Ensaios Olhares Sobre A Musica Coral Brasileira

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Ótimo livro!

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Ensaios olhares sobre a msica coral brasileira

CARLOS ALBERTO FIGUEIREDOEstudou Regncia Coral com Frans Moonen, no Conservatrio Real de Haia, Holanda. Fez cursos complementares com Jan Elkema e Rainer Wakelkamp na Fundao Kurt Thomas da Holanda. Estudou com Helmuth Rilling na II Bachakademie de Stuttgart e repertrio barroco com Philippe Caillard. regente do CORO DE CMERA PRO-ARTE, com o qual tem quatro CDs gravados, com destaque para as obras de Jos Maurcio Nunes Garcia. professor de Regncia Coral e Anlise Musical na Universidade do Rio de Janeiro e nos Seminrios de Msica Pro-Arte. Cursou o Mestrado e Doutorado em Musicologia Histrica Brasileira na UNIRIO, com pesquisa voltada para a edio de obras de Jos Maurcio Nunes Garcia. Diretor-Artstico da Associao de Canto Coral do Rio de Janeiro.

ELZA LAKSCHEVITZFez seus estudos de graduao e ps-graduao na Universidade Federal do Rio de Janeiro nas reas de composio, regncia, piano e rgo. Foi coordenadora do Projeto Villa-Lobos, da FUNARTE, programa responsvel pelo apoio e estmulo atividade coral no pas, onde, por quinze anos, promoveu cursos, seminrios, reciclagens, concursos e dez edies do Painel FUNARTE de Regncia Coral. Dentre os muitos coros que dirigiu destacam-se o Coro Infantil do Rio de Janeiro e o Canto Em Canto, com os quais gravou diversos CDs, recebeu vrias premiaes e realizou tournes pelo Brasil, Amrica Latina, Estados Unidos e Europa. Regeu em 1 audio diversas obras de compositores brasileiros como Ronaldo Miranda, Vieira Brando, Edino Krieger e Ernani Aguiar, muitas das quais a ela dedicadas.

NESTOR DE HOLLANDA CAVALCANTINascido no Rio de Janeiro, em 1949, teve dentre seus professores Elpdio Pereira de Faria (iniciao musical), Maria Aparecida Ferreira (leitura e escrita), Guerra-Peixe (composio), Esther Scliar (anlise) e Jodacil Damaceno (violo). Como professor, trabalhou no Conservatrio Brasileiro de Msica, na Escola de Msica Villa-Lobos, e no Esquimbau Ncleo de Estudos Musicais.

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Trabalhou no Instituto Nacional de Msica da FUNARTE, onde foi pesquisador, revisor musical, arquivista e produtor fonogrfico; na Fundao Biblioteca Nacional, onde foi, primeiramente, assessor e, depois, Chefe da Diviso de Msica e Arquivo Sonoro; e no Instituto Municipal de Arte e Cultura RioArte, onde foi diretor da Diviso de Msica. Foi diretor musical dos grupos Cobra Coral e Garganta Profunda do qual foi um dos fundadores. Tem, ainda, trabalhado como redator, arranjador e produtor de discos. Comps mais de 300 obras, abrangendo trabalhos para orquestra, msica de cmara, coro e canto, com vrias gravaes e edies, e apresentadas, com freqncia, tanto no Brasil como no exterior.

SAMUEL KERRProfessor de Canto Coral do Instituto de Artes da Unesp, tem marcado sua carreira artstica em trabalhos corais, onde tem experimentado novos recursos de expresso, seja no repertrio, seja da maneira de cantar. Nesse sentido foram marcantes seus trabalhos com o Coral da Santa Casa, Associao Coral Cantum Nobile, Cia. Coral, Madrigal Psichopharmacom, Coral da Unesp e em muitos corais comunitrios que tem organizado. Samuel Kerr foi regente da Orquestra Sinfnica Jovem Municipal de So Paulo, de 1972 a 1982, e Diretor da Escola Municipal de Msica da Prefeitura de So Paulo de 1972 a 1975. Regente Titular do Coral Paulistano, de 1979 a 1983 e de 1990 a 2001. Prmio APCA 1974 pelo seu trabalho frente da Escola Municipal de Msica e em 1992 como Regente Coral.

AGNES SCHMELINGBacharel em regncia coral pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e mestre pela UFRGS em Educao Musical. Atua como professora e regente no Projeto Preldio da UFRGS e regente dos Corais Infanto-Juvenil e Juvenil da UNISINOS (Universidade do Vale do Rio dos Sinos).

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Reflexes sobre aspectos da Prtica CoralCarlos Alberto FigueiredoIntroduoEm 2010, quando este livro for novamente publicado, eu terei completado trina e seis anos de carreira como regente coral, tendo iniciado minha trajetria na Associao de Canto Coral do Rio de Janeiro, que tinha como regente principal Cleofe Person de Mattos, figura marcante na minha formao artstica e profissional. Em 2003, ao escrever estas linhas, estou completando vinte anos como professor de Regncia Coral, tendo criado minha primeira turma nos Seminrios de Msica Pro-Arte do Rio de Janeiro, j tendo perdido a conta de quantos alunos j passaram por minhas mos nesse perodo. So muitas as experincias, impresses, realizaes e questes formuladas por mim, meus coralistas e meus alunos, acumuladas neste longo perodo de minha vida, todas ainda no adequadamente sistematizadas. Ao ser convidado pela Oficina Coral do Rio de Janeiro para colaborar nesta coletnea, fiquei confuso, sem saber exatamente por onde comear, j que so tantos os assuntos sobre os quais eu gostaria de falar, e o espao nem tanto assim, que tive que fazer algumas opes. Assim sendo, talvez as idias que apresentarei a seguir no estejam perfeitamente concatenadas, servindo, na verdade, como um ponto de partida para um texto mais longo e abrangente sobre esse fascinante mundo que o Canto Coral e suas derivaes. De qualquer maneira, espero que possa contribuir com minhas idias para um aprofundamento das questes sobre Regncia Coral em nosso pas, com suas peculiaridades. Um coro uma espcie de tribo, com personagens essenciais, tais como os cantores e o regente; rituais tpicos, tais como ensaios e apresentaes; e objetos cultuais imprescindveis, tais como a msica e a partitura, sua representante material. H, ainda, o pblico para o qual se canta, os representantes das

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eventuais sociedades ou empresas mantenedoras, as gravaes realizadas, o professor de tcnica vocal, etc. H todo tipo de coro: com finalidades religiosas, cvicas, formalmente educacionais, estticas, ldicas, de lazer, polticas, monetrias, etc. Todos esses tipos participam, de uma forma ou de outra, da dinmica da tribo, conforme a imagem colocada acima, mesmo que alguns agentes no estejam presentes. s vezes, at o regente no existe. S no conheo um coro que no tenha cantores... Cantar em coro uma experincia afetiva forte. Tudo se torna carregado de significados: o diapaso do regente (fascinante, para os inexperientes); o indefectvel uniforme, s vezes bata, que sempre gera tantas discusses; a questo da afinao, sempre um objetivo mgico, que nem sempre os cantores entendem bem qual , tornando-se, assim, um aparente privilgio dos iniciados; a correta colocao da voz, objetivo ainda mais vago, trabalhado pelo regente, ou professor de tcnica vocal, com imagens incrveis, s vezes engraadas e, s vezes, at, chulas (risinhos...); e, claro, as partituras, que os cantores tratam de maneira variada, alguns as colocando em pastas especiais, protegidas, e outros que as carregam no bolso da cala, de onde saem completamente amarfanhadas. So imagens que as pessoas carregam pelo resto da vida, e seria bom que fosse sempre uma experincia positiva, uma boa lembrana, para aqueles que, por vrias razes, j no mais cantam em coro. Cantar em coro deveria ser sempre uma experincia de desenvolvimento e crescimento, individual e coletivo: o desenvolvimento da musicalidade e da capacidade de se expressar atravs de sua voz; a possibilidade de vir a executar obras que tocam tanto no cognitivo quanto no corao, ensejando o crescimento intelectual e afetivo do cantor e de outros agentes envolvidos; o desenvolvimento da sociabilidade e da capacidade de exercer uma atividade em conjunto, onde existem os momentos certos para se projetar e se recolher, para dar e receber. Cantar em coro tem, ainda, uma vantagem, a meu ver, toda especial: a oportunidade de lidar com um repertrio que associa msica com textos literrios ou religiosos. Apenas membros da tribo coral ou cantores, de maneira geral, tm essa rara oportunidade de experimentar essa maravilhosa fuso de duas artes to expressivas. No podemos esquecer, alis, que toda a msica ocidental, at o final do sculo XVI, foi essencialmente vocal. Cantar em coro, finalmente, cria a possibilidade de surgimento de novos regentes, assim como eu e tantos outros profissionais em atividade. Reger coro parece ter uma caracterstica inicialmente negativa: o fato de nossa expresso, como regentes, ter que depender de outras pessoas, os coralistas. Tudo parece to mais fcil para um pianista ou violonista. A sua expresso s depende dele e do instrumento. No entanto, a no ser que ns regentes tenhamos, por definio, um componente patolgico em nossas personalidades, deve haver algo de muito bom em reger coros, seno no haveria tantos regentes em atividade, cada vez mais. Para mim, pessoalmente, ter o som de um coro na mo uma experincia insubstituvel, ainda mais quando eu tenho a conscincia de que esse som o

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resultado do meu trabalho, da lenta construo de uma idia interpretativa e de uma sonoridade. A conscincia das vrias etapas percorridas, ainda na primeira fase de leitura e aprendizado at o resultado final, um antdoto poderoso para qualquer desnimo. E mais importante ainda que a construo de uma obra perceber o processo de amadurecimento do grupo. intensa a dinmica que se estabelece entre os vrios agentes da tribo coral - coralistas, regente, pblico durante os rituais - ensaios e apresentaes. H todo um jogo de influncias que resultam em permanente modificao dos agentes e, at mesmo, dos objetos cultuais, a msica e a partitura. O ensaio, principalmente, um momento de intensa troca, resultando em mudanas duradouras para todos os envolvidos, no bom e no mau sentido. O regente, com veremos, um importante agente modificador. Ele modifica seus cantores, a msica que executada e o pblico que ouvir o grupo em apresentaes. Mas o regente tambm modificado pelo coro, pelo pblico e pela msica. , especialmente, neste jogo de mtuas influncias e transformaes que me mais deterei, neste texto. O enfoque ter sempre a perspectiva do regente coral, inevitavelmente.

