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Associação Nacional dos Programas de Pós‐Graduação em Comunicação XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre ‐ RS, 11 a 14 de junho de 2019 1 www.compos.org.br www.compos.org.br/anais_encontros.php ENGOLIDOS PELA PEDRA QUE CANTA: uma netnografia num grupo de nostalgia do Facebook 1 SWALLOWED BY THE SINGING ROCK: a netnography at a nostalgia Facebook group Lucia Santa Cruz 2 Resumo Muito embora sejam ambientes que privilegiem o imediatismo, a atualização constante e a velocidade, as redes sociais também abrem espaço para manifestações memorialísticas e experiências de nostalgia. Este artigo relata uma netnografia realizada na comunidade virtual “Alvorada do Iguaçu – Cidade submersa por Itaipu”, que existe desde fevereiro de 2018 no Facebook. O objetivo da netnografia era observar como um grupo utiliza uma rede social como um espaço para guardar e recuperar sua memória. Mesmo considerando que a iniciativa pode ser classificada como um lugar de memória, no sentido de Pierre Nora, optou-se por analisar a relação dos integrantes com a nostalgia, na perspectiva de Svetlana Boym. A pergunta que guiou as análises é se os membros do grupo vivenciam um sentimento nostálgico de tendência restaurativa ou reflexiva. Palavras-Chave: Nostalgia 1. Memória 2. Netnografia 3. Abstract: Although they are environments that privilege immediacy, constant updating and speed, social networks also open space for memorialistic manifestations and experiences of nostalgia. This article reports a netnography realized in the virtual community “Alvorada do Iguaçu – Cidade submersa por Itaipu, that exists since February of 2018 in Facebook. The goal of netnography was to observe how a group uses a social network as a space to store and retrieve their memory. Even considering that the initiative can be classified as a place of memory, in the sense of Pierre Nora, it was decided to analyze the relationship of the members with nostalgia, from the perspective of Svetlana Boym. The question that guided the analysis is whether members of the group experience a nostalgic feeling of restorative or reflective tendencies.10. Keywords: Nostalgia 1. Memory 2. Netnography 3. 1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Memória nas Mídias do XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019. 2 Doutora em Comunicação e Cultura (UFRJ), Professora Adjunta ESPM Rio, Coordenadora do Grupo de Pesquisa LEMBRAR; [email protected]

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XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre ‐ RS, 11 a 14 de junho de 2019 

1 www.compos.org.br

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ENGOLIDOS PELA PEDRA QUE CANTA: uma netnografia num grupo de nostalgia do Facebook 1

SWALLOWED BY THE SINGING ROCK: a netnography at a nostalgia Facebook group

Lucia Santa Cruz 2

Resumo

Muito embora sejam ambientes que privilegiem o imediatismo, a atualização constante e a velocidade, as redes sociais também abrem espaço para manifestações memorialísticas e experiências de nostalgia. Este artigo relata uma netnografia realizada na comunidade virtual “Alvorada do Iguaçu – Cidade submersa por Itaipu”, que existe desde fevereiro de 2018 no Facebook. O objetivo da netnografia era observar como um grupo utiliza uma rede social como um espaço para guardar e recuperar sua memória. Mesmo considerando que a iniciativa pode ser classificada como um lugar de memória, no sentido de Pierre Nora, optou-se por analisar a relação dos integrantes com a nostalgia, na perspectiva de Svetlana Boym. A pergunta que guiou as análises é se os membros do grupo vivenciam um sentimento nostálgico de tendência restaurativa ou reflexiva.

Palavras-Chave: Nostalgia 1. Memória 2. Netnografia 3. Abstract:

Although they are environments that privilege immediacy, constant updating and speed, social networks also open space for memorialistic manifestations and experiences of nostalgia. This article reports a netnography realized in the virtual community “Alvorada do Iguaçu – Cidade submersa por Itaipu, that exists since February of 2018 in Facebook. The goal of netnography was to observe how a group uses a social network as a space to store and retrieve their memory. Even considering that the initiative can be classified as a place of memory, in the sense of Pierre Nora, it was decided to analyze the relationship of the members with nostalgia, from the perspective of Svetlana Boym. The question that guided the analysis is whether members of the group experience a nostalgic feeling of restorative or reflective tendencies.10.

Keywords: Nostalgia 1. Memory 2. Netnography 3.

1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Memória nas Mídias do XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019. 2 Doutora em Comunicação e Cultura (UFRJ), Professora Adjunta ESPM Rio, Coordenadora do Grupo de Pesquisa LEMBRAR; [email protected]

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XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre ‐ RS, 11 a 14 de junho de 2019 

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1. Introdução

Em tupi, Itaipu significa “pedra que canta”3 . Este nome poético foi escolhido para

batizar a maior usina hidrelétrica do mundo, um projeto binacional Brasil-Paraguai, no Rio

Paraguai. Em outubro de 1982, a Usina Hidrelétrica de Itaipu fechou suas comportas, dando

início à formação de seu reservatório, com capacidade de 29 bilhões de m3, o qual inundou

780 m2 de terras brasileiras e 570 km2 de terras paraguais, afogou as Sete Quedas e, de forma

compulsória, expropriou mais de 42 mil pessoas da área comprometida com a implantação do

empreendimento. Do lado brasileiro, a alagação atingiu oito municípios4, que tiveram em

média 13% de seu território submerso pelas águas. (GERMANI, 2003).

Em um desses municípios, São Miguel do Iguaçu, que teve quase 22% de sua área

comprometida pela construção de Itaipu (GERMANI, 2003), havia uma vila também

engolida pelas águas: Alvorada do Iguaçu, onde viviam em torno de 4 mil pessoas, e

apontada como a primeira desapropriação promovida por Itaipu (RIBEIRO, 2006, p. 62).

