Enfrentamento do feminicídio na América Latina, por Juliana Martínez Nacarato
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Maio de 2015
Quem ama, no mata. O enfrentamento do feminicdio na Amrica Latina
Juliana Martnez Nacarato i
Quem ama, no mata. Essa frase parece bvia, porm este o desfecho trgico vivido por
muitas mulheres assassinadas por aqueles com
os quais tem ou tiveram um relacionamento
afetivo, companheiros e inclusive familiares,
sendo geralmente o final de um ciclo de
violncia, tecido por maltratos e abusos, fsicos e
psicolgicos. Entretanto, a dura face da violncia
de gnero no se restringe apenas ao ambiente
domstico, ultrapassa seus muros e perpetrada
tambm por desconhecidos que se sentem
autorizados por uma sociedade machista, que
tolera e protege agressores.
O tema de fundo perguntar-nos sobre o lugar
que ocupam as mulheres na sociedade. As
respostas so inmeras e todas indicam a
desigualdade histrica entre os gneros, o que
abre espao para a coisificao das mulheres, as
tornando objeto do sujeito masculino.
A violncia de gnero fruto dessa desigualdade,
um ato que ocorre somente pela condio de ser
mulher, reduzindo a humanidade do feminino
at sua banalizao, o chamado segundo sexo
por Simone de Beauvoir. Este um problema
estrutural vivemos em uma organizao social
patriarcal- onde se constroem relaes, prticas
e instituies que produzem e reproduzem o
poder dos homens sobre as mulheres, ao mesmo
tempo em que violam os poderes sociais das
mulheres, segundo afirma Marcela Lagarde
(2012:186).
Tal reduo da humanidade das mulheres pode
chegar muitas vezes ao extermnio, no somente
simblico, mas tambm fsico, o que tem se
conhecido como feminicdio. Em palavras de
Eva Giberti el femicidio es una forma bsica del
patriarcado que pone en la cabeza de los hombres
la idea de que las mujeres deben estar a su
servicio, como objetos de los que pueden disponer
(Giberti, 2015).
Pai de muitos males, o patriarcado inculca uma
cultura no equitativa e hostil s mulheres,
afirmando que suas vidas pertencem aos
homens. Como bem traduz a letra de um velho
tango: la mat porque era ma.
Feminicdio na Amrica Latina
A violncia contra as mulheres considerada
pela Organizao Mundial da Sade um
problema de sade pblica mundial de
propores epidmicas (OMS, 2013).
Problemtica frequente na Amrica Latina, que
est entre as regies do mundo com maior
desigualdade de gnero e taxas exorbitantes de
vtimas de agresses e feminicdio.
Porm, como no caso da mensurao da violncia
de gnero, o feminicdio insuficientemente
documentado, incipiente e os pases latino-
americanos no tm registrado de forma regular
e homognea os dados sobre os homicdios de
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mulheres, um desafio ainda pendente para a
regio.
O dficit de informao invisibiliza o problema,
prejudicando a elaborao e implementao de
polticas pblicas; informaes que poderiam
estar guiando reformas legislativas, melhorando
servios jurdicos e de ateno, e monitorando e
avaliando as aes em matria de violncia de
gnero.
Nesse sentido, alguns estudos buscam
sistematizar a informao disponvel, e o que fica
claro a magnitude do problema. Dos 25 pases
do mundo com maiores taxas de feminicdio, 14
so da Amrica Latina e Caribe. Em uma pesquisa
realizada pela organizao Small Arms Survey
para o perodo 2004-2009, El Salvador liderava a
lista com uma taxa de 12 homicdios para cada
100 mil mulheres, seguido de Jamaica,
Guatemala, Guiana, Honduras, Antilhas,
Colmbia, Bolvia, Bahamas, Venezuela, Belize,
Brasil, Equador e Repblica Dominicana (ONU
Mujeres, 2013:15).
Outra pesquisa realizada, pela CEPAL em 2009,
indicou a insuficincia de dados na regio, porm
sinalizou esforos de sete pases em coletar
informaes na matria. Naquele ano, se
registraram 329 mortes de mulheres
ocasionadas pelo seu companheiro ou ex-
companheiro, colocando a Repblica Dominicana
no topo da lista, seguida de Uruguai, Paraguai,
Peru, El Salvador, Chile e Costa Rica (CEPAL,
2011:14).