O Regente consigo mesmoEtapas na formao de um regente coral impensvel, nos dias de hoje, que um regente coral no tenha uma boa formao musical, envolvendo solfejo, treinamento auditivo, harmonia, anlise musical, domnio de um instrumento e outros itens comuns a todas as atividades musicais. Desses itens bsicos, gostaria de destacar, porm, a questo da capacidade de leitura musical. Por leitura musical, entendo mais do que o simples solfejo, mas a capacidade de ler uma obra e entende-la, sem a utilizao de instrumentos como suporte, ou mesmo gravaes. a capacidade de leitura musical que d total liberdade a qualquer msico. Na rea do canto coral, pela prpria caracterstica da atividade, ou seja, o uso da voz como instrumento, a busca da emisso de sons extrados diretamente do ouvido, sem qualquer intermediao mecnica externa ao executante, a questo do total domnio da leitura deveria ser condio sine qua non, no s para os cantores, mas, com certeza, para o regente. Alm disso, para que o regente se sinta seguro diante das demandas que lhe so colocadas no exercer de suas atividades ligadas ao Canto Coral, h alguns outros itens especficos que gostaria de comentar. Ao ter que lidar com vozes, necessrio que o regente coral experimente em si mesmo as vrias tcnicas existentes para uma emisso vocal consciente. Assim sendo, um estudo de tcnica vocal individual, de preferncia com um professor

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experiente e aberto a diferentes tendncias, absolutamente necessrio. O desenvolvimento de uma didtica para aplicao dessas tcnicas para coralistas uma necessidade decorrente inevitvel, devendo o regente buscar subsdios para tal, acompanhando o trabalho de professores de tcnica vocal ou outros regentes, na conduo de exerccios com grupos. Outra ferramenta indispensvel a capacidade de desenvolver a comunicao atravs dos gestos, a famosa tcnica de regncia. verdade que podemos reger at com o p e que nossos coros tm a capacidade de vir a entender qualquer gesto que venhamos a fazer, pelo continuado contato com seu regente, que, normalmente, nico. Porm, isso no significa que no possamos, e devamos, vir a aperfeioar a capacidade de expresso de nossas intenes musicais atravs de gestos, cada vez mais precisos e universais, ou seja que podem ser entendidos por todos, e expressivos, ou seja, carregados de intenes pessoais. Sem esquecer que a sonoridade de um coro depende muito do tipo de gestual utilizado pelo regente. Sabemos, entretanto, que nem sempre possvel encontrar um bom professor de tcnica de regncia nesse Brasil to grande. preciso ir atrs de oportunidades nos cursos de frias e outros tipos de encontro que ocorrem em vrios pontos de nosso pas. A utilizao dos poucos manuais existentes sobre o assunto no suficiente para um bom desenvolvimento da tcnica de regncia. A questo no est apenas na informao que esses manuais trazem, mas sim na formao. Apenas na prtica constante, sob a superviso de um bom professor, possvel uma formao adequada e consciente. No podemos perder de vista, finalmente, que, ao lidar com sua expresso gestual, o regente est tocando em questes de sua histria corporal e, conseqentemente, psicolgica. Toda a sua atividade vai ser influenciada nesse processo. O conhecimento do repertrio um outro aspecto que tem que ser cultivado pelos regentes. H uma enormidade de obras escritas para coros: sacras e profanas, internacionais e brasileiras, modernas e antigas, eruditas, populares e folclricas, para coros mistos e vozes iguais, masculinos e femininos, adultos e infantis. No possvel, diante deste quadro, ficarmos na mesmice. preciso pesquisar. Nem sempre tal pesquisa fcil, infelizmente. Acesso a partituras impressas uma fico em nossa cultura. Comprar em lojas pura impossibilidade, embora a Internet, com suas lojas virtuais, venha oferecendo novos caminhos nesse campo. Ir a bibliotecas uma possibilidade mais vivel, mas nem todos os regentes brasileiros tm uma boa biblioteca sua disposio, em suas cidades. A troca de cpias xerox entre regentes uma realidade importante, apesar das dores de conscincia quanto ao aspecto tico do direito autoral. O acesso a sites da Internet com material de domnio pblico uma nova realidade que precisa ser mais explorada. Finalmente, possvel conhecer repertrio a partir de gravaes, nem sempre, entretanto, acessveis. Felizmente, muitos coros brasileiros tm registrado sua atividade em CDs, abrangendo repertrio o mais variado. O problema, entretanto, continua sendo a distribuio. Uma demanda nova colocada aos regentes est na necessidade de virem a criar seu prprio repertrio, principalmente ao fazerem arranjos. Todos ns

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sabemos da dificuldade cada vez maior de termos um coro equilibrado, no que diz respeito a seus naipes. Muitas vezes, a pesquisa de repertrio se torna frustrante, ao constatarmos que aquilo que existe no se adapta ao coro que temos. Os regentes brasileiros se deram conta do problema e passaram a investir na criatividade, gerando novas alternativas para repertrio. Para que esse processo amadurea, necessrio que eles se engajem em cursos de Arranjo Vocal, que so cada vez mais comuns, principalmente no mbito de cursos de frias e eventos corais de todo tipo. Finalmente, para se tornar um bom regente, necessrio que o candidato vivencie o cantar em coro, principalmente sob a orientao de um regente experiente, que aborde grande variedade de repertrio. No possvel ser um bom regente de coro sem ter sido um cantor de coro. O que se aprende nas entrelinhas de um ensaio, com seus bons e maus momentos, de uma importncia vital na formao de um regente. Alm disso, s conseguiremos entender as necessidades de um coralista, quando ns tambm tenhamos sentido as mesmas necessidades, ao sermos coralistas. Um dos problemas que constato, comigo, por exemplo, o fato de que, apesar de ter cantado em coro durante anos, percebo que, muitas vezes, no estou sendo sensvel s necessidades dos coralistas, pelo fato de no cantar em coro h muito tempo. A gente vai esquecendo. O ideal seria continuar cantando. Haja tempo! No entanto, gostaria de destacar que todo o processo de aprendizado, em todas as suas etapas, deve ser acompanhado com uma permanente postura crtica, observando, objetivamente, os bons e os maus resultados, acompanhados de uma anlise dos processos envolvidos. Jamais aceitar a autoridade pela autoridade, de quem quer que seja. A maior autoridade sempre a de um bom argumento, bem colocado e discutido. Com tudo isso, poder o regente em formao vir a fazer suas escolhas dentro do universo disponvel de possibilidades, e enveredar por essa fascinante carreira que a de Regente Coral.

O Regente e o CoroO EnsaioO ensaio grande encontro entre os coralistas e seu regente, intermediados pela partitura, na maior parte dos casos. Cada ensaio nico, na medida em que est sujeito a um nmero infinito de variveis: nmero de cantores presentes, disposio fsica, mental e psicolgica de cada cantor e do regente, condies climticas, mudanas de local, etc. Muitas vezes me dou conta de que impossvel saber o que vai pela cabea de um coralista que est sentado minha frente, ou quais as circunstncias boas ou ruins de sua vida naquele dia. E vice-

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versa, como pode cada coralista saber o que vai pela cabea de seu regente naquele dia? Todo ensaio um ritual que passa sempre por vrias etapas, algumas presentes em todos os coros e outras diferentes. Pode haver o momento do vocalize, do trabalho corporal, do aprendizado de uma pea nova, do ensaio de uma obra j conhecida, do intervalo para lanche ou confraternizao, dos avisos paroquiais, etc. Exatamente pelo fato do ensaio ser uma atividade regular, acho importante inserir sempre elementos de surpresa, fazendo coisas que os coralistas jamais estejam esperando. Haja criatividade! Tenho certeza de que muitos regentes que esto lendo essas linhas devem ter muitas idias sobre este assunto para compartilhar com outros colegas. Costumo sempre dizer que todo bom ensaio tem uma pulsao, um ritmo. As coisas vo acontecendo quase como se houvesse um metrnomo marcando essas pulsaes. A manuteno desse ritmo ajuda na concentrao do coro e do regente. Todos ns concordamos, tambm, que ensaio, pelo menos em seus momentos essenciais, no lugar para se falar. O problema que, quando dizemos tal frase, estamos sempre nos referindo aos coralistas. Mas e os regentes? Como falam! Informaes que deveriam ser puramente objetivas acabam virando discursos. Devamos estar sempre atentos proporo que existe em nossos ensaios entre os momentos em que se est cantando e os momentos em que se est falando, principalmente o regente. O excesso de falatrio do regente perturba muito aquela sensao de pulsao do ensaio, a que me referi acima. Cantar em coro sempre cantar em unssono. Parece estranho dizer isso, quando a maior parte das obras feitas por coros a duas, trs e mais vozes. No podemos perder de vista, porm, que cada cantor - soprano, contralto, etc.- canta em unssono com seus colegas de naipe. Assim sendo, a busca de um perfeito unssono um passo importante em qualquer etapa de um ensaio, um ideal. Falar em unssono significa enfatizar, antes de tudo, a afinao perfeita, que deve passar, necessariamente, pela emisso igual das vogais, essenciais na formao do som de um cantor. Significa, tambm, a emisso das articulaes das notas no momento absolutamente preciso, o que toca, tambm, na questo da emisso das slabas que esto sendo cantadas, com o cuidado especial com as consoantes, elemento articulador por excelncia. Significa, finalmente, a fuso ideal dos timbres dos diversos cantores envolvidos, passo muito difcil, no s tecnicamente, mas tambm pela necessidade do cantor saber dosar entre o dar mais de si e o ceder. Considero o ensaio, essencialmente, um momento de transformao, tanto do coro quanto do regente. Veremos adiante como o regente desenvolve o cantor atravs de sua atividade, mas tambm como o coro modifica o regente, atravs de sua criatividade, espontaneidade e, mesmo, resistncia.