As águas do reservatório atingiram tanto a área rural quanto os núcleos urbanos. Várias vilas e distritos desapareceram completamente, como é o caso de Alvorada do Iguaçu e Itacorá. Outras foram parcialmente inundadas, como Porto Mendes, São José do Ocoí e Santa Helena. (GERMANI, 2003, p. 52)

O projeto de uma hidrelétrica na região começou ainda no governo Juscelino

Kubitschek, mas seria uma usina nacional, e se manteria o salto das Sete Quedas. Os planos

mudaram durante a ditadura militar, com a estratégia de hegemonia regional por dominação

territorial.

os governantes brasileiros descobriram que a Argentina estava em negociação com o Paraguai para a construção de uma usina binacional. Assim, o governo brasileiro, através de negociações, fez uma aliança estratégica com o governo paraguaio. Os vizinhos tornaram-se, então, parceiros na ambiciosa empreitada da construção da maior usina hidrelétrica do mundo. (ZIOBER; ZANIRATO, apud LUCIO, s/d)

O impacto nas populações que viviam em torno do Rio Paraná – 13 famílias indígenas

deslocadas e mais de 8.500 propriedades urbanas e rurais alagadas na margem brasileira - e o

fim de uma beleza natural que atraía milhares de turistas à cidade de Guaíra motivaram

manifestações de colonos e protestos. Um deles foi o do poeta Carlos Drummond de

3 Uma outra tradução diz que Itaipu é formada por itá=pedra; i=aguá; pu=estrondo, ou seja, pedra que a água faz estrondo. 4 Os municípios atingidos pela formação do reservatório de Itaipu foram Guaíra, Terra Roxa, Marechal Cândido Rondon, Santa Helena, Matelândia, Medianeira, São Miguel do Iguaçu e Foz do Iguaçu.

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Andrade, que escreveu o poema “Adeus às Sete Quedas”, publicado no Jornal do Brasil, no

dia 9 de setembro de 1982.

A ocupação da região iniciou-se no final do século XIX, mas foi nos anos 1940 que se

intensificou, atraindo, basicamente, migrantes gaúchos e catarinenses, descendentes, por sua

vez, de italianos e alemães, em busca de terras. A partir da década de 60, mineiros,

nordestinos e capixabas também chegaram para trabalhar como peões ou arrendatários

(GERMANI, 2003). De início, extração de madeira, depois plantação de hortelã, suinocultura

e, no final da década de 60, cultivo de soja e trigo foram as culturas que se estabeleceram na

região. Grande parte destas terras hoje está submersa no Lago de Itaipu.

Trinta e seis anos depois do alagamento da pequena vila de São Miguel do Iguaçu,

uma ex-moradora, Nara Regina Spada, criou no Facebook um grupo denominado “Alvorada

do Iguaçu – Cidade submersa por Itaipu”, com o propósito de realizar “um sonho antigo de

reunir os amigos de meus pais, da antiga comunidade e com o objetivo geral do

congraçamento das famílias da extinta localidade” (SPADA, informação oral)5

Em períodos de forte estiagem, como o que aconteceu em 2018, o nível do

reservatório cai e ruínas de casas voltam a aparecer, como vestígios das cidades e vilas

alagadas, fragmentos de histórias e lembranças de quem viveu ali. Este artigo apresenta um

estudo da comunidade virtual “Alvorada do Iguaçu – Cidade submersa por Itaipu”, buscando

entender como se dá a relação dos participantes com suas memórias e experiências de um

tempo que ficou debaixo da “pedra que canta”.

2. Metodologia

A proposta foi realizar uma netnografia no grupo de Facebook “Alvorada do Iguaçu –

Cidade submersa por Itaipu”, que vem sendo acompanhado desde outubro de 2018. A

netnografia é “pesquisa observacional participante baseada em trabalho de campo online. Ela

usa comunicações mediadas por computador como fonte de dados para chegar à compreensão

e à representação etnográfica de um fenômeno cultural ou comunal”. (KOZINETS, 2014, p.

61) Portanto, ela adapta os procedimentos de observação participante, próprios da etnografia,

às contingências da interação social mediada por computadores. “O uso do termo e da

abordagem da netnografia sinalizam não apenas a presença, mas o peso do componente

5 SPADA, N. R. Entrevista concedida por email à autora, em janeiro de 2019.

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online. “Significaria que um tempo significativo foi gasto interagindo e tornando-se pare de

uma comunidade ou cultura online” (KOZIONETS, 2014, p. 62).

Assim como na etnografia, também aqui foi necessário fazer um planejamento da

pesquisa, especialmente em relação à entrada no campo, que significava participar como

membro do grupo “Alvorada do Iguaçu”.

Nesse sentido, a autora deste artigo observou o grupo durante dois meses, até solicitar

a sua entrada como membro. Como se trata de um grupo público no Facebook6, mesmo sem

ser participante do grupo já pode acompanhar as postagens e também ler as mais antigas.

A associação não foi automática. Ao pedir para se inscrever no grupo, recebeu a

seguinte mensagem:

“Olá! Obrigada por seu interesse em participar do nosso grupo. Você morou ou

conhecer alguém que viveu na extinta localidade de Alvorada do Iguaçu?”

A autora tinha 250 caracteres para responder o motivo do seu interesse no grupo e

enviar para os administradores que analisam as solicitações de participação. Explicou que é

professora e pesquisadora, que estuda a relação entre memória e mídia e que estava

escrevendo um artigo sobre como alguns grupos estão utilizando o Facebook como um

espaço para guardar e recuperar sua memória. Em alguns dias recebeu o retorno positivo,

acompanhado de uma explicação sobre os objetivos do grupo.

A partir de então, fez vários contatos com a criadora e administradora do grupo, Nara

Regina Spada, com quem fez uma entrevista por email, manteve algumas conversas pela

ferramenta de bate-papo on line do Facebook, o Messenger e realizou uma entrevista por

chamada de áudio no whatsapp. Depois de devidamente autorizada por Spada, fez uma

postagem no grupo, se apresentando e pedindo que as pessoas respondessem a duas

perguntas:

Olá a todos, meu nome é XXXXX, sou professora universitária e pesquisadora da XXXX. Minhas pesquisas estudam iniciativas de memória social, como este grupo, do qual eu também faço parte, como já adiantou a Nara Regina Spada na postagem anterior7. Estou escrevendo um artigo sobre como alguns grupos estão usando o facebook como um espaço para guardar e recuperar suas memórias. Gostaria de fazer algumas perguntas a vocês que participam deste grupo. 1) por que ingressou no grupo?

6 Na rede social Facebook, é preciso criar grupos que reúnem diversos participantes em torno de um tema ou interesse comum. Os grupos podem ter três configurações de privacidade – público, fechado ou secreto. Os grupos públicos podem ser visualizados por qualquer pessoa na rede social. Os fechados são encontrados mas só os membros acessam as postagens. E os secretos só são visíveis e acessíveis para os membros. 7 A administradora do grupo fez, previamente, uma postagem sobre minha pesquisa.

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2) pra você, qual a importância de grupos como esse? Quem puder responder nos comentários vai contribuir muito para meu trabalho. De antemão agradeço a acolhida e a generosidade em me responderem.

As entrevistas e o contato direto com alguns dos participantes que comentaram este

post evitaram que este artigo fosse apenas uma coleta de postagens de um grupo no

Facebook, o que desvirtuaria o propósito metodológico. “Coleta de dados em netnografia não

é apenas coletar as postagens, isso seria análise de conteúdo. Coleta de dados em netnografia

significa comunicar-se com membros de uma cultura ou comunidade” (KOZINETS, 2014, p.

