torno das questões: será que o jovem, policiado
por sua realidade material, objetiva, alimenta os seus sonhos, mesmo que eles estejam
distantes das condições apresentadas pelo seu estrato social? O que leva um jovem
acreditar ou desacreditar de um sonho de vida? Sabemos que a escola, os professores, e
a família, têm o poder de encaminhar o jovem para tal caminho por ser melhor – ou
possível – para ele diante das condições objetivas. Então, no sentido de responder a
estas questões e, mais precisamente, corrigi-las, equiparando o desejo à realidade da
qual o indivíduo é pertencente, Bourdieu nos orienta com o seguinte pensamento:
Se os membros das classes populares e médias tomam a realidade por
seus desejos, é que, nesse terreno como em outros, as aspirações e as
exigências são definidas, em sua forma e conteúdo, pelas condições
objetivas, que excluem a possibilidade de desejar o impossível. Dizer,
a propósito dos estudos clássicos em um liceu, por exemplo, “isso não
é para nós”, é dizer mais do que “não temos meios para isso”.
Expressão da necessidade interiorizada, essa fórmula está, por assim
dizer, no imperativo-indicativo, pois exprime, ao mesmo tempo, uma
impossibilidade e uma interdição. (BOURDIEU, 2007a, p. 47)
A sensação de pertencimento ou não de um determinado grupo em relação a uma
posição é o que orienta, consciente ou inconscientemente, as decisões e escolhas de
destino desses jovens. E, ainda mais, o que reforça esta sensação de ser ou não ser, ter
ou não ter poder, são as condições objetivas, isto é, a materialidade e o poder de
execução que esse grupo ou indivíduo tem para conseguir a realização de um desejo, de
um sonho.
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A interiorização dessa lógica social pode ser claramente observada na sociedade
por meio da reprodução do estrato social em diversos meios de convivência,
principalmente na escola, onde os jovens repetem naturalmente as divisões, exclusões,
privilégios e injustiças que existem no mundo dos adultos. Desde esta etapa da
socialização, que é a educação, o indivíduo começa a desempenhar seu papel e a
reconhecer o seu lugar dentro da sociedade de classes, reproduzindo nas relações sociais
que mantém dentro e fora da escola os valores que herdou de seu grupo.
A reprodução desse capital é também refletida na escolha que o jovem fará para
si depois que passar a etapa escolar. Nos anos finais da educação básica, quando se
aproxima da conclusão do ensino médio, o estudante encontra o desafio diante de si,
que é olhar adiante, ter a perspectiva da sua vida depois que vencer a escola. Nesta fase
de olhar para o futuro e decidir qual rumo tomar, pode parecer uma coisa nova
conscientemente, mas que já vem sendo planejada e estruturada pelo inconsciente por
meio da interiorização de sua configuração social. O confronto entre sonho e realidade,
entre o desejo e as condições objetivas para alcança-lo se tornam mais evidentes. Assim,
segundo Bourdieu, a aspiração aproxima o desejo para mais perto de sua realidade:
Os psicólogos observam que o nível de aspiração dos indivíduos se
determina, em grande parte, em referência às probabilidades
(intuitivamente estimadas através dos sucessos ou das derrotas
anteriores) de atingir o alvo visado. (BOURDIEU, 2007a, p. 49)
Porém, as aspirações também dependem da postura do estudante e, sobretudo, da
sua família, em relação à escola. Neste sentido, a escola pode ser vista como um meio
de conseguir uma ascensão maior do que a perspectiva oferecida pelo grupo. Neste
caso, a família vê a escola como um local transformador, que possibilita a mudança. E
essa valorização da escola, da educação, pode ser vista como uma diferenciação no
indivíduo em relação à sua sensação de pertencimento a diferentes grupos sociais. Isto
é, por mais que o indivíduo e a família não tenham condições objetivas de alcançar
outro nível na escala social, a escola pode ser o meio que possibilitará este movimento.
No entanto, esses estudantes que anseiam por uma reviravolta, devem mostrar
desempenho excepcional na escola para que sejam acreditados pela família e pela
escola, para que então estes possam dar o impulso necessário para a escalada.
É notável o quanto as relações sociais mantidas pelos estudantes, dentro ou fora
da escola, durante a escolarização até o ensino médio, norteia o caminho que estes
jovens irão trilhar depois de vencida esta etapa. Um conceito que consegue explicar
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melhor essa relação de interesse por determinados grupos sociais ou conhecimentos
específicos durante a fase na qual o jovem concluinte do ensino médio se encontra, e
que possivelmente norteia-lhe as escolhas, é o que Berger e Luckman (2008) chamam
de Socialização Secundária, que, resumidamente
é a aquisição do conhecimento de funções específicas, funções direta
ou indiretamente com raízes na divisão do trabalho. [...]
A socialização secundária exige a aquisição de vocabulários
específicos de funções, o que significa em primeiro lugar a
interiorização de campos semânticos que estruturam interpretações e
condutas de rotina em uma área institucional. Ao mesmo tempo, são
também adquiridas “compreensões tácitas”, avaliações e colaborações
afetivas desses campos semânticos. Os “submundos” interiorizados na
socialização secundária são geralmente realidades parciais, em
contraste com o “mundo básico” adquirido na socialização primária.
Contudo, eles também são realidades mais ou menos coerentes,
caracterizadas por componentes normativos e afetivos assim como
cognoscitivos. (BERGER e LUCKMAN, 2008, p. 185)
Ou seja, de acordo com este conceito, passei a observar o ensino médio como
uma etapa de preparação para o mercado de trabalho, onde os jovens já começam a se
inclinar para uma determinada área de seu interesse, direta ou indiretamente, pois alguns
não sabem ainda que escolha fazer. No entanto, eles já direcionam seu foco em
determinado campo do conhecimento ou do mercado ao qual sua futura escolha estará
ligada. A partir de comportamentos, relações, linguagens, o jovem busca por um
conhecimento específico ou aperfeiçoamento em áreas de seu interesse.
O QUE A REALIDADE MOSTROU
De posse desse referencial parti para a pesquisa em campo que se constituiu de
três etapas: a primeira foi definir o público alvo, que foram duas turmas de terceiro ano
do ensino médio de duas escolas estaduais; a etapa seguinte foi a aplicação de um
questionário socioeconômico e cultural; e, por último, a realização de entrevistas
semiestruturadas.
Definidas as etapas e a metodologia da pesquisa, e de posse dos instrumentos,
realizei o estudo buscando os seguintes objetivos: Identificar as pequenas diferenças
entre os estudantes de acordo com os indícios de capital cultural apresentados por cada
um deles no questionário; verificar no relato dos estudantes as relações sociais mais
importantes para cada um deles; verificar as expectativas de cada estudante entrevistado
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com relação ao seu futuro; identificar como os indícios de capital cultural se expressam
na expectativa do jovem e na possível escolha de uma carreira; identificar as distâncias
e as proximidades entre os jovens, observando as perspectivas de futuro deles e os
indícios de capital cultural apresentados por cada um; verificar como as relações sociais
e os indícios de capital cultural interferem e fazem parte das perspectivas de futuro dos
jovens entrevistados.
A pesquisa contou com a participação de 40 jovens estudantes concluintes do
ensino médio em duas escolas públicas estaduais da cidade de Campina Grande, na
Paraíba. Sendo que na etapa do questionário participaram todos os 40 alunos. A partir
das respostas dadas ao questionário pelos jovens, fiz uma caracterização e classificação
deles de acordo com os indícios de capital cultural, das relações sociais, e poder
econômico indicado.
Para participar da segunda etapa da pesquisa empírica, ou seja, das entrevistas,
foram então selecionados oito jovens que apresentavam características particulares,
sendo elas: dois jovens com indício de baixo volume de capital cultural, baixo poder
econômico e que tinham expectativa de permanecer nas mesmas condições social e
financeira da família; dois jovens com indício de baixo volume de capital cultural, baixo
poder econômico e com expectativa de mudança de condição social e financeira; dois
jovens com indício de um bom volume de capital cultural, poder econômico razoável e
expectativa de manutenção das condições financeiras e sociais da família; e dois jovens
com indícios de um bom volume de capital cultural, baixo poder econômico e que
apresentavam expectativa de mudança de posição na condição social e econômica.
