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Encontro Internacional Participação, Democracia e Políticas Públicas: aproximando agendas e agentes 23 a 25 de abril de 2013, UNESP, Araraquara (SP) Controle e políticas punitivas: algumas procedências da implantação de tornozeleiras eletrônicas no Brasil Ricardo Urquizas Campello Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP

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Encontro Internacional Participação, Democracia e Políticas Públicas: aproximando agendas e agentes

23 a 25 de abril de 2013, UNESP, Araraquara (SP)

Controle e políticas punitivas: algumas procedências da implantação de tornozeleiras eletrônicas no Brasil

Ricardo Urquizas Campello

Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP

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introdução

As políticas punitivas no Brasil atravessam reformulações e

aperfeiçoamentos, lançando mão de aparatos tecnológicos para o controle de

indivíduos tidos como perigosos e sinalizando para novas formas de governo

e ordenamento político. Os deslocamentos operados em conjunto pelo

Estado e a chamada sociedade civil organizada, estendem o controle penal

para fora dos edifícios prisionais, investindo em monitoramentos por meio de

sistemas eletrônicos e informatizados, amparados por novos direitos.

Este trabalho tem como objetivo apresentar os resultados prévios da

pesquisa de mestrado em andamento orientada pela Profa. Dra. Salete

Oliveira, cujo título é “Política, direitos e novos controles punitivos: a

implantação de tornozeleiras eletrônicas no Brasil”. A pesquisa propõe um

estudo do uso de tornozeleiras eletrônicas para controle dos chamados

apenados no Brasil. O enfoque volta-se para o Sistema de Acompanhamento

de Custódia 24 horas (SAC24) e conexões com os Programas Nacionais de

Direitos Humanos, em especial o PNDH III.

A doutrina de direitos humanos se espraia pelo planeta

indissociavelmente à intensificação das práticas punitivas e de uma crescente

variação das medidas penais. Em 2010, em consonância com uma série de

documentos e programas de consolidação dos direitos humanos no Brasil, foi

instituída a lei federal 12.258, que determinou a possibilidade do uso de

tornozeleiras eletrônicas em casos de saída temporária no regime semiaberto

de cumprimento de pena e na determinação de prisão domiciliar. O sistema,

no entanto, já vinha sendo adotado em alguns estados brasileiros, mesmo

antes da promulgação da lei federal.

Pretende-se aqui, inicialmente, problematizar a prática da punição

como técnica de governo e administração de desvios. Para isso, são

apresentados alguns aspectos do exercício do castigo sob o olhar do filósofo

inglês William Godwin.

Em seguida, será investigado como a crise das instituições

disciplinares tem levado, atualmente, a novas formas de assujeitamento, em

um processo de transformação das técnicas de governo que já não se

aplicam apenas no interior de espaços de confinamento, como no tempo das

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disciplinas. Trata-se, assim, como propôs Foucault, de um estudo das

técnicas de governo que constituem indivíduos assujeitados. Observando a

sinalização de Gilles Deleuze, de que as sociedades de controle estão

deixando para traz as sociedades disciplinares, deve-se atentar aos

deslocamentos políticos promovidos por essa transição, sugerindo novos

modos de governar e ser governado.

Dessa maneira, considerando, ao lado de Godwin, a questão da

punição como fundamental à Ciência Política, dedica-se ao estudo das novas

tecnologias punitivas, em especial as tornozeleiras e braceletes eletrônicos,

utilizados para monitoramento e localização georreferenciada via satélite,

comunicando polícias e gerenciando a circulação de indivíduos tidos como

perigosos. Para isso, são estudadas as proveniências desses dispositivos

nos EUA, vinculado à aplicação de medidas penais em meio aberto bem

como as produções teóricas que vinculam-se a tais práticas de controle e

punição.

Em seguida, são investigadas as procedências da implantação do

monitoramento eletrônico no Brasil em programas estaduais de segurança

pública implantados pelas respectivas secretarias de segurança pública e

administração penitenciária, até a formalização da utilização de tais

dispositivos em âmbito nacional pela aprovação da lei federal que institui a

medida. Será necessário apresentar alguns dados e estatísticas referentes à

população carcerária nacional e o estado das coisas nos presídios

brasileiros, que levou muitos juristas a defender o controle eletrônico dos

chamados apenados como uma maneira de se “desafogar” o sistema

prisional, mas que se apresenta em uma relação de complementaridade com

a prisão, sem dela abdicar.

Este trabalho pretende, portanto, situar o ponto em que se encontra a

pesquisa, expondo resultados quantitativos e qualitativos relacionados às

hipóteses apresentadas no projeto, assim como os percursos metodológicos

traçados até o presente momento.

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aspectos filosóficos da pena: a recusa de Willam Godwin

“A questão da punição é provavelmente a mais fundamental da ciência

política” (Godwin, 1945, p. 317). É o que afirma o filósofo libertário, William

Godwin, ainda no ano de 1793, em sua minuciosa investigação a respeito

dos aspectos gerais da punição e seu exercício generalizado pelo Estado e

pela sociedade, presente na obra Investigações acerca da justiça política.