93).

De todo modo, fazer netnografia em grupos de redes sociais é um exercício complexo,

especialmente porque a disposição das postagens não obedece exatamente uma ordem

cronológica. Na verdade, elas podem ser capturadas a qualquer momento e interromperem o

fluxo ascendente do tempo. Assim, uma postagem de dois meses pode ser trazida para a

atualidade da linha do tempo e voltar a ter uma circulação como se fosse uma nova postagem.

Isso cria interrupções numa perspectiva cronológica tradicional, e promove um

embaralhamento no desenrolar dos acontecimentos, mas simultaneamente agencia novas

camadas de recordações e de recapturas de nostalgia.

As postagens foram então acompanhadas até o dia 17 de fevereiro de 2019 pela

autora, que fez anotações livres durante a leitura, sem nenhuma preocupação inicial de

categorização. Após o período de observação, um recorte adotado foi selecionar posts que

fazem alguma alusão à nostalgia, à saudade, ao sentimento nostálgico. A análise deste

material será feita na seção 4 deste artigo.

Por uma opção metodológica, os posts foram reproduzidos na forma como foram

escritos, sem intervenção da autora.

3. A nostalgia das ruínas

Ao escolhermos as comunidades das mídias sociais que transitam em torno da

nostalgia como objeto de estudo pela abordagem dos estudos de memória, o mais imediato é

considerá-las como lugares de memória, na acepção de Nora (1978). De fato, elas podem ser

classificadas como ambientes onde um grupo “voluntariamente deposita suas lembranças ou

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as reencontra como uma parte necessária de sua personalidade”8 (NORA, 1978, p. XXX).

São lugares de guarda e de celebração da memória, que nasceram de um desejo de

organização das lembranças coletivas, e que se converte num elemento de nutrição da

identidade.

Neste artigo, porém, nos interessa pensar nestas comunidades virtuais como espaços

de experimentação da nostalgia, nos quais se revive com prazer o passado. Cabe lembrar que

não deixa de ser paradoxal a vinculação de ambientes virtuais como Facebook com

comunidades e páginas de nostalgia. “Midias sociais são bestas vorazes pelo presente na

forma de atualizações de status, curtidas e efemeridades diárias”9 (POTTS, 2014, p. 215),

numa lógica de consumo de imagens que operaria num caminho análogo ao da vida off-line

(OLIVEIRA, 2016, p.119).

Apesar desta voracidade pela atualidade, que rola nas diferentes telas, uma rápida

pesquisa pelo Facebook aponta uma série de páginas e grupos de interesse nostálgico.

Algumas, como Canal Nostalgia, têm 3,6 milhões de inscritos, demonstrando o apelo que

rememorar traz mesmo em mídias marcadas pela velocidade e pelo imediatismo. Movimento

semelhante à expressão Throwback Thursday ou #TBT, uma brincadeira que consiste em o

usuário postar uma foto antiga em alguma rede social na quinta-feira. Além de hoje ser usada

em outros dias da semana, é empregada em contraposição ao “aqui/agora/recentemente” das

mídias sociais.

Svetlana Boym, em seu clássico livro para os estudos da nostalgia, The Future of

Nostalgia, nos recorda que a palavra nostalgia foi cunhada no século XVII pelo médico suíço

Johannes Hofer a partir de duas palavras gregas – nostos (retorno para casa) e algia (dor),

para designar uma doença que acometia soldados e trabalhadores longe de suas terras natais

(BOYM, 2001). Ela aponta que existem duas tendências de nostalgia – a nostalgia

restaurativa e a nostalgia reflexiva. “A restaurativa coloca ênfase em nostos e se propõe a

reconstruir a casa perdida e preencher as lacunas da memória. A reflexiva habita na algia, na

8 No original: “consigne volontairement ses souvenirs ou les retrouve comme une partie nécessaire de sa personnalité” 9 No original: “Social media is a ravenous beast hungry for the present in the form of status updates, likes and daily efêmera”.

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saudade e na perda, no processo imperfeito da lembrança.”10 (BOYM, 2001, p. 41). O

conceito de restauração pressupõe um retorno ao estado original, que seria paradisíaco.

“Neste sentido, o passado para a nostalgia restaurativa é um valor para o presente; o passado

não é uma duração mas um instantâneo perfeito (...) e não deve revelar nenhum sinal de

decadência; deve ser tinta fresca na sua imagem original e manter-se eternamente jovem”11

(BOYM, 2001, p. 49).

Em geral, os processos de restauração de monumentos e sítios históricos são guiados

por esta perspectiva, encobrindo as rachaduras e as imperfeições.

Nostalgia é a doença da distância temporal e da desterritorialização. Nostalgia restaurativa assume os dois sintomas. A distância é compensada pela experiência íntima e pela presença do objeto desejado. A desterritorialização é curada por um retorno à casa, preferencialmente uma casa coletiva. Não tem problema se não é exatamente sua casa; quando você chegar lá, você terá esquecido a diferença. (BOYM, 2001, p. 44)12

Já a nostalgia reflexiva é mais preocupada com o tempo histórico e individual, não em

recuperar um passado cristalizado. “A nostalgia restorativa se manifesta em reconstruções

totais de monumentos do passado, enquanto a nostalgia reflexiva se apoia nas ruínas, na

pátina do tempo e da história, nos sonhos de um outro lugar e um outro tempo”13 (BOYM,

2001, p. 41).

Oliveira (2016) sistematizou as duas modalidades de nostalgia, apontando as suas

diferenças (Quadro 1).

Quadro 1 - Comparação entre “nostalgia restaurativa” e “nostalgia reflexiva”

10 No original: “Restorative nostalgia puts emphasis on nostos and proposes to rebuild the lost home and patch up the memory gaps. Reflective nostalgia dwells in algia, in longing and loss, the imperfect process of remembrance.” 11 No original: “The past for the restorative nostalgic is a value for the present; the past is not a duration but a perfect snapshot. Moreover, the past is not supposed to reveal any signs of decay; it has to he freshly painted in its "original image" and remain eternally young.” 12 No original: “Nostalgia is an ache of temporal distance and displacement. Restorative nostalgia takes care of both of these symptoms. Distance is compensated by intimate experience and the availability of a desired object. Displacement is cured by a return home, preferably a collective one. Never mind if it's not your home; by the time you reach it, you will have already forgotten the difference” 13 No original: “Restorative nostalgia manifests itself in total reconstructions of monuments of the past, while reflective nostalgia lingers on ruins, the patina of time and history, in the dreams of another place and another time.”