Dados mais recentes sobre as taxas de
homicdios de mulheres colocaram o Brasil entre
os primeiros no alarmante ranking mundial de
feminicdios, estando apenas depois de El
Salvador, Trinidad e Tobago, Guatemala, Rssia,
Colmbia e Belize segundo o Mapa da Violncia
de 2012, dirigido pelo socilogo Julio Jacobo
Waiselfisz, que utilizou dados da WHOSIS,
Organizao Mundial da Sade (Waiselfisz,
2012:16).
No caso do Brasil, igualmente aos seus vizinhos,
ainda so escassas as pesquisas sobre a violncia
de gnero e o feminicdio. Cabe destacar o
mencionado Mapa da Violncia de 2012 sobre os
homicdios de mulheres e tambm o Mapa da
Violncia de 2013 sobre as mortes de jovens no
pas, ambos publicados por Waiselfisz.
Os resultados apontam que nos ltimos 30 anos
(1980-2010) mais de 92 mil mulheres foram
assassinadas no Brasil, sendo que a metade dos
casos ocorreu somente na ltima dcada. Ano a
ano os casos tm aumentado: em 1980 as taxas
eram de 2,3 mortes em cada 100 mil mulheres e
em 2011 passaram a 4,6, o que equivale a 4.512
mulheres assassinadas dados que indicam um
crescimento exponencial de aproximadamente
230%, segundo os Mapas da Violncia
(Waiselfisz, 2012:8, 2013:75).
Uma caracterstica apontada o carter
majoritariamente domstico dos crimes, pois em
40% dos casos o local do bito da mulher sua
residncia. Outro dado importante diz respeito
faixa etria das vtimas, a maioria so jovens
entre 17 e 31 anos de idade e os principais
instrumentos utilizados nos homicdios so as
armas de fogo (54% dos casos) e os objetos
cortantes (26%) (Waiselfisz, 2012:6,7).
Os estudos tambm indicaram que a violncia
no homognea entre os estados da Federao.
O mais violento o Esprito Santo, com uma taxa
de 9,2 homicdios por 100 mil mulheres em 2011.
Alm disso, Bahia e Paraba tiveram suas taxas de
homicdios de mulheres triplicadas na ltima
dcada. Tocantins, Alagoas, Maranho, Rio
Grande do Norte e Gois duplicaram seu nmero.
No outro extremo, Piau, Santa Catarina e So
Paulo so os estados com menores ndices,
chegando a taxas de at 2,7 homicdios por 100
mil mulheres (Waiselfisz, 2013: 76-79).
Apesar dos esforos, a insuficincia dos dados e
algumas discrepncias nos resultados a nvel
regional indicam a necessidade de se contar com
o compromisso dos pases em fortalecer seus
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sistemas de monitoramento dos casos de
agresses e de feminicdio, pois como o senso
comum afirma: o que no se mede, no existe.
Penalizao do Feminicdio:
avanos e desafios
Neste contexto, recentemente tem se buscado
afrontar o problema na Amrica Latina e 16
pases j garantiram a tipificao do feminicdio
em leis nacionais. Este ciclo foi iniciado em 2007
por Costa Rica, e logo seguido por Colmbia
(2008), Guatemala (2008), Chile (2010), Peru
(2011), Nicargua (2012), El Salvador (2012),
Argentina (2012), Mxico (2012), Bolvia (2013),
Honduras (2013), Panam (2013), Equador
(2014), Repblica Dominicana (2014), Venezuela
(2014), e mais recentemente o Brasil (2015).
Da totalidade dos latino-americanos ainda esto
pendentes Cuba, Haiti, Paraguai e Uruguai, que
em diferentes propores tm encaminhado o
debate sobre o tema.
No caso do Brasil, a Lei de Feminicdio N 13.104
foi sancionada em maro de 2015 pela
presidenta Dilma Rousseff, alterando o Cdigo
Penal para prever o feminicdio como
circunstncia qualificadora do crime de
homicdio e tambm inclu-lo no rol dos crimes
hediondos. Sendo o termo feminicdio entendido
como todo homicdio contra a mulher por
razes da condio de sexo feminino, o que se
refere violncia domstica e familiar, e o
menosprezo ou discriminao condio de
mulher (Brasil, 2015).
