Ensaio sobre O Caçado sabendo Caçar (Edgar Morin)

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1 UNIVERSIDADE DE SOROCABA PRÓ-REITORIA ACADÊMICA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO E CULTURA Ensaio sobre O Caçado sabendo Caçar (Edgar Morin) Ensaio escrito originalmente em 2013 sobre o texto “O Caçado Sabendo Caçar” contido na obra “O Enigma do Homem” (Zahar Editores, 1979), de Edgar Morin, acerca dos processos evolutivos do ser humano. Aborda aspectos culturais, sociais e intelectuais. _________________________ A visão de Morin sobre a evolução humana preenche muitas lacunas no que diz respeito à maneira com que nós nos adaptamos a este mundo quando ainda éramos hominídeos. Se o homem é produto do meio, então conseguimos atingir um estágio onde, apesar dos pesares, sobrevivemos muito bem. O hominídeo com o polegar opositor e os pés plantados no chão é o começo da aventura para sua libertação. E, apesar do fato de que ficar em pé significa deixar vulnerável partes vitais, como os órgãos sexuais e o pescoço, esta posição permitiu inovações, como a liberação do sistema vocal. Estar em pé também significa que a caixa craniana sofre menos pressão. O corpo se prepara para uma evolução que levará a diversos caminhos. Entre eles, a aurora do pensamento mágico. Isso não acontece, porém, antes dos hominídeos começarem a enterrar seus mortos—com seus objetos de valor –, o que incita que os hominídeos começam a se preocupar com a morte e, sobretudo, o que vem depois dela. Esta multidimensão a qual o ser humano está exposto—genética, ecologia, expansão da caixa craniana e interação social—é o que realmente molda o caminho de sua evolução enquanto espécie. E em

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UNIVERSIDADE DE SOROCABA PRÓ-REITORIA ACADÊMICA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO E CULTURA

Ensaio sobre O Caçado sabendo Caçar (Edgar Morin) Ensaio escrito originalmente em 2013 sobre o texto “O Caçado Sabendo Caçar” contido na obra “O Enigma do Homem” (Zahar Editores, 1979), de Edgar Morin, acerca dos processos evolutivos do ser humano. Aborda aspectos culturais, sociais e intelectuais. _________________________

A visão de Morin sobre a evolução humana preenche muitas

lacunas no que diz respeito à maneira com que nós nos adaptamos a este

mundo quando ainda éramos hominídeos. Se o homem é produto do

meio, então conseguimos atingir um estágio onde, apesar dos pesares,

sobrevivemos muito bem. O hominídeo com o polegar opositor e os pés

plantados no chão é o começo da aventura para sua libertação. E, apesar

do fato de que ficar em pé significa deixar vulnerável partes vitais, como

os órgãos sexuais e o pescoço, esta posição permitiu inovações, como a

liberação do sistema vocal.

Estar em pé também significa que a caixa craniana sofre menos

pressão. O corpo se prepara para uma evolução que levará a diversos

caminhos. Entre eles, a aurora do pensamento mágico. Isso não

acontece, porém, antes dos hominídeos começarem a enterrar seus

mortos — com seus objetos de valor –, o que incita que os hominídeos

começam a se preocupar com a morte e, sobretudo, o que vem depois

dela.

Esta multidimensão a qual o ser humano está exposto — genética,

ecologia, expansão da caixa craniana e interação social — é o que

realmente molda o caminho de sua evolução enquanto espécie. E em

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meio a todos estes elementos está a práxis, quer dizer, os afazeres e o

cotidiano deste hominídeo. Ainda nesta fase, resume-se a caçar e a se

proteger, pois o ócio que resultará na admiração e conjectura virá com a

agricultura de subsistência. Mas vale lembrar também que o conjunto de

interferências ao qual o hominídeo é submetido pode ajudar a construir

o pensamento religioso.

Um outro instrumento que torna-se crucial para esta

“preparação” do hominídeo em se tornar homo sapiens é o fogo. Com a

dominação deste elemento natural, alguns dos principais hábitos se

modificam. Deixar de ficar em estado de alerta significa um sono mais

profundo, que também habilita a sonhar. Cozinhar a caça é também um

fator de extrema importância, já que permite moldar o sistema

mastigatório e digestivo, fazendo com que sejamos, ainda que de uma

estrutura mais frágil, mais ágil e versátil.

Agora o hominídeo está pronto para atuar na área em que vive e

começar a tirar suas conclusões. Os mais jovens estão aprendendo com

os mais velhos. As fêmeas têm um papel definido de proteção da prole.

Todos estes elementos por onde o hominídeo perambula é o que dá o

início ao sentido de cultura. Como tudo na natureza, algo mais simples

gera algo mais complexo, e não o contrário. Desta forma, a cultura é

transformada em infraestrutura da sociedade uma vez que ela se

retroalimenta e se modifica tornando-se mais complexa.

O learning, atribuído por Morin, é o sistema pelo qual as

sociedades aprendem sobre si próprias e determinando os limites de sua

própria cultura. Este mesmo sistema pode ser utilizado por diferentes

grupos ou tribos para que haja um intercâmbio de culturas e

conhecimento. Assim, elas aprendem diferentes valores e podem

repensar alguns aspectos de suas culturas e adicionar novos elementos.

Sendo a caça o instrumento socializador do homem, a

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comunicação surge como um recurso bastante eficaz. E neste momento

em que alertar e apontar é vital, sobretudo quando os hominídeos estão

embrenhados em mata alta, mais uma vez todas as variáveis

proporcionam que comecem a surgir linguagens. Em um primeiro

momento tratava-se de um repertório limitado, quase que somente para

chamar uns aos outros — que Morin batiza de call system –, mas mais

tarde evolui para idiomas mais complexos.

O sistema vocal e os músculos da cabeça passam a ser

movimentados de maneira a criar sons mais complexos. Percebe-se mais

tarde, já com idiomas e sociedades mais estruturadas que o poder do

debate proporcionado pela linguagem é o que vai ramificar elementos

das culturas. Daí podemos concluir por que há ramificações de uma

mesma religião. Com a linguagem, o homem passa a deter mais controle

sobre suas atividades diárias, o que também contribui para a

fundamentação da cultura.

A caça também permite que outro senso se desenvolva: a

solidariedade. Esta noção “socialista” de que todos têm direito a uma

parte igual ajuda a unir os grupos porque todos acabam entendo que há

uma recompensa pelo trabalho desenvolvido independentemente do

grau de participação. Mas não apenas a recompensa: há também a

certeza de que todos estão protegidos contra qualquer ação externa que

possa desequilibrar aquele status quo. Isto implica também em uma

cumplicidade maior com o grupo, tornando-o cada vez mais coeso.

Quando transportamos isso para a solidariedade religiosa, percebemos o

mesmo padrão: a recompensa, o status quo, o grupo coeso. Percebe-se,

portanto, que por este viés o altruísmo é utópico, principalmente pela

“fraternidade viril” que Morin descreve.

Esta camaradagem que está arraigada no relacionamento

masculino por conta do histórico de “aventuras” e divisão da caça acaba

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por criar um machismo exatamente também pelo homem ter o papel de

provedor enquanto a mulher se ocupa com atividades ditas de “menor

importância”. O interessante é que as instituições religiosas sequestram

este mesmo modelo social e colocam a figura feminina como inferior

enquanto o homem é o senhor de tudo, prostrando-se somente diante da

figura de seu deus.