Como o autor assevera, a prática punitiva é tomada como método de

supressão da força pela força, ou medida de prevenção geral que teria por

objetivo impedir ações consideradas hostis, pela ameaça e o temor.

A punição denota, para Godwin, a inflição da dor a um ser considerado

vil, tomando o sofrimento como o correlato indissociável da vileza (Idem). Em

oposição à sua perspectiva de que a associação entre os homens e o

exercício político devem estar voltados para a potencialização do prazer, o

regime do castigo enfatiza sua importância na produção da dor. O objeto

reportado pelo código penal não é outro senão o sofrimento.

Rodas, forcas, fogueiras, pelourinhos, cadeiras inquisitórias, balcões

de estiramento, cavaletes, garrotes, pêndulos. São inúmeros os instrumentos

utilizados para a punição pela civilização ocidental antes de elaborar seus

mais recentes mecanismos de inflição do sofrimento. É patente a formidável

capacidade de destruição detida pelas instituições governamentais que, no

âmbito externo, promovem guerras e morticínios massivos sob o amparo da

lei, e, no âmbito interno, empregam seus recursos e criatividade para

desenvolver técnicas de tortura e aprisionamento (Godwin, 1945, p. 31).

Sofisticados e engenhosos instrumentos de produção da dor são

incessantemente inventadas e aperfeiçoadas pelos governos, a serem

aplicadas em suplícios, torturas, execuções e encarceramentos. A história

humana apresenta-se, assim, como uma história de violência, e as

instituições políticas fornecem o respaldo para a viabilização dos massacres

praticados sistematicamente.

Dentre os objetivos do castigo elencadas por Godwin, o exemplo será

talvez o mais arcaico. Para atribuir à pena uma função exemplar sua

iminência deve ser tornada pública, seja pela exposição de sua violência,

seja pela disseminação de seus horrores. Ao escancarar a dor de um

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indivíduo, o sistema penal pretende, a um só tempo, ratificar seu esplendor e

sua força ao suposto infrator, por um lado, e à sociedade que contempla sua

agonia, por outro. Busca reafirmar sua autoridade em relação ao indivíduo e

propalar à comunidade uma relação de causa e efeito em que as atitudes

viciosas são sucedidas pela dor e que todos estão sujeitos à sua justiça. O

castigo tomado como exemplo é empregado “contra uma pessoa que não

está mais cometendo uma ofensa e a qual podemos apenas suspeitar que

cometerá mais ofensas” (Godwin, 2004, p. 30). A face visível do castigo deve

influenciar as demais pessoas, “ao passo que o delinquente passa sozinho

pela experiência de uma dor real” (Tadeu in Bentham, 2008, p. 100).

A punição em nome do exemplo é atravessada, assim, de acordo com

Godwin, por uma outra função punitiva, a saber, a vingança. É a titulo de

vingança que o regime do castigo ostenta o sofrimento do indivíduo a quem

penaliza, assegurando sua humilhação no espetáculo punitivo. É também o

estímulo de uma vingança institucionalizada que leva o Estado e a sociedade

a imputar a dor, física ou psicológica, a um indivíduo que os tenha ofendido.

Fundamentador do Estado moderno, edificado a partir do modelo do

contrato, John Locke se reportará à vingança para definir os objetivos dos

poderes legislativo e executivo da sociedade civil, que, conforme o autor, são

“julgar, através de leis estabelecidas, a que ponto as ofensas devem ser punidas quando cometidas na comunidade social, e também determinar por meio de julgamentos ocasionais fundamentados nas presentes circunstâncias do fato, a que ponto as injustiças de fora devem ser vingadas, em ambos os casos empregando toda a força de todos os membros sempre que for necessário” (Locke, 1994, p. 134 – grifo nosso).

O exemplo assegura a vingança do Estado, ao mesmo tempo em que

o compele à sua violência sistemática. Atrelada ao exemplo, encontramos

nas doutrinas fundamentadoras da pena, a hipótese da reforma como

finalidade punitiva.

Contemporâneo às reformas penais efetuadas no final do século XVIII,

Godwin assinalou como as práticas coercitivas não convencem por sua

violência, não conciliam o inconciliável (Godwin, 2004, p. 26). O

encarceramento reformador só poderia alimentar o rancor, a ignorância ou a

covardia daquele a quem aprisiona. “A violência pode ser capaz de subjugar

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nossa decisão, mas não é capaz de persuadir nossa inteligência. Faria de

nós hipócritas, não convictos” (Godwin, 1985, p. 73).

Era essa, no entanto, a estratégia reafirmada pela lógica do castigo,

redimensionado pela emergência da prisão na Europa na passagem do

século XVIII para o XIX: encarcerar para corrigir. Reformar um indivíduo,

corrigir seu comportamento, emendar sua conduta. Eis o propósito ao qual a

pena se incumbe ao ser empregada como instrumento reformador. Como

assinala Godwin, a punição em nome da reforma submete o intelecto ao

temor, constrange a inteligência à dor e aplica sua violência como

procedimento de disseminação de princípios e imposição de valores. Abdica,

portanto, do convencimento racional por meio da sensibilização e da

argumentação, lançando mão da força coerciva como método educativo. É

também neste ponto que o castigo aniquila a perceptibilidade do homem,

sobrepuja seu entendimento e o transforma em um covarde, adestrando-o

conforme o medo às represálias da punição.