Os primeiros resultados mostrados pelo trabalho deram conta das características
gerais das duas turmas objetos da pesquisa, e dos perfis de cada aluno. Foi possível
notar diferenças significativas entre as turmas, embora não se distanciassem tanto
quanto ao perfil do alunado. Identificadas como escola A e escola B, a primeira
continha alunos mais novos (média de 17 anos), enquanto que a segunda apresentou
alunos mais velhos (média de 19 anos). A escolarização dos pais foi maior na escola A,
assim como também a renda familiar mensal também era maior nesta escola. Na escola
B, a maioria dos alunos disse que pretendia dar continuidade nos estudos após o término
do ensino médio, e poucos tinham expectativas quanto ao trabalho. Na escola A, uma
parte dos alunos demonstrou que havia interesse em conciliar o ensino superior com
algum trabalho, ou seja, existia o pensamento tanto na faculdade quanto no mercado de
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trabalho, enquanto que na escola B não foi apresentada uma boa expectativa quanto à
possibilidade de conseguir um emprego.
Os resultados obtidos nesse estudo foi o esperado de acordo com aquilo que foi
apresentado inicialmente na hipótese. Mas além de mostrar que as expectativas que os
jovens apresentaram sobre suas vidas futuras eram determinadas pela combinação da
identidade que o meio lhes emprestava mais as relações sociais que eles mantinham, o
trabalho permitiu identificar como isso era construído ao longo da trajetória de cada um.
Isso foi mais bem explorado na segunda etapa da pesquisa, quando um grupo menor de
alunos foi entrevistado.
As entrevistas trouxeram mais precisão aos dados apresentados depois da análise
dos questionários e organização das informações. Por meio delas pude alcançar as
minúcias dos sujeitos e só então ficou claro o que aproximava e o que distanciava e
distinguia os perfis dos alunos. Detalhes como ter um parente com ensino superior, ou
ter estagiado numa determinada área, ou mesmo ter vivido uma determinada situação na
família, fizeram com que alguns jovens definissem um objetivo de vida e até
desenvolvessem uma estratégia para alcançar este objetivo, quer fosse o ensino superior,
uma carreira no mercado de trabalho, ou uma experiência no exterior.
Embora salte aos olhos que a maior força condutora, no que diz respeito às
futuras escolhas, é a família, a escola (ou ausência dela) desempenha um papel de
grande importância durante toda a trajetória dos sujeitos. Pôde-se constatar sua
influência ou interferência nas histórias dos alunos, uma vez que todos os jovens
entrevistados, sem exceção, citaram em suas falas que a escola – seja na forma
impessoal ou por meio da figura de algum indivíduo específico, como professor ou
gestor escolar – tinha fundamental participação na construção de sua identidade,
especialmente na escolha de sua profissão, uma vez que ela servia de orientação para
uma escolha acertada.
No entanto, em alguns casos, a ausência de incentivos da escola, ou até mesmo a
proibição de algumas manifestações, inquietava ou anulava a possibilidade de
crescimento e desenvolvimento de características fundamentais em determinados
jovens, a exemplo de um grupo de dança, que era impedido de ensaiar e de se apresentar
na escola A.
Seja sob quaisquer aspectos, os jovens que finalizam o ensino médio sofrem
pressão de todos os meios aos quais pertencem: da família, da sociedade, da escola e de
si mesmos. Essa complexidade de informações acaba tornando a identificação dos
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fatores de maior significado para eles, no momento de escolha, uma tarefa difícil tanto
para eles como para nós pesquisadores.
Mesmo assim foi possível trazer à luz que, embora um grupo de estudantes
esteja muito próximo no que diz respeito à forma de pensamento, de visão de mundo e
de configuração social, existem pequenas características individuais, as quais são
marcas deixadas ao longo de sua trajetória (familiar e escolar), que os fazem distinguir-
se uns dos outros nas diferentes tomadas de decisões, especialmente ao que se refere às
futuras escolhas no campo profissional e educacional.
Notamos que algumas dessas diferenças no comportamento entre os jovens,
incluindo a perspectiva de futuro, são adquiridas como consequência da relação com o
professor, como veremos no tópico a seguir.
A ESCOLA E SUAS MANIFESTAÇÕES: DA INFLUÊNCIA DO TRABALHO
DOCENTE
Uma questão importante que a pesquisa verificou, e que é de grande relevância
para este artigo, é o fato de que as ações do professor em sala de aula ou fora dela,
influenciam direta ou indiretamente os alunos no que diz respeito às escolhas que eles
fazem ao final do ensino médio.
Esse importante detalhe observado ao longo da pesquisa, comunga com os
resultados de Alves, que revelam que a relação com o professor, seja ela boa ou ruim,
influencia na vida escolar dos alunos e no seu aprendizado, e que eles
Percebem essa influência no dia a dia do relacionamento com o
professor na sala de aula, quando este demonstra ou não interesse por
eles, como nas práticas avaliativas, nos métodos utilizados e até
mesmo na interação com o grupo na aula. (ALVES, 2011, p. 9)
Essa influência exercida pelo professor sobre seus alunos por meio de seus
comportamentos e suas práticas, também foi confirmada nesta pesquisa. Os dados
coletados mostraram que à medida que o aluno tinha mais proximidade com o
professor, seja por meio de amizade, de conversas sobre futuro, ou de incentivo nas
atividades escolares e extraescolares, ele apresentava uma maior expectativa de si, no
que diz respeito ao prolongamento nos estudos e às perspectivas profissionais ou
educacionais. O inverso acontecia nos casos dos alunos que relataram não ter muita
proximidade com os professores, posto que eles se sentiam desestimulados quanto a dar
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continuidade nos estudos, como no relato de uma das alunas, que demonstra uma
relação de reciprocidade nos comportamentos em resposta um ao outro:
Só não estou muito feliz com o ensino este ano. Os professores que
estão um pouco desestimulados, aí a gente vai ficando um pouco. (...)
Os professores que estão desestimulados devido aos alunos que estão
também. A gente chega na sala de aula e não quer muito assistir aula,
né. (M. 17 anos, aluna do 3º ano do ensino médio)
No caso de M. é relatado uma situação onde tanto os alunos quanto os
professores apresentam situação de falta de estímulo para as atividades, posto que
encontram motivação no outro. Além desse péssimo ambiente revelado por M., a escola
não oferece boas condições estruturais – como salas empoeiradas, barulho de reforma
no entorno, etc. –, e os professores levam questões desse tipo para as aulas como
justificativa para um mau trabalho, tornando as aulas menos proveitosas.
Em outro caso, o de J., identificamos uma situação inversa ao caso anterior. Este
aluno relatou que por meio de uma professora, conseguiu estágio num programa de
aprendizado e ainda uma condição de melhorar a renda familiar e pensar num futuro
melhor, profissional e educacionalmente, com a continuidade nos estudos:
Eu soube do estágio por meio de uma professora minha, da outra
escola que eu estudava. (...) Aí eu fiz uma prova de seleção. Foram 47
pessoas para 7 vagas. Aí fui aprovado e passei dois anos lá, como
menor aprendiz. (J. 18 anos, aluno do 3º ano do ensino médio)
Além disso, por meio da fala de J., notamos que a escola é um local acolhedor e
transformador:
Desde que cheguei aqui eu gosto da escola, porque é um local que a
gente é sempre bem acolhido, todo mundo é unido. Os professores,
também. A relação da gente não é só de professor e aluno, também
tem amizade. Os professores incentivam muito a gente. (...)
estimulando a gente na área que a gente quer seguir. (J. 18 anos,
aluno do 3º ano do ensino médio)
O relato de J. nos mostra que dependendo da relação que o professor tem com os
seus alunos, as perspectivas desses podem ser totalmente diferentes, tanto em relação ao
mundo, à escola, e quanto a si mesmos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Depende da presença da escola algumas questões fundamentais como a
formalização e institucionalização da “vontade” por meio de cursos de formação, além
da orientação que a escola oferece e, informalmente, da possibilidade de constituição de
grupos de afinidade, nos seus grupos de pares. Por outro lado, independentemente da
estrutura escolar e das atividades oferecidas por ela, observou-se que existe um esforço
individual no sentido de criar para si mesmo uma identidade e uma oportunidade de se
fazer parte do universo da carreira almejada, incorporando linguagens, comportamentos
ou quaisquer aspectos que os façam sentir-se parte daquilo.