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O desenvolvimento do cantorH duas mentalidades por parte de regentes, ao trabalhar com seus cantores. A primeira a mentalidade que eu chamo de extrativista, ou seja, aquela em que o regente procura explorar ao mximo seus cantores, preparando programas e fazendo apresentaes em nmero infindvel. Nesse tipo de abordagem, no se pensa no desenvolvimento do cantor, que levado at exausto, saindo, finalmente, do coro, traumatizado, e dando lugar a outros cantores, que sero explorados da mesma maneira, num crculo vicioso malfico. A segunda mentalidade aquela em que o regente procura desenvolver seus cantores, utilizando, para tal, uma srie de metodologias ou, simplesmente, sua criatividade. Nesta segunda vertente, o regente est consciente de que, quanto mais seus cantores se desenvolverem, mais retorno ter o trabalho, tanto para ele como para os seus coralistas. A palavra-chave prazer, mas no apenas no sentido puramente de lazer, mas, principalmente, o prazer de estar desenvolvendo uma atividade inteligente, que conduz ao crescimento. Todos ns sabemos que a atividade coral desenvolve tanto o lado fsico quanto psicolgico de um cantor. Desde o simples ato de respirar de maneira disciplinada at o se expor, cantando, traz benefcios permanentes para um coralista. Alm disso, a atividade coral associativa por excelncia, sendo um trabalho de equipe, que, bem conduzido, prepara indivduos para uma convivncia positiva em sociedade. Quero abordar, aqui, porm, o desenvolvimento estritamente musical e intelectual de um cantor de coro. Trabalhar com coralistas deve ser um processo permanente de desenvolvimento musical e intelectual, em vrios nveis. E no digo isso apenas em relao a coros iniciantes, mas em relao a qualquer coro, em qualquer estgio. H sempre algo a ser desenvolvido num cantor de coro. Abordarei, em seguida, alguns aspectos desse processo de desenvolvimento do cantor. a) Musicalizao Ensaiar uma oportunidade para um processo permanente de musicalizao. O regente no pode desprezar qualquer oportunidade de transformar algum aspecto da obra que est preparando num exerccio para desenvolvimento da musicalidade de seu cantor, seja no aspecto rtmico ou das alturas, meldica ou harmonicamente. No se trata, apenas, de resolver pontos problemticos de uma determinada obra. preciso ter em mente que tudo o que se trabalha numa obra se reflete em todas as obras do repertrio do coro. O cantor vai adquirindo a capacidade da analogia e, com isso, muitos problemas vo sendo resolvidos por eles prprios, j sem a necessidade de interveno do regente. um engano achar que em todo ensaio o repertrio inteiro deve ser passado, repetitivamente, para que os cantores no esqueam.

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b) Afinao A afinao um dos itens mais exigidos de um coro, principalmente em execues a cappella. Mas o que significa afinao, esta quimera to buscada e to debatida? A avaliao da boa ou m afinao passa atravs do filtro do sistema de afinao em que um determinado grupo cultural opera, e que condiciona, conseqentemente, o gosto dos agentes envolvidos: regente, coralistas, pblico, etc. Sabemos que houve muitos sistemas de afinao em todos os perodos da histria da msica ocidental. Embora o sistema chamado de temperamento igual tenha aparentemente prevalecido, muitos outros sistemas ainda convivem, hoje em dia, ainda mais com a constante prtica de Msica Antiga. Considerar uma afinao boa ou m tem, tambm, uma margem operacional. Um acorde perfeitamente afinado, dentro de uma obra longa, uma ocorrncia rara, j que depende de tantas variveis. Imagine-se todos os outros acordes da mesma obra ou de outras obras. Mas isso no impede que consideremos uma determinada performance de um determinado coro como estando afinada. Por outro lado, a nossa experincia demonstra que coros e performances realmente desafinados so uma realidade. possvel trabalhar a afinao de um coro, seja qual for o sistema adotado. Esse trabalho constante, em cada ensaio. Devemos considerar que a capacidade de afinao , antes de tudo, uma questo mental. necessrio, assim, estar direcionando sempre a ateno dos cantores na questo da afinao, mesmo que, num primeiro momento os eles nem se dem conta do fato. Em seguida, h muitos exerccios que podem ser feitos com coros visando a abordagem de problemas especficos de afinao: saltos ascendentes, o segundo e sexto graus de uma escala, sensveis, notas repetidas, quintas justas, etc. H livros e apostilas inteiros com exerccios para desenvolvimento da afinao de conjuntos corais. Mas o problema de afinao de um coro no apenas auditivo, mental. Passa, tambm, por uma srie de outras contingncias, entre as quais, a mais importante est nas falhas na qualidade da emisso vocal do cantor. Questes como postura, disposio psicolgica e fsica do cantor, condies acsticas do local de ensaio ou apresentao, etc. so outros fatores importantes a serem considerados, quando se fala da afinao de um coro. Cabe, ainda, neste item, abordar a utilizao de instrumentos de teclado ou violo como suporte para o coro. claro que se esses instrumentos esto integrados na partitura, como elemento essencial, no cabe a discusso. Estou me referindo quelas situaes em que os instrumentos so utilizados para dar suporte na afinao do conjunto. H regentes que jamais utilizam instrumentos em seus ensaios, e h outros que jamais deixam de utiliza-los em ensaios a apresentaes. Acho que tudo uma questo de meio-termo. A utilizao eventual de um instrumento de teclado para dar um suporte inicial numa obra com harmonias a que o grupo no est habituado, pode ser extremamente bem-vinda. Mas, utilizar o instrumento permanentemente como muletas, para que o coro no perca a

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afinao totalmente danoso ao desenvolvimento dos coralistas. Jamais eles tero a chance de evoluir em direo a uma realizao a cappella? O regente, temeroso, cria um crculo vicioso extremamente pernicioso. preciso ter coragem de jogar as muletas fora. Levanta-te e anda! c) Emisso vocal A sonoridade de cada coro nica, na medida em que ela o resultado da soma da qualidade vocal de cada um de seus cantores. Cada cantor que chega num coro traz consigo sua histria vocal, com qualidades, defeitos, peculiaridades de timbre, etc. Se, por um lado, devemos valorizar a voz de cada cantor nosso, por outro lado, no s precisamos desenvolver sua voz, mas pensar sempre num resultado cada vez mais homogneo do som do coro. A busca do som homogneo no significa, necessariamente, a anulao da voz de cada cantor. Acho isso, at mesmo, impossvel. Cada coro deve buscar seu som homogneo, de acordo com as caractersticas vocais de seus cantores. Outras questes vo surgindo quando se fala em homogeneidade de som. E quando o objetivo de um determinado coro no essa homogeneidade? Essa homogeneidade pressupe os princpios do bel-canto, ou qual? Devemos negar manifestaes de sonoridades que vo contra a boa maneira de cantar? Todas as manifestaes so possveis. No possvel estabelecer qualquer tipo de censura prvia. O nosso direito, apenas, gostar ou no gostar. De qualquer maneira, necessrio enfatizar que a sonoridade de um coro, ou melhor dizendo, o tipo de emisso vocal utilizado, tem uma relao direta com o tipo de repertrio a ser executado e, muito importante, com aquilo que se pretende exprimir com o repertrio. Da mesma maneira que no podemos imaginar um moteto renascentista cantado por pessoas com vozes de lavadeiras, tambm no podemos aceitar que uma pea de caractersticas folclricas seja cantada com vozes opersticas, com vibratos excessivos. Por outro lado, preciso estarmos abertos para a possibilidade de um mesmo coro vir a utilizar emisses diferentes para obras diferentes. Ponto polmico. O trabalho de tcnica vocal de um coro costuma ser feito pelo regente, na maioria dos casos, mas tambm, em muitos conjuntos, por um profissional especfico: o professor ou professora de tcnica vocal. Mas, finalmente, a sonoridade de um coro um ideal e uma busca do regente. Nos casos em que o prprio regente conduz a preparao vocal de seu coro, pode ele criar as condies para alcanar seu ideal de sonoridade. O problema, aqui, que nem sempre ele est totalmente habilitado para lidar com uma srie de situaes mais complexas de tcnica vocal. De qualquer maneira, na medida em que ele buscar orientao nessa rea, seu trabalho ir se tornando cada vez mais consistente. A existncia de um profissional especfico para conduo da tcnica vocal apresenta muitas vantagens. Normalmente, ele estar bem preparado, extraindo resultados tcnicos de maneira mais rpida e eficiente. Por outro lado, a

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dificuldade pode estar na sintonia desse profissional com o regente. sempre uma situao delicada, que, se no for bem conduzida por ambos, leva a conflitos insuperveis. Uma condio inicial que o professor de tcnica vocal deve ser uma pessoa integrada ao grupo, participando como cantor ou cantora. Pobre do regente que tem que conviver com um profissional desse tipo que lhe tenha sido imposto de alguma maneira. Sou da opinio, ainda, de que o professor de tcnica vocal no deva atuar somente num determinado momento do ensaio, conduzindo o vocalize, mas deve fazer interferncias pontuais, durante todo o ensaio. Os problemas devem ser atacados no momento em que acontecem e no aps, quando j ningum se lembra. No entanto, tal dinmica de interrupo muito difcil de ser conduzida dentro do ensaio, no qual o regente tem uma aparente prioridade. No fcil conseguir o meio-termo ideal. Pode haver, ainda, o perigo de que o professor de tcnica vocal acabe adentrando aspectos interpretativos, tentando conduzir o ensaio em direo s suas prprias idias. H o risco, por outro lado, de que o regente venha a dar informaes que contradigam a linha que est sendo desenvolvida pelo professor de tcnica vocal. Uma questo sutil, nesse aspecto, est no gestual utilizado pelo regente, que influencia decisivamente no resultado sonoro de seu grupo. A experincia demonstra, com certeza, que o trabalho conjunto e integrado de um regente e de um professor de tcnica vocal, ambos competentes, conduz o coro a resultados impressionantes e marcantes. d) Leitura Aprender a ler msica, como j dissemos acima, um item necessrio para qualquer pessoa que lide com msica de alguma maneira. Para um cantor de coro, o solfejo torna-se ainda mais importante, j que ele deveria ser capaz de aprender sua parte apenas utilizando este recurso. O regente pode dar estmulo ao cantor para que procure aulas de solfejo, ou mesmo criar as condies, dentro do ambiente do coro, para que tal aula ocorra. No entanto, a melhor maneira de se aprender a solfejar est na prtica permanente, durante os ensaios. Todo cantor de coro deve ter consigo sua partitura, mesmo que nada saiba sobre notas ou valores. A experincia demonstra que cantores permanentemente estimulados a ler msica durante os ensaios desenvolvem essa habilidade de maneira espantosa. Alm disso, o permanente contato com uma partitura, durante o ensaio, permite que detalhes sutis da obra, tais como duraes de notas finais, colocao exata das dinmicas, etc. no se percam. Acho muito importante que um cantor possa executar um repertrio de cor, nas apresentaes ou em momentos determinados de um ensaio. Mas, a meu ver, um ensaio inteiro de cor um permanente fixar de vcios, um constante desaprender. Em suma, como costumo dizer para meus coralistas: uma burrice! Outra maneira de desenvolver ainda mais a leitura dos coralistas est em fazer com que eles leiam todas as vozes, guardados os problemas de tessituras.