Destes pases que penalizaram o feminicdio, as
formas de punir o crime foram atravs da
tipificao do mesmo em reformas nos cdigos
penais ou o estabelecimento de agravantes para
assassinato de mulheres por razes de gnero.
Na maioria dos casos se prev uma pena de 20 a
30 anos de priso para o assassino, nos casos de
Colmbia e Guatemala a pena de recluso pode
chegar at 50 anos, no Mxico at 60 anos e na
Argentina se prev priso perptua.
Uma caracterstica comum entre estes pases
limitar a tipificao do feminicdio ao crime
cometido pelo companheiro ou ex-companheiro
da vtima, conhecido como feminicdio ntimo,
pese demanda dos movimentos feministas por
uma lei mais integral de proteo s mulheres,
que inclua todos os crimes que se comentam pela
condio de gnero.
Outro problema identificado na maioria das leis
aprovadas nos 16 pases que a vtima
exclusivamente do sexo feminino, o que exclui
uma das parcelas mais vulnerveis da populao,
as mulheres transexuais. No caso do Brasil,
indicado como o lder mundial em assassinatos
de transexuais e transgneros, invisibiliza o
problema, gera impunidade e enquadra os crimes
por questes de gnero, neste caso, ao sexo da
vtima.
Um debate necessrio, que tem sido parcialmente
deixado de lado pela naturalizao do termo
feminicdio nos discursos e nas legislaes destes
pases, o que se refere definio conceitual do
feminicdio em si. A mexicana Marcela Lagarde
h algumas dcadas tem chamado a ateno
sobre as diferenas dos termos femicdio e
feminicdio. O primeiro seria o homicdio de
mulheres, e o segundo entendido como o
conjunto de delitos de lesa humanidad que
contienen los crmenes, los secuestros y las
desapariciones de nias y mujeres en un cuadro de
colapso institucional, afirmando assim, ser o
feminicdio um crime de Estado (Lagarde, 2009).
Porm, o segundo termo tem sido amplamente
utilizado como homlogo do primeiro, causando,
de certo modo, uma ocultao dos graves crimes
contra as mulheres que ocorrem alm do mbito
domstico. Reflexo que necessitamos
aprofundar, repensando discursos e prticas.
Em paralelo, outra questo que nos suscitam as
leis aprovadas na regio latino-americana a
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lgica estritamente punitiva dos crimes. A viso
de que tudo se resolve pelo sistema penal
reducionista, endurecer a punio no a
panaceia do problema, pois no significa
necessariamente reduo dos ndices de
violncia; alm do fato conhecido dos sistemas
carcerrios na Amrica Latina serem ineficientes,
classistas e racistas. Assim, limitar-se ao discurso
punitivista ineficaz, tratando a violncia com
mais violncia, alm de esquivar-se das questes
de fundo.
Obviamente a lei necessria e a dura punio
aos crimes por razes de gnero elementar. O
assassinato de mulheres, seja por seu parceiro,
familiar ou desconhecido, inaceitvel e deve ser
combatido e punido. Ele a mais crua expresso
da misoginia e da desigual relao de poder
entre homens e mulheres.
As leis de feminicdio so sem sombra de dvida
uma grande vitria, representam dcadas de luta
dos movimentos feministas e um importante
reconhecimento do Estado de que mulheres
esto sendo mortas por serem mulheres. Estas
leis nomeiam ao problema, porm so o inicio e
no o final da luta.
Nesse sentido, o que tambm deve ser atacado
a raiz do problema: uma transformao na
estrutura societal, a mesma que est calcada no
patriarcalismo gerador da violncia de gnero.
Isto se enfrenta de mltiplas formas:
questionando os velhos padres sociais; com
uma educao com perspectiva de gnero em
todos os nveis-; inmeras campanhas de
sensibilizao; e a promoo da igualdade
substantiva entre mulheres e homens. Essa
mudana deve ser um compromisso de toda a
sociedade, pois igualdade entre mulheres e
homens no utopia, construo coletiva.
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Agradecimentos
Elaine Oliveira Teixeira, Ana Maria Isidoro e Luis Gonzlez Alcaraz pela leitura crtica e as sugestes acertadas.
Referncias
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i Mestre em Integrao Regional e Cooperao Internacional, Universidade Nacional de Rosrio, Argentina; Mster em Estudos Latino-americanos, Universidade de Salamanca, Espanha; Bacharel em Cincias Sociais, Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, Brasil.