Nos casos de alguns, essa incorporação acontece naturalmente pelo fato de a
família já estar inserida na realidade do objeto ou destino escolhido; outros, mesmo um
pouco distantes, por diferentes razões, conseguem reunir ferramentas que permitem
aproximar-se do objeto; já alguns têm mais dificuldade, pelas próprias condições
objetivas, ou seja, é improvável que “ele chegue lá”. Mas constatações como essas não
nos cabem neste momento, pois vão além do objetivo deste trabalho.
Podemos também dizer ou reafirmar, que as relações que os jovens mantêm,
cada um em sua particularidade, demonstram uma forma de expressão, de vontade de
poder que o jovem tem de tomar as rédeas do seu próprio rumo, mesmo que esse seja
seguindo os passos da sua própria família. Os grupos sociais, diferentes da família, nos
quais os jovens se inserem, servem de um apoio para a afirmação de suas ideias,
confronto e alinhamento com a ideia do outro e onde encontram o equilíbrio consigo
mesmos e com os meios sociais. A socialização primária que a família oferece sempre
estará como base imutável, como o alicerce de uma edificação que o jovem anseia
erguer com seu diferencial, e essa diferenciação, ou forma de construção da identidade,
ele encontra na socialização secundária. Ou seja, nos grupos e relações sociais mantidas
no ambiente familiar ou fora dele, na escola ou fora dela, por meio da incorporação de
capital cultural.
No entanto, seja em quaisquer perspectivas que observemos a escola e o aluno, é
indispensável que atentemos especialmente para o professor e para as práticas dentro e
fora da sala de aula, para que possamos dar um diagnóstico mais preciso no que diz
respeito às expectativas dos jovens para seu futuro educacional ou profissional, posto
que boa parte dos resultados buscados ou alcançados pelos alunos depende da maneira
que o professor se apresenta para seu dever na escola, da forma que ele aborda os alunos
e de como mantém essa relação de ensino-aprendizagem.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BERGER, Peter L.; LUCKMANN, Thomas. A Construção Social da Realidade. 29ª Ed.
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CATANI, Afrânio. 9ª Ed. Petrópolis: Vozes, 2007a.
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AÇÃO DOCENTE E FORMAÇÃO HUMANA NO CONTEXTO DO
ENSINO MÉDIO: ALGUNS DESAFIOS
Roseli Regis dos Reis
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)
Resumo
Esta comunicação apresenta parte das reflexões empreendidas em pesquisa de
Doutorado defendida no ano de 2014 que tratou do desinteresse do jovem aluno do
Ensino Médio pelo conhecimento escolar. Tomando uma escola privada do município
de Santos (SP) como campo empírico, na pesquisa foram entrevistados oito jovens,
sendo quatro deles apontados pelos professores como interessados e quatro como
desinteressados. A investigação, amparada pela sociologia de Pierre Bourdieu,
confirmou a hipótese de que tal desinteresse é fundamentalmente forjado na rede de
interdependências composta pela família, pela escola e por outras experiências
educativas, onde se engendram e se reforçam as disposições que, em conformidade com
o próprio campo, são acionadas pelo agente e definem sua relação com o conhecimento.
Integram esta comunicação apenas alguns dados e análises referentes à ação da escola
nessa rede de interdependências, com o intuito de possibilitar uma discussão acerca das
marcas que pesam sobre ela e que ela faz pesar sobre alunos e professores ao longo de
suas trajetórias escolares. Explorando como eixo de análise as várias facetas do termo
disciplina (por expressarem com grande propriedade as tensões que se operam
historicamente no campo escolar), e tendo como pano de fundo a possibilidade de
existência de uma escola que se volte efetivamente para a formação humana, este
trabalho busca, a partir dos dados coligidos na pesquisa-referência, explicitar alguns dos
desafios que se apresentam à ação docente no contexto da contemporaneidade. Observa-
se que o modus operandi da escola de Ensino Médio, fundamentado em seu conjunto de
crenças e valores, esvazia o conhecimento de sentido ao fazer sobrepujar em seu
currículo o elemento disciplinador, no sentido de domesticação e controle.
Palavras – chave: Ensino Médio; currículo; ação docente
Introdução
A sala de aula da escola de Ensino Médio é, sem dúvida, um ambiente que
apresenta muitos desafios para professores e alunos. Nesse espaço de relações sociais
muitas forças operam e nem sempre resultam na produção do conhecimento, na
emancipação do aluno ou na realização do docente que ali está.
Em cena, o professor se depara com ao menos duas situações que colocam à
prova, cotidianamente, todo o conhecimento trazido de sua formação inicial e de sua
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experiência em sala de aula: lidar com um currículo oficial inchado e engessado, no
contexto de uma escola domesticadora, e enfrentar o desinteresse do jovem aluno.
Sob as lentes teóricas da sociologia de Pierre Bourdieu, um estudo, cujos
achados respaldam esta comunicação, confirmou a hipótese de que o desinteresse do
jovem pelo conhecimento escolar é fundamentalmente forjado na rede de
interdependências composta pela família, pela escola e por outras experiências
educativas, onde se engendram e se reforçam as disposições (esquemas de percepção,
apreciação e ação) que, em conformidade com o próprio campo (local empírico da
socialização), são acionadas pelo agente/aluno e definem sua relação com o
conhecimento.
Interessa a esta comunicação destacar o papel da escola nessa rede de
interdependências, identificando o conjunto de crenças e valores que fundamentam a
sua ação na produção e no reforçamento das disposições acionadas por professores e
alunos na relação que estabelecem com o conhecimento escolar, no contexto do Ensino
Médio.
O texto, então, se organiza em três seções. Na primeira a intenção é recuperar a
gênese da instituição escolar e apreender o caráter domesticador com o qual ela vem
cumprindo, historicamente, sua função social. Em seguida os dados da realidade
trazidos da pesquisa-referência emergem em Cenas, buscando-se explicitar como a
questão disciplinar, no sentido de domesticação e controle, perpassa o trabalho com o
conhecimento (especialmente no Ensino Médio) redundando num currículo inchado e
engessado e gerando insatisfações e deformações. Na terceira e última parte do texto, a
intenção é dirigir um olhar mais atento ao desinteresse manifesto por alunos,
identificando a presença de valores contemporâneos enraizados numa nova moral que
atravessa os muros da escola e amplia os desafios para uma ação docente favorável à
formação humana. As várias facetas do termo disciplina são tomadas como eixo de
análise por expressarem com grande propriedade as tensões que se operam
historicamente no campo escolar.
1. Algumas marcas que pesam sobre a escola: do passado ao presente
No exercício de apreensão das marcas que pesam sobre a escola é
imprescindível que se faça um retorno à sua gênese, numa análise sócio-histórica que
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permita considerar que o modelo de escola que se tem hoje é um possível dentre muitos
outros possíveis.
De partida, importa destacar que a invenção do regime escolar é datada, e que
obedeceu a um conjunto de demandas específicas de um projeto histórico chamado
modernidade. Ou seja, a estratégia de separar as crianças da sociedade dos adultos e,
num espaço confinado, formatá-las de acordo com os magnos ideais de igualdade,
fraternidade e democracia, educando o cidadão, é específica da era moderna. Iniciativas
anteriores de espaços voltados ao ensino-aprendizagem existiram, é claro, mas não
equivalem ao que hoje denominamos escola.
Pode-se dizer que os brotos mais precoces da necessidade de formar cidadãos de
bem, sensatos pais ou mães de família e, até, corajosos soldados que se sacrificariam
pela pátria, já no espírito do ideário moderno, surgiram em meados do século XVII e,
não à toa, foi por essa ocasião que emergiram as primeiras escolas de aprendizagem nos
países europeus. Fruto do avanço do método científico e da estreita relação desse
movimento com a Reforma Protestante, fertilizando o solo para que pudesse germinar o
“espírito do capitalismo”, os sistemas nacionais de educação foram instituídos como
ferramenta preciosa para consumar os objetivos de lavrar a alma dos fiéis e temperar o
caráter dos cidadãos (SIBÍLIA, 2012, p. 31 - 32).