A justiça punitiva busca anexar o sofrimento ao vício atribuindo uma

racionalidade ao ato de submeter um homem ao flagelo, por considerar suas

ações maléficas e supor evitar a ocorrência de futuros males. O código penal

elenca, assim, uma “enciclopédia de sofrimentos” (Tadeu in Bentham, 2008,

p. 98), na qual faz corresponder a cada delito uma pena precisamente

quantificada de acordo com sua gravidade, atravessada pela crença na

precaução. É com o intuito de prevenir, pelo convencimento à obediência,

que a lei incute a dor naquele que a transgrediu.

Para além de reformar e exemplificar, a punição deve prevenir, e para

poder prevenir, necessita conter. Conter um indivíduo perigoso que não pode

estar à solta; conter os potenciais levantes sempre iminentes pela reunião de

criminosos em um mesmo espaço; conter as possíveis desordens

provocadas fora da prisão, por meio da ameaça de ser colocado dentro dela;

conter comportamentos errôneos que devem ser evitados. A contenção,

aliada à reforma e ao exemplo, formam as três finalidades modernas da

punição conciliadas pela prisão em seu objetivo geral, a prevenção.

Trata-se, portanto, da violência institucional que se antecipa à

violência individual; a precaução coercitiva a um suposto mal que ainda não

foi praticado. Sob o argumento da prevenção, justificam-se os abusos

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praticadas pelo Estado e pela sociedade permitindo-os isolar, torturar, vigiar

ou executar, não apenas por alguma atitude que tenha desaprovado, mas por

uma conjectura, um receio, uma suposição ou desconfiança de que este mal

volte a suceder.

A coerção penal, ainda de acordo com Godwin, é incapaz de

demonstrar razoavelmente os malefícios de determinadas ações ou

esclarecer ao indivíduo violentado por suas medidas arbitrárias a respeito dos

prejuízos que este possa ter causado a terceiros. Da mesma forma, aquele

que move determinada ação coercitiva em nome da justiça penal não possui,

decerto, propensão ao convencimento. Tornado carrasco, o justiceiro já não

dispõe de razão alguma capaz de sustentar sua violência.

“Consideremos o efeito que a coerção produz sobre a mente daquele contra quem é empregada. Ela não pode convencer; não é um argumento. Ela começa produzindo a sensação de dor e o sentimento de repugnância. Ela começa alienando a mente violentamente da verdade que gostaríamos de imprimir nela. Ela inclui uma confissão tácita de imbecilidade. Se aquele que emprega a coerção contra mim pudesse me moldar a seus propósitos por meio de argumentos, sem dúvida o faria. Ele finge me punir porque seu argumento é forte; mas me pune na realidade porque seu argumento é fraco” (Godwin, 2004, p. 23)

As finalidades às quais a punição se propõe são, dessa forma,

rigorosamente desconstruídas pelas interpelações de William Godwin,

contemporâneo ao próprio surgimento da prisão como dispositivo punitivo

fundamental estabelecido pela burguesia fundamentada teoricamente pelas

tradições filosóficas iluministas. A inconsistência dos argumentos que

defendem o castigo como medida de contenção, reforma ou exemplo se

revela com a análise de suas implicações, confrontando a dor à razão. O

principal agente propulsor do castigo seria, dessa forma, o ressentimento,

formalizado em medidas penais que adquirem status de lei, subjugando a

todos pela ameaça e o temor.

Ademais, apelando à força, a coerção empregada pela magistratura

revela o desequilíbrio sobre o qual estão fundados seus rituais de justiça, ao

levar ao tribunal uma guerra declarada pela sociedade, ou pelo Estado,

contra um único indivíduo (Idem, p. 324). Se os castigos excessivos dos

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suplícios revelavam a assimetria do poder do soberano sobre o corpo

supliciado do condenado, a justiça burguesa na sociedade disciplinar

permitirá a manutenção do desequilíbrio instalado em um sistema punitivo

racionalizado pelo cálculo utilitarista, encabeçado pelo liberalismo de Jeremy

Bentham. É latente, portanto, a falsidade do argumento que afirma uma

suposta imparcialidade no sistema penal, posto que se fundamenta em um

jogo desigual de poderes, opondo a sociedade, a comunidade e o Estado a

uma só pessoa dotada de escassos recursos de defesa. O caráter

persecutório da justiça penal se escancara em seus métodos coercitivos de

aplicação do castigo e seu jogo desequilibrado de forças no teatro júridico.

A justiça punitiva, no entanto, instaura seu exercício no ordenamento

político ocidental e há séculos permanece como técnica fundamental de

governo. E com ela, os aparelhos burocráticos e administrativos fundados

sobre a arbitrariedade de seus métodos, levados a cabo por juízes,

promotores e advogados que, dotados de uma suposta imparcialidade,

determinam, sob o amparo jurídico do código, a dor e o sofrimento dos que

estão sob sua égide.

