Enki e Ereshkigal (O reencontro dos melhores irmãos e companheiros).doc

14
ENKI E ERESHKIGAL A relação dos gêmeos Enki e Ereshkigal é muito profunda. Por isso, quando ela desapareceu do Mundo Físico, resgatá-la, trazê-la de volta torna-se uma questão de honra para Enki. Este é um mito que trata da lealdade, a força dos laços que unem irmão e irmão, e da necessidade de liberação destes laços para buscar e assumir destinos diferentes, sem deixar, porém, de amar. Nos primeiros dias depois que Ereshkigal, a filha de Namu, as águas do mar que deram origem à vida, e de Anu, o deus do Firmamento, desapareceu do Mundo Físico (levada por Kur ou por sua própria escolha?), Enki, seu irmão gêmeo, mal podia suportar a dor da separação de sua mais querida companheira de todas as horas e melhor amiga. - Vamos, Enki, anime-se! Repetiu Enlil, o deus do Ar, pela centésima vez aquele dia. Você não pode se deixar abater tanto assim pela falta de Ereshkigal. Quem sabe, mais dia, menos dia, ela há de voltar para nós... Faltava, porém, convicção às palavras de Enlil. O desaparecimento da irmã mais nova, sempre tão curiosa e alegre, também era um grande peso no coração do jovem e poderoso deus do Ar. Mas o que fazer, se Ereshkigal tinha-se aventurado para muito além dos limites conhecidos? Desta vez, Enki olhou para Enlil, com a face pesada de tristeza: - Você não pode fazer algo para trazer Ereshkigal de volta? - Mas fazer o que, irmão? - Seja o que for que tiver de ser feito para trazer Ereshkigal de volta! Você pôde separar mãe Ninhursag-Ki de nosso pai, Anu, o deus do Firmamento? Por favor, irmão, crie o que for preciso para resgatar Ereshkigal! Enlil considerou a questão por um longo momento, para depois levantar olhos conturbados na direção da linha além do horizonte, para onde Ereshkigal tinha desaparecido: - Não posso. Para onde Ereshkigal foi, fica além dos limites que posso trilhar. Sou o guardião da terra, Enki, por promessa feita à Mãe Ki, portanto não posso deixar o Mundo Físico por outros mundos ou reinos. Este é o meu dever, a responsabilidade que assumi depois de ter separado Mãe Ki de nosso pai Anu. Mas você pode ir onde quiser, Enki, onde for preciso para resgatar Ereshkigal. Além do mais, o laço que existe entre gêmeos perfeitos é muito forte. Você e Ereshkigal são gêmeos perfeitos, em tudo semelhantes, apesar das diferenças no exterior. Se alguém pode resgatar Ereshkigal, esta pessoa é você com certeza, irmão menor. Não importa onde ela tiver ido. - Mas como poderei trazê-la de volta? - Na hora certa, você saberá como, respondeu Enlil.

Transcript of Enki e Ereshkigal (O reencontro dos melhores irmãos e companheiros).doc

ENKI E ERESHKIGAL

A relao dos gmeos Enki e Ereshkigal muito profunda. Por isso, quando ela desapareceu do Mundo Fsico, resgat-la, traz-la de volta torna-se uma questo de honra para Enki. Este um mito que trata da lealdade, a fora dos laos que unem irmo e irmo, e da necessidade de liberao destes laos para buscar e assumir destinos diferentes, sem deixar, porm, de amar.

Nos primeiros dias depois que Ereshkigal, a filha de Namu, as guas do mar que deram origem vida, e de Anu, o deus do Firmamento, desapareceu do Mundo Fsico (levada por Kur ou por sua prpria escolha?), Enki, seu irmo gmeo, mal podia suportar a dor da separao de sua mais querida companheira de todas as horas e melhor amiga.

- Vamos, Enki, anime-se! Repetiu Enlil, o deus do Ar, pela centsima vez aquele dia. Voc no pode se deixar abater tanto assim pela falta de Ereshkigal. Quem sabe, mais dia, menos dia, ela h de voltar para ns...

Faltava, porm, convico s palavras de Enlil. O desaparecimento da irm mais nova, sempre to curiosa e alegre, tambm era um grande peso no corao do jovem e poderoso deus do Ar. Mas o que fazer, se Ereshkigal tinha-se aventurado para muito alm dos limites conhecidos?

Desta vez, Enki olhou para Enlil, com a face pesada de tristeza:

- Voc no pode fazer algo para trazer Ereshkigal de volta?

- Mas fazer o que, irmo?

- Seja o que for que tiver de ser feito para trazer Ereshkigal de volta! Voc pde separar me Ninhursag-Ki de nosso pai, Anu, o deus do Firmamento? Por favor, irmo, crie o que for preciso para resgatar Ereshkigal!

Enlil considerou a questo por um longo momento, para depois levantar olhos conturbados na direo da linha alm do horizonte, para onde Ereshkigal tinha desaparecido:

- No posso. Para onde Ereshkigal foi, fica alm dos limites que posso trilhar. Sou o guardio da terra, Enki, por promessa feita Me Ki, portanto no posso deixar o Mundo Fsico por outros mundos ou reinos. Este o meu dever, a responsabilidade que assumi depois de ter separado Me Ki de nosso pai Anu. Mas voc pode ir onde quiser, Enki, onde for preciso para resgatar Ereshkigal. Alm do mais, o lao que existe entre gmeos perfeitos muito forte. Voc e Ereshkigal so gmeos perfeitos, em tudo semelhantes, apesar das diferenas no exterior. Se algum pode resgatar Ereshkigal, esta pessoa voc com certeza, irmo menor. No importa onde ela tiver ido.

- Mas como poderei traz-la de volta?

- Na hora certa, voc saber como, respondeu Enlil.

O mundo era to jovem, Enki mais jovem ainda. Pelo menos Enlil esperava com sinceridade que Enki achasse uma forma de trazer Ereshkigal de volta.

