ENCONTROS LITERÁRIOS NA INFÂNCIA E AS ESTRATÈGIAS DE ... · atividades de interpretação de...
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ISSN 2176-1396
ENCONTROS LITERÁRIOS NA INFÂNCIA E AS ESTRATÈGIAS DE
LEITURA: DO TEXTO CONTADO, LIDO, APRECIADO, DEBATIDO À
FORMAÇÃO DO LEITOR
Renata Junqueira de Souza1- FCT/Unesp/Presidente Prudente
Cyntia Graziella Guizelim Simões Girotto2 - FCC/Unesp/Marília
Cinthia Magda Fernandes Ariosi3 - FCT/Unesp/Presidente Prudente
Grupo de Trabalho - Didática: Teorias, Metodologias e Práticas
Agência Financiadora: não contou com financiamento
Resumo
A relação entre a formação de leitores e abordagem do ensino das estratégias de leitura na
infância como alternativa metodológica é a temática apresentada nesse trabalho. Objetivo da
investigação foi indagar sobre a possível, necessária e adequada relação entre a chamada
abordagem do ensino das estratégias de leitura e a formação de crianças leitoras em sua
educação literária. Com base em estudiosos da leitura e da literatura infantil, como Arena
(2007 a e b, 2008 e 2010), Bajard (2002), Chiappini (1997), Coelho (2000), Cosson (2007),
Foucambert (1994), Harvey & Goudivs (2007), Perroti (1986), Smith (1999), Soares (1999),
Solé(2009), Zilberman (2005), dentre outros, faz-se um diálogo tendo como foco uma
educação literária humanizadora. Como procedimentos metodológicos foram realizadas três
1 Graduada em Letras pelo IBILCE – UNESP – São José do Rio Preto – SP, Mestre pela PUC-RS. Doutora pela
FCL – UNESP – Assis – SP. Pós-doutora pela University of British Columbia e Pós-doutora pela Ohio State
University. É professora Assistente Doutora junto ao Departamento de Educação – FCT – UNESP – Presidente
Prudente, onde integra o Programa de Pós Graduação; lidera o Grupo de Pesquisa: Formação de Professores e as
relações entre as práticas educativas em leitura, literatura e avaliação do texto literário” e coordena o Centro de
Estudos em Leitura e Literatura Infantil e Juvenil “Maria Betty Coelho Silva” UNESP – Faculdade de
Tecnologia e Ciências – Dep. de Educação. Rua Roberto Simonsen, 305 CEP19060-900. Presidente Prudente (SP) Brasil. [email protected] 2 Pedagoga pela Faculdade de Filosofia e Ciências (F.F.C.) – UNESP – Marília – SP(Brasil), Mestre pela
Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Doutora pela F.F.C. – UNESP – Marília. É professora Assistente
junto ao Departamento de Didática – UNESP – Marília, onde integra o Programa de Pós-Graduação em
Educação, atua na liderança do PROLEAO, Grupo de Pesquisa: Processos de leitura e escrita-apropriação e objetivação; bem como é membro do Grupo de Pesquisa: Implicações Pedagógicas da Teoria Histórico Cultural.
Av. Hygino Muzzi Filho, 737. C.E.P 17525-900. Fone: 14/34021327. Fax: 14/34021340. Marilia (SP) Brasil
[email protected] 3 Graduada em Pedagogia pela Universidade do Sagrado Coração – Bauru. Mestre e Doutora pelo Programa de
pós-graduação em Educação da FCC/Unesp/Marília. É Professora Assistente Doutora junto ao Departamento de
Educação – FCT – UNESP – Presidente Prudente; lidera o Grupo de Estudos e Pesquisa sobre Primeira Infância.