Quase dois séculos após o pronunciamento de João Amós Comenius
(considerado o pai da educação moderna) que em sua Didática Magna, em meados do
século XVII, imputou à família a missão de educar no âmbito particular e à escola a
mesma função em âmbito coletivo, mais amplo e público (“mas sempre encerrado entre
quatro paredes”), Immanuel Kant (autor da obra que constituiu um dos pilares da
modernidade) sedimentou, no início do século XIX, as bases do que seria o objetivo
prioritário da educação: “dominar a barbárie” (SIBÍLIA, 2012, p. 18, 32).
Assim se configurou, pois, a função básica da instituição escolar em seus
primórdios: em primeiro lugar humanizar, disciplinar e modernizar o animal da nossa
espécie, iniciando a evolução capaz de convertê-lo num bom cidadão; em segundo
lugar, desenvolver nele determinadas habilidades, como ler e escrever, ou aprender
outras destrezas mais específicas. Em suma, primeiro civilizar e depois instruir
(SIBÍLIA, 2012, p. 18).
Todo o conjunto de práticas que se sedimentam na escola nos séculos que se
seguem, desde os ritos de provas e exames até a disciplina que se instala visceralmente
no âmago dos procedimentos educativos, vai se render à vigilância hierárquica e à
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sanção normalizadora como formas precípuas de exercer poder sobre os corpos. A ideia
de disciplina no contexto escolar vem atrelada historicamente, portanto, ao intento de
domesticação, controle e subjugação.
Esta disciplina, tão cara ao modelo moderno, encontra, também, uma forma de
se exprimir no campo do saber quando os conteúdos de ensino que compõem o
currículo escolar assumem a forma de disciplinas escolares.
Segundo Chervel (1990), o termo disciplina, até o fim do século XIX utilizado
tão somente para designar a “vigilância dos estabelecimentos, a repressão das condutas
prejudiciais à boa ordem e aquela parte da educação dos alunos que contribui para isso”
(p. 178), aparece com o novo sentido, nos primeiros decênios do século XX. Isso se dá,
segundo o autor, pela necessidade de preencher uma lacuna lexicológica, e, sobretudo,
para expressar uma larga corrente de pensamento pedagógico que começara a se
manifestar em meados do século anterior em estreita relação com as novas finalidades
pretendidas para o ensino que giravam em torno da ideia de disciplinar a inteligência. O
termo, então, propaga-se primeiro como um sinônimo de ginástica intelectual, depois
como uma alternativa ao intento de inculcar, e por fim como um exercício intelectual,
entendido como o desenvolvimento do julgamento, da razão, da faculdade de
combinação e invenção. Logo após a Primeira Guerra, no entanto, o termo disciplina
torna-se uma rubrica que classifica as matérias de ensino, fora de qualquer referência às
exigências da formação do espírito (CHERVEL, 1990, p. 179 - 180).
O caráter de desnaturalização com o qual este linguista francês convida a encarar
as disciplinas escolares permite reconhecê-las como sinais das tensões que se operam
entre escola e sociedade e que se veem refletidas em suas mudanças e permanências no
currículo escolar.
No caso do Ensino Médio brasileiro, foco deste trabalho, é possível perceber por
meio de um olhar mais detido sobre o currículo escolar, tanto o jogo de forças que se
opõem e se traduzem na escolha dos conteúdos de ensino que o compõem – tributário
em grande medida da forma como é regulada, no país, a passagem de um nível de
ensino para outro –, como também a prevalência nele do sentido forte do termo
disciplina (domesticação e controle) operando contra uma educação transformadora da
condição do aluno.
No Brasil, o Ensino Superior tem efeito estruturante sobre o Ensino Médio,
principalmente nos segmentos que conduzem às formações universitárias prestigiosas.
Isso se deve à importância historicamente atribuída ao diploma universitário nas
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estratégias reprodutivas das camadas médias e superiores, o que transforma o vestibular
em um importante organizador da escolarização oferecida pelas escolas secundárias
(ALMEIDA, 2009, p. 42, 43). O formato, portanto, que se mantém hoje, é o de um
Ensino Médio propedêutico, ou seja, um espaço reservado à preparação para a entrada
na universidade.
Ter o vestibular (ou mesmo, o Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM, pelo
caráter classificatório que vem cada vez mais assumindo) como um forte regulador e,
por que não dizer, formulador do currículo do nível médio da escolaridade traz uma
série de consequências para o ensino e para a aprendizagem e imprime marcas
importantes que pesam sobre a escola. Uma delas é o evidente reforçamento de um
ensino enciclopédico que, ao se ancorar numa quantidade excessiva de informações,
promove a perda da referência ao real e um afastamento definitivo da cultura erudita
(saber historicamente acumulado). Outra marca indelével é a intensificação de uma
tendência estrutural das disciplinas escolares, que é a da especialização dos exercícios
escolares em exercícios de controle.
A decorrência disso, no que tange ao desenvolvimento das disciplinas escolares
e à composição do currículo, é a “implantação de conteúdos que nem sempre residem
em seu valor de aprendizagem, mas respondem tão somente às exigências de controle”
(CHERVEL, 1990, p. 207). Ao final do cursus (aqui entendido como o percurso
transcorrido na educação básica), tal fato promove um agravamento da perda de sentido
no processo de ensino-aprendizagem e um aprofundamento do processo de alienação.
A escola, espaço simbólico no qual se estabelecem hierarquias de valores e se
formam códigos de pertença e classificação (BOURDIEU & PASSERON, 2009), se vê,
pois, fortemente marcada pelas disputas internas e externas que impõem significações
como legítimas, respondendo aos ideais de Homem e educação vigentes, ou seja, aos
processos de dominação simbólica que configuram a realidade social. Nota-se que a
faceta da disciplina associada a controle, domesticação e subjugação, presente na gênese
da escola moderna, ainda se mantém nas formações escolares contemporâneas - em
especial a de Ensino Médio -, permanência aqui ilustrada no trato que se dá ao
conhecimento.
2. Algumas marcas que esta escola faz pesar sobre seus agentes
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Os dados obtidos na pesquisa que respalda este trabalho evidenciaram a forte
pressão exercida sobre alunos e professores por um currículo estruturado em função das
finalidades propedêuticas do Ensino Médio, já mencionadas na seção anterior,
explicitando uma das marcas que a escola disciplinar faz pesar sobre seus agentes.
Tomando uma escola privada do município de Santos (SP) como campo
empírico, na referida pesquisa buscou-se compreender o desinteresse do jovem aluno
pelo conhecimento escolar, sob a perspectiva da sociologia de Pierre Bourdieu. Como
procedimentos, adotaram-se entrevistas semiestruturadas com oito jovens - sendo quatro
deles apontados pelos professores como interessados e quatro como desinteressados - e
observação sistemática de espaços e momentos escolares, como salas de aula, reuniões
de professores e de pais.
De modo geral, a percepção dos alunos expressa em seus depoimentos - tanto
dos interessados quanto dos desinteressados - é a da existência de um currículo inchado
de conteúdos, pautado na quantidade excessiva de informações que serão úteis apenas
para o enfrentamento aos exames vestibulares, sem nenhuma relação com seu tempo de
vida presente ou mesmo com a cultura elaborada.
CENA 1
Uma aluna da segunda série do ensino Médio, considerada desinteressada pelos
professores, critica, em situação de entrevista, o currículo do ensino médio afirmando
que há muito conteúdo a ser aprendido que servirá apenas para passar no vestibular.
Avalia que muito do que se exige que o aluno aprenda não tem relação com a vida e
jamais será utilizado.
Outra aluna da mesma série, considerada interessada pelos professores, afirma que a
forma como se organiza o conteúdo “é muita carga pra três anos”. Entende que “o
saber acumulado ao longo da história” precisa ser transmitido, inclusive por causa do
“desenvolvimento tecnológico”, mas ainda assim acredita que a posição do aluno de
ensino médio é muito tensa, estressante, por ter de assimilar conteúdos de dez matérias e
depois ter que “canalizar todo esse seu conhecimento em vinte e quatro folhas de uma
prova de vestibular”. Avalia que é importante ter “uma cultura geral”, mas que “talvez
não devesse ter tanto conteúdo específico de todas as matérias”.