- Ento devo aprender o que for preciso para trazer minha irm de volta para todos ns. Como eu queria ter uma pista do que devo saber, porm!

Enlil suprimiu um suspiro de profundo alivio. Ele temera perder Enki tambm para as profundezas do desespero e da desesperana. Mas seus receios pareciam no ter mais fundamento. A curiosidade sem limites de Enki tinha sido despertada, ele estava entrando em contato com o mundo novamente!

- Enquanto voc vai aprendendo o que deve para resgatar Ereshkigal, eu bem que poderia contar com a ajuda do meu irmo menor favorito, continuou Enlil, torcendo para estar usando as palavras certas para incentivar Enki, sem for-lo demais.

Enlil continuou:

- verdade que a minha Palavra lei, que delas fiz uso para atribuir nomes aos Anunaki, os deuses e deusas nossos irmos e irms, quando eles deixaram a montanha sagrada da Criao, o Duranki, como sabes, Enki. Mas atribuir nomes a tudo o que existe no o suficiente. H muito mais coisas dentro do que chamamos de vida e seres vivos do que o simples e auspicioso fato de Existir. Eu realmente preciso de ajuda para organizar este Mundo Fsico to novo, para que ele seja seguro para todos ns.

- O que voc quer dizer com isto, Enlil? Perguntou Enki, a sua antiga curiosidade por sempre saber e aprender de novo estimulada.

Enlil sorriu por dentro:

- O que e como, irmo, creio que nos dois devemos e podemos descobrir. Juntos.

Enki ergueu-se do cho, considerando o pedido de Enlil, a confiana que o jovem e poderoso deus do Ar estava demonstrando para com ele. Uma onda de sentimentos conflitantes, assombro e alegria, tomou conta de Enki. Se Enlil o considerava capaz de fazer estas coisas to importantes, como trazer Ereshkigal de volta e ajud-lo a organizar os poderes do Mundo Fsico que estavam-se formando, ento Enki no poderia se furtar de tentar satisfazer s expectativas de Enlil. E s suas prprias tambm.

- Todos viemos de Me Namu, as guas profundas do Oceano, Enki falou, pensativo. gua, a essncia de minha natureza, e de Ereshkigal tambm, pode ser moldada em formas infindveis, dependendo do receptculo, sem, entretanto, jamais perder a sua essncia. Talvez a vida devesse ser vista como uma eterna modelagem, sempre se formando, evoluindo e mudando para permitir incontveis possibilidades. No como um plano pr-concebido, mas como um processo e meta medida em que a existncia se desenvolve.

Assim como eu mesmo devo aprender, evoluir e crescer para um dia (logo, espero!), resgatar Ereshkigal," raciocinou tambm Enki, mas calou a respeito destes seus ltimos pensamentos.

- A vida e o ato de existir como Processo e Meta! Sim, Enki, voc pode ter muita razo nesta sua forma de ver as coisas! exclamou Enlil, surpreso, intrigado e feliz. Como sempre, ele no cessava de admirar a grande capacidade de Enki para entender todas as realidades e visualizar todas as possibilidades.

E assim foi feito. Ao que Enlil conferia Nome pelo poder de sua Palavra, a habilidade de Enki conferia Forma, Significado e Identidade. Enki, o filho de Namu, as guas do Oceano, e de Anu, o deus do Firmamento, transformou-se em Nudimud,, o Criador de Imagens, Senhor das Formas Arquetipicas, o Patrono de Todas as Artes e Profisses. E a ele, foram dadas tambm todas as guas doces que fertilizam o solo e que vm de dentro da terra, chamadas Apsu.

Quando muitas das artes da civilizao haviam sido criadas, quando os Anunaki estavam aprendendo e ensinando a arte de tirar das guas doces e salgadas alimentos e produtos de que precisavam para sobreviver, Enki retirou-se para a regio sudoeste da Terra Entre os Rios, onde havia encontrado uma lagoa de guas profundas do mais puro azul cercada de palmeiras. Perto, uma povoao chamada por Enki de Eridu estava sendo construda. Mas Enki passava mais tempo na lagoa do que na vila, achando tempo mesmo apesar de estar administrando o trabalho laborioso de construo dos primeiros templos e habitaes feitos de juncos tranados e tijolos de barro.

Enki buscava a silenciosa companhia da lagoa e dos pntanos para pensar sobre como poderia finalmente cumprir a promessa que tinha feito a si mesmo para resgatar Ereshkigal de onde quer que ela tivesse ido.

"Ereshkigal era uma eximia nadadora, tanto que foi at os confins do mundo e alm," conjeturava Enki durante seus longos passeios. "Se quero resgat-la, devo encontrar uma forma de cruzar os mares, ir alm de todos os oceanos. Nadando ou no."

Durante seus longos passeios, ele apenas parava perto dos Grandes Juncos para ver o trabalho diligente e incansvel de uma jovem deusa Anunaki, chamada Ningikuga. Esta donzela quieta e habilidosa tinha ensinado humanidade a arte de tranar juncos para fazer cabanas para morar e adorar aos deuses. De junco tranado e argila, foram criados os primeiros templos e moradias, concebidos pela arte de Ningikuga. E ao olhar a forma com que Ningikuga tranava os longos juncos, com perfeita pacincia, tcnica e diligncia, Enki sentiu que tinha finalmente encontrado o que precisava para ir atrs de Ereshkigal.

- Irm Ningikuga, Deusa dos Juncos Sagrados, eu peo a tua permisso para cortar alguns de teus juncos mais resistentes e sob a tua proteo tentar construir uma estrutura que possa me carregar sobre as guas mais perigosas e os mares mais bravios. Somente com uma estrutura deste tipo, creio, poderei partir para resgatar Ereshkigal, disse Enki um dia Ningikuga.