Tem especialização lacto sensu em: Alfabetização: ensino e pesquisa (FC/Unesp/Bauru); Ensino de Arte
(Uninter/Curitiba) e Formação de Professores para Cursos de Educação a Distância (FCT/Unesp/Presidente
Prudente). UNESP – Faculdade de Tecnologia e Ciências – Dep. de Educação. Rua Roberto Simonsen, 305
CEP19060-900. Presidente Prudente (SP) Brasil. [email protected]
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ações para obtenção dos dados e realização da análise. Primeiramente, uma ampla pesquisa
bibliográfica para contextualização e conceitualização das estratégias de leitura foi
desenvolvida. Seguida de uma reflexão sobre atividades de formação de leitores literários
identificadas por meio de relatórios de estágio dos alunos do curso de Pedagogia da FCC/
Unesp/ Marília, e finalmente, uma análise de quatro livros de literatura infantil com a
finalidade de demonstrar o emprego das diferentes estratégias de leitura na escola. Por meio
da pesquisa identificamos que os professores deveriam ousar mais em suas práticas de
formação de leitores, ainda que o letramento literário escolar ou do ensino da literatura na
escola é nos formar como leitores e que as estratégias de leitura se constituem em alternativas
metodológicas que podem contribuir para a formação de leitores autônomos e críticos.
Palavras-chave: Ensino das estratégias de leitura. Educação literária. Letramento literário.
Formação de crianças leitoras.
Introdução
Neste texto, buscamos indagar sobre a possível, necessária e adequada relação entre a
chamada abordagem do ensino das estratégias de leitura, considerada por nós, uma
metodologia alternativa, e a formação de crianças leitoras em sua educação literária.
Tal abordagem de aprendizado da compreensão da leitura tem sido foco, nas duas
últimas décadas, tanto de estudos e pesquisas acadêmicas (GIROTTO; SOUZA, 2010),
quanto do interesse dos organismos oficiais, materializados, por exemplo, por meio de
projetos de formação continuada de professores da rede pública e pelos próprios Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCN’s).
Nossa meta é colocar em discussão a urgência dos professores considerarem as
crianças e a si mesmos no processo de formação de leitores em sua educação literária, quanto
à produção cultural da literatura infantil, além de buscarem os meios pelos quais tal processo
possa se objetivar – que em nossas pesquisas tem se respaldado pelas estratégias de leitura.
Buscamos desse ponto de vista, ainda, problematizar a contribuição que os mediadores de
leitura podem proporcionar no processo de formação dos leitores.
Para além dos desafios teórico-práticos, tanto no campo investigativo da academia,
quanto no das políticas públicas, e, ainda, da produção cultural contemporânea, entendemos
que não podemos perder de vista a necessidade de articular questões relativas à formação do
leitor autônomo, às criações literárias e ao seu campo de acesso, à mediação dessa leitura, às
situações e meios de apropriação-objetivação da prática leitora, na medida em que
pretendemos que crianças sintam-se não só arrebatadas pelas narrativas lidas ou contadas –
pelas histórias de ficção (que de algum modo nos fazem olhar a nós mesmos e,
simultaneamente, sair para além do que nos ensina o cotidiano e o que vai se tornando senso
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comum em nossas vidas) – mas possam, igualmente, nesse percurso, ir forjando seu estatuto
leitor (ARENA, 2007a; 2007 b; 2008 e 2010).
Assim, o primeiro item deste texto fala da leitura na escola, já entremeando a
problematização de seu ensino por meio da literatura infantil e a busca por novos itinerários
de leitura. Já o segundo, trata de maneira mais específica das estratégias de leitura, sua
categorização e metodologia, explicando essa abordagem no ensino do ato de ler. Por fim,
trazemos as considerações finais, retomando a defesa posta neste texto: da essencialidade de
eventos/encontros literários na infância e da aprendizagem da compreensão do ato de ler
para/na a humanização de crianças leitoras.
Leitura, educação literária e escola
As situações de ensino no formato oficinas de leitura, círculos literários, projetos de
narrativas de ficção, sequências didáticas com diferentes gêneros na escola, dentre outras
atividades, permitem a comunicação, o estar com o outro, a interlocução, a dialogia da leitura
(BAKHTIN, 1995 e 2003), o fazer-ser leitor em seus modos de ler, conhecendo seus
princípios e operações ao/para ler variados escritos.
