Enquanto Isso... Notas Iniciais Sobre o
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7/26/2019 Enquanto Isso... Notas Iniciais Sobre o
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22 | | outubro de 2015
nossa américa, nosso tempo | JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA
0.(Enquanto isso...)
Em concurso de abrangência nacional, pro-movido por uma vetusta biblioteca, a menina docee o teórico amargo manipulam seu resultado, des-classificando a obra do desafeto.
Claro: sem comprometer em nada princípioséticos elevados, que, aliás, permanecem rigorosa-mente preservados.
1.1922, ninguém ignora, é considerado o
annus mirabilis da literatura ocidental; nas palavrasde Ezra Pound, o “Ano Um da Nova Era”. Seu en-tusiasmo dava conta sobretudo da publicação deUlysses, de James Joyce, e de Te waste land, deT. S. Eliot. Numa nota menos solar, recorde-se quenesse ano morreu Marcel Proust, deixando publi-cados quatro dos futuros sete volumes de À la re-cherche du temps perdu .
No entanto, visto retrospectivamente, 1922transforma-se num involuntário réquiem; comose o “Ano Um da Nova Era” ironicamente se con-vertesse na primeira instância de afirmação de umpanorama cultural definido pela emergência de
formas outras de expressão, que, muito rapidamen-te, deslocaram a literatura do lugar central que eladesfrutou de meados do século 18 às décadas ini-ciais do século 20.
Isto é, desde o momento histórico em que otexto impresso — finalmente acessível, devido aodesenvolvimento de técnicas de que baratearam ocusto do livro — tornou-se objeto do cotidiano atéo instante em que novas formas de tecnologia e no-vos meios de comunicação assumiram o protagonis-mo na circulação e transmissão de bens simbólicos.
2.No cenário nacional, o ano de 1956 certamen-
te se destaca como o annus mirabilis tupiniquim.Entre outros títulos marcantes, Guimarães
Rosa publicou Grande sertão: veredas e Corpode baile; Fernando Sabino, O encontro marcado;
João Cabral de Melo Neto, Duas águas; Camposde Carvalho, A lua vem da Ásia .
Ora, a frase de abertura de A lua vem da Ásia serve de epígrafe ao cenário contemporâneo:
Aos dezesseis anos matei meu professor de Lógi-ca. Invocando a legítima defesa — e qual defesa se-ria mais legítima? — logrei ser absolvido por 5 votoscontra 2, e fui morar sob uma ponte do Sena, emboranunca tenha estado em Paris.
Aumente-se em muito a idade do peculiar co-brador, substitua-se a Lógica pela Literatura, e en-
contraremos nessa irresistível dicção um inesperadoautorretrato de boa parte das discussões atuais.
De igual modo, apareceram dois suplementosliterários que marcaram época, e ainda hoje são cele-brados como modelos de um tempo definitivamenteanacrônico: o Suplemento Dominical do Jornal do Bra-sil , oSuplemento Literário, de O Estado de S. Paulo.
No primeiro número do SL, Antonio Candi-do escreveu uma resenha definitiva acerca do Gran-de sertão: veredas. Expressão literária e atividadecrítica davam-se as mãos; jornalismo e universida-de ensaiavam um encontro produtivo no projeto docaderno, desenvolvido por Antonio Candido, combase na participação constitutiva de jovens pro-fessores da USP como colunistas e colaboradores
ENQUANTO ISSO... NOTAS INICIAIS
SOBRE O POSITIVISMO PÓS-MODERNOregulares. Por fim, na página Poesia-Ex-
periência , mantida por Mário Faustinono SDJB , o poeta-crítico lançava pontesentre reflexão de ponta, experimentaçãopoética e imprensa cultural.
Em contraste, a situação contem-porânea recorda o cenário de uma terradevastada : depois do lamentável desapa-recimento do Sabático, de O Estado de S . Paulo, agora foi a vez de O Globo repetir
o equívoco, suprimindo o Prosa .
3.Em primeiro lugar, não se deve
mais confiar na proximidade entre ostermos crise e crítica , seguindo o estudode Reinhart Koselleck, Crítica e crise (1953).
Na análise aguda do historiador,se, no século 18, o espírito crítico dasLuzes, moldado pelo ideal de perfec-tibilidade, transformou a História emprocesso, então, o ânimo questiona-dor favoreceu um estado permanentede crise. Afinal, se idealmente sempreé possível aperfeiçoar tanto as institui-
ções quanto o próprio homem, logo, aprópria capacidade crítica exige a iden-tificação de crises localizadas, vale dizer,configurações históricas que não apenaspermitem como exigem modificaçõesradicais. Nesse modelo, um esforço in-telectual que não produza crise, não ésuficientemente crítico.
Simples assim.Internalizada tal dinâmica à pró-
pria atividade do pensamento, o estadoinerente da crítica seria a crise.
A experiência literária desempe-nhou um papel de grande destaque nes-sa constelação, pois a institucionalizaçãoda crítica principiou no teatro e na lite-ratura. O conflito, como motor da intri-ga, concedeu visibilidade máxima para aoposição, no plano das ideias, dos temasdefinidores das Luzes: razão x revelação;luzes x trevas; liberdade x determinis-mo; progresso x tradição, entre outrasdicotomias desestabilizadoras das hie-rarquias do Antigo Regime.