Ningikuga olhou para os Grandes Juncos ao longe, nas margens da lagoa e alm, contemplou com orgulho o resultado de longas horas de trabalho e dedicao, as casas e templos da pequena aldeia de Eridu. Ela voltou-se ento para Enki. Como artes, ela entendia Enki melhor do que ningum. Ela sorriu para o deus das guas Doces, das Artes e da Mgica:

- Ento meu irmo ainda no desistiu de resgatar Ereshkigal de volta para todos ns? Tudo o que estiver ao meu alcance, todos os juncos que quiseres, Enki, eu colocarei tua disposio para esta grande tarefa. Corta os juncos mais longos e resistentes, trana-os e faz com eles uma estrutura que flutue na superfcie de tudo o que fluir, guas, crregos, rios e mares. Procura tambm madeira de cedro, resistente e forte, para junt-la aos juncos sagrados. Com tal estrutura, tenho certeza, forte e resistente, irs a todos os lugares, singrars os mais bravios rios, oceanos e mares!

- Ah, irm, j posso ver de antemo a forma que esta nova e revolucionria estrutura ir tomar! a voz de Enki vibrava, cheia de entusiasmo, inflamada pelo fogo da criao. Sim, j consigo ver claro em minha mente a estrutura qual te referes: algo que flutue nas guas, leve, mas resistente, capaz de carregar um homem e tudo o que ele precisar para uma longa jornada! A esta construo, darei o nome de barco, e que ele se desloque sobre as superfcies das guas, desde as mansas s mais bravas! Movido por longas bastes aos quais chamarei remos, esta estrutura especial, o primeiro barco da criao singrar todas os lagos, rios e mares, retornando, se quiser, ao ponto de partida, ou seguindo para outros rios e mares dantes no navegados. Que o primeiro barco feito por mim se chame Magur, de linhas longas, de proa e popa em forma de curva, tal qual o pescoo de um cisne. Ah, Ningikuga, creio que encontrei o que preciso para finalmente poder com toda segurana ir resgatar Ereshkigal!

Ningikuga riu, contagiada pelo entusiasmo de Enki:

- E quando tiveres construdo o que chamaste de barco, quando estiveres pronto para partir, eu chamarei nossos irmos e irms, os Anunaki desta rea, para abenoarem a tua jornada!

Usando toda sua habilidade, Enki construiu o barco Magur, todo feito de juncos e madeira de cedro. Com suas formas curvadas e elegantes e mastro imponente, este foi o primeiro barco construdo em todos os mundos. Enquanto Enki trabalhava com diligncia e empenho, muitos dos irmos e irms Anunaki vieram v-lo. Enki ouvia os conselhos e comentrios, agradecia-os, mas no se afastava de sua concepo inicial para o barco magur.

" Porque no apenas o barco que est sendo aprontado ao longo de todo este processo" , pensava Enki. "Ao longo deste tempo, tambm estou juntando foras, preparando-me para enfrentar Kur e o Mundo Subterrneo por amor a Ereshkigal."

Finalmente, um dia o barco ficou pronto para zarpar. Pronto tambm estava Enki. Fiel sua promessa, Ningikuga chamou todos os Anunaki da regio de Eridu para abenoarem ao barco e a Enki na jornada at os confins do Mundo Fsico e Alm. Com carinho, Enki beijou Ningikuga, e prometeu voltar para ela, um destes dias.

O barco, entretanto, no tinha tripulao, apenas Enki aos remos. Nenhum outro Anunaki ousara acompanhar o deus das guas doces, das artes e da mgica. O barco magur partiu, apenas com Enki. Estranha era a sensao de singrar as guas da lagoa, como ningum antes o havia feito em todos os mundos. E medida em que remava na direo do oceano, deixando as vrzeas da Terra Entre os Rios, Enki sentiu a ansiedade crescer, mas no fundo tambm cresceu o desejo de vencer, no importa o que preo que tivesse de pagar.

"Mesmo se no conseguir o meu objetivo, irei tentar mesmo assim, "pensava Enki. "Estar aqui j uma vitoria. No importa o quanto viver, este dia, este momento sempre sero meus."

Remando sempre em frente, Enki passou pelas costas estreis do deserto, que ainda esperavam o beijo do sol. Ele passou por praias ladeadas de palmeiras e coqueiros dos mares do sul, seguindo na direo do mar aberto. Enfrentando as mais altas ondas, velejando por guas congeladas, sempre em frente, seguia remando o deus das guas Doces.

" No importa a direo que eu tomar", raciocinou Enki, " pois o Mundo Fsico deve acabar em algum lugar, e onde for este lugar, mais cedo ou mais tarde eu irei com certeza encontrar!"

. Como se tivesse convocado os poderes do desconhecido com a sua vontade de achar a entrada para as Grandes Profundezas, imediatamente um vento forte comeou a soprar, seguido por uma chuva de pedras. Os cus pareciam ter-se convertido em cascalhos finos e pontiagudos, tal a intensidade da saraivada de granizo que atingiu Enki em cheio. Ele teve de agarrar-se proa, na tentativa desesperada de proteger a cabea entre os braos para resistir ao ataque dos cus. Ao mesmo tempo, como lobos famintos, ondas enormes ergueram-se para devorar a quilha e a proa do barco magur, seguidas de outras ondas ainda maiores, que se chocaram contra a popa da embarcao como se fossem lees furiosos. Entretanto, no foram suficientes para virar de cabea para baixo a embarcao de Enki.

Durante todo ataque dos elementos, Enki comandou a sua mente, seu corao, corpo e espirito a manter a calma e o equilbrio. O desconforto fsico e o medo que ameaavam paralisar Enki por completo tinham de ser dominados.

"Onde h medo, h poder, e no posso deixar este poder me dominar", repetia Enki para si mesmo sem cessar, como um mantra.

Com determinao, Enki tentou esquecer as emoes em conflito, a dormncia nos braos, a dor dos filetes celestes sobre o seu corpo. Quando ele estava quase para se render `a fora dos elementos, um estranho silncio e trevas profundas se manifestaram de repente. O barco magur tambm parou.