No entanto, compreender como se deve ensinar para garantir que as crianças se
apropriem da leitura como prática cultural é algo complexo. Os estudos decorrentes dessa
inquietação nos aproximaram de vários teóricos como Foucambert (1994), Solé (2009) e
Smith (1999) Arena (2008, 2010) que apontam o quanto o processo de leitura vai muito além
da decodificação. Versam pela compreensão do que está escrito, pela busca e atribuição de
sentidos ao texto, na elaboração dos significados. Para que esse processo se efetive de fato,
faz-se necessária a apropriação da linguagem escrita como instrumento da cultura humana, em
práticas efetivas e autênticas de leitura e escrita, e, portanto, que sejam ensinadas cumprindo
seu papel humanizador (PERROTTI, 1986; COSSON, 2007).
Contudo, em muitas escolas, verifica-se um trabalho de leitura apenas embasado em
atividades de interpretação de textos do livro didático, realizado com narrativas fragmentadas,
em debates com perguntas orais sobre aquilo que foi lido, em fichas de leitura e resumos, com
o intuito de recontar o lido e, ainda, esperando que os alunos aprendam, dessa forma, a ler e a
compreender um texto (SILVA, 1993). Tais atividades podem fazer parte do cotidiano da
escola, mas não exclusivamente como única forma de se ensinar o aluno a compreender o
texto. Para Cosson (2007) essas práticas são equivocadas, pois o aluno pode entender que ler
significa responder a questões elaboradas pelo livro didático ou pelo professor e estão
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distantes de um trabalho realmente voltado para a leitura. Segundo o autor, as atividades de
compreensão deveriam privilegiar a literatura infantil. No fragmento abaixo, retirado de um
livro didático, podemos avaliar o exposto.
Figura 1 – Exemplo de Atividades
RESPONDA:
1- COMO O SAPO FOI PARAR NO SACO LÁ NA LAGOA?
( ) AS PESSOAS JOGAM LIXO EM TODO LUGAR. ( ) AS PESSOAS RESPEITAM O AMBIENTE E NÃO USAM SACOS E
SACOLAS AO IREM AS COMPRAS.
2- SE ESSE SAPO NÃO CONSEGUIR SAIR DE DENTRO DO SACO O QUE ACONTECERÁ COM ELE?
( ) VAI VIRAR UM PRÍNCIPE ENCANTADO.
( ) IRÁ MORRER PORQUE NÃO CONSEGUIRÁ RESPIRAR.
3- NO SEU CADERNO DE TAREFAS LISTE ATITUDES CORRETAS PARA
EVITAR O USO DE SACOLINHAS PLÁSTICAS NO DIA-A DIA:
Fonte: Relatório de estágio de L.C.M. - aluna do curso de Pedagogia da UNESP de Marília (SP).
Aqui toda a possibilidade de exploração do texto em verso, se perde, a quadrinha
popular é desvalorizada diante de uma didatização inadequada deste gênero literário, nem
sequer o texto é apresentado na íntegra, omite-se a autoria, perde-se a oportunidade de uma
contextualização de autor e obra, bem como da descoberta das especificidades de tal gênero.
Chiappini (1997, p. 10) vê, igualmente, tal inadequação. Segundo a autora, há, por parte dos
professores, uma concepção de linguagem equivocada, puramente instrumental. A escola
acabou por burocratizá-la, realizando tradicionais rituais, ainda presentes no cotidiano das
salas de aula. A autora destaca a cópia, o ditado, os exercícios mecânicos de “interpretação de
textos”, a redação como atividade isolada ou, quando muito, produto final de um processo
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deslanchado pela leitura, a própria leitura como simples verbalização oral de textos cuja
compreensão fica comprometida. A figura abaixo traduz a assertiva da autora.
Figura 2 – Trabalhando a linguagem oral e escrita
Fonte: Relatório de estágio de D.N.S. - aluno do curso de Pedagogia da UNESP de Marília (SP).
Esses e tantos outros exemplos levam-nos a crer, que temos vivenciado o que Cosson
(2007, p.23) chama de “falência do ensino da leitura”, pois, a leitura não está sendo ensinada
para garantir a função essencial de “construir e reconstruir a palavra que nos humaniza”, pois
é a partir desse processo que vamos mudando nossa forma de ver o mundo e a nós mesmos, e
também vamos realizando a apropriação das formas mais elaboradas de produções humanas,
como dos discursos, sejam eles, orais ou escritos. O que desencadeia, em movimento
dialético, processos de superação de nossas capacidades, aprimorando-as.