A demanda avaliativa que se impõe ao sistema de ensino, decorrente de tais
finalidades, permeia os depoimentos dos alunos entrevistados, que por várias vezes
justificam a continuidade de seu investimento na relação com o conhecimento escolar,
apesar da falta de sentido, pela necessidade de contarem com ele para serem aprovados
na escola e para o enfrentamento aos exames vestibulares.
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Algumas passagens das entrevistas revelam, inclusive, certa submissão dos
alunos, e o reconhecimento, por parte deles, do árduo papel do professor e da escola no
cumprimento da tarefa de “despejar” os conteúdos sobre eles. É o caso da expressão
“tem que dar” cunhada pelos oito jovens entrevistados ao falar sobre a ação docente,
justificando a necessidade irrevogável de que toda a carga de matérias exigidas pelos
vestibulares seja ministrada. É uma faceta da violência simbólica exercida no processo
educativo que, ao ocultar os mecanismos de controle sob a aparência do natural (“é
assim que é”), faz com que o próprio agente contribua para a eficácia daquilo que o
determina e estrutura (BOURDIEU & WACQUANT, 2008, P. 212, 213).
Nesse mesmo sentido, dados da pesquisa mostram que, muitas vezes, o professor
também se dobra aos apelos de um sistema que se erige na e pela avaliação, como se
nota na cena a seguir:
CENA 2
O professor de Gramática da segunda série do ensino médio explicita em sua fala, na
reunião de planejamento do início do ano letivo: “Preciso de uma margem maior de
pontos para manejar as avaliações. Se, ao começar uma explicação, eu não puder dizer
para os alunos „prestem atenção que isso vai cair na prova daqui a duas semanas!‟, vai
virar uma baderna e aí eu não tenho como segurar a moçada.” Imediatamente após se
posicionar, explica-se, argumentando que não adianta sermos românticos achando que é
possível conscientizar um aluno de ensino médio sobre a importância do estudo, porque
eles já vêm com esse “vício” de só estudar para as provas, desde o ensino fundamental.
Com o ensino pautado pelo controle, incluindo o da ação docente, e a
aprendizagem submetida ao resultado, expressão do jogo de forças que atuam no campo
educacional e que se engendram num contexto maior, evidencia-se um esvaziamento do
sentido do que se faz na escola. Essa forma de tratar o saber, esse modus operandi da
escola disciplinar/domesticadora incorre no risco de desconectar-se por completo da
cultura de que deveria se servir e que lhe caberia partilhar. Aos alunos resta mais um
fator de desestímulo, já que acabam não identificando a cultura visada em meio às
minúcias desconexas que compõem os conteúdos e se perdendo no emaranhado dos
infinitos exercícios da ótica, da gramática ou das infindáveis quinquilharias que se
juntam à Biologia, só para citar alguns exemplos lembrados pelos próprios alunos.
Outra situação que evidencia a perda de sentido na aprendizagem em função das
finalidades que são postas para o Ensino Médio, e que emerge dos achados da pesquisa,
é a inclusão da Literatura Clássica no currículo, submetida às exigências dos exames
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vestibulares. A maneira com que geralmente é tratada a leitura dos clássicos traz como
resultados, de um lado, alunos apelando para a leitura de resumos das obras facilmente
encontrados na internet; estratégia que, segundo seus depoimentos, lhes assegura a
condição mínima para responder às questões que compõem as provas escolares e as
demais que integram as avaliações externas. De outro lado traz reações contundentes – e
certamente improdutivas – dos professores que encaram o difícil desafio de impingir tal
conteúdo aos alunos:
CENA 3
A professora de Literatura da segunda série do Ensino Médio, na reunião de pais de
início de ano, conta como foi o seu discurso aos alunos no primeiro dia de aula: “Eu
tenho uma péssima notícia para dar a vocês: sobraram todos os livros da FUVEST pra
gente! Vai ser muito ruim, vai ser difícil e muito chato, mas eu não posso fazer nada.
Vamos tentar dar um jeito, mas...”.
O enfrentamento sistemático de exercícios que visam o controle e a
classificação, e de conteúdos sem sentido provenientes do “saber ensinado” pode trazer,
como efeito perverso, além da imponderabilidade daquilo que realmente foi aprendido,
um desgosto profundo e definitivo dos alunos por algumas matérias. Nas entrevistas, a
figura dos professores é constantemente evocada como uma possibilidade de redução ou
de ampliação desse desgosto, conforme a maneira com que tratam os conteúdos, como o
verificado no depoimento acima e também no que compõe a cena a seguir.
CENA 4
Instado a opinar sobre o conteúdo escolar, um aluno da segunda série do ensino Médio
considerado desinteressado pelos professores avalia que algumas coisas são importantes
e outras não: “Filosofia eu acho uma matéria muito inútil”. Mas questionado sobre o
porquê de achar o conteúdo de filosofia inútil, o jovem admite que na verdade não
gosta, porque desde o primeiro ano já apresentou dificuldades em compreender a
matéria porque o professor falava muito difícil. Já o conteúdo de Sociologia é aceito
pelo jovem aluno com maior boa vontade e ele atribui isso ao fato de se tratar de
questões do cotidiano e também à forma como o professor da disciplina conduz o
trabalho, utilizando um vocabulário mais acessível e explicando bem os conteúdos.
A relação aversiva, muitas vezes, se inscreve nas propriedades de cada
disciplina, nas particularidades da relação professor-aluno, e se mistura com a angústia
gerada a partir do processo avaliativo. Mas o desgosto pelas matérias, uma das marcas
que a escola disciplinar faz pesar sobre os alunos, pode significar outra coisa, e algo
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aparentemente paradoxal ao que se vem argumentando até aqui: pode expressar, ao
invés de excesso de disciplina, a falta dela.
Explica-se. Com a intromissão da Psicologia no terreno da Pedagogia, trazendo
seus valores consagrados pela moderna sociedade industrial e que implicam a
domesticação do humano, a consagração do fácil e da eficácia, as matérias de ensino
foram se transformando numa caricatura do que deveriam ser, perdendo sua potência
como objeto que oferece o necessário obstáculo ao aluno na situação de ensino-
aprendizagem. Ao deslocar o foco para a motivação do aluno, a preocupação centrou-se
em aliviar o peso da aula e em tudo facilitar, chegando-se ao desprezo da matéria,
daquilo que é transmitido e que deveria constituir o verdadeiro campo da relação
professor-aluno. Nesse sentido, a disciplina, agora compreendida em sua faceta de
submissão a normas, observância de método, regras ou preceitos decorrentes de uma
estrutura objetiva, (essencial para conhecer e agir melhor, e para alcançar a liberdade do
domínio do objeto/matéria de ensino em sua lógica interna), teria sido também
abandonada ou distorcida, inaugurando uma Pedagogia do não esforço (GUIMARÃES,
1982 p. 33-39).
Assim, descartado o caráter triádico do ensino - “alguém (o professor) procura
fazer com que alguém (o aluno) aprenda alguma coisa (a matéria)” – para a assunção
de um ensino didático, a disciplina teria perdido sua potência como preocupação
metodológica que visa como finalidade à apreensão do objeto, indispensável para a
constituição de uma vida intelectual intensa. Segundo Guimarães (1982), o erro
enciclopédico de avaliar o saber pela quantidade de informações, a redução do conceito
de matéria ao de um amontoado caótico de proposições e a adoção de um conceito de
aprendizagem como assimilação de informações, completariam o quadro de um ensino
que estaria longe de ser formativo (p. 33, 37).
Pode-se afirmar, portanto, que o paradoxo mencionado acima é apenas aparente,
pois o que se vê são, em verdade, as duas faces de uma mesma moeda/disciplina em
jogo: a escolha da face de uma disciplina domesticadora oculta a face de uma disciplina
intelectual que permitiria a efetiva compreensão do objeto/ mundo, o que deveria ser a
finalidade do aprender. O substrato dessa escolha (porque política-social) pode ser tanto
a indisciplina intelectual quanto a indisciplina comportamental do alunado. Mas, vale
ressaltar, ambas são expressões de uma escola que efetivamente não se ocupa da
formação humana e que, ao contrário disso, faz pesar sobre seus agentes marcas que
militam contra a sua autonomia e emancipação.
