ENGENHARIA DE MATERIAIS Filtro inovador na agricultura...Filtro inovador na agricultura EDUARDO...

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Assim nasceu o projeto. Para co- meçar, era preciso usar um material de fácil acesso e baixo custo. Foi esco- lhido o vidro reciclado e moído, para funcionar como meio poroso. “Todos os outros materiais, cerâmica, metais, polímeros, são mais caros”, afirma As- sis. As garrafas, coletadas em lugares públicos, foram quebradas e moídas numa escala de 10 mícrons – mícron é a milésima parte do milímetro –, compactadas e sinterizadas, ou seja, as partículas foram reagrupadas por aquecimento formando um novo ma- terial. As membranas resultantes fica- ram com o formato de uma pequena bolacha circular cheia de poros, tendo de 0,6 a 4 milímetros de espessura por 68 JANEIRO DE 2002 PESQUISA FAPESP mero de partículas baixa para 14 mil por m 3 . E um grau ainda melhor seria chegar aos 99,9999%, o que deixaria a água com 140 partículas por m 3 . Maior eficiência - Missão até hoje não cumprida porque, devido à impossi- bilidade de retenção de alguns poluen- tes na água, os custos com tratamento podem crescer 400% para uma me- lhoria mínima de eficiência. “Quando começamos a trabalhar no assunto, em 1999, estávamos atrás de um siste- ma que tornasse possível tanto bara- tear a filtragem quanto melhorar sua eficiência, principalmente para a re- moção de resíduos deixados por agro- tóxicos”, relata Assis. TECNOLOGIA ENGENHARIA DE MATERIAIS s empreendimentos rurais somam cerca de 5,8 milhões no Brasil, dos quais 4,3 milhões praticam a agricultura de subsistência. Eles exer- cem enorme pressão sobre o lençol freático, devido à existência de fossas sépticas, pocilgas e matadouros, além de grandes lavouras que depositam agrotóxicos no solo. A água, nesses ca- sos, pode contaminar e poluir os rios e o subsolo. Com essa preocupação, o físico especializado em engenharia de materiais Odílio Benedito Garrido de Assis, da Embrapa Instrumentação Agropecuária, sediada em São Carlos, acaba de encerrar um projeto que lan- ça as bases para o barateamento e aprimoramento dos processos de fil- tragem de água no meio rural. Assis começou o estudo pela aná- lise de dados que mostravam que, nos lugares poluídos, a água pode ter cerca de 140 milhões de partículas de poluentes por metro cúbico (m 3 ). Um problema para o qual os melhores sis- temas convencionais de purificação conseguem remover em torno de 90% a 98%, explica Assis, índice até bem aceitável em termos mundiais. Mas a parte restante dessa emprei- tada é árdua. Os 2% a 10% de poluen- tes que sobram na água podem signi- ficar milhões de partículas. Limpar a água numa faixa de 50% a 90% é rela- tivamente fácil, diz Assis. A partir daí, os ganhos de eficiência começam a ser medidos em unidades cada vez mais curtas e igualmente mais caras. Com 99,99% de filtragem eficiente, o nú- Vidro reciclado e moído é base de composto testado para remover resíduos de agrotóxicos Filtro inovador na agricultura EDUARDO CESAR O A membrana tem poros que medem de 8 a 16 mícrons de diâmetro

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  • Assim nasceu o projeto. Para co-meçar, era preciso usar um materialde fácil acesso e baixo custo. Foi esco-lhido o vidro reciclado e moído, parafuncionar como meio poroso. “Todosos outros materiais, cerâmica, metais,polímeros, são mais caros”, afirma As-sis. As garrafas, coletadas em lugarespúblicos, foram quebradas e moídasnuma escala de 10 mícrons – mícroné a milésima parte do milímetro –,compactadas e sinterizadas, ou seja, aspartículas foram reagrupadas poraquecimento formando um novo ma-terial. As membranas resultantes fica-ram com o formato de uma pequenabolacha circular cheia de poros, tendode 0,6 a 4 milímetros de espessura por

    68 • JANEIRO DE 2002 • PESQUISA FAPESP

    mero de partículas baixa para 14 milpor m3. E um grau ainda melhor seriachegar aos 99,9999%, o que deixaria aágua com 140 partículas por m3.