Diante do exposto, a proposta metodológica norte-americana para o ensino da
compreensão leitora parece-nos uma possibilidade viável. Um grupo de pesquisadores, dentre
eles Pearson e Johnson (1978) iniciaram, nas décadas de 1970 e 1980, inúmeras pesquisas
sobre como os professores poderiam ensinar seus alunos a se tornarem leitores proficientes e
autônomos. Defendem que bons leitores utilizam certas estratégias para compreender o texto e
entendem que leitores proficientes interagem com o texto utilizando o seu conhecimento
prévio, fazendo inferências, previsões e conectando-se com outros textos.
Segundo esses pesquisadores, para que isso ocorra é preciso estabelecer, nas escolas,
novos itinerários de leitura, baseados no processo de metacognição, como defendem Garner
(1981; 1982), Baker (1982), Palincar (1984), dentre outros. Israel (2007) esclarece que as
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investigações neste campo do saber, permitiram integrar ao currículo a metacognição para o
ensino da compreensão leitora. Assim, no processo do ensino da leitura, fazer com que o
leitor compreenda o que acontece em sua mente no momento da leitura, tomar consciência de
como nos tornamos leitores é função dos mediadores, docentes, professores bibliotecários,
dentre outros.
Nesse sentido, é importante imprimir outra maneira de se lidar com o ensino da leitura,
ajudando o aluno a compreender o texto, rompendo, portanto, com uma visão mecanicista e
com a sequência baseada em atividades de leitura/perguntas/exercícios. Desta maneira,
podemos caminhar para um trabalho com o gênero literário, focado nas estratégias,
possibilitando ao aluno “aprendiz de leitor” a fazer uso, a mobilizar as diferentes operações
mentais no processamento da atividade literária, criando situações em que se trabalhe com a
metacognição com vistas a tomar consciência da sua leitura, de seu modo de ser leitor, dos
princípios de seu ato leitor, das habilidades trabalhadas, de sua história, por meio de diversas
leituras e da criação de sua identidade leitora (GIROTTO; SOUZA, 2010).
Vislumbramos a alternativa, então, como um elo mediador de prática pedagógica, o
uso da abordagem das estratégias de competência leitora, uma vez que tal metodologia
contribui de maneira significativa, a um só tempo, para o ensino da leitura literária e para a
formação de leitores autônomos. Além disso, tais estratégias partem do uso de diversos textos,
dentre eles, textos literários que preveem uma prática voltada ao letramento literário.
As estratégias de compreensão leitora e a prática do ensino de leitura
Ao utilizarmos as estratégias de leitura na realidade brasileira, a intenção é ensinar às
crianças sobre como a leitura se processa e como o leitor se utiliza de estratégias para alcançar
a compreensão profunda do texto. Ensinar a estratégia pela estratégia não terá muito sentido,
pois as crianças precisam aprender porque esta ou aquela estratégia nos ajuda a entender o
texto, ou seja, é preciso oferecer atividades para que a criança compreenda além das palavras,
na direção de sua formação e humanização como leitora.
Nessa abordagem evidencia-se uma organização da leitura literária, por seus recursos
que vão do mais simples ao mais complexo, até os de criar mediações propícias no tomar a
“consciência da/na prática leitora”, no apropriar-se das significações, na direção de objetivar-
se como sujeito leitor, para além da instrumentalidade técnica. Criar essas mediações é
permitir uma educação literária desenvolvente, voltada ao “aprender a aprender” a ser leitor
em seus modos, vislumbrando a formação do leitor autônomo.
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Vale destacar e comentar sobre a categorização-base de nossas pesquisas, igualmente
estratégias para ler, conhecer e aprender a pensar e a aprender a ler. Ler, buscando
significados; ler, conhecendo e sendo transformados por eles no conteúdo e na forma,
valorando a atividade do sujeito aprendiz de leitor. Comentemos cada uma delas:
conhecimento prévio, conexões, inferência, visualização, sumarização e síntese (KEENE;
ZIMMERNAN, 1997).