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Evidentemente, coros muito iniciantes tero problemas com esse tipo de abordagem, que deve ser estimulada, entretanto, sempre que possvel. e) Percepo de forma Grande parte dos msicos costuma encarar uma obra musical como apenas uma seqncia de notas, sem perceber os vrios nveis de articulao presentes numa composio. As escolas formais oferecem, em suas grades curriculares, aulas de Anlise Musical, por exemplo, que tm por objetivo a reflexo sobre a estrutura musical. No sendo um ensaio de coro, porm, uma aula formal, necessrio que o regente use sua criatividade para fazer com que seus coralistas venham a entender os vrios nveis de articulao de uma pea de seu repertrio. necessrio, por exemplo, trabalhar sees diferentes de uma mesma obra sempre em ordem diversa, para que o cantor perceba que a msica feita de sees e que cada uma tem uma finalidade em si mesma. Uma das abordagens mais danosas que se pode fazer com um coro o ensaio de uma obra sempre da capo ao fim. Isso mata a percepo das vrias sees da obra. A utilizao, durante o ensaio, de expresses, tais como da segunda parte, da fuga, da nova tonalidade, etc., vai desenvolvendo o sentido de estrutura num cantor, mesmo que, num primeiro momento, ele nem se d conta sobre o que o regente est falando, exatamente. um processo continuado e longo, mas que traz excelentes resultados. Embora tenhamos a tendncia a enfatizar a importncia do regente no processo de transformao dos seus cantores, precisamos estar abertos e nos darmos conta das transformaes que ns regentes vamos sofrendo por influncia dos coralistas, processo sutil, no sempre consciente, mas de muita riqueza. Eu posso dar um depoimento pessoal sobre esse assunto. Ao voltar da Europa, onde fiquei totalmente imerso em msica erudita, acabei assumindo, alm do Coro de Cmera Pro-Arte, com seu repertrio predominantemente europeu, a direo do Coral Pro-Arte, conjunto cuja proposta era trabalhar um repertrio constitudo de arranjos, spirituals, etc. Eram pessoas muito musicais, com farta atividade na msica popular. Posso dizer que foram tempos de grande aprendizado para mim, passando a entender a maneira de fazer aquele tipo de repertrio, atravs da experincia deles. Adquiri muito swing e muita ginga e passei a conhecer um novo repertrio e novos arranjos, que influenciaram muito a minha maneira de pensar o Canto Coral. Convido aos regentes que leiam estas linhas a refletirem sobre at que ponto tm sido influenciados por seus coralistas, ou at que ponto esto abertos para que tais influncias ocorram.

A preparao do ensaioAt que ponto deve um regente preparar seu ensaio? Este , para mim, um ponto problemtico.

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Sem dvida, durante o estudo de uma obra, vo surgindo as idias sobre a maneira como conduzir o ensaio, em suas vrias etapas. Uma das preocupaes iniciais, principalmente na fase de leitura de uma nova pea, de que notas e ritmos errados no se estabeleam. a grande parania dos regentes. Ao estudarmos uma partitura, comeamos a perceber pontos onde, provavelmente, o coro ter dificuldades, tanto no ritmo, quanto nas alturas, ou na pronncia. O problema que provavelmente no significa certamente. A parania pode fazer ocorrer, por exemplo, que o regente fique buscando, durante todo o ensaio, aqueles pontos que ele previu. Se aqueles pontos no ocorrem, acaba o regente ficando perplexo, sem ter o que dizer, repetindo os trechos eternamente at que, eventualmente, o problema ocorra e ele aparea com a soluo to acalentada. Pior, ainda, a situao em que o regente est to preocupado com aqueles pontos previstos, que no percebe outros, mais graves, que ele no havia previsto. Sou da firme opinio de que o profundo conhecimento da partitura, associado com a postura de estar aberto para o que der e vier so as ferramentas indispensveis para uma boa conduo do ensaio de uma obra, em qualquer de suas etapas. O regente deve ser como um mdico, que, ao examinar e dialogar com seu paciente, diagnostica o problema e apresenta as solues adequadas, naquele momento. Como se pode imaginar um mdico planejando uma consulta, ainda mais de um paciente que ele talvez nunca tenha visto? Tenho a idia muito clara que o coro, a cada ensaio, um novo coro, que nunca vimos antes, imprevisvel. O trabalho de preparao do ensaio, por parte do regente, deveria incluir a preparao do material grfico a ser colocado disposio de seus coralistas. Todo coro usa, ou deveria usar, partituras, sejam copiadas mo, digitalizadas ou impressas. Um dos grandes problemas em ensaios a qualidade do material que se coloca disposio dos cantores. Na nossa realidade brasileira, sabemos que a presena da cpia xerox quase inevitvel, mas h certos cuidados a tomar, para que os ensaios sejam eficientes e as informaes importantes no sejam sonegadas: 1) a qualidade da reproduo deve ser a mais perfeita possvel. lamentvel ver com que tipos de cpia alguns coros trabalham, quase ilegveis, reduzidas, etc. 2) quando fazemos cpias xerox de partituras, a partir de livros ou coletneas, inevitvel que muitas informaes se percam. Pelo menos, devemos consignar na cpia o nome do compositor, com anos de nascimento e morte, quando sabidas. A transmisso sistemtica de cpias xerox em nosso pas faz com que o nmero de compositores annimos presentes em programas de concertos seja muito grande. 3) uma transcrio do texto literrio, para uma visualizao de conjunto, ou eventual trabalho de pronncia, agiliza as tarefas importante haver uma traduo desse texto, anexada.

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4) marcaes dos pontos de respirao obrigatria, ou incluso de sinais de dinmica e aggicos, ou quaisquer outros, no existentes no original, poupam tempo de ensaio. 5) fazer as cpias frente e verso, formando um caderno, evita viradas de pginas. A maneira correta de grampear as cpias , a meu ver, formando lombada. Acho pssimo o hbito de muitos regentes que grampeiam as folhas na extremidade superior, fazendo com que cada virada de pgina se torne uma grande agitao. 6) no devemos esquecer de numerar os compassos, no material que no os tiverem. Perde-se muito tempo num ensaio quando no se consegue localizar o ponto exato da partitura.

O Regente, o Coro e o PblicoO grande ritual da tribo do Canto Coral a apresentao. o momento to esperado do encontro de um coro e seu regente com o pblico, um grupo annimo, ou mais ou menos annimo. o momento em que uma forte influncia exercida de ambos os lados, um momento de transformao, tanto para o coro e seu regente como para o pblico. O que leva uma pessoa a ir assistir a uma apresentao de um coro? Inicialmente, devemos nos dar conta de que h dois tipos de pblico para uma apresentao de um coral. O primeiro grupo eu chamaria de pblico ativo e o segundo de pblico passivo. Este segundo grupo constitudo por aquelas pessoas que acabam assistindo a um coro no contexto de um evento maior: uma cerimnia cvica ou religiosa, um jantar, um evento ao ar livre, etc. Ou seja, as pessoas deste grupo no esto preparadas ou abertas para o que vai ocorrer. O primeiro grupo constitudo por aquelas pessoas que se dirigem a um determinado local para assistir a uma apresentao de um coro especfico, ou de vrios coros. Neste grupo contamos, antes de tudo, com os familiares dos coralistas e do regente, pblico sempre fiel e, muitas vezes, a nica audincia presente. Em seguida, vm os amigos ou colegas, que assistem apresentao para prestigiar os coralistas ou o regente. Esses dois grupos assistem apresentao, antes de tudo, pelos laos afetivos. Mas h outras motivaes: prestigiar o movimento do Canto Coral em sua comunidade, prazer esttico pura e simplesmente, prestigiar um determinado coral pelas suas qualidades, desejo de conferir a execuo de determinada obra por aquele coral, etc. A relao de qualquer intrprete com sua platia sempre complexa. H sempre a necessidade de ser bem recebido e apreciado pelo pblico. Afinal de contas, na maior parte dos casos, o intrprete est trazendo o resultado de um longo trabalho de preparao, dando tudo de si, fazendo algo em que acredita profundamente. Num coro, as expectativas em relao reao do pblico so ainda mais complexas. So vrios indivduos, cada um com uma histria

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psicolgica diferente, com expectativas diferentes. E tudo isso, o regente tem que saber administrar muito bem, alm de sua prpria expectativa. A recompensa vem, simbolicamente, com o aplauso. Mas h muitas circunstncias de aplausos. H tipos de coro ou de obras que ensejam manifestaes de grande espontaneidade por parte do pblico, ao final da apresentao. Mas h tambm um tipo de repertrio mais denso, mais complexo, que costuma deixar o pblico reflexivo, no se permitindo uma reao espontnea. A experincia tem me demonstrado que esse tipo de reao muito profundo e muito valioso. O problema fazer o coro entender esse tipo de reao, introvertida e no ficar frustrado com a aparente falta de calorosidade da audincia. O fio condutor de uma apresentao , normalmente, o repertrio, ou seja, o conjunto de peas apresentadas. Mas um programa muito mais do que simplesmente uma srie de obras, uma depois da outra. O programa deveria ser como se fosse uma nica obra, em vrias sees. A montagem da ordem das peas numa apresentao, , assim, um fator de suma importncia para o sucesso da apresentao, tanto no aspecto puramente esttico como no tcnico. No aspecto esttico, a construo de uma determinada lgica dentro de um programa com vrias obras faz com que algumas sejam realadas e outras assumam um carter apenas complementar. inevitvel esse jogo de claro / escuro. Cabe ao regente construir seu quadro, de acordo com os princpios estticos que valoriza, e que possam ser entendidos, tanto pelo coro, como pelo pblico, sem muita necessidade de verbalizao. Mas h, tambm, os aspectos puramente tcnicos. Numa apresentao mais longa, por exemplo, a distribuio das obras, de acordo com as potencialidades do grupo, vocais e de concentrao, pode ser um fator de sucesso ou de fracasso. Sendo cada grupo um grupo, e tendo cada conjunto de obras suas especificidades, no h como definir qual seria esse ideal. A nica questo que o coro deve estar sempre renovado em suas energias, a cada pea que executa. Questes tcnicas mais sutis tambm podem influenciar no resultado da apresentao. Chamo a ateno, especialmente, para as relaes tonais entre as obras que esto sendo executadas. Vrias peas seguidas, em mesma tonalidade, podem levar fadiga, tanto do coro quanto do pblico. No coro, esse aspecto acaba se refletindo na afinao, que tende a baixar. Por outro lado, executar uma obra, por exemplo, em R maior e a seguinte em L bemol maior, uma relao de trtono, pode dar um n na cabea dos coralistas. Ou executar uma obra em Mi maior e a seguinte em F maior, pode fazer com que a segunda queira se acomodar na tonalidade da primeira, um semitom abaixo. Nesse ltimo caso, uma inverso das peas tende a ser mais efetiva. A durao de um concerto coral deve ser bem pensada, ainda mais se for a cappella. Por mais bem preparado que esteja o grupo, ou por melhor e diversificado que seja o repertrio, o meio tmbrico uniforme tende a cansar a platia. Sou sempre da opinio de que melhor fazer uma apresentao no muito longa e deixar a audincia com a sensao de quero mais, do que fazer uma

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apresentao longa e criar a sensao de que est muito bom, mas poderia acabar logo. Embora um coro dependa muito da aprovao do pblico que vai ouvi-lo, no pode se deixar estar sempre na mo do pblico, s vindo a executar tipos de obra que aquele pblico est acostumado a ouvir, ou da maneira que ele est acostumado a ouvir. necessrio inovar, sempre. Dentro da perspectiva da transformao, na qual venho insistindo neste texto, importante dar oportunidade ao pblico de vir a conhecer novas obras, ou novas maneiras de executa-las, mesmo correndo o risco de uma possvel desaprovao, num primeiro momento. preciso ter grande respeito pelo pblico, qualquer que ele seja. H coros, por exemplo, que se recusam a cantar para platias mais simples, ou de trazer para essas platias obras mais densas ou difceis. A minha experincia demonstra que a platia, quanto mais simples ou humilde , mais se envolve na apresentao, mesmo com obras mais difceis. Para essas pessoas, todo gesto sincero de doao muito importante. A gratido que essas pessoas costumam expressar ao final das apresentaes sempre comovente e estimulante. preciso difundir a boa msica para todos, sem distino de credo, cor, situao social ou idade. H muitos canais pelos quais passa a compreenso e a emoo geradas por uma obra musical. O respeito pelo pblico pode se manifestar, finalmente, tambm, em explicaes sobre as obras que esto sendo executadas. No h audincia que no aprecie.