    Maior eficiência - Missão até hoje nãocumprida porque, devido à impossi-bilidade de retenção de alguns poluen-tes na água, os custos com tratamentopodem crescer 400% para uma me-lhoria mínima de eficiência. “Quandocomeçamos a trabalhar no assunto,em 1999, estávamos atrás de um siste-ma que tornasse possível tanto bara-tear a filtragem quanto melhorar suaeficiência, principalmente para a re-moção de resíduos deixados por agro-tóxicos”, relata Assis.

    TECNOLOGIA

    ENGENHARIA DE MATERIAIS

    s empreendimentosrurais somam cercade 5,8 milhões noBrasil, dos quais 4,3milhões praticam a

    agricultura de subsistência. Eles exer-cem enorme pressão sobre o lençolfreático, devido à existência de fossassépticas, pocilgas e matadouros, alémde grandes lavouras que depositamagrotóxicos no solo. A água, nesses ca-sos, pode contaminar e poluir os riose o subsolo. Com essa preocupação, ofísico especializado em engenharia demateriais Odílio Benedito Garrido deAssis, da Embrapa InstrumentaçãoAgropecuária, sediada em São Carlos,acaba de encerrar um projeto que lan-ça as bases para o barateamento eaprimoramento dos processos de fil-tragem de água no meio rural.

    Assis começou o estudo pela aná-lise de dados que mostravam que,nos lugares poluídos, a água pode tercerca de 140 milhões de partículas depoluentes por metro cúbico (m3). Umproblema para o qual os melhores sis-temas convencionais de purificaçãoconseguem remover em torno de90% a 98%, explica Assis, índice atébem aceitável em termos mundiais.

    Mas a parte restante dessa emprei-tada é árdua. Os 2% a 10% de poluen-tes que sobram na água podem signi-ficar milhões de partículas. Limpar aágua numa faixa de 50% a 90% é rela-tivamente fácil, diz Assis. A partir daí,os ganhos de eficiência começam a sermedidos em unidades cada vez maiscurtas e igualmente mais caras. Com99,99% de filtragem eficiente, o nú-

    Vidro reciclado e moído é base de composto testado para remover resíduos de agrotóxicos

    Filtro inovador na agricultura

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    A membrana temporos que medemde 8 a 16 mícrons de diâmetro

  • 3 a 4 centímetros de diâmetro. Os po-ros estão num intervalo de 8 a 16 mí-crons de diâmetro.

    Nova fase - Essas membranas foram omaterial da primeira fase de testes,chamada de filtragem mecânica, istoé, capaz de reter partículas apenascomo obstáculo físico. “Toda partícu-la que fosse maior do que os poros se-ria retida”, explica Assis. Mas as bacté-rias e os componentes químicos sãogeralmente ainda menores que os po-ros das membranas. Os primeiros tes-tes mostraram que novos arranjos pre-cisavam ser feitos. Uma nova fase seiniciou num encontro deAssis com o professor Sér-gio Campana Filho, do de-partamento de Química eFísico-Química de Macro-moléculas do Instituto deQuímica da Universidadede São Paulo (USP), emSão Carlos. Desde 1993,Campana pesquisa compos-tos químicos que revelampotencial para estabelecerligações com vários ele-mentos, entre eles metaispesados, resíduos deixadospelos agrotóxicos e atéradioisótopos. “Nada exa-tamente novo como idéia,mas pouco explorado emtermos práticos, pois re-quer muito estudo e ex-perimentação”, acrescenta Campana.

    A junção dessas linhas de pesquisafoi o que tornou o trabalho inovador,com direito a uma apresentação dosresultados por Assis como palestranteconvidado, no ano passado, no work-shop Fronteiras da Ciência dos Mate-riais, em Trieste, na Itália. Além disso,o trabalho ganhou as páginas de pu-blicações científicas internacionais.“Nosso plano foi adicionar ao filtromecânico uma função bioquímica,recobrindo a membrana de vidrocom filmes em que houvesse elemen-tos químicos que reagissem de formaespecífica com os poluentes em meioaquoso”, lembra Campana.