O primeiro destaque é para o conhecimento prévio, definido pelos “norte-americanos
de estratégia-mãe ou estratégia guarda-chuva, pois agrega todas as demais” (GIROTTO;
SOUZA, 2010, p. 66, grifos no original), e isso justamente porque, comumente, quando
iniciamos uma leitura, deixamos vir à tona, em nossa mente, uma série de informações e
conhecimentos que temos acerca do mundo em relação àquilo que estamos lendo, assim,
mobilizamos nosso conhecimento de mundo, linguístico e textual essencial à compreensão
leitora (SMITH, 1999).
Já a estratégia de conexão, por exemplo, permite à criança ativar seu conhecimento
prévio fazendo e conectando-se com novas informações. Assim, relembrar fatos importantes
de sua vida, de outros textos lidos e de situações que ocorrem no mundo, em seu país ou sua
cidade durante a leitura, ajuda a compreender melhor o texto. Essas conexões são exatamente
divididas em conexão texto-leitor, conexão texto-texto e conexão texto-mundo.
A inferência ocorre frequentemente em nosso cotidiano e é fundamental para nos
ajudar a ler nas entrelinhas, pois precisamos compreender aquilo que não foi escrito
explicitamente. Os leitores inferem ativando seus conhecimentos prévios e os relacionando
com pistas deixadas no texto. Nesse processo, é de fundamental importância que o professor
ajude a criança a aprender a relacionar o que sabe com o que está lendo – “com a intenção de
que os alunos infiram, os professores devem ensiná-los a como agir durante a leitura. Devem
mostrar a eles as dicas que cada texto possui e ensiná-los a como combiná-las com seu
conhecimento prévio para fazer inferências adequadas” (GIROTTO; SOUZA 2010, p. 76).
Quase de maneira espontânea, realizamos a estratégia de visualização, pois ao nos
depararmos com uma leitura, deixamos nos envolver por sentimentos, sensações e imagens,
que permitem que as palavras do texto se tornem ideias em nossa mente. Ao visualizarmos
quando lemos, vamos criando imagens pessoais e isso mantém nossa atenção permitindo que
a leitura se torne prazerosa.
A sumarização parte do pressuposto de que precisamos sintetizar aquilo que lemos e
para que isso seja possível é necessário aprender o que é essencial em um texto, separando-o
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do que é detalhe. Ao elencarmos o que é importante teremos mais condições de garantir as
ideias principais do texto. Além disso, essa estratégia está ligada à finalidade e aos objetivos
da nossa leitura. Quanto mais clara estiver essa finalidade, melhor as chances de elencar o que
é essencial, para que, dessa maneira, possamos atingir o objetivo pré-estabelecido pelo leitor.
Por fim, temos a estratégia de síntese que significa muito mais que resumir. Ao
resumir anotamos as ideias principais de um parágrafo ou de um texto. A síntese ocorre
quando articulamos o que lemos com nossas impressões pessoais, reconstruindo o próprio
texto. Ao sintetizar, não relembramos apenas fatos importantes do texto, mas adicionamos
novas informações ao nosso conhecimento prévio alcançando uma compreensão maior do
texto.
Quando um adulto com um elevado nível de letramento lê, ele utiliza estas estratégias,
mas para os leitores em formação, não é tão simples assim. Alguns autores como Harvey e
Goudvis (2007) orientam a necessidade de tornar explícito tal processamento para que a
criança tome consciência daquilo que nós, leitores fluentes, fazemos quase que
automaticamente conforme lemos algum texto.
Para desenvolver essas estratégias com os alunos, precisamos em primeiro lugar,
planejá-las e defini-las, realizando leituras não tão complexas, para depois oferecer leituras
mais profundas, que requerem um maior nível de compreensão leitora. Também, para que se
torne uma atividade significativa, optamos pelo trabalho colaborativo apontado por Vygotsky
(2001), no qual os alunos aprendem a cooperarem em busca de um objetivo de aprendizagem
comum.