Nostalgia restaurativa Nostalgia reflexiva Toma a si própria muito a sério. Pode ser irônica e bem humorada,

inconclusa e fragmentária. Acentua o nostos (lar). Prospera no algia (o desejo em si). Objetiva uma reconstrução trans-histórica Atrasa a volta para casa.

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Fonte: Oliveira (2016, p. 126)

Mesmo destacando as distinções, o próprio Oliveira sinaliza que não é possível traçar

uma linha divisória exata entre os dois tipos de nostalgia esmiuçados por Boym, e que em

alguns objetos de estudo talvez sejam encontrados traços das duas tendências.

De certa forma, comunidades de lembranças também se colocam numa posição de

resistência a uma atrofia da memória. “A cultura do consumo, no seu incansável foco no

presente imediato, encoraja uma amnésia cultural nos cidadãos, especialmente nos jovens”14

(POTTS, 2014, p. 212), uma concepção partilhada por Jameson (1983), para quem a

comoditização da vida leva a um presente perpétuo que oblitera as tradições. Grupos que se

dedicam a relembrar, por meio de mídias sociais, seriam uma espécie de antídoto para esta

presentificação incansável, visto que se dedicam ao culto do passado e a recuperá-lo para os

dias de hoje.

Davalos et ali. (2015) conduziram uma pesquisa que analisou, em dois estudos

diferentes, como a nostalgia aparece em posts de Facebook. O primeiro observou mais de 375

14 No original: “Consumer culture, in its relentless focus on the immediate present, encourages a cultural amnesia in its citizens, especially the young.”

do lar perdido. Pensa a si mesma como verdade e tradição. Pensa na ambivalência do desejo e

pertencimento humanos. Protege a verdade absoluta. Põe em dúvida a verdade absoluta. Está no cerne dos recentes revivals nacionais e religiosos.

Está preocupada com o tempo histórico e individual, com a irrevocabilidade do passado e a finitude humana.

Sua retórica não é sobre o passado, mas sobre valores, família, natureza, terra natal e verdades universais.

Sua retórica é sobre retirar o tempo do tempo e compreender a fuga presente.

Apresenta um pretexto para “melancolias de meia noite”.

Pode apresentar um desafio ético e criativo.

Ligada à memória nacional, baseada numa simplificada versão de identidade nacional.

Ligada à memória social, que consiste de quadros coletivos que marcam, mas não definem a memória individual. Adora detalhes, e não símbolos.

Conhece dois principais esquemas: 1) A restauração das origens; 2) Teoria da conspiração: revela o simples conceito pré-moderno entre o bem e o mal.

Não segue um único padrão, mas explora modos de habitar muitos lugares ao mesmo tempo e imaginar diferentes zonas temporais.

Retorna e reconstrói a terra natal com determinação paranoica.

Teme o retorno com a mesma paixão.

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mil posts da rede social para identificar postagens com mensagens nostálgicas. O segundo

comparou 10 mil posts nostálgicos com outros 10 mil não nostálgicos. Na conclusão, as

postagens mais gerais tendem a focar no espontâneo, em saudações relacionadas com o

momento, com emoções e com o dia da semana. Posts nostálgicos, por outro lado, são mais

reflexivos, emotivos e frequentemente incluem sentimentos positivos e negativos, o que é

consistente com a característica da nostalgia de combinar a alegria da lembrança com a

tristeza da ausência do objeto lembrado.

Além disso, os autores também identificaram que a frequente utilização de verbos

tanto no passado quanto no presente sugere que, para alguns usuários da rede social, nostalgia

ajuda a interpretar e a navegar pelas circunstâncias do presente. O que nos remete a uma

tendência à nostalgia reflexiva, como definido por Boym, que não se preocupa em reconstruir

o passado no presente, mas em operar a partir dos fragmentos e das ruínas da lembrança.

Esta tendência também se manifesta na comunidade do Facebook “Alvorada do

Iguaçu – Cidade submersa por Itaipu”, objeto de análise deste artigo? Ou, por se tratar de um

grupo referente a uma cidade que não existe mais, sua intenção é afastar as ruínas e recuperar

o passado intacto? Em que medida as duas tendências apontadas por Boym são úteis para o

estudo de comunidades virtuais de nostalgia?

4. O grupo Alvorada do Iguaçu – Cidade submersa por Itaipu no Paraná

O grupo “Alvorada do Iguaçu – Cidade submersa por Itaipu no Paraná” foi criado em

14 de fevereiro de 2018, primeiro como Alvorada do Sul – e outras localidades submersas

por Itaipu PR, alterado para Alvorada do Iguaçu – e outras localidades submersas por Itaipu

PR e em março adotou o nome definitivo. Chama a atenção o título, em todas as suas versões,

conter o adjetivo submersa junto ao substantivo cidade, numa clara intenção que a alusão ao

alagamento da vila fique explícito e seja reconhecido a cada instante. Também se percebe a

responsabilização direta à hidrelétrica, que se torna assim um agente tanto na lembrança

quanto na atualização do fato ocorrido há 37 anos. Na trajetória de Alvorada do Iguaçu, não é

mais possível ignorar ou esquecer que a localidade foi alagada pelo Lago de Itaipu, e que isto

se tornou parte da sua história.

A criadora do grupo é a economista, administradora, mestre em gestão do turismo e

empresária Nara Regina Spada, que nasceu em Alvorada do Sul e saiu da vila com 12 anos.

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Morando atualmente em Curitiba, ela decidiu organizar o grupo a partir de uma conversa

informal com outros dois ex-moradores, Miriam Schnorr Hickmann e Francisco Datsch, com

o espírito de ser

uma iniciativa para reunir os ex-moradores da extinta localidade, no intuito de estimular o congraçamento entre as famílias dos pioneiros, o reencontro dos amigos de uma comunidade pujante que impulsionava o crescimento de uma nova fronteira agrícola no início da década de 60. (SPADA, 2019)

O grupo conta ainda com outro administrador, José Wille, que é jornalista na TV

Band Paraná e mantém o site Memória Paranaense, voltado para a publicação de fotos antigas

do Paraná.