Enki finalmente pde erguer a cabea e pr-se de p. O que viu, f-lo piscar uma, duas vezes. As guas eram to escuras e calmas, como se a noite estivesse no mar e no mais nos cus. Mas novamente este foi s um breve momento, pois em seguida uma coluna de fogo ergue-se no ar, aproximando-se do ponto onde estavam Enki e o barco magur.

Um poderoso desafio tinha-se anunciado. Fogo era o poder contrario essncia de Enki, o poder das guas. Uma muralha de fogo poderia impedi-lo de seguir em frente. De fato, gua podia extinguir o fogo e vice-versa, mas qual era a vantagem de lutar contra algo que em fora equivalia prpria essncia elementar de Enki? .

" O que gua e fogo tm em comum dentro de mim? Como o contrrio pode se tornar complemento e cooperao, para que eu possa passar pela coluna de fogo em igualdade de condies?" raciocinou freneticamente Enki.

O jovem deus das guas doces, das artes e da mgica mergulhou ento firme na essncia de seu prprio ser para encontrar o ponto onde a gua podia-se encontrar com o fogo, sem que nenhum deles consumisse um ao outro. Ele ento impeliu o barco para frente, entoando um verso que veio de dentro da sua mente, corpo, corao e alma:

- Eu sou o poo da verdade que traz iluminao, sou aquele que dispersa as trevas do espirito. Sou agora e sempre a forma que tudo transforma, pelo fogo da mente criativa em ao, sou a luz interior do fogo interior que d brilho e substncia a tudo o que existe!

Deu certo! Quase a contragosto no inicio, o barco magur comeou a se mover, e Enki viu-se atravessando a coluna de fogo sem se queimar. Entretanto, ele no teve tempo de se regozijar pelo sucesso, pois de imediato uma voz trovejou sua frente:

- Bem-vindo aos Portais das Grandes Profundezas, filho de Namu!

A voz clara e trovejante s poderia pertencer a algum: Kur. Enki encheu-se de coragem e perguntou:

- Se me conheces, se sabes quem sou, s podes ser Kur. Responda-me ento: onde est minha irm? Para onde a levaste? Eu vim para lev-la de volta s Esferas Superiores, seu verdadeiro lar.

- Veio mesmo? Foi a resposta irnica de Kur. Veremos... ou melhor, voc, meu deus, ver... na hora certa que talvez as coisas tenham mudado um pouco desde a ultima vez que viu Ereshkigal.

Kur continuou depois de alguns segundos, para dar maior efeito s palavras:

- meu dever, porm, como Guardio do Portal de Entrada do Mundo Subterrneo neste momento, perguntar-lhe: seu desejo prosseguir, mesmo no sabendo do desfecho de sua jornada? Ainda h tempo para a voltar s Esferas Superiores.

- Fui longe demais agora para voltar sem pelo menos ver Ereshkigal, respondeu Enki. Leve-me at ela!

Mas havia algo na atitude de Kur que fez Enki pensar pela primeira vez no inconcebvel para ele. Porque talvez o tempo tivesse passado, e Ereshkigal estivesse perdida para as Esferas Superiores. Com um vigoroso sacudir de cabea, o jovem deus afastou esta possibilidade. Mas no fundo, Enki estava comeando a se dar conta de que talvez nem tudo pudesse ser mudado.

Se verdade que tenho o poder de dar forma e significado a tudo o que existe, pode haver casos em que eu no possa desfazer o que j foi feito ou existe. pensou Enki, alarmado pela direo que estavam seguindo seus pensamentos. Seja como for, no posso voltar mais atras. Pelo menos, sem encontrar Ereshkigal e saber o que realmente ela quer, ficar aqui ou partir comigo.

Uma coisa, porm, era certa: Kur era tambm seu meio-irmo, que alm do mais, sabia onde estava Ereshkigal. Ele tinha-se apresentado como Guardio de Ereshkigal. Talvez Kur pudesse lev-lo at ela.

- Ainda no mudei de idia. Quero ver Ereshkigal, disse ele.

- Todos os que vm s Grandes Profundezas encontram nossa Grande Rainha. Quando... a depende.

Ato continuo, o barco magur comeou a se mover na direo da costa, como se tivesse vontade prpria. Enki manteve-se ereto e digno na proa, pois sabia que estava sendo minuciosamente observado.

- Para entrar, porm, no Mundo Subterrneo, todos devem deixar qualquer arma ou escudo para trs. Todos devem entrar aqui da mesma forma com que nasceram nas Esferas Superiores: no carregando arma alguma, mas com a vontade de crescer e fazer algo novo, mesmo que no saibam ainda o qu.

Enki tentou prosseguir, mas uma espcie de paralisia tomou conta do seu corpo, apesar dele tentar se mover.

- Estas so as regras, meu deus. Sem aceit-las, os portais do Mundo Subterrneo jamais se abriro para si. Decida agora ou volte para onde veio.

Nas Esferas Superiores, a primeira respirao, a primeira noo do mundo e da vida ao redor, Enki havia compartilhado com Ereshkigal. Por ela ele tinha construdo o barco magur, por ela ele havia descido aos confins da existncia. Mais uma vez, por Ereshkigal, Enki despiu-se para chegar ao Mundo Subterrneo tal qual havia um dia nascido no Mundo Fsico. Se esta fosse a lei do Mundo Subterrneo, que Enki a cumprisse da melhor forma possvel.

Portanto, nu como um recm-nascido, deixando de lado qualquer sinal de status divino, Enki colocou os ps na costa do Mundo Subterrneo. Assim que seus ps tocaram a areia escura e grossa, uma poderosa sensao de desorientao tomou conta dele, como se cada aspecto e fragmento do seu ser estivesse minuciosamente sendo revertido, revisado e examinado sob intenso escrutnio. Ele se sentiu muito vulnervel, pois tudo o que havia pensado ou considerado verdade absoluta foi desafiado, analisado de todas as formas, de dentro para fora, de baixo para cima. A sensao era totalmente avassaladora, como se novos limiares de conhecimento e experincia tivessem se aberto para ele. Enki segurou a cabea com firmeza, esperando apenas ser capaz de resistir enorme presso que vinha de dentro dele e do universo interior.