Os estudos literários, especialmen-te na segunda metade do século 20, vice-
jaram à sombra do modelo crítica-crise.Nos anos de 1960 a 1980, a disciplina“teoria da literatura” tornou-se vigorosagraças a uma série de embates epistemo-lógicos, cuja virulência apenas demons-
trava a força da própria disciplina.Habitar a crise era o modus operan-
di do esforço teórico. A fim de redirecionar o impasse
atual é preciso entender que esse mode-lo somente foi possível porque o sistemacrítica-crise supunha a aderência à ima-gem de um determinado objeto comum.
Esclareço: um objeto, cuja defini-ção era o que se disputava. Não se trata-va de ingênua essencialização, mas, pelocontrário, tratava-se de uma comunida-de que se reunia precisamente para di-vergir sobre esses pontos.
Eis a singularidade da crise con-
temporânea: o que está em xe-que é a própria possibilidade dedefinir um objeto capaz de con-figurar uma disciplina.
4.Numa vetusta biblioteca,
enquanto isso...Em concurso de abran-
gência nacional, o amargo teóri-
co e a doce menina manipulamseu resultado, desclassificando aobra de desafeto.
Claro: sem comprometerem nada princípios éticos rigo-rosos, que, aliás, permanecemelevadamente preservados.
5.Verifica-se o surgimento de
uma nova categoria de pesquisa-dores que, com alguma dose debom humor, pode ser assim de-nominada: ex-professores de lite-ratura . Uma frase em aparênciaanedótica ganha contornos sé-
rios, definindo o impasse atual.Em entrevista à Flávia Costa,
Josefina Ludmer afirmava, “nãodesejar que seu próximo livro(...) estivesse na estante de críticaliterária das bibliotecas”.
No cenário contempo-râneo dos estudos literários, osdois eixos de articulação de qual-quer disciplina não mais des-frutam de estabilidade mínima.Os estudos literários já não dis-põem, na conceituação de WladGodzich, de “um objeto de pes-quisa normativo”, tampouco de
“um grupo de indivíduos reco-nhecidos como seus praticantes eque a si mesmo assim se vê”.
(Um problema teórico degrande interesse.)
6.1922 também foi o ano de
publicação de Os argonautas doPacífico Ocidental. No prefácio,Bronislaw Malinovski levantou oproblema que nos preocupa emrelação aos estudos literários. Istoé, justamente quando se desen-volveu e aprimorou o trabalho
de campo, lançando mão de ins-trumentos de registro até entãopouco empregados na pesquisaetnológica, sobretudo aparelhosmodernos de gravação de voz ede imagens, os habitantes dosgrupos estudados “morrem dian-te de nossos olhos”.
Em seu primeiro seminá-rio no Collège de France, no anoletivo de 1959-1960, Claude Lé-vi-Strauss retomou o problema;enunciado de forma cristalina:
A etnologia não estará conde-
nada a se tornar, muito em breve,uma ciência sem objeto? Esse objeto
foi tradicionalmente fornecido pelaschamadas populações “primitivas”.
Dois problemas surgiram:algumas dessas populações re-duziram-se dramaticamente; aomesmo tempo, as populaçõesque cresceram numericamente,
começaram a opor aos etnólogosuma resistência política, recu-sando-se ao papel de meros “ob-
jetos de estudo”.O antropólogo vislumbrou
dois modos de enfrentar a criseprovocada pelo desaparecimen-to potencial do objeto de pesquisanormativo.
De um lado, “prosseguir,certamente durante séculos, ex-plorando a enorme massa dos ma-teriais acumulados”; em algumamedida, o que Lévi-Strauss reali-zou por meio da escrita dos quatrovolumes da série Mythologiques.
De outro lado, as “antigassociedades indígenas” poderiam“formar seus próprios etnólo-gos”, que, assim, fariam da so-ciedade dos etnólogos europeuse norte-americanos seus obje-tos de estudo; virando o modelousual de ponta-cabeça.
A segunda opção originou,em alguns contextos, como, porexemplo, no México, uma cor-rente denominada “antropologíade nosotros”, na qual etnólogoslocais são formados. Contudo,em lugar de dedicar-se ao estudo
de europeus e norte-americanos,consagram-se à análise de seuspróprios povos, realizando umduplo movimento de tradução:do cotidiano e da cosmovisãoindígena com instrumentos for-necidos pela antropologia; dosconceitos e métodos da discipli-na, que são submetidos a umacrítica com base em práticas eformas de pensamento forjadasem outra escala de valores.
Eduardo Viveiros de Cas-tro aprofundou essa possibilida-de. As teorias do perspectivismoameríndio e do multinaturalis-
mo obrigam a antropologia aampliar seus horizontes teóricose conceituais pela assimilação devisões do mundo que não se re-duzem a um único centro de de-terminação de sentido.
Uma terceira via foi explici-tada pelo trabalho de Gilberto Ve-lho, um pioneiro da antropologiaurbana no Brasil. Ele deslocou oolhar antropológico do distantepara o próximo, pois o fator deci-sivo é a capacidade de produzir arelativização do próprio pela con-sideração renovada do alheio.