José Wille é um amigo que tem vários outros grupos de cunho histórico no Facebook, como eu tinha esta informação procurei para que criássemos o de Alvorada do Iguaçu, que prontamente ele atendeu. Como ele entende que eu morei lá, tive a iniciativa de criar o grupo e conheço as famílias, o mais apropriado seria eu cuidar da moderação. Mas existem muitos amigos que apoiam quando necessário. O envolvimento dos membros é bem satisfatório. (SPADA, informação por email, 2018)15

Uma reportagem de 5’46” sobre a comunidade, produzida pelo jornalista e veiculada

na Band Paraná em 4 de outubro de 2018 (BAND PARANÁ, 2018), ajudou a aumentar o

número de participantes. “Só com o documentário o grupo teve um crescimento de umas 100

pessoas16” (SPADA, informação oral, 2019)

Quando a autora foi aceita no grupo, em 19 de janeiro de 2019, recebeu uma

mensagem pelo aplicativo Messenger, do Facebook, agradecendo o interesse em participar da

comunidade e já explicando sua razão de existir:

A nossa iniciativa nasceu da necessidade de promover, especialmente, o reencontro entre as famílias dos antigos pioneiros que colonizaram a região, que era Distrito de Foz do Iguaçu, e com a construção da hidrelétrica de Itaipu tiveram que deixar suas terras férteis para trás. (SPADA, informação por Messenger, 19 de janeiro de 2019).

Esta, inclusive, é uma prática no grupo. Para ingressar, é preciso ter morado em

Alvorada do Iguaçu, ser convidado por algum morador ou ter algum interesse na comunidade

que seja aprovado pelos administradores, como foi o caso da autora. Quando são aceitos, os

novos integrantes são anunciados em postagem específica, que identifica a ligação de cada

um deles com a vila.

Vamos dar as boas-vindas aos nossos novos membros:

15 SPADA, N. R. Entrevista à autora por email, 8 de fevereiro de 2018. 16 SPADA, N.R. Entrevista à autora por chamada de áudio de Whatsapp, 16 de fevereiro de 2019.

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Alexandre Pereira, Grande amigo, empreendedor em STI, com quem tive a grata satisfação de trabalhar junto. Seus pais, tios e avós todos amigos valorosos. A família toda morou em Alvorada. Jean Carlos Berwaldt, - Professor de Pato Bragado, Coordenador do Curso de Agroindústria na empresa Isepe e professor na empresa Isepe Rondon. Estudou Mestrado em Desenvolvimento Sustentável na UNIOESTE - tem interesse no tema. Vera Lucia, - Morou em Alvorada Antonio Ortega, - convidado por Francisco Datsch Douglas Calegario, - filho e neto de moradores Edson Dias, - Ex morador Ivonete Correa, - morou, a casa da família era o antigo moinho, perto da serraria da família Secchi. Ivaldo Lemos Fonseca - tem conhecidos que moravam na localidade Noelimaria Puhlbif Josemar Pretto Squizani - conhecido de Sergio Spada Amelia Vogado Salete Correa Deves - Convidada por Arlete Correa - morou muitos anos em Alvorada, compraram a casa do seu Germano ao lado da serraria do Secchi. Eliane Zatti Rolim - filha de Mário Zatti e Terezinha Villa Zatti (SPADA, 2018)

Esta dinâmica sinaliza a intenção de o grupo funcionar de fato como uma comunidade

a exemplo da vila em que os seus integrantes moraram, há 37 anos, o que pode indicar que

estamos diante de práticas de nostalgia restaurativa, posto que a intenção aqui seria restaurar

o paraíso perdido, o passado conservado em idealização e perfeição.

O que reforça esta percepção é o final de cada post de boas-vindas, em que se

apresenta o propósito da iniciativa, se explicam as regras de funcionamento

A cada nova semana vamos crescendo, antigos moradores e seus descendentes são alcançados neste universo virtual e a participação se avoluma. O Grupo de Alvorada do Iguaçu - cidade submersa nasceu com o objetivo principal do congraçamento entre os amigos de nossa saudosa localidade, para que todos possamos publicar imagens/fotografias daquele período, registros também atuais das famílias, documentos, vídeos, relatos de memórias que cada antigo morador tenha guardado na "gaveta de suas lembranças". Pedimos especial atenção às regras da publicação fixada, postagens que fujam do tema serão passíveis de exclusão. (SPADA, 2018)

A administradora explica que este cuidado é necessário para evitar que o grupo sofra

desvirtuamentos, como assédio de vendedores ou o uso para campanhas eleitorais ou

proselitismo17”. (SPADA, informação oral, 16 fev. 2019)

Até 15 de fevereiro, o grupo somava 625 membros, sendo 534 ativos. “Nos últimos

28 dias [de 12 de janeiro a 8 de fevereiro de 2019] foram 32 publicações, 263 comentários e

1068 reações” (SPADA, informação por email, 2019)18. Não se trata, portanto, de um grupo

com uma alta taxa de postagem, embora se contabilize pelo menos uma mensagem por dia.

17 SPADA, N.R. Entrevista à autora por chamada de áudio de Whatsapp, 16 de fevereiro de 2019. 18 SPADA, N. R. Entrevista à autora por email, 8 de fevereiro de 2019.

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Há tanto ex-moradores quanto seus descendentes, muitos deles não-nascidos em Alvorada do

Iguaçu. Para a administradora, isso ajuda, visto que muitos participantes são pessoas simples

e nem sempre sabem usar o computador.

Muitas pessoas às vezes mandam as fotos para mim, para que eu poste, porque não sabem como tratar a imagem. Então quando os filhos participam do grupo, a gente consegue comunicar para os pais19. (SPADA, informação oral, 2019)

Esta característica pode ajudar a explicar um aspecto encontrado na observação - a

interação não é sempre intensa. Poucos posts angariam muitas reações e comentários. Como

ocorre de modo geral no Facebook, é mais frequente encontrar reações do que comentários,

visto que no primeiro caso basta apertar um botão e escolher entre “curtir”, “amei”, “haha”,

“uau”, “triste” e “grr” (emoticon de raiva). Para um público menos acostumado a lidar com

computador e internet, é uma ação mais direta.

A narrativa dos velhos bons tempos é recorrente entre as postagens. É frequente

encontrar posts apenas com uma linha, registrando o sentimento, como Jair de Almeida, em

23 de setembro de 2018. “Sinto saudade desse lugar”, que recebeu 9 curtidas e um

comentário, de Ivonete Rocha. “Como era bom mora lá boas lembranças”. Ou como escreveu

Maria Helena Erdmann Erdmann, em 18 de fevereiro de 2018. “saudades do tempo em que

vivemos em Alvorada”.

Algumas postagens, entretanto, se aprofundam em recuperar cenas, casos, lembrar de

pessoas ou famílias, como esta, de Sandra Salla, de 11 de outubro de 2018, e que teve 35

comentários.