O Regente e a PartituraNa nossa tradio ocidental de msica escrita, toda composio surge com um compositor, que consigna numa folha de papel, ou outro suporte de escrita, a sua obra. Essa obra passa, ento, por um processo de transmisso, atravs de cpias, manuscritas ou digitalizadas, e edies publicadas. Nesse processo de transmisso, a obra vai, inevitavelmente, sofrendo modificaes, j que em cada etapa do processo h agentes modificadores - copistas, editores e o prprio compositor - que interpretam os dados escritos, segundo as convenes de escrita, auditivas, e de execuo vlidas para esses agentes e seu meio cultural. Assim sendo, preciso ter sempre em mente que o que est numa partitura nem sempre corresponder ao pensamento original do compositor. necessrio estar sempre alerta com aquilo que est escrito numa partitura, que, muitas vezes, quase uma recomposio por parte do editor ou do copista. Por tudo isso, no caso de edies impressas, deve o regente buscar sempre aquelas que sejam confiveis, e uma maneira prtica de se saber isso se a edio contm informaes sobre as eventuais (e muitas vezes necessrias) intervenes do editor, o chamado Aparato Crtico, ou, pelo menos, um breve comentrio sobre tais interferncias.

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A comparao entre edies diferentes da obra que se pretende realizar, quando isso possvel, abre para o regente coral a possibilidade de um julgamento mais efetivo sobre os problemas nessa rea, permitindo a tomada de decises mais conscientes.

Etapas na preparao de uma partituraQuanto maior o conhecimento da partitura por parte do regente, mais efetiva ser sua atuao, tanto na preparao da obra, nos ensaios, quanto no desenvolvimento de seus cantores. Para conhecer bem a partitura deve o regente percorrer vrias etapas, das quais abordarei algumas. Todo estudo de uma partitura coral deveria comear pelo texto literrio ou religioso. No podemos esquecer que, na maior parte dos casos, o texto foi o ponto de partida para o prprio compositor, que o declamou para si, entendeu seu significado e sua eventual utilizao. O regente, ao percorrer o mesmo caminho, partindo do texto, ter uma boa chance de vir a conhecer bem a obra. Percorrer tal caminho significa transcrever o texto literrio parte, traduzi-lo, quando em lngua estrangeira, analisa-lo, investigar as nuances de pronncia e declama-lo para si, at vir a conhece-lo to bem, como se o objetivo fosse apenas esse. Alis, muitos textos utilizados em obras so to fascinantes, que at chegamos a esquecer do resto. A etapa seguinte o conhecimento da msica propriamente dita, das notas, das harmonias, de sua estrutura. Para tanto necessrio que o regente solfeje a partitura tanto horizontalmente quanto verticalmente (difcil!). Outros exerccios incluem tocar a partitura ao piano, dependendo da habilidade do regente ao teclado, tentando ouvir cada voz. Outra possibilidade est em tocar uma voz e solfejar outra, ou tocar vrias vozes e solfejar uma outra. Tudo isso continuar a depender da habilidade do regente no teclado. Outro exerccio interessante tentar cantar uma voz e bater outra com a mo, ou bater duas vozes. Dependendo do grau de dificuldade da obra, deveria o regente chegar a tentar bater quatro vozes, duas com as mos e duas com os ps. Com cinco vozes, pode-se incluir a voz. Com seis, a a coisa fica difcil... Esses ltimos exerccios so excelentes para o desenvolvimento da compreenso rtmica da obra e do desenvolvimento da coordenao motora do regente, o que vai se refletir diretamente na sua capacidade de se expressar com gestos diante de seu coro. Para compreenso da estrutura da obra, o trabalho j foi iniciado com o estudo do texto. A questo, aqui, compreender como o compositor estruturou sua composio a partir do texto, tomando suas decises. A presena do texto literrio ou religioso uma enorme vantagem, se compararmos, por exemplo, com o estudo de uma obra puramente instrumental. Uma outra etapa seria comear a construir o gestual de regncia que ser utilizado na obra, construindo a chamada linha de regncia. Essa uma etapa na qual tenho muitas dvidas. Se construir uma linha de regncia a priori pode ser interessante na abordagem inicial de uma obra, pode, entretanto, levar a um

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enrijecimento das possibilidades e das circunstncias que vo surgindo no decorrer de ensaios e apresentaes. Sou da opinio de que o bom conhecimento da obra, aliado com o domnio da tcnica gestual per si, acaba levando s solues adequadas, sem a necessria construo de um gestual para aquela obra especfica. um ponto polmico. Gostaria de insistir, sempre, que gestual de regncia no coreografia, onde gestos vo sendo estudados at que estejam prontos. De qualquer maneira, recomendo vivamente que o regente faa exerccios, tais como reger o compasso da obra com uma das mos e bater uma das vozes com a outra. Esse , na minha experincia, o exerccio mais poderoso na construo de uma boa coordenao motora e na solidez rtmica de um regente. Outras etapas podem ser ainda cogitadas. Ouvir gravaes da obra pode ajudar o regente a descobrir possibilidades novas na sua interpretao, j que, dificilmente, dois regentes diferentes executaro uma mesma obra de uma mesma maneira. Acho, no entanto, que ouvir gravaes de uma obra que se vai executar s deveria ocorrer depois que o regente j tiver alinhavado na cabea suas prprias idias. O perigo da auto-anulao, diante da autoridade da gravao, muito grande, ainda mais em regentes inexperientes. Uma coisa, porm, certa: ouvir gravaes para substituir os estgios de preparao da obra, tal como conhecer as notas, impensvel. Transforma o regente em mero repetidor, um autmato. Uma possibilidade nova, bastante interessante, o regente copiar a obra, utilizando softwares de msica, tais como Encore ou Finale. O ato de ir copiando, associado sempre com o ouvir o que se est copiando, um poderoso exerccio para se conhecer uma obra. No se trata, a meu ver, de uma decoreba , na medida em que o regente est ativo no processo, nas idas e vindas inevitveis que vo acontecendo. Copiar mo tambm pode ser um processo de grande aprendizado, na medida em que desenvolve uma audio interna. Outras etapas na preparao de uma obra podem incluir o conhecimento das circunstncias em que a obra foi composta, a biografia do compositor e, mesmo, a audio de outras obras do compositor, ainda que de gneros completamente diferentes. Como se entende muito melhor um moteto de Brahms, por exemplo, ao se ouvir uma sinfonia desse compositor! Muitas vezes, ficar o regente frustrado por ter estudado tanta coisa e poder expressar to pouco sobre seus conhecimentos, em seus ensaios. No importa! Tenho a conscincia de que 90% das coisas que sei sobre uma obra no chegam a ser verbalizadas nos ensaios, mas estou firmemente convencido de que quanto mais sei coisas inteis sobre uma obra, mais a apresento de forma convincente para meu coro, sem a necessidade de verbalizaes. H muita coisa que passamos aos cantores simplesmente nas entrelinhas. Finalmente, h o prazer, simplesmente, do conhecimento que adquirimos atravs de nosso estudo, e do desenvolvimento que significa para ns, enquanto regentes. O grande fato que, atravs do estudo da obra, em suas vrias etapas, o regente passa a imaginar a sua realizao. Essa imagem mental que ele faz dessa realizao que vai conduzir seus ensaios e apresentaes, sendo o pressuposto de todo o seu trabalho.

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Muito se poderia falar, ainda, sobre a preparao de uma partitura. So tantos itens. claro que estamos descrevendo, aqui, uma situao ideal, onde o regente teria todo o tempo do mundo para estudar sua partitura, alm dos recursos para tal. Sabemos que, na prtica, nem sempre tal estudo possvel. Quantas vezes chegamos num ensaio sem termos, sequer, olhado uma nica nota do que vamos fazer! No devemos nos martirizar por isso. Precisamos, sim, termos a idia, sempre presente, de que atravs do estudo que desenvolvemos a ns e nosso coro. O que no possvel valorizarmos a permanente improvisao. Acaba no dando certo.

Modificaes em relao partituraExiste uma farta literatura que trata da relao dos intrpretes com a partitura, que, supostamente, como vimos acima, registraria as intenes do compositor com relao sua obra. No se tratando, aqui, de um texto acadmico, no citarei esses vrios autores e essa grande discusso. J vimos, acima, como o processo de transmisso de uma obra, desde sua concepo pelo compositor, introduz modificaes no texto original. Assim sendo, o material que chega s mos de um regente coral ter certamente passado por todo esse processo, e o regente coral, como mais um elo nessa cadeia de recepo, ir, tambm, trazer modificaes ao texto que est sua frente. Ningum discutir que h elementos que necessariamente sero modificados pelo regente, a partir de sua imaginao da obra: tempo, dinmica, aggica, etc. impossvel imaginar que dois regentes diferentes, mesmo trabalhando a partir de uma mesma edio, no cheguem a resultados diversos nesses parmetros interpretativos bsicos. Qual a intensidade exata de um forte ou de um piano? Qual a medida exata de um rallentando? Gostaria de comentar, aqui, porm, algumas outras possibilidades de modificaes nas informaes trazidas pelas partituras, que parecem mais ousadas. a) transposio - porque devemos realizar as obras na altura em que esto registradas na partitura? De sada, sabemos que, historicamente o diapaso variou muito, fazendo com que as notas escritas nas partituras soassem, na verdade, em alturas diferentes daquelas de hoje. Alm disso, no h garantias de que o editor ou copista da pea no tenham, eles mesmo, modificado a altura escrita original. Quando tal informao vem consignada na partitura, j h um ponto de partida para a crtica. Mas, e quando no? Esses j so pontos iniciais que criam abertura para uma reflexo sobre a questo da transposio. Entretanto, pretendo abrir a discusso para questes prticas, que podem levar a modificaes na altura em que uma obra est escrita. Uma questo essencial, neste aspecto, est no seu reflexo direto na qualidade da emisso das vozes.