Remetendo-nos ao pensamento dos filósofos da tradição iluminista,

vemos a importância dada por Locke à instituição de um poder de julgar,

como origem e sustentáculo do Estado. Diz Locke:

“Os homens passam assim do estado de natureza para aquele da comunidade civil, instituindo um juiz na terra com autoridade para dirimir todas as controvérsias e reparar as injúrias que possam ocorrer a qualquer membro da sociedade civil; este é o legislativo, ou os magistrados por ele nomeados” (Locke, 1994, p.134)

Por seu turno, ainda no contexto de formulação e edificação do

Estado, Jean-Jacques Rousseau afirma a necessidade de que

“tudo aquilo que cada um aliena em virtude do pacto social de seu poder, de seus bens, de sua liberdade, seja somente a parte de tudo aquilo cujo uso interessa à comunidade, mas é preciso convir também que só o soberano pode ser juiz desse interesse” (Rousseau, 2000, p. 43).

Será certeira, portanto, a afirmação de Albert Camus, na introdução de

sua obra O homem revoltado, quando o autor diz que “a filosofia pode servir

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para tudo, até mesmo para transformar assassinos em juízes” (Camus, 2011,

p. 13).

O esclarecimento iluminista fundamentou a constituição do Estado

moderno reafirmando e reformulando as técnicas de punição e baseando-se

na doutrina da prevenção geral. O Estado fundado na teoria do contrato

implicou, como mostra Michel Foucault, em uma tecnologia de duas frentes

que operava em vias descendentes, provenientes do organismo político, e

ascendentes, emergindo do próprio indivíduo, tornado sujeito. A punição foi e

é uma das ferramentas fundamentais de assujeitamento e exercício de poder

operada pelo Estado em conjunto com a sociedade civil. A lógica punitiva,

para além de um alicerce político, se apresenta como sustentáculo da moral

que conforma um determinado tipo de individualização no sujeito

direcionando os modos como ele se conduz e estabelece suas relações

consigo e com os demais. Por meio dos dispositivos e tecnologias que o

operam, sejam voltados à tarefa da exemplificação, da reforma ou da

contenção, o castigo se incute nos modos de agir e pensar do sujeito

orientando e direcionando sua conduta.

Extravasando os muros prisionais, o controle eletrônico aparecerá no

século XXI como uma nova reformulação das práticas penais, determinadas

por exigências e insuficiências renovadas. Associadas à deflagração de

direitos e revestidas, ainda, por discursos humanitários, as recentes

tecnologias de controle e punição, incitadas por aquilo que Foucault

identificou como governamentalidade liberal, fornecerão ao sistema penal um

novo alcance e magnitude. Urge, com Godwin, recusar o regime do castigo e

a iniquidade das doutrinas que buscam racionalizá-lo, seja no tempo das

Luzes, seja nos dias de hoje. Urge investir contra o que nos tornamos.

procedências do monitoramento eletrônico de presos

Atualmente, os controles penais baseados em medidas a serem

cumpridas a céu aberto crescem ainda mais rapidamente do que os

encarceramentos em instituições de confinamento. No ano de 1997, havia,

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nos EUA, 3,26 milhões de estadunidenses em probation e 685.000 em

parole, compondo um contingente de quase 4 milhões de pessoas

controladas pelo sistema penal sem que estivessem confinadas em presídios

(Wacquant, 2001, p. 84).

As primeiras notícias a respeito do monitoramento eletrônico de

indivíduos condenados judicialmente remetem aos doutores, Ralph e Robert

Schwitzgebel – membros do Science Committee on Psychological

Experimentation – da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos. Nos

anos 1960, esses irmãos, professores de psicologia, propuseram medidas

eletrônicas para controlar “delinquentes” e “doentes mentais” (Burri, 2011, p.

477; Conte, 2010, p. 417). A idéia, no entanto, era utilizar artefatos

tecnológicos de monitoramento em pessoas com “problemas sociais”, não se

restringindo apenas a condenados. Seu primeiro experimento foi realizado

em 1964, na cidade de Boston, com 16 jovens reincidentes que estavam em

liberdade condicional. A experiência se repetiu em Saint-Louis, com o intuito

de se reduzir os índices de suicídios entre jovens condenados (Conte, 2010,

p. 417).

A modalidade, no entanto, foi efetivamente implantada pela primeira

vez no início dos anos 1980 pelo juiz estadunidense Jack Love, de

Albuquerque, Novo México, que se inspirou em um episódio de história em

quadrinhos do personagem Homem-Aranha, no qual o vilão da história

depositava no corpo do super-herói um bracelete que permitia a localização

deste onde quer que estivesse (Idem, p. 478). Entusiasmado com a idéia do

cartunista, Jack Love convenceu o perito em engenharia eletrônica, Michael

Goss, a criar um dispositivo que possibilitasse a supervisão do

comportamento e localização dos presos de sua jurisdição.