Estou aqui a refletir...amanhã comemora_se o dia das crianças. Faz apenas dois dias q fui add ao grupo, mas ao ver fotos e depoimentos, isso trouxe_me à memória um tempo distante, em uma cidade q hj Está submersa, mas uma infância mega feliz. Entre Alvorada do Iguaçu, fazenda do pinho e fazenda são Paulo , (quase morrer afogada), morar na última casa perto do cemitério (ErA um terror), brincar com os amigos no banhado no fundo da minha casa, subir na amoreiras pegar as frutas fresquinhas(amo amoras😍) ,a maior Aventura era ser desafiada e desafiar os amigos a atravessar uma casa abandonada à Noite(medooo ).Essa casa ficava ao lado de onde eu Morava. Não sou boa com nomes, mas lembro de muitos amigos q fizeram d Minha infância, uma época feliz. Quem sabe alguém no grupo se recorde de ter participado de alguma dessas Aventuras . fui uma criança "levada", apanhei Muito(Era cada "coça"), mas tenho história pra Contar. Eu vivi uma infância feliz. Saudades q não cabe no peito. Momento nostalgia.😢😢❤ (Sandra Salla)

Outras aliam a saudade da região à sua extinção, atualizando, pelo uso de fotos atuais,

o motivo de terem deixado para trás Alvorada do Iguaçu. Duas postagens exemplificam isso: 19 SPADA, N.R. Entrevista à autora por chamada de áudio de Whatsapp, 16 de fevereiro de 2019

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“Lago de Itapuí, onde era Alvorada do Iguaçú”, postagem de 19 de janeiro de 2019 de Janice

Spricigo, acompanhada de uma foto colorida atual de um entardecer no reservatório da usina,

atingiu 36 curtidas e 4 comentários, entre eles o de Carol Furnaniak: “Meus pais Carlos e

Maria Furmaniak tinham sitio em Ipiranga ficava perto de Alvorada. Bons tempos passamos

lá hoje saudades.”.

A outra postagem assume um tom mais melancólico. Leoni Biff postou uma

montagem de cinco fotos atuais do Lago de Itaipu, sendo que sobre uma delas desenhou

setas.

Aqui era onde nos morava com nossos pais até 1980 depois tivemos que sair por causa da usina de Itaipu !, Vista alegre perto de alvorada do Iguaçu , como o lago baixou aprece os troncos das árvores que fazia sombra para nossa casa , quanto tempo ainda está os troncos lá , dá uma saudade fui hoje lá ver de perto como o lago tinha baixado . (Leoni Biff)

No grupo há publicação de muitas fotos, inclusive há um estímulo a que os

participantes recuperem suas imagens do passado. Mas a grande maioria das fotografias é das

famílias, de amigos, de crianças, de professoras que ensinaram a várias gerações. Quando a

autora mencionou o fato à administradora do grupo, ela concordou, explicando que, como a

cidade foi submersa, restaram pouquíssimas fotos de Alvorada do Iguaçu20. (SPADA,

informação oral, 2019)

Um post que gerou bastante movimentação foi o de uma crônica do professor

Sebastião, publicada por Nara Spada em 26 de julho de 2018, na qual ela relava a atuação do

mestre junto a um grupo de alunos que sempre brigavam e da reação do pai de um deles. A

postagem, além de ter angaridado 63 reações, 23 comentários e 15 compartilhamentos,

também rendeu protestos da família de um dos rapazes, que pediu para que a mensagem fosse

retirada. Nara Spada consultou outros ex-moradores e manteve a postagem, entendendo que

em nada ela feria a reputação de nenhum dos envolvidos. “Somos uma comunidade, nosso

objetivo é o congraçamento, mas sabemos que aqui e ali podem acontecer pequenas questões,

como em toda comunidade. Temos sempre muito cuidado para não tocar nas dores nem

mexer em eventuais inimizades 21 (SPADA, informação oral, 2019).

Este clima de harmonia pode ser percebido nos comentários dos participantes do

grupo, especialmente nas respostas enviadas à postagem feita pela autora, em que solicitava

20 SPADA, N.R. Entrevista à autora por chamada de áudio de Whatsapp, 16 de fevereiro de 2019 21 SPADA, N.R. Entrevista à autora por chamada de áudio de Whatsapp, 16 de fevereiro de 2019.

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que respondessem por que ingressaram na comunidade e qual a importância de grupos como

esse.

Ingressei no grupo porque sinto muitas saudades da terra onde nasci...sempre sonhei em reencontrar pessoas que la moravam...sou uma geração que não pode voltar na sua terra natal...então o que nos resta está em nossa memória....fecho os olhos e lembro como era a vila ....casa em que morávamos escola igreja e assim por diante...(...) A importância do grupo resgata alguns fatos e pessoas esquecidas ....afinal já se passou muitos anos ...normal que esquecemos mas com alguns comentários no face nos faz relembrar tudo.... (Miriam Schnorr Hickmann)

Temos então o grupo do Facebook como um locus de exercício mnemônico o qual,

enquanto aos poucos retira das gavetas da lembrança fragmentos do passado, vai

reconstruindo as redes de ligação entre os antigos moradores. Estas práticas se configuram no

modelo nostálgico reflexivo.

Foi muito bom para mim, porque conheci Alvorada do Iguaçu, morava em outra coisa de conheci algumas pessoas de Avorada do Iguaçu fui amiga e estudamos no mesmo colégio na adolescência. Esse grupo é mais pala amizade que nos uniu é para conversar- mos, continuar essa amizade. (Janice Spricigo)

Eu só tenho boas lembranças, a importância pra mim tudo faz parte da vida até deixar o lugar e jamais esquecerei o tempo que tinha minha família completa hoje não tem mais mas é assim mesmo mas a amizade é muito importante. (Selita Blank Dastch) Emgresei. no. grupo para relembrar o passado. pois a nossa família foi ia. das primeiras que. migraram para a Alvorada em 1961 ai moram algumas famílias de índios e Paraguaios. resumindo fomos uma das primeiras famílias que veio e eu foi um dos últimos que saiu da Alvorada. (Norberto Kampmann) Um certo dia pesquisando algo sobre Alvorada encontrei esse grupo, solicitei acesso imediatamente. Por que a curiosidade sobre esse passado? acredito que a infância, o lugar simples, a pobreza, (rsrsrs), e tantas outras coisas que a memória não esquece. (Sol Lima) Ingressei no grupo intimado pelo histórico positivo das amizades raízes ainda cultivadas; resultante duma infância e adolescência culturalmente marcante, alegre e bem vivida; mas com um vazio provocado pela repentina mudança por desapropriação para construir o lago de Itaipu. Isso havia deixado uma lacuna dolorosa na alma, incurável, mas com possibilidade de amenizar pela possibilidade de interagir com os amigos da infância. (Francisco Datsch) Pra mim foi muito bom a Nara Regina Spada..criar esse grupo pois encontrei muitos amigos q não sabia noticia a ums 40 anos..eu nasci na barranca do rio parana..meu pai saiu com uma mão na frente e outro atras...era pescador e tinha roça....tenho ate foto da carteira de pescador dele..colonia de pesca Z 12 na qual ele foi fundador. (Timotio Ozuna)

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A amizade desponta entre os participantes da comunidade como um dos principais

pontos a ser recuperado nas interações, o que indica que há nas reminiscências uma saudade

de pessoas, da infância e das relações construídas naquele tempo. Muito embora vários posts

façam menção à vila, ao lugar, a grande maioria registra saudades das brincadeiras, das

festas, das pessoas, enfim, da sociabilidade construída naquele espaço.