- No lute contra a sensao, Enki ouviu uma voz grave e melodiosa soar estranhamente calma nas trevas. Voc ir se adaptar experincia do Mundo Subterrneo logo, logo. Lembre-se, porm, da regra bsica: se sua alma pura, ento os seus contatos aqui sero harmoniosos e iro faze-lo completo. Mas se voc vem com medo, raiva e tudo o que for negativo ou desequilibrado, voc ter ento de enfrentar as sombras do seu corao, corpo, mente e alma antes de encontrar regenerao, cura e equilbrio.

Alguns minutos ou talvez uma eternidade depois, Enki pde levantar a cabea sem senti-la rodar. Ele deixou seus olhos e sentidos absorverem a paisagem sua frente. Sob seus ps, a areia escura e grossa brilhava aqui e ali. Em cima, o firmamento tinha o mistrio do crepsculo. Enki no sabia de onde vinha a fonte do brilho sutil que vinha daquele cu. No havia estrelas no Mundo Subterrneo, mas a luz parecia vir de dentro da prpria terra. Em frente, ele podia ver o contorno de uma grande construo toda de lpis lzuli e cristal, provavelmente um templo ou palcio.

Mas o que impressionou Enki foram as formas fantasmagricas, de todos os tipos e jeitos que ele via ao seu redor, algumas muito ocupadas, sabendo o que faziam (seja l o que fosse!), outras parecendo andar a esmo. Seres descarnados, amontoados de ossos que se movimentavam, e se Enki pudesse usar o termo, parecendo estar vivos. Finalmente, Enki voltou-se na direo da Voz que o havia saudado. Uma figura alta e silenciosa, toda vestida de preto, e com um grande capuz, estava frente dele. A face da figura estava escondida. Mesmo sem poder ver seu rosto, a Figura fez Enki calar-se de imediato, assumir uma atitude de cautela e respeito que surpreendeu o carismtico jovem deus. Nunca antes deste momento ele tinha encontrado uma aura to grande de autoridade e seriedade. Enki engoliu em seco antes de falar:

- Talvez eu deva me apresentar .... Presena que est me recepcionando nas Grandes Profundezas, disse Enki.

Presena era um termo ao mesmo tempo ambguo e apropriado para enderear figura descarnada, ao conjunto de ossos vestido que estava na frente dele.

- Eu sei quem voc , e por que voc veio ao Mundo Subterrneo tambm. Voc deixou bem claro que quer levar sua irm Ereshkigal s Esferas Superiores, continuou a Voz. Mas como pode voc ter certeza de que ela quer realmente retornar com voc? Faz muito que vocs no se vem. bem possvel que ela considere as Grandes Profundezas o seu lar agora, e no mais o Mundo Fsico.

A objetividade direta e firme da Presena tanto chocou quanto impressionou Enki..

- Eu conhecia Ereshkigal como a minha prpria alma... replicou Enki, mas parou, antes de expressar o que realmente pensava e talvez ofender a Presena.

- E conhecendo a sua alma, voc no quereria viver no Mundo Subterrneo, no verdade, deus Enki? Completou a Presena, como se tivesse lido os pensamentos que Enki no tinha ousado enunciar. Mas todos aqueles que vivem vm ao Mundo Subterrneo ao final de seu ciclo de vida no Mundo Fsico. Todos, sem exceo (1).

Com um gesto amplo, a Presena apontou para as criaturas fantasmagricas, os amontoados de ossos descarnados de todos os tipos e formas que Enki via andando pelo Mundo Subterrneo.

- Todos os seres vivos vm a esta esfera no final de suas vidas... repetiu Enki, pensativamente. Portanto, todas estas.... presenas esto mortas?

Ele sabia que tinha feito uma pergunta retrica no momento em que as palavras saram de seus lbios. A Presena permaneceu em silncio, mas de uma certa forma, Enki no achou a reserva dela assustadora.

- No havia pensado muito na morte at este momento. Evidente que sei que a morte algo que acontece aos vivos, s plantas e animais, mas no necessariamente aos Grandes Deuses (2).

- O que voc experimentou ao chegar ao Mundo Subterrneo? Perguntou a Presena, com calma.

- Desorientao, desafio, intenso escrutnio de tudo o que fui e sou, minhas crenas, valores e ideais... Mas espere! Voc est dizendo que eu tambm morri ao colocar meus ps nesta terra?

Houve uma alterao na face da Presena. Seria este um sorriso?.

- Voc tambm renasceu aqui. O Mundo Subterrneo a Realidade Interior que d substncia a tudo o que foi, e ser em todos os mundos. Ele a esfera da essncia, onde a vida e a morte se encontram e se fundem uma na outra. Aqui, a vida e a morte so ao mesmo tempo ritmo e transformao, mostrando a relao estreita entre a Energia de tudo o que foi um dia Forma, para que todas as Curas e Regeneraes possam ocorrer. Voc, meu deus, que pelo seu dom confere a tudo o que existe o Conhecimento Potencial daquilo no que todos os seres podem se transformar, se assim o quiserem, tambm deve saber que este Conhecimento muito raramente concretizado no Mundo Fsico, sendo a causa de dios, problemas e frustraes. Portanto, ao final de seus ciclos de vida, todos os seres vivos vm ao Mundo Subterrneo para alcanar Equilbrio e Justia. Lembre-se, meu deus, que da vida sobrevm a morte, e que a morte cede lugar vida, assim como o jovem se torna velho, e o velho, se bem viver, jovem no espirito. Desta forma ns, nas Grandes Profundezas, estamos sempre ligados s Esferas Superiores como parte do fluxo de criao e dissoluo que nunca termina.

- E como isto ocorre?