    Alguns desses agentes testados fo-ram a lisozima, uma enzima natural

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    de origem animal que, em contato comas bactérias, destrói a camada prote-tora desses microrganismos. Nessamembrana de vidro também podemser adicionados alguns tipos de polis-sacarídeos – cadeias de moléculas deaçúcares – como a quitosana, um pro-duto obtido pelo processamento daquitina, matéria-prima tirada da cas-ca de crustáceos, que reage fortemen-te com metais pesados, e a carboxime-tilcelulose, que cumpre a função desolubilizar os componentes testados.

    Numa série de experimentos reali-zados, sempre em escala de laborató-rio, os pesquisadores fizeram passar

    água contaminada pelabactéria Escherichia colipor uma membrana pro-cessada sem qualquer re-cobrimento. Depois repe-tiram a operação, masusando membrana reco-berta com lisozima. “Osresultados foram impres-sionantes”, destaca Assis.“As placas em que asamostras foram coletadasmostram dois extremos.Sem lisozima, o grau depermanência da bactériafoi de 70% a 92%. Já coma enzima, os resultadostambém variaram, masem um dos experimentosa taxa de eliminação ficoupróxima de 90%.”

    Efeitos residuais - Segundo Assis, osresultados mais promissores foramobtidos com quitosana, que reagiu,ainda em níveis baixos, aos agrotóxi-cos. “Isso foi muito importante paraconstatar a possibilidade de interaçãocom agrotóxicos”, diz Campana. Se-gundo Assis, o maior problema é afuncionalidade dos agrotóxicos. Paramostrar resultados econômicos, “elessão feitos para não reagir aos elemen-tos que os dissolvem, por isso seusefeitos residuais são tão poderosos”.Nos testes feitos no âmbito do projetode membranas porosas, o grau de re-ação aos poros, e a conseqüente elimi-nação dos poluentes, foi da ordem de12%, aquém dos índices esperados.

    O PROJETO

    Desenvolvimento de MembranasPermoseletivas Bioativadas paraEmprego na Descontaminação de Águas Contaminadas

    MODALIDADE

    Linha regular de auxílio à pesquisa

    COORDENADOR

    ODÍLIO BENEDITO GARRIDO DE ASSIS –Embrapa

    INVESTIMENTO

    R$ 40.199,76 e US$ 22.652,00

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    Filtro: menos bactérias

    Apesar de esse experimento reve-lar baixo índice de eficiência, os pes-quisadores recarregaram suas bateri-as, tanto na Embrapa InstrumentaçãoAgropecuária quanto no Instituto deQuímica da USP. Eles têm agora novealunos trabalhando em pesquisas quecomplementam o projeto inicial, trêsem níveis de doutorado e seis de mes-trado. “Precisamos ver novas reações,testar em escalas maiores”, diz Cam-pana. Uma idéia é montar um filtrofeito somente de quitosana comparti-mentada. “Nos testes aqui na USP vi-mos que a quitosana tem uma capa-cidade muito grande de absorverbactérias. Precisamos desenvolver ma-neiras de, uma vez montado esse fil-tro, formularmos soluções para a ma-nutenção do seu formato, já que emcontato com meio ácido a quitosanase desfaz. Quando conseguirmos esseformato, poderemos usar o filtro dequitosana centenas de vezes, pois bas-tará eliminar o estoque de bactériasque ele é capaz de estocar.”

    Polpa frágil - Para Assis, já existe outrocaminho para seus estudos. Segundoele, as membranas mostraram que,além de filtrar, funcionam tambémcomo sensores. Isso quer dizer que po-derão indicar a presença de elementosquímicos indesejáveis em meios di-versos como alimentos que tenhammassa permeável ou polpa na formade massa, como tomates e morangos,pela interação direta com os filmesativos imobilizados sobre superfíciesvítreas. Entre esses agentes contami-nantes estão os compostos organofos-forados, que são cancerígenos. •