Eu tb estou no grupo .sou filha do seu celestino de Almeida parabéns para quem teve a ideia .de fazer um do povo da alvorada .tb tenho muita sdd .do pessoal da alvorada professores .Eu fecho meu olho e lembro muito da aquele lugar sinto muita sdd ..eu sei que nunca mais vamos ver um paraíso igual aquele lugar . (Rose Almeida)

O que mais uma vez nos indica estarmos diantes de uma nostalgia reflexiva, já que

por vezes é irônica e bem humorada (como quando Sol Lima comenta que a pobreza é uma

das coisas que a memória não esquece, e escreve “rsrsrs” como se estivesse rindo do seu

próprio comentário), preza fragmentos estilhaçados da memória e temporaliza o

espaço.22”(BOYM 2001, p. 49). E também reconhece que o lugar que estimula estas saudades

não existe mais, só sobrevive na lembrança, como no depoimento de Rose Almeida.

Mas a cidade da lembrança também é o espaço da construção da identidade coletiva.

Esta é a tônica de outra postagem, de 14 de agosto de 2018, de Francisco Datsch, que

compartilhava um relato da administradora do grupo, Nara Spada, sobre seu pai.

Caros amigos e amigas alvoradenses. Não sei se há no Brasil, dos atingidos por barragens, uma população que consegue se organizar depois de mais de 40 anos, de uma forma tão prazerosa, e com muitos momentos registrados e boas histórias para relembrar. Tivemos quando crianças, adolescentes e muitos já adultos, uma convivência estreita com pessoas de idoneidade ilibada, costumes rígidos de uma cultura da obediência aos pais, respeito aos mais velhos e cuidados de postura e comportamento de uma nobreza rara nos dias atuais. Isso formou nosso caráter, comportamento e direcionou nosso futuro. Raríssimos são os casos de desvios de conduta, e até estes raros, os ainda vivos, tenho fé que encontrarão o bom caminho abandonado, mas ensinado. Tenho certeza que muitos aqui se surpreenderão com relatos que oportunamente irei postar, sobre seus avós, pais, irmãos e amigos com quem tivemos boa convivência e ensinos sábios que, sem serem palestrantes, mas sendo eles mesmos, nos ensinaram grandes virtudes que formaram nosso padrão comportamental. (...) (Francisco Datsch)

A característica dialogal pode ser encontrada também na postagem de Jane Moskven,

em 30 de dezembro de 2018: “Minha mamãe Mercedes, filha de Amanda Maier e do leiteiro

Lindolfo, lembra muito do salão de baile feito de mola.”, que gerou uma conversa entre

22 No original: “... reflective nostalgia cherishes shattered fragments of memory and temporalizes space”.

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vários membros do grupo, que contaram histórias do leiteiro, do salão de molas, dos casais

que dançavam no local, e das suas próprias experiências.23,

Jane Moskven ainda iremos colher boas histórias sobre o nosso salão de molas. Eu mesma tenho memórias de pequenina dormindo num pelego, embaixo da mesa, enquanto os adultos rodopiavam no salão. Não dava para fazer um sono restaurador, pois ecoava os sons do baile que se misturavam entre a sanfona e os demais instrumentos musicais, com o balanço do salão. Afirmo-lhe: era fantástico e um ambiente muito alegre e familiar. Olhando para trás, o modelo ideal de sociedade! (Nara Regina Spada)

Também parece claro que este modo nostálgico se manifesta menos no nostos e mais

na algia, uma vez que mesmo pranteando a perda da territorialidade, o que aparece nas

postagens é o lamento pela ausência de um tempo, de um momento e de um estar-em-

comunidade.

Por outro lado, é comum encontrar posts que se referem à Alvorada do Iguaçu como o

paraíso, como esse lugar intocado, onde, mesmo quando havia problemas, todos eram felizes.

E, quando encontramos afirmativas como a do depoimento acima – “olhando para trás, o

modelo ideal de sociedade”, somos levados a considerar que reside também neste exercício

de rememoração uma busca da reconstrução trans-histórica do lar perdido, que se aproxima

de uma visão paradisíaca, idealizada. Ou seja, vemos traços da nostalgia restauradora, que

pensa a si mesma como tradição e discorre, em muitos momentos, não sobre o passado, mas

sobre valores, família, natureza, terra natal e verdades universais. “a nostalgia restaurativa

termina por reconstruir emblemas e rituais de casa e da pátria numa tentativa de conquistar e

espacializar o tempo” 24 (BOYM, 2001, p. 49).

Talvez as duas tendências criadas por Boym não sejam adequadas para analisarmos

estas comunidades virtuais reunidas em torno da nostalgia a uma localidade. Porque nelas se

misturam traços de nostalgia reflexiva e de nostalgia restauradora, e ainda se podem perceber

indícios de uma nostalgia propositiva – uma busca de momentos e lembranças saudosas que

são atualizadas como impulsionamentos para novos projetos, todos ancorados na atividade

nostálgica.