- O que era Forma torna-se a Energia do que Foi, enquanto que a Essncia se reconstrui na fora do que poderia ter sido, o tom de voz da Presena tornou-se extremamente gentil e positivo. Viver bem mais do que satisfazer as necessidades bsicas do corpo, pois deve tambm levar em conta a realidade do espirito. Se todos os seres vivos se dessem conta deste fato to simples, ento talvez ser-lhes-ia possvel ver suas existncias no Mundo Fsico tanto como processo e meta, sempre evoluindo e transcendendo ao que um dia foram. Pois a vida no um plano pr-estabelecido, mas uma semente de transformao, contendo dentro de si todas as possibilidades para se concretizar no Mundo Fsico, sempre guiada pelo Espirito que a tudo d significado e fulgor.

Fez-se ento silncio, e Enki foi tomado por profunda emoo. Uma lgrima quente e solitria correu pela face do deus das guas Doces, das Artes e da Mgica. Ento ele, num ato de vontade, alterou o seu estado de conscincia, transformando a Energia do que e quem ele via sua frente nas Formas do que estes tinham sido, eram e seriam em todos os mundos. O Mundo Subterrneo ento transformou-se na imagem do Paraso Restaurado, o Mundo Fsico Original, que tambm contm as estrelas.

Enki dirigiu-se `a Presena com profundo respeito e admirao, reconhecendo-a por quem ela realmente era:

- Irm adorada, Ereshkigal, eu te sado, e te peo humildemente perdo por no ter-te reconhecido antes deste momento.

De fato, quem estava sorrindo para ele no era mais o amontoado de ossos descarnado e projeo dos piores medos que se pode ter a respeito da vida aps-morte, mas sim uma jovem mulher de idade indefinida, de longos cabelos negros, toda vestida de preto e prata, a quem Enki conhecia to bem quanto a sua prpria alma. Os dois irmos se abraaram com grande carinho.

- Compreendes tudo agora, Enki? Falou Ereshkigal quando o abrao terminou. Por que meu lugar aqui, por que no posso retornar contigo s Esferas Superiores? Eu me tornei numa das Grandes Guardis. Esta foi a minha escolha. Pai Anu o Guardio do Firmamento, Ninhursag-Ki de tantos nomes nossa Terra Me, Enlil zela por ela e pelo Ar que respiramos. Tu, Enki, guardas tambm as guas Doces, as Artes e a Mgica. Eu escolhi o Mundo Subterrneo. Havia uma grande necessidade de uma Presena aqui. Muitos vm a esta Esfera com tanta dor e tristeza, sentindo tanta falta do que nunca experimentaram ou conseguiram atingir no Mundo Fsico. Estes seres precisam aprender muito a respeito do equilbrio e da cura. Eu estou aqui para assegurar que todos os que buscam pela essncia alm da aparncia iro encontr-las, se estiverem dispostos a desnudar e refazer suas almas para encontrar os tesouros que antes no tiveram capacidade de encontrar no Mundo Fsico. Tantos no conseguem ver no Mundo Subterrneo como a Esfera da Justia e do Equilbrio Restaurados. Como tu mesmo, Enki, que ao chegar, viu apenas figuras fantasmagricas e feias, a vida aqui como trabalho duro e lgrimas.

- Ah, irm, no demais tentares equilibrar tanta dor pelas Esferas Superiores antes que a cura e a regenerao possam acontecer? Perguntou Enki, tomado de assombro pela responsabilidade que Ereshkigal tinha assumido de livre e espontnea vontade e colocado sobre seus delicados ombros.

- Tu enfrentaste a iniciao do Mundo Subterrneo ao chegar aqui, irmo. Num nvel mais profundo, tu mudaste e cresceste com a experincia. Foram-se a atitude arrogante, o desejo de me levar de volta, porque sentias a minha falta, sem me perguntar se tambm era meu desejo partir. E porque tu me conheces to bem quanto a tua prpria alma, creio que agora compreendes que, apesar de sentir falta das Esferas Superiores, dos meus irmos deuses e deusas, de brincar e me divertir com eles, existem tesouros escondidos nas Grandes Profundezas, e que me tornei na Guardi principal deles. Muitos jamais sero capazes de ver o que so e onde esto tais tesouros. Eu sim. Por este motivo sou necessria aqui. Assim como a tua mgica, irmo, necessria nas Esferas Superiores.

Enki deixou as lgrimas rolarem livremente. Agora, ele sabia com certeza que Ereshkigal jamais retornaria ao Mundo Fsico ou Regio do Firmamento. Ela no voltaria para Enlil ou para ele nunca mais.

- Posso te perguntar a respeito de Kur? Eu sempre quis saber por que tu nos deixaste, perguntou Enki.

Finalmente ele tinha feito a pergunta que devorara as suas entranhas desde que Ereshkigal havia deixado o Mundo Fsico.

- Kur um dos guardies das Grandes Profundezas agora. Ele foi um amigo que me ajudou a entender muitas coisas de que precisava saber e aprender ao chegar aqui. Mas no esta a pergunta que me queres realmente fazer, Enki. Faca a pergunta certa, meu irmo. Em voz alta e clara, para deixar o passado para trs, toda a culpa que sentiste por todo este tempo, uma culpa que na realidade, nunca deverias ter assumido.

Enki respirou fundo antes de desnudar finalmente a sua alma:

- Deixaste as Esferas Superiores por Kur? Ns... eu te falhei de alguma forma?

A voz de Ereshkigal tornou-se extremamente gentil, mas havia uma ternura feita de ao nela:

- Eu no deixei as Esferas Superiores por Kur. Eu desci s Grandes Profundezas, porque esta era a Vontade Maior em mim, a realizao da minha misso de vida para ser compartilhada por todos os mundos. Kur foi um amigo, um companheiro ao longo desta jornada, assim como tu, Enki, tambm o foste durante os dias maravilhosos de nossa infncia. Agora, Kur est ligado a mim por laos de liberdade, porque ele resolveu ficar e ser um de meus guardies aqui no Mundo Subterrneo. Nunca mais, irmo adorado, o melhor companheiro de folguedos dos meus primeiros anos, penses que me faltaste de alguma forma. Talvez eu tenha faltado a ti e a Enlil, quem sabe? Mas de alguma forma, no creio que falhamos uns aos outros. Ns fizemos as nossas escolhas, todos nos tornamos guardies de pleno direito. Desta forma, aqui das Grandes Profundezas eu tambm sou uma com todos os Anunaki.