Dessa forma, a primeira atividade de oficina de leitura literária, como uma das
propostas possíveis, são aulas introdutórias, em que o professor apresenta uma estratégia de
compreensão do texto, para, a seguir, orientar a prática guiada. Segundo Girotto e Souza
(2010) nessa etapa, professor e alunos praticam a estratégia juntos em um contexto de leitura
partilhada, refletindo por meio do texto e construindo significados através da discussão. As
crianças devem explicitar para os colegas as estratégias que estão sendo feitas no decorrer da
leitura.
Depois disso, os alunos tentam aplicar sozinhos, as habilidades de leitura, é o
momento da leitura individual e silenciosa. Podem anotar seus pensamentos ao lado do texto
ou em post-its (blocos autocolantes) e o docente geralmente conversa com as crianças sobre
seus achados e as questões suscitadas a partir da leitura.
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A última etapa das oficinas de leitura é a avaliação e a conversa em grupo sobre o
texto lido. Esse momento serve para o professor avaliar se os objetivos foram alcançados, a
recepção de seus alunos e o envolvimento no ato de ler. De acordo com Girotto e Souza
(2010) “o professor precisa ainda retomar o processo de leitura a fim de verificar o quê, para
quê, como e em que momento os alunos utilizaram a referida estratégia de leitura”. (p. 63)
Enfim, diante do uso efetivo das oficinas de leitura, do papel do professor em sala de
aula, explicitando as habilidades de leitura, respeitando o texto literário em sua integridade,
considerando o conhecimento prévio de cada aluno, bem como o ritmo de cada um, podemos
vislumbrar leitores literários, que não só compreenderão o texto, mas também utilizarão a
literatura em seu contexto social e cultural.
Chapeuzinho Vermelho – uma exemplificação do ensino das conexões
Quando começamos a instrução da estratégia com os alunos, as histórias corriqueiras
do dia a dia e as experiências são úteis para introduzir novas formas de pensar sobre a leitura.
Os leitores fazem naturalmente conexões entre os livros e fatos de suas vidas. Quando
escutam ou leem uma história começam a relacionar, temas, personagens e problemas de um
livro com outro.
No momento em que as crianças entendem o processo da conexão, não param mais de
praticar essa estratégia, incorporando-a a sua vida. Isto as leva a pensar sobre situações
maiores, mais expansivas, além do universo da escola, da casa e da vizinhança.
Nossas sugestões para as aulas de estratégias percorrem espaços diferentes, passam
pelo lar até chegar a assuntos globais ou culturais mais distantes da vida da maioria das
crianças. Apesar de algumas aulas enfatizarem o entendimento da literatura e outras focarem a
construção do conhecimento prévio sobre um tópico ou gênero em particular, todas têm uma
intenção em comum: usar as experiências pessoais e coletivas para construir significados. O
propósito em fazer conexões é aumentar o entendimento para que o pensamento da criança
não “escape” para outras áreas completamente alheias ao texto. Há um número de armadilhas
que atrapalham as crianças quando fazem conexões. O professor deve ficar atento e apresentar
adequadamente a estratégia em foco, para que os alunos não façam conexões rápidas e
desinteressadas. Enfim, a partir dos interesses e necessidades verificadas na mediação com o
leitor, o professor direciona e ajusta suas estratégias.
Quando o docente começa a ensinar seus alunos a fazer conexões com o livro que
estão lendo, frequentemente, partilha um de ficção ou de memórias porque esses gêneros,
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mais próximos das experiências dos leitores, requerem, durante a leitura, intensa atividade de
imaginação e formulação de ideias.
Desse ponto de vista, se leitores experientes criam códigos muito simples para
descrever seus pensamentos, quando uma criança está aprendendo a ler, e lê uma parte de um
texto e se lembra de algo que aconteceu consigo, de experiências vividas, ela para, pensa em
voz alta e codifica o texto com a seguinte frase: “me faz lembrar...”. Nesse momento, uma vez
motivada, ela escreve algumas palavras no bloco de notas que explica o exercício mental,
pensamento ou sentimento vivenciado. Entre as estratégias para acionar conexões, esta é a
mais simples. O mundo “me faz lembrar...” faz sentido para a maioria das crianças e elas
entendem a noção de serem lembradas de algo enquanto leem.