Como lhe fora encomendado, Michael Goss desenvolveu “o primeiro

dispositivo de supervisão consistente em um bloco de bateria e um

transmissor capaz de transmitir sinal a um receptor” (Idem), com articulação

pela Internet ou via satélite (Conte, 2010, p. 418).

No ano de 1983, Love sentenciou o primeiro indivíduo a utilizar o seu

sistema de monitoramento. A experiência do juiz foi seguida por diversos

estados e jurisdições estadunidenses, de forma que, em 1988, já havia 2.300

pessoas monitoradas eletronicamente pelo sistema judicial do país (Burri,

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2011, p. 478). Dez anos depois, esse número chegaria à marca de 95.000

(Bottini, 2008, p. 388).

Em 1986, a empresa National Incarceration Monitor and Control

Services implementou 45 programas de monitoramento eletrônico em 26

estados dos EUA. Trata-se da primeira empresa a produzir instalações

eletrônicas para controlar condenados (Conte, 2010, p. 418).

A partir destas experiências, oriundas dos magistrados

estadunidenses, em conjunto com técnicos, engenheiros e empresas

voltadas ao controle do crime, a modalidade foi exportada, ainda na década

de 1980, para países como Austrália, Canadá, Inglaterra, Portugal e Itália.

Hoje, o monitoramento eletrônico de presos se espalhou por todos os

continentes do planeta, sendo adotado na África do Sul, Alemanha, Andorra,

Argentina, Austrália, Bélgica, Brasil, Canadá, China, Dinamarca, Escócia,

Espanha, Estados Unidos, França, Holanda, Inglaterra, Hungria, Israel, Itália,

Japão, Noruega, Nova Zelândia, Portugal, Tailândia, Taiwan, Singapura,

Suécia e Suíça.

O mecanismo que utiliza o sistema de posicionamento global (GPS) foi

desenvolvido pelo Departamento de Defesa estadunidense e é formado pela

interconexão de dois satélites, estações de terra conectadas em rede, e

dispositivos móveis como braceletes ou tornozeleiras eletrônicas (Burri, 2011,

p. 481).

Nele, o dispositivo instalado junto ao corpo do apenado emite sinais a

um transmissor colocado no Centro de Controle de Monitoramento (CCM). O

transmissor é conectado aos satélites que indicam a localização precisa do

indivíduo pelo sistema GPS. O GPS calcula constantemente a longitude,

latitude e velocidade do portador do dispositivo. A partir desses cálculos, o

CCM é alertado, caso o indivíduo monitorado adentre em uma “área de

exclusão determinada pelo juiz” (Conte, 2010, p. 418).

Rodriguez-Magariños apresenta, ainda, um quarto sistema de

monitoramento que denomina de sistema de 3ª geração. O mecanismo

combina a tecnologia GPS com a possibilidade do Centro de Controle de

Monitoramento receber informações relacionadas a impulsos psíquicos,

frequências de pulsações ou ritmos respiratórios do condenado para medir

seus níveis de agressividade ou excitação sexual. Algumas versões desse

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sistema de monitoramento possuem, ainda, a capacidade de realizar

intervenções corporais diretas no indivíduo monitorado por meio de

“descargas elétricas programadas, que repercutem diretamente no sistema

nervoso central, ou por meio da abertura de uma cápsula que lhe injeta um

tranquilizante ou outras substâncias (...)” (Rodrigues-Magariños, 2005, p.

220).

No que diz respeito às opções técnicas de aparelhagem para

monitoramento de indivíduos ditos infratores, os diferentes aparatos para a

imposição do controle à distância são pulseiras, tornozeleiras, cintos, ou

microships implantados no corpo humano (Conte, 2010, p. 418). Os EUA e a

Inglaterra avaliam a possibilidade de utilização de microships subcutâneos,

implantados por via cirúrgica no corpo do condenado. A medida cirúrgica

encontra ressonâncias, como será mencionado adiante, inclusive em projetos

de leis no Brasil.

***

A utilização do monitoramento eletrônico pelo sistema penal brasileiro

foi determinada no dia 15 de julho de 2010, pela Lei 12.258, que alterou a Lei

de Execução Penal (7.210/1984), especificando que, em casos de saída

temporária no regime semiaberto de cumprimento de pena e na

determinação de prisão domiciliar, o juiz poderá definir a “fiscalização” por

meio de monitoração eletrônica (146-B da Lei 7.210/84).

Segundo a lei federal,

“Art. 146-C. O condenado será instruído acerca dos cuidados que deverá adotar com o equipamento eletrônico e dos seguintes deveres:

I - receber visitas do servidor responsável pela monitoração eletrônica, responder aos seus contatos e cumprir suas orientações;

II - abster-se de remover, de violar, de modificar, de danificar de qualquer forma o dispositivo de monitoração eletrônica ou de permitir que outrem o faça;

(...) Parágrafo único. A violação comprovada dos deveres

previstos neste artigo poderá acarretar, a critério do juiz da execução, ouvidos o Ministério Público e a defesa:

I - a regressão do regime;

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II - a revogação da autorização de saída temporária; (...) VI - a revogação da prisão domiciliar; VII - advertência, por escrito, para todos os casos em que

o juiz da execução decida não aplicar alguma das medidas previstas nos incisos de I a VI deste parágrafo” (Lei 7.210/1984).