Outro silncio carregado de emoo seguiu-se s palavras de Ereshkigal. Enki sentiu como se uma carga de imenso peso tivesse sido erguida de seus ombros, mente, corao e alma.

- No lamentes a tua escolha de ter descido por mim, Enki, continuou Ereshkigal. De fato, eu tinha certeza de que virias, e sempre te esperei aqui. Os laos que nos unem como gmeos perfeitos so demasiado fortes, e sempre que quiseres, irs me encontrar, se souberes como e onde procurar. Mas antes que tu entendesses a funo da minha vida, eu no poderia me apresentar ou dizer alguma coisa. Tanto quanto eu perteno agora s Grandes Profundezas, tu tambm pertences em tua totalidade s Esferas Superiores. Mas ao vires at mim, eu espero que tenhas aprendido a ver tudo o que existe como Forma e Essncia. Se as Esferas Superiores so o domnio da Forma, onde a Essncia est no interior, o Mundo Subterrneo o domnio da Essncia Perfeita, que est contida na Forma, e que ser vista por todos aqueles cuja Viso Interior se projetar alm das aparncias. Desta forma, aqui das Grandes Profundezas estamos para sempre ligados s Esferas Superiores, pois o Mundo Subterrneo a Estrutura Interior que d sustentao aos outros mundos. Tudo o que existir no exterior tambm igual ao que existe no interior para revelar os segredos Daquele e Daquela que so Um/Uma e Muitos/Muitas.

Enki bebeu as palavras de Ereshkigal, a sabedoria calma e profunda da Guardi das Grandes Profundezas. Ereshkigal, num movimento gracioso e rpido, ajoelhou-se no cho, suas mos mergulhando na slida fundao do Mundo Subterrneo.

- Antes de partir, irmo, tome isto.

A mo de Ereshkigal retirou do solo uma forma oval e plida, colocando-a na palma da mo de Enki. Uma semente! Enki ergueu um olhar intrigado para Ereshkigal.

- Plante esta semente, Enki, e espere para ver o que vai sair dela. Mas em verdade, em verdade eu afirmo, querido irmo, que se esta semente crescer e ficar madura, ela ser o portal para muitos outros mundos de crescimento, equilbrio e regenerao. E por Namu, a Me Original e muito amada que deu luz a mim e a ti, bem como pelo deus do Firmamento Anu, nosso adorado pai, eu agora declaro um destino dos mais auspiciosos: aquele ou aquela que encontrar minha semente crescida e bem formada ser quem ir descobrir a forma de manter a ponte de ligao entre o Mundo Subterrneo e as Esferas Superiores sempre aberta para todos (3). E que seja feita a minha vontade, agora e para sempre!

Enki sabia que a semente era o presente de adeus de Ereshkigal:

- Eu a verei novamente, Ereshkigal? Ou perdemos voc para sempre l nas Esferas Superiores? Ele perguntou.

O riso cristalino de Ereshkigal fez-se ouvir :

- Eu no creio que as Esferas Superiores esto perdidas para mim, Enki. Voc me perdeu para sempre, irmo?

O corao de Enki queria gritar "nunca! Jamais estars perdida para mim, Ereshkigal!" mas as palavras que a sua alma formou no foram pronunciadas pela boca.

- Se me procurares, hs de me achar. Sempre! E agora, irmo querido, companheiro e grande amigo, eu te digo adeus!

Enki sentiu um beijo carinhoso na face, e logo viu-se completamente sozinho junto ao barco magur. Lgrimas quentes brotaram-lhe copiosas dos olhos. Ele fez uma profunda cortesia de amor e respeito deusa do Mundo Subterrneo. Por um breve momento, Enki teve inveja de Kur, que estava livre para ficar com Ereshkigal, enquanto que ele, Enki, no podia ficar nas Grandes Profundezas. Mas Enki sentiu-se forte como nunca, extremamente comovido, com uma viso maior e mais profunda que podia abraar todo o universo.

A semente de Ereshkigal pareceu pulsar na palma da mo do deus das guas Doces, das Artes e da Mgica. Ele se dirigiu ao barco magur, comeando a remar de volta s Esferas Superiores. Quando o barco tinha-se afastado da costa a uma pequena distancia, Enki subiu `a proa e ergueu a mo num adeus silencioso e cheio de amor `a Ereshkigal:

- Que a luz do Mundo Subterrneo, a terra da Regenerao, Equilbrio e Crescimento, que um dia em mim brilhou jamais se apague e nem se afaste de mim o seu fulgor. Que ela cubra como uma Coroa de gloria todos os que descerem s Grandes Profundezas com suas almas, corpos, coraes e mentes abertos a todos os mistrios! E que Ereshkigal seja para sempre lembrada pelos desafios que apresentar a todos que guiados pela verdade vierem ao Mundo Subterrneo, para tambm dele retornar!

Alguns meses depois, Enki tomou novamente o barco magur. Seu objetivo neste dia era encontrar a semente de Ereshkigal, que ele havia plantado perto do rio. Ser que a semente das Grandes Profundezas poderia ter crescido nas Esferas Superiores, para renascer no Mundo Fsico? Enki tinha algumas duvidas, mas tendo experimentado o poder de Ereshkigal, ele sabia que tudo era possvel em se tratando da Grande Deusa do Mundo Subterrneo.