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3. Um olhar mais atento sobre o desinteresse do alunado
O intento civilizador, apresentado na primeira seção desta comunicação, levado
a efeito através dos tempos pelo modelo disciplinar domesticador, imprimiu um formato
específico à instituição escolar. Pautado na rigidez de uma moral do dever, este modelo,
que esteve a serviço da edificação de um determinado tipo de homem e de sociedade
(catalogando a normalidade e o desvio), conheceu, entretanto, todo tipo de resistência
daqueles a quem se buscava domesticar. Não são poucos os casos ao longo da história,
de rebeldia perante as regras e autoridades escolares. A indisciplina comportamental
veio se manifestando por todo o trajeto, revestindo-se das mais variadas formas e
modalidades, mas revelando sempre um descontentamento, um desajuste entre
demandas opostas.
O que se pretende destacar aqui, no entanto, é que a insatisfação dos alunos
parece começar a ganhar outros contornos quando a escola passa a sofrer os efeitos de
uma organização social pautada num capitalismo mais dinâmico, regido pelo excesso de
produção e pelo consumo exacerbado, pelo marketing e pela publicidade (SIBILIA,
2012, p.45). No contexto da contemporaneidade, conforme se pôde verificar na pesquisa
referência desse trabalho, nem sempre tal insatisfação se manifesta por meio de
comportamentos ostensivos, violentos ou hostis. Na escola investigada, por exemplo,
onde se adota práticas como a manutenção dos portões abertos durante todo o período
de aula, acolhimento e estímulo à expressão juvenil (da vestimenta à promoção de
atividades e eventos pleiteados pelos alunos), e estabelecimento de relações horizontais
entre os diversos agentes da escola, a insatisfação se expressa em forma de apatia,
desinteresse pela aula e por aquilo que o professor tem a dizer, traduzidos em posturas
de desdém e alheamento.
É certo que a rebeldia e a indisciplina em suas formas “mais clássicas” ainda se
fazem sentir nos ambientes escolares da atualidade, e vêm temperadas pela
agressividade, pela violência engendrada nas variantes que revelam as novas estruturas,
sobretudo nas escolas públicas, pois atendem a uma população sobre a qual esses
fenômenos sociais se impõem de forma muito mais brutal porque associados às
precárias condições objetivas de existência. Em escolas privadas que exercem o poder
de forma mais coercitiva, ou onde há ausência total de mediação capaz de refrear os
impulsos abusivos, a insatisfação do alunado também aparece de forma mais violenta e
hostil. Mas, quando se neutralizam tais condições, a exemplo da escola investigada, o
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que emerge como expressão desta escola domesticadora é o desinteresse, o tédio e a
apatia, o que revela novas variáveis, inscritas em outra ordem de desajustes. Apontam
para a emergência de uma nova moral, a do dever de prazer, na qual se observa um
franco desinvestimento libidinal (BOURDIEU 2011, p. 141, 142) nas relações
escolares, e culturais de modo mais amplo.
Esta moral do dever de prazer que se assenta no imperativo da diversão e do
entretenimento, basilar do século XXI, é o que parece vir derrubar definitivamente o
paradigma da ação docente como transfusão do conhecimento e requerer outras
transformações didático-pedagógicas para fazer face ao aluno entediado que não vê no
esforço um valor em si mesmo. À demanda por diversão vem se somar a realidade da
hiperconexão, que produz desconcentração como uma reação defensiva ante a
avalanche de informações e de contatos. Esse efeito – que é também um requisito – do
estilo de vida contemporâneo entra em colisão com as exigências do dispositivo escolar
e aprofunda ainda mais os desajustes (SIBÍLIA, 2012, p. 89).
São novos habitus (lei social incorporada) entrando na relação com um “velho
campo”; isto é, as reestruturações sucessivas do campo educacional, sobretudo no
âmbito das disciplinas escolares, não acompanham o ritmo das novas finalidades
requeridas para a educação e das novas subjetividades que se submetem a elas.
Tampouco os habitus dos agentes são coincidentes: não há somente um confronto entre
gerações, a dos professores e a dos alunos; há uma coexistência, por vezes nada
pacífica, de diferentes expressões de valores e condições de cultura, submetidas às
forças que operam no campo. Em cada momento do tempo, em um campo de luta
qualquer, os agentes e as instituições em jogo são ao mesmo tempo contemporâneos e
temporalmente discordantes (BOURDIEU, 2013, p. 223).
Considerações finais
Pode-se considerar a partir da linha de argumentação aqui adotada, que
problemas como o caráter domesticador da escola, o engessamento do currículo e o
desinteresse dos alunos, enfrentados no âmbito do Ensino Médio e que se apresentam
como grandes desafios ao professor têm caráter sócio-histórico e exigem, portanto,
especial atenção aos novos contornos que recebem no contexto da contemporaneidade.
Observa-se, de um lado, o modus operandi da escola, fundamentado em seu
conjunto de crenças e valores, que milita contra a formação humana à medida que, entre
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outras coisas, esvazia o conhecimento de sentido, fazendo sobrepujar em seu currículo o
elemento disciplinador, no sentido de domesticação e controle. A situação se vê
agravada diante das finalidades propostas para o Ensino Médio que, centradas no
preparo do alunado para vencer o funil de acesso ao Ensino Superior, acabam limitando
a ação docente dentro de parâmetros rigorosamente definidos e encerrando os alunos
num emaranhado de infindáveis conteúdos que passam ao largo da cultura que a escola
deveria partilhar. De outro lado, nota-se o desinvestimento libidinal dos jovens alunos
na relação com a cultura e o saber que, para além do desinteresse produzido pela própria
fôrma escolar, expressa os valores que circulam num contexto maior, e incidem
marcadamente no cenário de sala de aula, demandando novas práticas pedagógicas.
Conhecer, analisar e refletir sobre esses e outros aspectos parece ser um primeiro
e importante passo a ser dado pelo professor (de preferência ainda dentro dos cursos de
formação inicial) para a consolidação de ações que façam frente aos desafios que se
apresentam na prática docente cotidiana.
Referências bibliográficas
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vestibular, desigualdade social. Belo Horizonte: Argumentum. 192 p. (Coleção
Trabalho e Desigualdade), 2009.
BOURDIEU, Pierre. Razões Práticas: sobre a teoria da ação. 11ª ed. Campinas, SP:
Papirus, 2011.
_________________. El sentido social del gusto: elementos para uma sociologia de la
cultura – 1ª ed. 4ª reimpr. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores. 288 p, 2013.
BOURDIEU, Pierre & WACQUANT, Loïc. Una invitación a la sociologia reflexiva.
Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 2008.
BOURDIEU, Pierre & PASSERON, Jean Claude. A Reprodução: elementos para uma
teoria do sistema de ensino. 2ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.
CHERVEL, André. História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de
pesquisa. Teoria & Educação, n. 2, p. 177-229, 1990.
GUIMARÃES, C. Eduardo. A disciplina no processo ensino-aprendizagem. Revista
Didática. São Paulo: UNESP, n. 18, p.33-39, 1982.
SIBILIA, Paula. Redes ou paredes: a escola em tempo de dispersão. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2012.
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BIOLOGIA NA ESCOLA: CIDADANIA CONSTRUÍDA POR MEIO DO SABER
BIOLÓGICO
Caroline Arantes Magalhães
IFSP- Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia campus São Paulo
PEPG: Educação: Política, História e Sociedade – PUC-SP
Resumo
A partir da análise dos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio
(PCNEM) e suas orientações para o ensino de Biologia, este trabalho questiona sobre
quais são as contribuições que a disciplina de Biologia e o trabalho do professor desta
área podem fornecer para a formação humana no que se refere à construção de
princípios de cidadania. A partir dessa pergunta definiu-se o objetivo de refletir sobre o
que significa educar para cidadania por meio do saber científico tecnológico e como,
especificamente a Biologia, contribui para isso. Como suporte teórico foi utilizado o
conceito de cidadania, o conceito de habitus, de didática, bem como estudos
desenvolvidos sobre práticas de ensino de Biologia por pesquisadores da área com base
em uma didática relacional. Foram analisadas informações de pesquisas que apontam
uma realidade de ensino expositivo, memorístico, de conhecimentos fragmentados,
irrelevantes, desconectados das propostas oficiais para essa faixa de escolaridade. Com
base no referencial de análise, percebeu-se que o ensino de Biologia, no ensino médio,
necessita de alterações para passar a ter uma abordagem relacional, ecológica e
sistêmica que, por sua vez seja capaz de produzir disposições para atuação social. O
trabalho docente com investimentos em métodos de ensino que sejam capazes de
estruturar, nos alunos, o habitus, expresso por disposições na forma de práticas
individuais e coletivas que objetivem alcançar uma situação de equilíbrio entre o ser
humano e seu tecido social, com um conhecimento escolar do universo biológico,
obtém-se um conjunto que estará disponível e poderá ser incorporado para o bem social.