Conforme o texto, o monitoramento eletrônico será regulamentado

pelo Poder Executivo e “poderá ser revogado quando se tornar

desnecessário ou inadequado”, ou ainda, “se o acusado ou condenado violar

os deveres a que estiver sujeito durante a sua vigência ou cometer falta

grave” (146-D da Lei 7.210/84).

Apesar da lei ter sido publicada em junho de 2010, a modalidade já

vinha sido discutida há alguns anos, tanto no Congresso Nacional quanto nas

Assembléias Legislativas estaduais, tendo sido implementada por diversos

estados brasileiros mesmo antes da ratificação da lei federal.

A Paraíba foi o primeiro estado a implantar o sistema no país. Na

ocasião, o Juízo das Execuções Penais da Comarca de Guarabira testou o

novo mecanismo em julho de 2007, por meio do projeto “Liberdade vigiada,

sociedade protegida”, liderado pelo juiz Bruno Cezar Azevedo Isidro (Burri,

2011, p. 489). A experiência realizou-se mediante tecnologia nacional em

seis detentos do regime fechado que se voluntariaram para utilizar a

tornozeleira eletrônica.

O estado de São Paulo também implementou o monitoramento

eletrônico de presos antes da promulgação da lei federal. Em abril de 2008

foi sancionada pelo governador José Serra, a Lei estadual 12.906,

disciplinando o instituto do monitoramento eletrônico no estado (Burri, 2011,

p. 477).

No Rio de Janeiro, um projeto de lei a respeito do tema também

tramitou na Assembléia Legislativa, e foi sancionado no dia 3 de setembro de

2009, pelo governador Sérgio Cabral, tanto para presos que cumpram pena

em regime semiaberto quanto para os que estiverem em regime aberto. A lei

fluminense elencava, ainda, a possibilidade de utilização de chip subcutâneo

para a efetivação do rastreamento.

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O Rio Grande do Sul também implantou o seu sistema de

“Monitoramento Remoto Georreferenciado” em 200 presos do regime aberto

antes da lei federal ser sancionada (Amaral, 2010, p. 85).

No estado de Goiás, desde fevereiro de 2009, o monitoramento de

presos via GPS vinha sendo testado pelo governo. Os testes duraram 30

dias, nos quais, inicialmente, 10 presos do regime semiaberto e aberto

receberam o equipamento, cuja tecnologia era importada de Israel (Conte,

2010, p. 430).

Em âmbito nacional, em 2007, o Substitutivo Nº 175, da Câmara dos

Deputados, cujo projeto de lei original é do senador Magno Malta (PR-ES) e

que recebeu anexos de projetos de lei similares de autoria dos deputados

Ciro Pedrosa (PV-MG), Manato (PDT-ES), Edio Lopes (PMDB-RR), Beto

Mansur (PP-SP), e do então senador Aloízio Mercadante (PT-SP) (Idem, p.

427), constitui-se uma das principais procedências jurídicas da atual lei

federal de regulamentação do monitoramento eletrônico.

Segundo a justificação do substitutivo:

“A prisão deixou de ser o controle perfeito. É ultrapassado porque ainda é estabelecido em espaço rígido. O limite territorial determinado pelo cárcere não é mais um aspecto positivo do controle penal, mas um inconveniente, haja vista que é insustentável para o Estado manter aprisionadas as inúmeras pessoas condenadas. Alguns países, a exemplo dos Estados Unidos, França e Portugal, já utilizam o monitoramento de condenado, exigindo-se o uso de pulseira ou tornozeleira eletrônica como forma de controle das pessoas submetidas ao regime aberto. Muitos argumentos favoráveis à utilização desse tipo de controle penal são trazidos à baila, tais como a melhora da inserção dos condenados, evitando-se a ruptura dos laços familiares e a perda do emprego, a luta contra a superpopulação carcerária e, além do mais, economia de recursos, visto que a chamada ‘pulseira eletrônica’ teria um custo de 22 euros por dia contra 63 euros por dia de detenção. O controle eletrônico surge para superar as limitações das penitenciárias, podendo ser universalizado. (...) Sala das Sessões, Senador Magno Malta”.

A finalidade do sistema seria, portanto, minimizar certos

inconvenientes relativos ao cárcere, tais como “a impossibilidade de

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expansão rápida e custo muito elevado. Note-se que, para abrir uma vaga no

sistema prisional, o Estado brasileiro gasta cerca de 14 mil reais, além de ser

necessário em média mil reais mensais para a manutenção da pessoa no

cárcere”1.

A relação econômica de custo-eficiência é, dessa forma, uma das

principais preocupações do Estado brasileiro na constituição de novos

mecanismos de segurança e controle da criminalidade. A sociedade

controlada pelos dispositivos de segurança, conforme analisou Foucault

(2008), passa pela instrumentalização do saber econômico, operada pelo

Estado, como estratégia de exercício do governo sobre a população. A

prática governamental incorpora em sua própria racionalidade, a

racionalização econômica, orientando-se política e juridicamente de acordo

com cálculos de custo, risco, eficiência e utilidade.