Ao chegar prximo ao ponto onde ele havia plantado a semente, ansioso, Enki esticou o pescoo para poder ver mais frente. Passaram-se alguns minutos, mas quando um pouco alm ele viu as folhas verdes, o pequeno, mas robusto tronco se projetando para o Mundo Fsico, o riso de Enki soou cristalino na luz da manh radiosa de vero. Ele atracou o barco e se aproximou da viosa arvorezinha, junto a qual o brejeiro e sensual deus se ajoelhou com alegria e reverncia. Aqui estava o fruto da semente que havia recebido de presente de Ereshkigal!

- Em verdade, em verdade eu afirmo que a vida realmente vem das Profundezas Interiores, disse ele. Semente que cresceu das entranhas da terra, seja bem-vinda ao Mundo Fsico, voc que carrega dentro os tesouros das Grandes Profundezas. Que suas razes mantenham-se firmes em todos os Reinos, que o seu tronco cresa forte luz da verdade, e seus galhos, folhas e frutos confiram conhecimentos a serem compartilhados por todos, mostrando outras formas de Ser em todos os Mundos e Esferas. Que todos que a encontrarem subam s alturas mais elevadas e desam s maiores profundezas em busca de equilbrio e crescimento. A voc dou o nome da mais preciosa, mais querida e sagrada de todas as rvores, a rvore sagrada do conhecimento de todas as verdades, ponte entre todos os mundos, a rvore de Hulupu (4).

Aps proferir estas palavras, Enki retornou ao barco magur com um sorriso, um corao pleno e mais do que satisfeito. Hora de voltar para Eridu.

- E para Ningikuga. Desta vez para ser mais do que um bom amigo!

O barco magur zarpou com pressa de chegar. Eridu agora era casa, porto e lar.

Notas:

(1) Apesar da maioria das referncias sobre o Mundo Subterrneo serem negativas, h tambm dados menos conhecidos mostram que as Grandes Profundezas tambm podiam trazer suas benesses: por exemplo, Utu/Shamash, o deus do Sol, viajava todas as noites para l, para iluminar com sua luz o Mundo Subterrneo, alm de levar consigo bebidas rituais sagradas para as pessoas; Nana/Suen fazia o mesmo durante o dia (Leick, Gwendolyn, A Dictionary of Ancient Near Eastern Mythology, Routledge, 1991). Kramer (Kramer, Samuel Noah, History Begins at Sumer, 1981) cita que Stephen Langdon publicou em 1919 um poema no qual o rei sumrio Ur-Namu morre, desce s Grandes Profundezas, e alm de ser bem recebido, a ele dado um palcio e a companhia de mortos, que o fazem se sentir em casa. importante salientar que nos Mistrios, no existe asceno s Esferas Superiores sem a descida ao Mundo Subterrneo.

(2) Os deuses podiam morrer na Mesopotmia, pois embora a imortalidade fosse um de seus privilgios, nem todos os deuses eram imortais. Alguns deuses eram vistos como mortos, e nem mesmo heris podiam-se escapar da morte. Ao contrrio de homens e mulheres mortais, os deuses pareciam no morrer de doenas, nem, em geral, ter sua morte causada pela ao de espritos do mal. Os deuses mortos eram geralmente aqueles que tinham sido assassinados. Talvez o mais famoso exemplo de uma deusa morta seja o de Me Tiamat, morta em combate por Marduk (Babilnia), Do corpo esquartejado da me original do universo, Marduk criou a civilizao babilnica.

(3) Aqui e especificamente neste ponto, feita a ligao com um dos mais famosos mitos mesopotmicos, chamado de "A Descida de Inana". Nele, que no foi escolhido para este trabalho por no se tratar de uma histria de amor, narrado o confronto entre Inana e Ereshkigal. Inana desce manso dos mortos, pois tinha ouvido o chamado das Grandes Profundezas, morre pela vontade de Ereshkigal e ressuscita ao terceiro dia por obra de enviados de Enki, nascendo tambm de Ereshkigal. No retorno de Inana s Esferas Superiores, dois de seus iniciados mantero posteriormente as portas entre os Mundos Fsicos e Subterrneo para sempre abertos. A justificativa para fazer esta ligao aqui encontra-se na primeira passagem do mito de Inana "A rvore de Huluppu" (Inana, Queen of Heaven and Earth, de Samuel Noah Kramer e Diane Wolkstein, 1983), que conta a) a escolha de Ereshkigal pelo Mundo Subterrneo; b) a descida de Enki s Grandes Profundezas enfrentando uma viagem muito difcil, sendo que Kramer (History Begins at Sumer, Samuel Noah Kramer, 1981) fala de seu combate com Kur por Ereshkigal, e c) mostra que Inana encontrou uma rvore especial, a rvore de Huluppu, e a plantou no seu jardim para seu povo. Desta rvore, posteriormente, Inana tem esculpido o seu trono e o leito sagrado, bem como Gilgamesh, o rei e legendrio heri de Uruk (a cidade de Inana) recebe da Mesma rvore os smbolos da realeza dados por Inana.

(4) rvore de Huluppu: rvore sagrada, plantada s margens do Eufrates, e transportada por Inana/Ishtar para o seu palcio, e ofertada para o povo da cidade de Uruk e fieis de Inana/Ishtar. importante salientar que desde os primeiros tempos no Oriente Prximo rvores com significado mgico e ritual eram uma constante e muito reproduzidas em obras de arte. Basicamente, plantas, vegetais e rvores eram considerados sagrados por suas associaes com a fertilidade e abundncia. Na metade do segundo milnio antes de nossa era, a imagem de imagens hbridas de rvores com desenhos complexos comeam a se tornar bastante comuns. Este tipo de rvore transformou-se na clssica rvore da vida neo-assria, ou rvore sagrada, e pode muito bem ser a origem da rvore sagrada do sistema mstico hebreu conhecido como a Cabala, bem como deve ter servido de inspirao para a rvore do conhecimento do bem e do mal encontrada no Jardim do den dos antigos hebreus e no Antigo Testamento da Bblia.