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Cabem aqui as perguntas: por que deixar um regente de executar uma obra, que, na sua altura original, apresenta notas excessivamente agudas para sopranos, ou outra obra que apresenta notas excessivamente graves para os baixos? No vejo porque no transpor a pea um ou dois semitons abaixo ou acima, para possibilitar que esses naipes se sintam mais confortveis. Isso, naturalmente, s se torna vivel na medida em que no venha a criar problemas para outras vozes. O problema, entretanto, no se resume a tessituras extremas. A experincia me tem demonstrado que a altura em que uma obra est escrita pode perturbar a prpria capacidade de afinao do grupo, naquela obra. Muitas vezes, tal problema ocorre pelo fato da obra acabar atingindo os pontos fracos dos diversos naipes: passagens de registros, etc. Muitas vezes, uma transposio, acima ou abaixo, consegue tirar as vozes dessas armadilhas. Mas a questo da mudana de altura de uma obra vai mais longe, alm dessas decises permanentes. A experincia tem demonstrado, tambm, que, muitas vezes, necessria a mudana de altura em determinadas circunstncias isoladas. As condies acsticas do local de uma apresentao uma delas. Locais reverberantes, tais como igrejas muito grandes, costumam demandar afinaes mais altas e locais secos, como teatros, pedem afinaes mais baixas. A situao momentnea de um coro, desmotivado ou cansado para um determinado concerto, enseja, por exemplo, a subida de um meio tom, o que d um gs a mais para o grupo. S temos que tomar cuidado quando o tiro sai pela culatra. Costumo narrar uma circunstncia com o Coro de Cmera Pro-Arte, que, ao fazer uma apresentao em outra cidade, estava muito cansado com a viagem. Decidi subir a afinao da primeira obra a ser cantada. O problema que o coro subiu mais meio tom e o resultado foi uma simples gritaria. Finalmente, devo dizer que mudar a altura de uma obra que um coro executa h muito em seu repertrio pode dar um novo vigor a essa obra. refrescante. De qualquer maneira, preciso sempre levar em conta de que modificao nas alturas das peas tem duas conseqncias inevitveis: subir a afinao leva a mais brilho e descer a afinao torna a obra mais opaca, ou mais discreta. Esse resultado deve ser criteriosamente avaliado. A transposio pode, e deve, ser usada com finalidades didticas, durante ensaios. Por exemplo, em trechos que apresentam problemas de compreenso harmnica ou de afinao, que so resolvidos fazendo com que o coro os cante em transposies diferentes, como se faz num vocalize. Alm disso, esta modificao sistemtica das alturas, como exerccio, leva a uma agilidade do cantor em relao a cantar uma obra em qualquer altura, o que d mais inteligncia ao grupo. A questo fundamental no est em fixar alturas absolutas a martelo no ouvido dos coralistas, mas permitir que eles estabeleam relaes intervalares e harmnicas nas obras que executam. Agora, por favor, no me falem daquela soluo tola de transpor uma pea para cima para que quando ela caia na afinao, acabe soando na altura certa. Todo esse trabalho de transposio tem que ser acompanhado auditivamente pelo regente, que deve estar capacitado para cantar as vrias vozes em alturas

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diferentes e, eventualmente, ser capaz de tocar as partes transpostas num instrumento der teclado. claro que em peas com acompanhamento instrumental as chances so poucas para transposies. b) texto literrio ou religioso Nem sempre a colocao do texto literrio que acompanha as notas reflete uma situao original, feita pelo compositor. comum encontrarmos manuscritos, principalmente at meados do sculo XVI, onde as notas esto de um lado e o texto do outro, cabendo ao cantor, no momento da execuo, aplica-lo corretamente, segundo regras vigentes em tratados da poca. Essa situao mudou muito, de l para c, com uma preocupao cada vez maior por parte dos compositores em controlarem esse parmetro fundamental numa obra vocal. Vez por outra, entretanto, problemas acontecem, principalmente a partir de situaes geradas pelos editores modernos, que adotam solues muitas vezes questionveis. Quem lida com msica brasileira do sculo XVIII freqentemente encontra algumas incoerncias desse tipo. Por outro lado, arranjos modernos podem apresentar problemas de colocao de texto que dificultam, muitas vezes, a compreenso dos cantores e o andamento de ensaios. Em todos esses casos, deve o regente avaliar o problema criteriosamente e, eventualmente, introduzir modificaes na partitura que estiver utilizando. A palavra criteriosamente fundamental nessas decises, seno corremos o risco de alterarmos significados essenciais nas obras. mais um ponto polmico, sem dvida. c) traduo do texto literrio Necessidades circunstancias levam, muitas vezes, a que o regente traduza o texto para o portugus, eliminando o texto em sua lngua original. Esse tipo de situao ocorre, com freqncia, no mbito dos coros evanglicos, pela importncia que assume o entendimento do texto religioso que est sendo cantado, tanto pelo coro quanto pelo pblico que ouvir as apresentaes do coro. Muitos questionam tal prtica, mas direito do regente introduzir tal modificao. H outros tipos de regente, entretanto, que tambm adotam essa prtica, partindo da noo de que cantar em outra lngua pode ser muito difcil para um cantor. Tudo sempre uma questo de meio termo. Acho que introduzir novos idiomas para cantores, atravs do repertrio, um estmulo para o aprendizado desses idiomas. Eu falo por experincia prpria, j que cantar em outras lnguas sempre me despertou a curiosidade para vir a entender exatamente o que estava cantando e, com isso, aprendi vrios idiomas. Tudo oportunidade para enriquecimento e no podemos sonegar informaes para nossos coralistas, mesmo com as dificuldades que venhamos a enfrentar.

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d) notas As notas parecem ser um nicho sagrado e intocvel, por, aparentemente, refletirem o pensamento do compositor da maneira mais direta. No entanto, muitas circunstncias tornam necessrias modificaes de notas. Observemos algumas. Inicialmente, precisamos entender que notas erradas existem, mesmo em partituras impressas. Esse problema costuma acontecer, mais comumente, em partituras copiadas, seja mo ou utilizando softwares de msica. O grande problema que o julgamento de notas certas e erradas passa por um condicionamento esttico de quem est julgando essas notas, no caso o regente. preciso ter um bom conhecimento da msica, do compositor ou arranjador, para tomar tal deciso de modificao de notas, de maneira criteriosa, seno acabamos recompondo a msica. No mbito da msica colonial brasileira encontramos, por exemplo, inmeras circunstncias de quintas paralelas, dobramento de sensveis, etc., situaes essas que estariam contrrias s boas normas da harmonia moderna. No entanto, o conhecimento adequado desse repertrio nos mostra que tais desvios esto totalmente no mbito do estilo dessas obras e corrigi-los falseia completamente a prpria manifestao estilstica dos nossos compositores dessa poca. Um item especialmente problemtico, no que diz respeito modificao de notas, est na eventual necessidade de se eliminar ou introduzir acidentes. Esse problema est especialmente presente na msica da Renascena, com suas regras de musica ficta. Aqui, tambm, deve o regente avaliar a situao criteriosamente, a partir de estudos sobre o assunto, comparaes com outras edies, etc. Pequenos pecados tambm podem ser cometidos por regentes, ao modificarem, por exemplo, certas condues de vozes, para favorecerem o mbito vocal de seus coralistas. Esse problema costuma acontecer, com freqncia, na linha do baixo, onde, s vezes, a modificao da oitava de uma nota para cima, por exemplo, permite que seus baixos, no to graves, possam executar a obra. So circunstncias muito pontuais, que, a meu ver, no chegam a comprometer a integridade da obra. O contrrio, s vezes acontece, quando, por exemplo, um regente que possua baixos profundos, adquira o hbito de modificar as cadncias finais fazendo soar notas oitava abaixo, gerando acordes com especial enriquecimento de harmnicos. Isso tambm pode acontecer com o regente que possua sopranos especialmente agudas, e que, por isso, introduz notas agudas para favorecer o seu naipe. Tudo isso possvel. Ningum pode proibir. Mas preciso estar sempre atento mudana inevitvel do significado esttico que tais mudanas provocam. Uma situao ainda mais delicada acontece em obras que possuem complexas condues de vozes, s vezes questionveis. Reporto-me, especialmente, a circunstncias nas obras de Francis Poulenc, que costuma conduzir suas vozes da maneira mais improvvel, gerando enorme dificuldade para os cantores. Sou da opinio de que, eventualmente, modificaes como, por exemplo, trocar algumas notas entre contraltos para sopranos, ou entre tenores

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para baixos devam ser introduzidas, na medida em gerem conforto para os executantes, mas no prejudiquem o sentido harmnico do trecho. Nesse caso, h tambm implicaes tmbricas, verdade. necessrio alertar, nesse ponto, aos regentes que, muitas vezes, modificam as oitavas em que linhas inteiras esto escritas. Tal circunstncia acontece com regentes que querem a todo custo realizar uma obra a quatro vozes mistas, mas que no tm as quatro vozes e comeam a introduzir modificaes que invertem acordes, gerando resultados pavorosos. Tais coisas, infelizmente, acontecem. e) modificao das vozes executantes A msica renascentista e a barroca apresentam, muitas vezes, problemas quanto tessitura das vozes de contralto e tenor, j que, naquela poca, os coros eram masculinos e predominavam as vozes dos contratenores ou falsetistas. As edies modernas nem sempre resolvem o problema de forma satisfatria, criando a necessidade do regente coral chegar s suas prprias solues. s vezes, a parte destinada para contralto pode vir a ser executada por tenores, e vice-versa. H, ainda, a soluo de se criar um naipe misto de tenores e contraltos, o que gera um efeito muito especial. A mesma questo ocorre com a msica brasileira do perodo colonial. Outra situao muito recorrente quando um determinado naipe tem um solo, mas no h cantores suficientes para dar uma densidade adequada. No vejo porque no utilizar outros cantores para reforar, desde que sejam de naipes semelhantes. f) modificao de compassos A modificao de compassos, ou seja, de acentuao um problema sempre presente. De sada, a msica da Renascena, onde no se utilizavam barras de compassos nas partes vocais, geralmente cavadas, enseja tais situaes. As barras de compassos existente nas partituras modernas dessa msica so sempre o resultado da interpretao de algum editor e que, nem sempre, podem coincidir com as preferncias que o regente coral possa ter. Normalmente, esse problema est associado com a prosdia das obras, e trabalhar com uma edio que vai sempre contra a prosdia que nos parece mais natural pode dificultar muito o aprendizado de uma obra. Tal problema pode estar presente at em obras de compositores mais recentes. O regente no deve hesitar em modificar essas situaes incmodas, seja atravs da utilizao do gestual adequado nova acentuao, segundo sua viso, ou, at mesmo, recopiando a obra, com a nova distribuio dos compassos. Como sempre venho alertando, tais decises devem ser baseadas em critrios muito claros e bom conhecimento das obras. Mais uma vez me reporto a Poulenc, com sua prosdia atravessada do latim, afrancesado, gerando resultados aparentemente errados. O problema, nesse caso, que alterar os compassos, para favorecer uma prosdia correta, altera todo um trao estilstico consciente desse compositor francs.