Nessa gestão de riscos contrastada a cálculos de eficiência de

medidas penais e políticas criminalizadoras, desenvolvem-se dispositivos de

avaliação de impacto carcerário frente à expansão das práticas penais, como,

por exemplo, a Lei de Responsabilidade Político-Criminal, defendida pelo

criminologista gaúcho Salo de Carvalho, que salienta a necessidade da

realização de pesquisas que tragam consigo a previsão de encarceramentos

futuros decorrentes da aplicação de qualquer projeto legislativo

criminalizador, indicando as medidas políticas necessárias à sua

implementação e demonstrando a origem dos recursos para a realização de

tais medidas (Carvalho, 2008, pp. 8-10).

“De maneira geral, a questão que se coloca será a de saber como, no fundo, manter um tipo de criminalidade (...) dentro de limites que sejam social e economicamente aceitáveis e em torno de uma média que vai ser considerada, digamos, ótima para um funcionamento social dado (Foucault, 2008, p. 8).

A chamada “reabilitação” dos presos é inscrita, dessa forma, no marco

do risco mais que no marco do “bem-estar”. Os ditos delinquentes deverão

ser ‘tratados’ “apenas se isto servir para proteger o público ou, quem sabe,

para reduzir o custo envolvido no castigo direto e simples” (Amaral, 2010, p.

                                                                                                               1  Damásio, Celuy Roberta H. Reinserção. Revista espaço Acadêmico 53, out. 2005. Disponível em: [www.espaçoacademico.com.br].    

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87). A reabilitação, que na sociedade disciplinar primava pelos valores de

‘autodisciplina’ e adestramento de corpos produtivos e obedientes, desloca-

se a um meio de manejar o risco, reduzir o perigo e intensificar a segurança

pública. “O interesse primordial paira indeclinavelmente pelo ‘fortalecimento

eficiente do controle social’” (Idem, p. 88).

Os preceitos da nova penalogia americana se inscrevem e orientam

tais políticas, na medida em que estabelecem como objetivo, não mais a

punição e a reabilitação propriamente ditas, mas a identificação e gestão de

determinadas populações, tidas como perigosas ou rebeldes. Tendo em

conta, como há muito se sabe, que a prisão é incapaz de recuperar ou

“ressocializar”, “o que importa para esta racionalidade é a linguagem

probabilística aplicada às populações construídas” (Oliveira, 2001, p. 174),

fazendo com que a norma estatística se torne norma legal (Christie, 1997;

Oliveira 2001). Dá-se, assim, a categorização generalizada e generalizante

de indivíduos e populações e o exame clínico, psicológico e moral, próprios

ao processo de disciplinarização dos corpos na sociedade benthamiana,

analisada por Michel Foucault, cede espaço ao “gerenciamento e ao

pensamento organizativo e matemático”, como sinaliza Christie (1997, p.

178).

A passagem da disciplina ao controle, no campo da penalidade,

enquanto técnicas centrais de assujeitamento e exercício do poder,

atravessa, dessa maneira, um reordenamento teórico-estratégico, por um

lado, por meio do desenvolvimento de saberes voltados ao gerenciamento de

populações específicas, e, por outro lado e no mesmo sentido, uma

reformulação prática e também estratégica, consolidada em políticas como as

de tolerância zero, que se alimentam de discursos de segurança tal como a

nova penalogia americana.

Como sinaliza Passetti,

“a nova penalogia veio nos anos 90 fazer reverberar uma filosofia de que a melhor forma de reduzir a criminalidade é pôr os criminosos atrás das grades. Mesmo não havendo correlação entre delitos cometidos e pessoas encarceradas, a justificativa se baseia simplesmente no crescimento necessário das prisões, tendo por base suas superlotações. O argumento chega até soar humanista,

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pleiteando a construção de prisões com celas individuais. E o é segundo a prática produtiva das transparências e vigilâncias contínuas, atendendo em duas frentes aos interesses da indústria do controle eletrônico: construção de prisões e diversificação de produtos de monitoramento para sentenciados em regimes de liberdade assistida e semiliberdade ou probation” (Passetti, 2002, pp. 15-16).

A constatação do senador Magno Malta, de que o confinamento em

“espaço rígido” configura uma forma de controle “ultrapassada”, e

“insustentável” para o Estado indica a tendência de superação das técnicas

disciplinares por novos mecanismos de segurança, que permitem e regulam

a circulação das pessoas conferindo a elas certo grau de liberdade, como

mostra Foucault:

“Um dispositivo de segurança só poderá funcionar bem (...), justamente se lhe for dado certa coisa que é a liberdade, no sentido moderno que essa palavra adquire no século XVIII: não mais as franquias e os privilégios vinculados a uma pessoa, mas a possibilidade de movimento, de deslocamento, processo de circulação tanto das pessoas como das coisas. E é essa liberdade de circulação, no sentido lato do termo, é essa faculdade de circulação que devemos entender pela palavra liberdade, e compreendê-la como sendo uma das faces, um dos aspectos, uma das dimensões da implantação dos dispositivos de segurança” (Foucault, 2008, pp. 63-64).