Palavras-chave: Ensino de Biologia, Cidadania, Habitus
Introdução
A ideia central expressa pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(LDBEN) de 1996, regulamentada em 1998 pelas Diretrizes do Conselho Nacional de
Educação e pelos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (PCNEM),
estabelece este nível de ensino como “etapa conclusiva da educação básica de toda a
população estudantil” (BRASIL, 2002). Dentro desta atmosfera de encerramento
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observa-se uma grande convergência de problemas educacionais. Questionam-se seus
propósitos, sua qualidade, sua estrutura curricular, suas intenções de promoção de
mobilidade e inclusão social e tantos mais pontos quantos quisermos levantar. Ao puxar
uma ponta desse novelo, voltando ao documento que parametriza o ensino dessa etapa,
verifica-se que
Os PCNEM assinalam que a apropriação dos códigos, dos conceitos e
dos métodos de cada uma das ciências deve servir para “[...] ampliar
as possibilidades de compreensão e participação efetiva nesse mundo”
e, dessa forma, desenvolver o saber científico tecnológico como “[...]
condição de cidadania, e não como prerrogativa de especialistas”
(BRASIL, 2002,p.34-35- grifo nosso)
Esse excerto foi retirado da seção que trata do ensino de Biologia e é justamente
essa ponta, do ensino científico por meio do saber biológico, que se pretende discutir.
Aditivamente, pretende-se amarrá-la a uma outra para a construção de um objeto de
análise mais completo: aprender a Biologia favorece a construção de que disposições
para agir individual e socialmente? O que significa educar para cidadania por meio do
saber científico tecnológico e como, especificamente, a Biologia contribui para tal? Para
conseguir atingir esse objetivo serão apresentados os conceitos de habitus, de técnicas
didáticas mais comuns no ensino de Biologia e o conceito de cidadania adquirida
através do conhecimento biológico a partir de definições políticas sobre a área.
Ensino de Biologia e cidadania: conceitos e princípios legais
O conceito de habitus será útil no entendimento do que será denominado de
“cidadania construída por meio do saber biológico”. Inicialmente, para compreensão do
habitus como um conceito mediador entre um indivíduo e a sociedade, é essencial
compreender que esta última "deposita" nas pessoas disposições que as possibilitarão
agir (WACQUANT, 2007 p. 65). Bourdieu enfatiza a importância de se estudar o modo
de estruturação do habitus de um indivíduo, por exemplo, através das instituições de
socialização pelas quais este sujeito passa. Isto acontece porque considera a socialização
como um processo que se desenvolve ao longo de uma série de produções de
disposições diferentes que orientarão as ações futuras desse indivíduo.
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O habitus por si não leva um indivíduo à ação. É necessário considerar a origem
e estrutura social do habitus dos indivíduos, bem como as origens do campo e das
dinâmicas de confrontação dialética. Segundo Wacquant, "o habitus não é um
mecanismo autossuficiente para geração da ação: ele opera como uma mola que
necessita de um gatilho externo" (WACQUANT, 2007, p. 69). Sendo a família
responsável pelos processos de socialização primária de um indivíduo, os habitus nela
adquiridos, farão parte das experiências escolares (gatilho externo) de um agente social,
estruturando novas disposições. É nesse sentido que Bourdieu afirma que “são
estruturas estruturadas predispostas a funcionarem como estruturas estruturantes”
tendendo, então, a orientar ações de um sujeito. Deste modo, os processos sociais
desenvolvidos na escola, independentemente do nível de ensino, são efetivamente
estruturadores de novos habitus (ORTIZ, 1994).
Deve-se considerar que existem duas dimensões do habitus: uma individual e
uma social. A dimensão primeira implica um processo subjetivo de internalização da
objetividade que, segundo Ortiz (1994), assegura a adequação das ações do sujeito e a
realidade objetiva como um todo. No entanto, para analisarmos como o aprendizado da
Biologia favorece a construção de disposições para “ações cidadãs”, a dimensão social
do habitus nos é mais profícua já que ela se refere a um grupo ou uma classe e,
[...] enquanto produto da história, o habitus produz práticas,
individuais e coletivas, produz história, portanto, em conformidade
com os esquemas engendrados pela história (ORTIZ, 1994, p. 77).
Tais esquemas a serem adquiridos para configuração do habitus advêm das
situações vividas, por conseguinte, situações que, nas escolas, são preponderantemente
didáticas. Assim, cabe conceituar essa atividade do professor. Segundo Marin (2005)
trata-se de atividade extremamente complexa, a do professor, mesmo quando só se leva
em consideração os aspectos relacionados ao ensino e não às demais atividades que o
professor executa na sala de aula, ou na escola, e que não são as atividades didáticas.
Assim, segundo a autora, para essa atividade convergem várias questões da escola como
o uso do tempo para as atividades do ciclo docente (planejar, executar e avaliar), as
porções dos conteúdos a serem ensinados em cada disciplina, os materiais, e também as
questões que advêm das dimensões ao redor da vida da escola como as políticas de
currículo, as relações com outras instituições, as exigências de outras esferas das redes
de ensino, ou, ainda de outras esferas tais como valores morais ou crenças ao redor de
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questões a serem tratadas nas diversas disciplinas todas elas interferindo na
configuração didática. Parece relevante tal conceito para a análise das situações de
ensino por fornecer um quadro de referência que permita as interligações que se propõe
analisar para alterar o ensino aqui focalizado e pelo fato de ser passível de desenvolver
as disposições necessárias a um habitus composto de ações que possam ser
consideradas cidadãs desde que esses outros conceitos sejam levados em conta no
momento de tomada de decisão sobre os procedimentos a serem utilizados.
Diante desses conceitos, convém voltar para o final da década de 1990, quando
os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio impactaram a estruturação
do currículo de diversas áreas do conhecimento. Os tópicos relativos à Biologia estão
colocados num grande grupo denominado “Ciências da Natureza, Matemática e suas
Tecnologias”. Diante dessa nova parametrização fica definido que
No ensino de Biologia, enfim, é essencial o desenvolvimento de
posturas e valores pertinentes às relações entre os seres humanos,
entre eles e o meio, entre o ser humano e o conhecimento,
contribuindo para uma educação que formará indivíduos sensíveis e
solidários, cidadãos conscientes dos processos e regularidades de
mundo e da vida, capazes assim de realizar ações práticas, de fazer
julgamentos e de tomar decisões (BRASIL, 1998).
A fim de complementar as orientações educacionais do PCNEM, o PCN+
(Orientações Educacionais Complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais),
dedicado às Ciências da Natureza, traz elementos de utilização para o professor na
definição de conteúdos e na adoção de opções metodológicas, além de explicitar
algumas formas de articulação da disciplina para organizar, conduzir e avaliar o
aprendizado, funcionando como um manual didático (BRASIL, 2002). São diretamente
fornecidas instruções para que o professor utilize em sua atividade preferencialmente:
experimentação, estudos do meio, trabalhos por projetos, jogos, seminários, debates e
simulações. Em princípio, o documento homogeneíza o trabalho docente (como um
manual) ao fazer ingerências diretas às escolhas sobre as atividades didáticas.
É justamente no ponto em que a política pública nacional para educação em
nível médio se torna resultado de um processo histórico e político que estão
relacionados os objetivos do ensino de Biologia com a estruturação do habitus para
produção de práticas individuais e coletivas como enunciado nos PCNEM:
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[...] há aspectos da Biologia que têm a ver com a construção de uma
visão de mundo, outros práticos e instrumentais para a ação e, ainda
aqueles, que permitem a formação de conceitos, a avaliação, a tomada
de posição cidadã (BRASIL, 1998 p. 15).