O exemplo que daremos neste texto são orientações para o ensino das estratégias de
conexão com o conto de fada: Chapeuzinho Vermelho, nas versões de Charles Perrault e dos
irmãos Grimm, algumas adaptações que circulam no mercado editorial, bem como textos
publicitários que remetem à menina do capuz vermelho.
Neste sentido, dentre os três tipos de conexões possíveis, há as de texto para texto (T-
T), em que o leitor, ao ler um texto, estabelece relações com outro texto do mesmo gênero ou
de gêneros diferentes. Em Meu Diário Secreto - Chapeuzinho Vermelho um livro pop-up que
pretende apresentar o diário secreto de Chapeuzinho Vermelho. O texto apresenta como a
protagonista foi visitar a vovó doente, encontrou um grande lobo mau na floresta, salvou a
avó do lobo e comeu o melhor bolo do mundo. Os leitores podem fazer remissão ao desenho
animado, à cena em que a protagonista conversa inicialmente com o lobo e/ou quando chega a
casa da avó e se depara com aquela velhinha de orelhas, olhos, mãos, nariz e bocas enormes.
Assim, estas lembranças são na realidade conexões que o leitor vai constituindo com o texto.
Ou ainda, ao ler uma das versões de Chapeuzinho Vermelho, no momento em que a
menina se depara com o lobo, crianças podem se lembrar do livro de imagens de Maurício
Veneza, Chapeuzinho Vermelho do jeito que o lobo contou. Na cena em que o lobo invade a
casa, muitos alunos se assustam, da mesma maneira que ficam com medo ao ouvir: “_ Por que
essa boca tão grande?, perguntou a menina. É para te comer, respondeu o lobo, avançando e
abrindo a boca para devorar a garota.” No caso da obra de Veneza, a surpresa é boa, pois o
desfecho mostra o lobo retirando um guaraná da bolsa e não uma arma ou algum objeto que
possa colocar vovó e Chapeuzinho em risco de vida. Este processo mostra conexão texto-
texto, no caso versões do conto de fada Chapeuzinho Vermelho e o livro de imagem.
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Figura 3 – Chapeuzinho Vermelho e o lobo mau
Fonte: VENEZA, M. Chapeuzinho Vermelho do jeito que o lobo contou. Belo Horizonte: Compor,
1999.
As chamadas de texto para leitor (T-L) são aquelas em que, na leitura de um texto, o
leitor faz conexões com episódios de sua própria vida. Vejamos um exemplo, ao ler
Chapeuzinho Amarelo no trecho e cena em que o autor e ilustrador, narra:
ERA A CHAPEUZINHO AMARELO.
AMARELADA DE MEDO.
TINHA MEDO DE TUDO,
AQUELA CHAPEUZINHO.
JÁ NÃO RIA [...],
e continua...
OUVIA CONTO DE FADA E ESTREMECIA.[...]
TINHA MEDO DE TROVÃO.
MINHOCA, PARA ELA, ERA COBRA.[...]
(BUARQUE, 2011, s/p)
Algumas crianças podem se lembrar de uma situação parecida: como dá medo ouvir
certas histórias, como é difícil assumir o medo de pequenos insetos e animais, ou de trovão.
Outro exemplo de conexão texto-leitor pode ser dado a partir, da história dos Irmãos
Grimm, pois nela a menina conta com a sorte de um caçador/lenhador que se assusta com o
ronco da suposta velhinha. Nesta passagem, quem dorme e ronca alto é o lobo. O episódio
pode fazer com que alguns alunos se lembrem de pessoas conhecidas, amigos ou familiares
que também roncam. Aqui, o docente deve mostrar como essas relações são diferentes, pois
são pessoais. O pai que ronca e disturba pode ser de mais de um aluno, mas é único, ao fazer
com que aquele determinado aluno estabeleça relações entre o ronco do lobo, portanto, da
narrativa e de seu pai, familiar próximo está fazendo uma conexão texto-leitor (T-L).
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Professor e aluno, ao lerem esses textos, usam para estimular conexões pessoais o seguinte
refrão: “Isto me faz lembrar de...”.