Espera-se, portanto, que o desenvolvimento de dispositivos de

segurança, condicionados por inovações tecnológicas corrijam, ou anulem,

certos inconvenientes apresentados pelas já ultrapassadas técnicas

disciplinares, neste caso, o encarceramento. A situação caótica do sistema

penitenciário brasileiro, consolidada pelo problema da superlotação

carcerária, gerado, por sua vez, por políticas de tolerância zero, levou o

Estado a discutir e implementar novas formas de controle da criminalidade e

gestão de populações tidas como perigosas, por meio de mecanismos que

regulam os movimentos dos indivíduos, sem a necessidade do confinamento

em instituição fechada, que, por sua vez, revela-se medida custosa e pouco

eficiente. Diante de um problema posto, os mecanismos de segurança

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operados pelo Estado, associado ao capital privado, devem, na medida do

possível, remediá-lo, mantendo intacta a lógica punitiva.

O desenvolvimento e expansão de novas técnicas de controle da

criminalidade não acarretam, no entanto, na eliminação das antigas formas

proibitivas-legais ou prescritivas-disciplinares, pelas quais se enquadra a lei

por mecanismos de vigilância e correção de desvios. As tecnologias de

segurança, de acordo com Foucault (2008), não constituem, uma anulação

das estruturas jurídico-legais ou dos mecanismos disciplinares. Ao contrário,

“há uma verdadeira inflação legal, inflação do código jurídico-legal para fazer esse sistema de segurança funcionar. Do mesmo modo, o corpus disciplinar também é amplamente ativado e fecundado pelo estabelecimento desses mecanismos de segurança” (Foucault, 2008, p. 11).

Constata-se, assim, uma potencialização do controle sobre a

população configurada pelo acoplamento dos dispositivos de segurança às já

conhecidas técnicas disciplinares e jurídicas sustentadas pelas instituições de

confinamento e pelo código legal, respectivamente.

O que se verifica, por exemplo, pela constatação de que nunca se

encarcerou tanto quanto atualmente no Brasil. A exacerbação dos aparatos

de controle do crime e do sistema penal demonstram o êxito das políticas

punitivas no país. O argumento de que as chamadas medidas alternativas de

cumprimento da pena possibilitariam a substituição do cárcere frente às

evidências de sua ineficiência no trabalho de ressocialização de presos

revela sua falácia quando analisamos os índices de encarceramento no país,

mesmo após a implantação do monitoramento eletrônico como modalidade

de execução da pena.

De acordo com o Sistema Integrado de Informações Penitenciárias

(InfoPen) do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), vinculado ao

Ministério da Justiça, no ano de 2003, a população total de presos no sistema

penitenciário nacional era de 303.304 indivíduos. Já em junho de 2011,

aproximadamente um ano após a determinação judicial da utilização dos

dispositivos eletrônicos, a quantidade de presos no país saltou para 513.802,

deixando o Brasil com a 3a maior população carcerária do planeta, atrás

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apenas dos EUA e da China2. Os números referentes à população carcerária

nacional em dezembro de 2011 registram 514.582.

A quantidade absoluta de presos não cessou de crescer e a taxa de

indivíduos trancados nas unidades prisionais brasileiras relativamente à

população total do país apenas aumentou. O ano que se seguiu à

implantação do dispositivo não apresentou recuo algum nos índices de

encarceramento, contrariando a argumentação de juristas que pretendiam o

monitoramento via satélite, localização georreferenciada e intercomunicação

policial, como uma forma de se “desafogar” o sistema prisional.

Ao invés do suposto processo de substituição, o que se observa é uma

relação de complementaridade entre as medidas de monitoramento em meio

aberto e a prisão, e um inflacionamento das medidas de controle e punição,

instrumentalizando polícias e governos a um controle generalizado da

população. Casos infracionais que anteriormente não eram tomados como

dignos de medidas punitivas, por serem insignificantes, encontram agora

correspondentes penais respaldados por políticas de segurança pública.

Nota-se, assim, uma retomada das políticas de tolerância zero,

dilatando funções penais e policiais do Estado, em parceria com a sociedade

civil, por meio da produção e reprodução compartilhada da delinquência.

Todo e qualquer ato considerado criminoso ou infracional encontra uma

medida penal a ser aplicada, seja no interior dos edifícios prisionais, seja na

casa do infrator, seja ainda nas ruas das cidades.

O controle eletrônico identifica indivíduos e áreas de periculosidade,

categorizando-os em níveis gradativos. Àqueles considerados mais

perigosos, a prisão é ainda tida como imprescindível técnica de isolamento e

exclusão, necessários à segurança pública. Aos de baixa periculosidade,

reservam-se os monitoramentos contínuos e um esforço de correção

inclusiva, aplicada no interior da “comunidade”, como espaço demarcado de

concentração de potenciais infratores.

                                                                                                               2 Infopen – Departamento Penitenciário Nacional: http://portal.mj.gov.br (consultado em 12 de maio de 2012).

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