“Educar para a cidadania, Sociedade do conhecimento, Sociedade sustentável”.
Este tem sido um slogan frequentemente ostentado por muitas instituições de ensino em
diversos países e nos mais variados contextos (EVANGELISTA, 2014). Essas
expressões não são claras quanto ao que pretendem. Então, como conseguir trabalhar na
direção da educação para cidadania? O que é um posicionamento cidadão? Que aspectos
da Biologia são relacionados à construção de uma visão de mundo e da tomada de um
posicionamento cidadão?
Não temos a intenção de conseguir responder a todas essas questões, mas iniciar
esse debate parece fecundo na tomada de consciência sobre o que fazemos dentro de
nossa atribuição de ensinar Biologia. Machado tem uma concepção do que é educação
cidadã e a coloca nos seguintes termos:
[...] educar para cidadania significa prover os indivíduos de
instrumentos para plena realização desta participação motivada e
competente, desta simbiose entre interesses pessoais e sociais, desta
disposição para sentir em si as dores do mundo (MACHADO, 2002,
p. 106- grifo nosso).
Interessante notar que, para a elaboração de uma definição sobre cidadania,
Machado consegue usar com muita propriedade um termo retirado das Ciências
Biológicas que, neste texto, enuncia bem a contribuição que os conhecimentos
biológicos podem fornecer para a educação cidadã: simbiose. Este termo foi cunhado
por de Bary (1879) para referir-se à vida conjunta entre organismos distintos e, em uma
perspectiva mais moderna, tal conceito ecológico foi descrito por Ricklefs (1996) como
a “associação física íntima entre duas espécies, normalmente coevoluídas” (p.
533). Penso que o estudo da associação íntima entre interesses pessoais e sociais que
coevoluem possa promover um entendimento mais amplo do que venha a ser cidadania,
especialmente do ponto de vista biológico. Dessa forma, conhecimentos a respeito de
evolução biológica, biodiversidade, fisiologia, ecologia, níveis de organização dos
sistemas vivos (a percepção do individual como parte de um todo) e saúde, entre tantos
mais, podem construir novas disposições para o agir ao serem realmente apropriados
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pelos alunos. Essas disposições para atuação social seriam o habitus expresso na forma
de práticas individuais e coletivas que objetivem alcançar uma situação de equilíbrio
entre o ser humano e seu tecido social com o universo biológico em que está inscrito.
Alguns dados de pesquisa sobre aula de biologia
Ao se analisar estudos realizados sobre as aulas de Biologia do Ensino Médio,
especialmente na esfera pública da educação formal, encontram-se profissionais presos
a aulas expositivas, feitas de forma descritiva, com excesso de terminologia sem
vinculação, reforçando um ensino enciclopédico de conhecimentos fragmentados e
irrelevantes (KRASILCHIK, 2008). É comum observar-se que até professores mais
dedicados em sua tarefa de ensinar o conhecimento biológico repetem as mesmas
representações em suas lousas com seus gizes coloridos, montam aulas “experimentais”
meramente demonstrativas da teoria ou trabalham um documentário de narração
complexa e monótona. Pode-se fazer uma caricatura do perfil do trabalho didático dos
professores de Biologia como acabamos de construir, mas uma caricatura não é
fantasiosa, inverossímil ou necessariamente engraçada. A autora retrata pontos salientes,
muitas vezes doloridos de serem notados no sujeito responsável por levar a termo o
ensino. Segundo a autora, a Biologia, tal como apresentada hoje nas escolas, reflete um
momento histórico em que se pretendia a formação de pesquisadores para alavancar o
grande desenvolvimento científico das décadas de 1950 e 1960. Isso reforça a situação
em que atualmente se realiza o trabalho didático, pois ainda é equivocada a maneira
como se conduz a formação de profissionais para o ensino de Biologia.
Na linha de raciocínio estabelecida até então, percebe-se a incongruência
existente entre o que se espera em termos de formação biológica do alunado do ensino
médio e o que se executa em sala de aula. Faltam noções claras da Biologia como
ciência integradora entre humanos, meio ambiente, saúde, sociedade e conhecimento
histórico e filosófico. Sem tal perspectiva de entendimento inicial não se torna possível
a construção de novas disposições a constituir um habitus nos estudantes com o fim de
educar para cidadania por meio dos conhecimentos biológicos.
Assim, parece claro que as aulas expositivas descritivas, com excesso de
vocabulários técnicos e enciclopédicos, por um lado, e restritos à área sem estabelecer
relações, por outro, não são adequados para promover a estruturação de novas
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disposições oriundas de um saber prático incorporado que se expressará em ações para o
bem individual ou coletivo. Considera-se que passa a ser necessário que o professor de
Biologia tenha um olhar relacional, ecológico e sistêmico para além da própria área,
estabelecendo relações sobre seus alunos, a comunidade, a cultura e o meio ambiente
para atuar como “mola propulsora” do desenvolvimento de um novo habitus.
Atualmente, a utilização de estratégias didáticas que dão relevo ao diálogo entre
teoria e prática, incentivando o aluno a ser protagonista de sua aprendizagem e exigindo
dele autoria de textos e ideias, apresenta-se distante das formulações tecnicistas dos
anos sessenta e setenta e das formulações de cunho predominantemente político dos
anos oitenta e noventa (DO ROSÁRIO LIMA, 2007).
Em termos didáticos, como já apontado, é sabido que o professor se destaca
como figura central da atividade de ensinar e que o ensino consiste em variadas ações
realizadas para cumprir o necessário das situações de sala de aula (MARIN, 2005). No
entanto, a partir desse conceito, em que o ensino passa a ser multirrelacionado, a sala de
aula de um professor de Biologia pode e deve ser muito maior que as paredes que
circunscrevem os alunos sentados em suas carteiras. É nesse sentido que se pretende
aqui reavivar uma prática muito antiga das Ciências Biológicas desde suas origens na
História Natural: os estudos do meio. Por exemplo, as observações, anotações, reflexões
e conclusões decorrentes das expedições britânicas realizadas pelos naturalistas Charles
Darwin (1809-1882) e Alfred Wallace (1823-1913) mudaram os rumos da compreensão
humana sobre a vida a partir do século XIX. Seguindo este modelo exploratório, a
proposta é que se retomem procedimentos investigativos de construção do
conhecimento, mas, agora, voltando-os à compreensão da interação entre o ser humano
e o ambiente em que se encontra. Contudo, esse caráter investigativo não se detém
apenas à vivência do processo científico por descoberta. Alcança dimensões de
compreensão do social por meio do biológico, do entendimento do porquê de certas
realidades sociais vinculadas a processos ambientais ou a questões de saúde pública ou
pessoal, por exemplo. É a biologia como conhecimento que capacita para mudança de
postura individual no que se refere à compreensão do ser humano e de seu status quo e
que, consequentemente, funciona como suporte para estruturação de novas disposições
para a ação.
O Estado, por meio de suas políticas de educação formal, em seus slogans de
formação para cidadania, orienta como se desenvolve a própria sociedade. Na realidade,
não existe livre expressão da educação ou do ensino de Biologia, como é nosso caso. O
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fato é que o Estado não deixará de abrir mão do controle sobre a educação. Porém o que
realmente deve nos importar dentro da perspectiva de “cidadania construída por meio do
saber biológico”, é o que o aluno egresso do ensino médio é capaz de fazer com o que
ele aprendeu da Biologia.
Considerações Finais
Este trabalho não está questionando PCNEM em si, mas, utilizando esses
parâmetros estabelecidos para o ensino de Biologia para refletir sobre quais
contribuições efetivas as Ciências Biológicas podem fornecer na composição do
entendimento de cidadania. Para tal, foram apontados conceitos considerados relevantes
para orientar um trabalho nessa direção. Também foram trazidos dados de pesquisa
sobre a realidade e analisados apontando onde é possível haver modificações sobre a
escola e ação docente como propulsores do desenvolvimento de disposições em alunos
de ensino médio, por meio de conhecimentos biológicos. Para tanto foram questionadas
certas modalidades de tratamento didático no ensino da biologia quanto à sua eficácia
em alcançar objetivos que formem para a cidadania propondo que o trabalho docente
através de estudos do meio é possível ser mais profícuo para esta tarefa.
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