Já como exemplo de conexões texto com o mundo (T-M) podemos fazer alusão ao
conto de Charles Perrault em que o lobo devora a avó e a menina, e ao final o leitor é alertado
para os “lobos” galantes que seduzem meninas inocentes – os alunos podem fazer relações
com o mundo, notícias de jornal ou de televisão mostrando matérias sobre pedofilia, entre
outros.
Outro exemplo das relações entre texto e mundo pode ser elucidado com a propaganda
abaixo. Com os dizeres: “Keep your fairy tales away from hospital” (“Mantenha seus contos
de fadas longe do hospital”) uma agência de publicidade da Romênia utilizou personagens
dos contos de fadas para uma campanha sobre a vida. A imagem e o texto do cartaz podem
ajudar as crianças a estabelecerem relações com o mundo, não é raro a veiculação de
documentários sobre crianças maltratadas, ou que morrem por doenças “banais” que poderiam
ser tratadas sem intervenções hospitalares.
Figura 4 – Chapeuzinho Vermelho na floresta
Fonte: http://www.petshopboxstudio.com/blog-upload/wp-content/uploads/2011/04/
Enquanto os alunos escrevem e partilham suas conexões, podemos listá-las em um
cartaz grande e categorizá-las. Aos poucos, vamos introduzindo e codificando T-L, conexão
texto-leitor; T-T, conexão texto-texto; T-M, conexão texto-mundo. Enquanto o professor
continua a explorar a noção de conectar a história com a vida do leitor, pode também modelar
um simples formulário de duas colunas: “Sobre o que é a história” e “O que ela faz lembrar”.
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Essa estratégia encoraja os alunos a resumirem a história na primeira coluna e a responderem
à segunda utilizando a memória e o conhecimento prévio ou, ainda, uma experiência.
Cada forma ou gênero literário tem certas características que as definem. Quando o
docente explora ficção, ensina os alunos sobre personagens, espaço, problema e solução.
Quando investiga não-ficção, partilha explicitamente estruturas dos textos como “comparar e
contrastar”, e “causa e efeito”. O professor ensina os alunos a utilizarem o conhecimento
prévio através da percepção de características visuais e textuais. Nesse sentido, eles
compreendem melhor um gênero ou uma forma específica quando leem e escrevem.
Conexões texto-leitor, texto-texto, e texto-mundo são estratégias básicas para a
compreensão. Leitores também fazem conexões com a natureza dos textos e as características
literárias. Uma vez que se tornam conscientes desses elementos, as crianças sabem o que
esperar quando leem um livro de literatura infantil, pegam um jornal, seguem um manual, ou
veem uma propaganda.
Para finalizar
Enquanto educadores, não devemos temer ousar em práticas pedagógicas alternativas,
no caso, do ensino da leitura, precisamos relembrar da necessária educação literária
humanizadora, aquela em que aprender a ler por meio de textos literários é aprender a ler por
meio de uma arte – que manifesta nos textos, encanta, faz rir e chorar, pensar e repensar;
que traz o caráter lúdico do jogo; que se instaura na e através da linguagem, permitindo
recriações do texto contado/lido/debatido/apreciado, da atividade realizada, do itinerário
percorrido, das operações mentais implementadas no ato de ler e do constituir-se leitor.
Por isso, cumpre enfatizar que o objetivo maior do letramento literário escolar ou do
ensino da literatura na escola é nos formar como leitores, não como qualquer leitor ou um
leitor qualquer, mas um leitor capaz de se inserir em uma comunidade, manipular seus
instrumentos culturais e construir com eles um sentido para o mundo em que vive, posto que
“a ficção feita palavra na narrativa e a palavra feita matéria na poesia são processos
formativos tanto da língua quanto do leitor. Uma e outra permitem que se diga o que não
sabemos dizer e nos dizem de maneira mais precisa o que queremos dizer ao mundo e a nós
mesmos” (COSSON, 2006, p. 16). Neste sentido, as estratégias de leitura, nos permitem
conhecermos mais profundamente a nós mesmos como leitores do mundo, tornando-nos
leitores autônomos e críticos.
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