A nostalgia propositiva é um conceito que se aproximaria do que LEAL (2018, p. 10)

defende quando aciona a articulação entre nostalgia e utopia. “Ao indicar um projeto de

23 O nome do salão era Clube Atlético Alvorada. Trata-se de um costume regional do interior do Rio Grande do Sul: por baixo das tábuas de madeira dos salões de festa, são colocadas molas e pneus que impulsionam os dançarinos. 24 No original: “...restorative nostalgia ends up reconstructing emblems and rituals of home and homeland in an attempt to conquer and spatialize time”

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futuro no presente em diálogo com o passado, a utopia deixa de ser vista como sinônimo de

“lugar nenhum” e sim de “lugar outro”, tensionado pela dialética entre identidade e diferença

com o nosso mundo”

Defende-se aqui que, mas do que sonhar utopias, a nostalgia propositiva se apoia na

saudade do passado para propor um futuro. No caso do grupo estudado, o único horizonte

possível de reconstrução é, de fato, o futuro, visto que o objeto nostálgico, a vila, está

debaixo das águas do Lago de Itaipu. Não é possível reconstruir o retorno à ela. O

depoimento de Francisco Datsch, comentando a importância de grupos como o Alvorada do

Iguaçu – cidade submersa por Itaipu, evidencia este caráter de projeção:

A importância genericamente dos grupos é de grande valia. Gera interação e identificação de todas as correntes de pensamento, usos e costumes, orientação religiosa e etc. Pelo senso comum de que somos um país sem memória, acostumamos a não valorizar nossas raízes e também nossa história das origens. A internet melhorou este conceito de que somos medíocres no zelo para com as transformações sociais e suas vantagens para a evolução como seres de cultura. Embora continuemos medíocres em várias áreas... Especificamente no nosso caso é importantissimo. Pois há um resgate daquilo que vivemos e um aprendizado que pode ser aproveitado nas mais diversas áreas do conhecimento. Inclusive algumas sequer consideradas a alguns anos atrás como passíveis de abordagem cientificamente, como a religião. No Brasil a arqueologia não investiga com profundidade as áreas inundadas por represas ou as ocupações de áreas urbanas. Mas por ser binacional, tratados internacionais nortearam pesquisas arqueológicas que Itaipu recolheu. Inclusive pesquisou o relacionamento com o sagrado, por seus cemitérios, na etnia Guarany, que hoje perambula ainda na tríplice fronteira, mendigando moedinhas, sem aldeia. Embora sejam pouco conhecidas ou estudadas pelos atingidos pela barragem, mas ainda teremos inúmeras surpresas agradáveis. Então a criação de grupos que buscam resgatar a memória social tem um valor histórico positivo e um nível acadêmico imensurável para buscarmos entender as migrações, os hábitos alimentares, o que a religiosidade operou nos grupos comprometidos. O que a rigidez educacional nas famílias tradicionais e nas professoras autoridade gerou na maturidade destes indivíduos, das mais variadas origens étnicas. Pois Alvorada do Iguaçu tinha culto Luterano em Alemão, colegas em sala de aula ou no caminho da escola falando o Guarani. Catolicismo sulino predominando até chegarem os aguerridos pentecostais e as bandas de música; uma cultura gaúcha que lotava os salões de baile com parte da população, mas com grande afluxo de moradores de Foz do Iguaçu, de população variada. O grupo é importante porque resgata a memória e nos informa de situações marcantes do passado. Porém é muito mais pedagógico para ser aproveitado no futuro, com o que aglutinaremos com imagens, relatos e encontros futuros. (Francisco Datsch)

Entre estes projetos está um reencontro dos ex-moradores e suas famílias, no

município de Santa Teresinha de Iguaçu, que faz limite com a vila submersa, previsto para

setembro de 2019, mas há outras ideias, como a produção de um livro contando a história da

localidade e de seus moradores.

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Desde o princípio da iniciativa da criação do Grupo Alvorada do Iguaçu - Cidade submersa, nosso principal objetivo tem sido a confraternização, independentemente de outros futuros desencadeamentos. Para que isto se efetive, além de atender o clamor dos amigos, e para que não ficarmos restritos ao mundo virtual iremos realizar nosso I Encontro de Ex Moradores de Alvorada do Iguaçu (...)25 (...) Chegou a hora de revirar os baús, as gavetas e procurar as imagens amareladas pelo tempo, vamos preparar imagens de nossos progenitores, do cotidiano da vila e levar para o encontro, promovendo uma viagem no tempo. (Nara Regina Sapada, 2019)

5. Notas finais

Muito embora sejam ambientes que privilegiem o imediatismo, a atualização

constante e a velocidade, as redes sociais também abrem espaço para manifestações b

memorialísticas e experiências de nostalgia. Este artigo relata uma netnografia realizada na

comunidade virtual “Alvorada do Iguaçu – Cidade submersa por Itaipu no Paraná”, que

existe desde fevereiro de 2018 no Facebook. O objetivo da netnografia era observar como um

grupo utiliza uma rede social como um espaço para guardar e recuperar sua memória. Mesmo

considerando que a iniciativa pode ser classificada como um lugar de memória, no sentido de

Pierre Nora, optou-se por analisar a relação dos integrantes com a nostalgia, na perspectiva

de Svetlana Boym. Para ela, a nostalgia pode ser restaurativa ou reflexiva. Na restaurativa, o

desejo é reconstruir o objeto da memória tal como ele era, de modo a que o passado

permaneça presente. Já na reflexiva, há um movimento pendular entre o passado e o presente,

e a vivência nostálgica incorpora os fragmentos e as ruínas. A pergunta que guiou as análises

é se os membros do grupo vivenciam um sentimento nostálgico de tendência restaurativa ou

reflexiva.

A memória, seja ela individual ou coletiva, é uma técnica de ordenamento da vida.

Por isso, tememos o seu apagamento, como prenúncio do estabelecimento do caos e do vazio.

As comunidades virtuais organizadas em torno da nostalgia ou da saudade de localidades

lutam contra este esquecimento. No caso de Alvorada do Iguaçu, isso torna-se ainda mais

premente, porque a vila foi alagada pelo reservatório da Usina de Itaipu. Os moradores foram

removidos, junto com suas casas de madeira, levadas por caminhões. As estruturas que

sobraram estão debaixo d’água e, em períodos de seca, quando o nível do Lago desce muito,

25 O local e a data do encontro foram ocultados para manter a privacidade do evento.

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é possível enxergar ruínas. Os ex-moradores sabem que nunca será possível reconstruir sua

casa natal.

A criação desta comunidade virtual é uma reconstrução da Alvorada do Iguaçu da

lembrança de cada um de seus ex-moradores. Considerando que a experiência digital

amplifica valores já fortemente associados aos sentidos de mundo compartilhados

socialmente (MACHADO, 2017), e que o forte sentimento de comunidade transparece no

grupo virtual analisado, o que se conclui é que as categorias de nostalgia propostas por Boym

não são as mais adequadas para o estudo destas práticas de sociabilidade e rememoração.

“Aqui, como em qualquer forma de nostalgia, é difícil discernir entre o lamento sentimental

de uma perda e a reivindicação crítica de um passado, com o propósito de construir futuros

alternativos.” (HUYSSEN, 2014 p. 94).

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Associação Nacional dos Programas de Pós‐Graduação em Comunicação 

XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre ‐ RS, 11 a 14 de junho de 2019 

20 www.compos.org.br

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