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Outro problema recorrente em msica renascentista e barroca a presena das hemiolas, que devem ser, necessariamente, executadas como tais.

O Regente, o Coro e a PartituraComo escolher o repertrioO repertrio, ou seja, o conjunto de obras que um determinado coro executa, o elo principal entre todos os agentes que participam da atividade coral coralistas, regente, pblico - e o fio condutor das atividades desenvolvidas pelo conjunto - ensaios, apresentaes, etc. Quais os critrios e circunstncias para a escolha do repertrio para um coro? A questo, a nosso ver, passa, antes de tudo, pela relao entre o regente e o os coralistas, que como um casamento, ou seja, pessoas que estabelecem um vnculo entre si, visando, entre outras coisas, um desenvolvimento comum. Na escolha do repertrio esto envolvidos dois fatores principais, querer e poder, e os dois agentes essenciais, regente e coralistas, estes ltimos pensados em bloco, ou seja, o coro. Entenda-se poder como a habilidade musical para realizar a obra. O que leva um regente a querer incluir no repertrio uma determinada obra? 1) o mero prazer esttico que lhe desperta a msica ou a cano a partir da qual foi feito um arranjo. 2) a qualidade do texto literrio ou religiosos a partir do qual a obra foi composta. Aqui cabe um desdobramento que inclui o tipo de mensagem que tal texto pode trazer ao regente, como, por exemplo, uma mensagem religiosa ou de cunho poltico. 3) a percepo de que a realizao de tal obra poder ser um fator de crescimento para si, como regente, ou para o coro. 4) a necessidade sutil de encaixar uma pea com determinadas caractersticas dentro de um programa mais amplo. 5) a idia de que a execuo de tal obra trar prestgio a ele ou ao coro, ou impacto no meio musical. 6) o desejo de prestigiar um compositor ou arranjador do prprio grupo, ou ligado ao grupo de certa maneira. Pode ser, ainda, pela nacionalidade ou naturalidade do compositor. O que leva um coro a querer cantar determinada obra? Certamente os itens 1 e 2, acima, tambm esto presentes no querer do coro. O item 5, acima, tambm pode estar presente na vontade do coro, principalmente quando os cantores acham importante cantar uma obra que outros coros tambm cantam. Parece que isso d status. O item 6 pode ser mais uma motivao.

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Na combinao entre querer e poder, do regente e do coro, surgem oito situaes bsicas: a) o regente quer, mas o coro no quer. b) o coro quer, mas o regente no quer. c) o regente e o coro querem. d) o regente e o coro no querem. e) o regente pode, mas o coro no pode. f) o coro pode, mas o regente no pode. g) o regente e o coro podem. h) o regente e o coro no podem. Nas duas primeiras situaes, preciso uma negociao entre o coro e o regente. O regente habilidoso, com boa motivao, tem boas chances de conseguir que um coro venha a realizar uma obra, qual, a princpio, no se afeioou. O regente habilidoso deve ser tambm, por outro lado, sensvel aos desejos que vm de seu coro. claro que um regente bem estruturado tem um planejamento amplo, que seus coralistas nem sempre conseguiro perceber, mas alguma flexibilidade necessria, mesmo que isso venha a significar um desvio do seu planejamento a curto, mdio e longo prazo. Nas duas situaes seguintes, c e d, no ocorrero conflitos, claro. As relaes mais complicadas surgem no poder. Vejamos a situao e. Normalmente, o regente tem uma formao musical frente de seus coralistas. Por isso, ele se torna regente daquele grupo, um lder, mesmo que seja na base do em terra de cego, quem tem um olho rei. Quando, porm, os dois elementos, regente e coro, vo se distanciando muito na sua habilidade e conhecimento musicais, certamente conflitos ocorrero. inevitvel que o regente v se sentindo frustrado por no poder realizar obras que ele gostaria de abordar, mas que seu coro no poderia amadurecer. Aqui, deveria o regente ser honesto consigo mesmo e mudar os componentes de seu grupo ou mudar de grupo. Mas, nem sempre isso possvel. Nesse caso, ou o regente se torna um abnegado, desenvolvendo um trabalho estritamente didtico e de qualidade, dentro de um repertrio mais simples, ao alcance de seu coro, ou ele corre o risco de estabelecer demandas superiores capacidade seu grupo, gerando um pernicioso estado de tenso para a atividade. J tive vrias oportunidades de ver trabalhos que eu chamei, mais acima, de extrativistas, ou seja, aquele tipo de relao na qual o regente decide realizar obras acima da capacidade de seu coro, a ferro e fogo. Os ensaios se tornam antididticos, mera decoreba atravs de fitas e outros meios, martelao de pianos, broncas, etc., at que os cantores, exaustos, vo debandando, traumatizados, sendo substitudos por outros cantores, que vo sucumbindo no mesmo processo. Tudo isso, normalmente, para a glria e realizao do regente inconformado. Tudo isso extremamente danoso para o canto coral, pensado como um todo. A situao f, embora menos comum, pode acontecer, entretanto, por injunes polticas, quando um regente com pouca capacidade colocado frente

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de um conjunto mais experiente do que ele. Os conflitos sero, certamente, inevitveis e a tenso ser sempre maior, na medida em que os coralistas no puderem se opor ao regente, seja por que razo for. A situao g ideal enquanto que a situao h no nos leva a lugar algum, a no ser a espetculos deprimentes, embora coros desse tipo existam. Naturalmente, no aspecto querer, h situaes que fogem ao controle do regente ou do coro. So aquelas onde um terceiro agente impe um determinado repertrio para o conjunto. Todos conhecem a situao tpica da diretora de escola que quer que seus alunos cantem determinadas obras na festa de final de ano, ou do diretor de uma empresa que quer que o coro cante uma obra numa cerimnia da empresa. H, ainda, as situaes onde os coros, por necessidade financeira, acabam tendo que realizar obras, que nem o regente nem o grupo querem, mas que foram pedidas por um agente contratante, situao tpica em coros profissionais. Situaes como essas, ocorrendo eventualmente, so contornveis, mas, sistematicamente ocorrendo, levam a problemas srios para o coro.

Consideraes finaisProcurei abordar, nas linhas que precederam, uma srie de tpicos ligados ao Canto Coral. Muita coisa teve que ficar de fora, tal como a questo cnica em coros, os problemas de ordem profissional do regente, etapas de um ensaio, entre outros. Ficam para uma outra oportunidade. Talvez muitos leitores tenham ficado frustrados, ao imaginarem que encontrariam receitas, dicas e macetes para resolver problemas pontuais em seus coros. Talvez, at, esperassem exerccios especficos para tcnica de regncia ou vocal. Nada disso, porm, estava em meus planos. Meu objetivo, aqui, foi colocar alguns pontos para reflexo, trazendo dados de minha experincia e, principalmente, minha filosofia de trabalho na abordagem da questo do Canto Coral. Gostaria que cada regente que lesse esses tpicos tambm refletisse sobre esses pontos, e colocasse para si mesmo a questo de qual a sua filosofia de trabalho e a sua abordagem da questo coral. O que se busca, aqui, um dilogo, ou, pelo menos, a continuao de um dilogo. Muitos pontos abordados so mais ou menos bvios, apenas corroborados, mas outros trazem posicionamentos mais polmicos, procurando desmistificar uma srie de tabus recorrentes em nosso universo de atuao. Cada um se situe como achar melhor, usando sempre a sua capacidade de criticar. Corro o risco, ainda, de ter enfocado a questo da Prtica Coral a partir do meu meio imediato, o Rio de Janeiro e locais semelhantes, sem me dar conta de que talvez, haja realidades muito diferentes, por esse Brasil afora, que no sejam abarcadas por minhas idias. Acho, porm, que tenho tido contato com muitas realidades, no s atravs de minha observao direta, como atravs de depoimentos de alunos meus, de diversas procedncias, mas sempre possvel que, em alguns aspectos, eu tenha sido parcial.

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Gostaria de finalizar, enfatizando dois pontos. Primeiramente, que preciso respeitar a diversidade de manifestaes corais em nosso pas, os vrios tipos de repertrio executados, as diferentes maneiras de se emitir o som vocal e outros aspectos. A proposta de um modelo coral para o nosso pas, como j cheguei a ouvir, no deve ser, jamais, um objetivo dos regentes, em suas trocas de experincias. As diversas tribos devem se dar conta dessa diversidade e conviver pacificamente. Em segundo lugar, a importncia de que cada regente coral tenha confiana em seu trabalho e em seus coralistas, valorizando todas as suas realizaes. As comparaes com outros grupos e regentes so inevitveis, mas isso deve acontecer como um processo de autocrescimento e no de autoanulao. Parafraseando os versos de Fernando Pessoa: O outro Coral melhor que o meu coral. Mas o outro Coral no melhor que o meu coral Porque o outro Coral no o meu coral. ***

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Reflexes sobre a Prtica de Coro InfantilalENTREVISTA1 Elza LakschevitzAgnes - Elza, queria conversar sobre a tua longa experincia frente de coros infantis. Como tu comeaste e o que te motivou a iniciar esse trabalho? Elza - Acho que o coro infantil uma das atividades mais impressionantes das quais uma criana pode tomar parte, no somente na rea da msica, mas de forma geral, na formao e na educao do jovem. Num coro, as crianas tm muito mais oportunidades de aprendizado que em qualquer outra atividade que costumam realizar. Primeiramente, percebo o grande prazer que uma criana sente no seu cantar. algo que ela gosta, e j faz normalmente, sem a preocupao de estar cantando certo ou errado. Isso me emociona muito. Se a gente pudesse oferecer a todas as crianas do Brasil oportunidade de cantar desde o incio de sua educao, s o fato de proporcionar esse prazer j seria maravilhoso. Posso dizer, sem exagerar, que este poderia ser um pas diferente. Mas se pensarmos no longo prazo, ento, as recompensas so muito maiores. Aquilo que vai se firmando na cabea de uma criana at ela crescer marcante, sem dvida nenhuma. Hoje em dia se fala muito, dentro do campo da pedagogia e da psicologia, em mtodos especficos para o desenvolvimento de uma ou outra linha de aprendizado, mas curioso como podemos encontrar muito dessas novas idias no trabalho de coro. Esse trabalho no trata de fazer uma criana pensar ou agir como adulto, de desenvolvimento precoce, mas sim de proporcionar experincias sociais, musicais e artsticas, que faam com que ela se torne parte de algo importante, valorizado. A criana sente-se vontade para se expressar, ao mesmo tempo em que respeita o espao do colega. H um crescimento social, cultural, cognitivo, criativo, espacial, lgico, etc... E se aprende brincando. Gosto de observar as crianas que cantaram comigo desde bem pequenas, e o crescimento que tiveram. Percebo que, hoje, muitas delas tm uma viso da vida diferente daquela das outras pessoas.

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Entrevista realizada por Agnes Schmeling em setembro de 2003, no Rio de Janeiro.

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Mas eu no sabia dessas coisas antes de comear a dirigir meu primeiro coro infantil, um grupo chamado Os Curumins, na Associao de Canto Coral, iniciado em 1970, a pedido da Cleofe2. Com toda a certeza, desde essa poca fui aprendendo muito pelo caminho. Mas alm dessa experincia de mais trinta anos, eu tambm j fui criana, e pude perceber todo esse processo, esses benefcios, na minha prpria vida. Agnes - Tu cantaste em coro quando criana? Elza - Sempre fui envolvida em msica coral. H at uma histria engraada (mas verdica) na minha famlia. Eu no s cantava, como regia. Era bem pequena - meu irmo ainda nem havia nascido. Juntava as cadeiras de casa e ali colocava sentadas as minhas bonecas, que formavam o meu coro. Ento, eu as regia. Que loucura! De repente essa era uma tendncia natural da qual eu nem me apercebia. Alm do mais, meu pai, que imigrou da Letnia, pas com grande tradio em msica coral, pensava em msica como algo serissimo, uma obrigao para seus filhos, tal como ir escola. Nunca me foi perguntado se eu gostaria de estudar msica. L em casa isso era obrigatrio. Ah, esqueci de um detalhe: quando as bonecas no eram suficientes, eu completava o coro com sapatos. Mal sabia eu das dificuldades que enfrentaria durante toda a vida, como regente, para equilibrar um grupo coral, principalmente nas vozes masculinas! Meu primeiro contato com msica de verdade tambm tem relao com o coro. Meu pai era regente, e eu ia a muitos ensaios para assistir. Depois fui estudar piano. Como filha de um msico europeu, no havia como escapar disso, querendo ou no. Os contatos com a msica coral, porm, nunca pararam, porque meu pai regia os coros da igreja que freqentvamos, e era eu quem o acompanhava ao piano. Ele me dava a partitura que eu tinha que tocar em dada ocasio e eu me virava para estudar aquela msica. Isso desde bem pequena, ainda antes dos 10 anos de idade. Muitas vezes, nos cultos noturnos, eu dormia no colo da minha me, que me acordava quando era o momento dos hinos, ou da msica do coro. A eu tocava e voltava a dormir. Olha, a mim nunca foi perguntado se eu queria ir escola, se eu queria ir igreja, se queria estudar msica, ou tocar piano. Tudo isso simplesmente fazia parte da minha vida. Alis, acabou sendo uma parte fundamental, e o at hoje. Mas no tenho receio nenhum dessa postura um tanto autoritria dos meus pais, porque veio da a base de minha formao musical e muito das minhas referncias artsticas. Agnes - Na tua infncia, que outras lembranas tens de msica? Elza - Apesar do tom de obrigao que tinha, sempre foi uma coisa muito prazerosa. Sempre que podia, eu escapulia de uma tarefa qualquer pr tocar, ouvir, enfim pr fazer alguma coisa que tivesse msica. A minha formao musical2

Cleofe Person de Mattos.

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comeou na mesma poca do meu incio de escolaridade. Eu no tinha muitas aulas de msica na escola, mas tinha msica em casa e na igreja. Fazia parte da minha formao. Agnes - E como que tu te decidiste pelo canto coral? Pelo teu pai? Elza - Talvez um pouco por conta dessa influncia que acabei de contar. Na Universidade3, porm, no havia formao em msica coral. Me formei em piano, composio e regncia, que era um curso ligado msica instrumental. Comecei minha carreira como pianista, solista e camerista. Como sempre acompanhei coros, acho que esse foi um caminho natural, apesar de no ter sido premeditado. Agnes - Quais os coros que tu j dirigiste? Elza - Foram muitos, fica at difcil lembrar de todos. Tive muitos trabalhos de longa durao, dentre os quais o Coro Infantil do Rio de Janeiro, o Orfeo Carlos Gomes e o Canto Em Canto, fora os grupos que dirigi na igreja, e outros, formados para festivais e outras ocasies especiais. Agnes - E a Associao de Canto Coral, aqui no Rio de Janeiro? Elza - A Cleofe era a minha professora de canto na Escola de Msica, e me convidou para a ACC. L, eu cantava no coro e ensaiava naipes separadamente. Minha facilidade de leitura foi o que primeiramente chamou a ateno dela, quando me convidou para ser sua assistente. Como j te disse, o que eu fazia muito, mas muito mesmo, desde cedo, era acompanhar. Na verdade, essa era a minha maior funo. Est vendo? Fruto daqueles dias de criana, como te disse antes, quando meu pai me fazia estudar piano e acompanhar seus coros. Tive um aprendizado prtico, o que sempre melhor que teoria pura, sem aplicao. Agnes - E os Curumins? Elza - A ACC foi um comeo de atividade mais regular, consistente, no campo da regncia coral. L eu iniciei um coro infantil chamado Os Curumins. A partir da, sempre lidei paralelamente com coros infantis e adultos. Anos mais tarde me desliguei da ACC. Eu j estava querendo ter o meu prprio coro, queria ter essa experincia. Montei o Coro Infantil do Teatro Municipal do RJ e um outro grupo, chamado Madrigal dAntiqua, que teve curta durao. Um pouco mais frente fundei o Canto Em Canto, a pedido de pessoas que cantaram nos Curumins enquanto crianas, e que gostariam de continuar a cantar. O Canto em Canto funciona at hoje (j tem quase 23 anos), e continua com muitos cantores que foram do coro infantil.

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Escola de Msica da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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Agnes - Mas vamos direcionar esta conversa para o trabalho com crianas. Alm dos Curumins, houve mais algum coro infantil com quem trabalhaste? Elza - Os Curumins, depois o Coro Infantil do Teatro Municipal e, mais frente, o Coro Infantil do Rio de Janeiro. Na verdade, parece que foi um s coro, com vrios nomes diferentes. O processo de ensaio e a filosofia do trabalho foram, claro, se aperfeioando com o tempo, mas os princpios bsicos, sobre os quais estamos conversando, eram sempre os mesmos. Inclusive, quando eu comeava a trabalhar em uma outra instituio, as crianas geralmente me acompanhavam para esse novo local, em virtude da identificao com esses princpios. Agnes - Como assim? D algum exemplo desses princpios. Elza - Tenho receio de fazer uma lista, pois fica parecendo uma receita de bolo, tipo faa assim que sempre vai dar certo. Mas creio que h algumas atitudes, ou procedimentos, que sempre pautaram meu trabalho com as crianas. Um grande segredo trat-los como pessoas normais e inteligentes que so, sem nos utilizarmos de linguagem infantilizada. Manter sempre em vista o prazer, o jogo, a brincadeira, mas tambm delegar uma dose de responsabilidade para o cantor. Exigir deles o mximo de concentrao, porm sem tentar tir-los do seu contexto, da sua realidade. Seus alunos cantam no coro, mas tambm vo escola, assistem televiso, tm seus artistas favoritos, jogam bola etc. Temos que levar em considerao os efeitos desses fatores na vida deles. A minha relao com as crianas sempre foi muito sincera. Eu no dizia uma coisa que era errada s para facilitar um ensaio, e tambm no gostava de dar apelido s coisas. Usava todo o vocabulrio musical normal: - A nota mi, uma colcheia em staccatto. Mesmo uma criana novata no grupo, com o tempo se familiarizava com a linguagem. Eu procurava fazer sempre com que as crianas entendessem suas atividades, sem precisar falar de forma boba, ou usar vocabulrio muito bsico. Uma vez, fui com minha famlia a um jantar na casa de amigos. O prato principal era frango. Um de meus filhos era bem pequeno, e todos queriam servlo, dizendo: - Voc quer coc?. Acho que pensavam ser a maneira ideal de conversar com uma criana. Na volta, ainda no carro, meu filho comentou: - Me, na casa daquela tia, frango coc! Vejo muitos regentes nessa situao. Subestimam a inteligncia e a capacidade percepo do mundo dos seus alunos. Agnes - Misturar descontrao e seriedade... Elza - Sim. No caso dos meus grupos, por exemplo, fizemos tournes nacionais e internacionais, participamos de grandes espetculos sinfnicos e peras, trabalhamos com os maiores regentes brasileiros e alguns estrangeiros. Se voc pensar bem, isso no brincadeira, mas um trabalho srio que proporciona um prazer enorme, e que s funciona se acompanhado de muita responsabilidade. um mundo novo que se abre para uma criana.

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Gosto de destacar tambm que sempre procurei desenvolver uma qualidade vocal prpria da criana (ao contrrio de tentar treinar pequenos adultos), bem como escolher repertrio apropriado, com textos inteligentes, educativos, e a linguagem musical de alta qualidade. Afinal de contas, repertrio infantil no significa msica idiota. Agnes - Conte como era a preparao das crianas para cantar peras ou obras sinfnicas. Elza - Eles adoravam. Era sempre um dos pontos altos do ano! Se, como j disse, cantar era para eles um grande prazer, imagine voc colocar o figurino, entrar em cena, etc. O meu coro esteve, durante muitos anos, ligado ao Teatro Municipal do Rio de Janeiro, onde havia toda uma estrutura para se trabalhar pera e grandes obras sinfnicas. O contato com essas obras, com a toda a produo de uma pera, e com grandes nomes do cenrio lrico era de valor inestimvel para os meninos. Quando meus antigos cantores (que hoje j tem mais de trinta anos, famlia, filhos etc.) se encontram, ainda so capazes de cantar longos trechos das peras e oratrios dos quais participaram. Fico muito orgulhosa de ter participado da formao de tanta gente que, hoje, olha pra trs e reconhece o grande valor da msica coral em sua vida. Muitos desses cantores, inclusive, tm hoje carreiras brilhantes como msicos profissionais. Agnes - E a pr