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Edição realizadasob o patrocínio da

SOCIEDADE CIENTÍFICADA UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA

DirecçãoJosÉ AUGUSTO CARDOSO BERNARDES

(da Faculdade de Letras - Universidade de Coimbra)

ANÍBAL PINTO DE CASTRO(da Faculdade de Letras - Universidade de Coimbra)

MARIA DE LOURDES A. FERRAZ(da Faculdade de Letras - Universidade Clássica de Lisboa)

GLADSTONE CHAVES DE MELo(da Faculdade de Letras - Universidade Federal do Rio de Janeiro)

MARIA APARECIDA RIBEIRO(da Faculdade de Letras - Universidade de Coimbra)

Secretaria-GeralA cargo do

Departamento de Enciclopédias da Editorial Verbosob a direcção de João Bigotte Chorão

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MARINEITI (Filippo Tommaso)1. Em Portugal - A divulgação, em

Portugal, dos e.scrit?s teóricos de FilippoTommaso ~annettI (Alexandria, Egipto,1874-BellaglO, 1944) raras vezes se limi-tou a uma mera translação, logo tendodespertado um notável interesse críticointimamente associado ao intuito de es~tabelecer Contactos directos com o líderdo movimento futurista italiano.. A publicação do Manifeste de Fenda-

tton ~u Futurisme no jornal parisienseLe Figaro, a 20.2.1909, não tardou a sern?ticiada. pela imprensa portuguesa. Seisdias volvidos, na crónica de Paris envia-

da ao Jornal de Notícias por Xavier deMatos (o mesmo jornalista que, na edi-ção de 6 de Abril noticiará a representa-ção do Roi Sombace no Théâtre deI'CEuvre), o evento é apresentado, po-rém, como uma «blague carnavalesca».Em 5 de Agosto do mesmo ano, Luís--Francisco Bicudo (um aristocrata mi-caelense que passara grande parte do anode 1909 em Itália) publica, em a Diáriodos Açores, uma tradução parcial dessetexto, acompanhada por uma entrevistacom o próprio M. Segue-se-lhe uma no-ta crítica, que termina com a sugestão deque os poetas micaelenses enviem osseus textos para a rev. de M., Poesia. Al-guns anos volvidos, também Mário deSã-Carneiro, em carta de Paris a Fernan-do Pessoa, com data de 13.8.1915, virá aexprimir o propósito de estabelecer con-tactos com essa rev., aventando a hipóte-se de uma colaboração portuguesa.O carácter ecléctico de Poesia, posto emrelevo pelo poeta português, será even-tualmente um aspecto que a aproxima dearfeu, o que o leva a recomendar a Fer-nando Pessoa o respectivo envio à van-guarda italiana. Mas os projectos de ,San-ta-Rira são ainda mais ousados. E emnome do próprio M. que pede a Sá--Carneiro (carta a Fernando Pessoa de13.7.1914) que arranje um editor portu-guês para a publicação dos seus manifes-tos. Stegagno Picchio revela, além disso,que existe uma correspondência inéditaentre o futurista italiano e Raul Leal.

Quando, a 14.4.1917, Alrnada Negrei-ros profere a «Primeira conferência futu-rista», no Teatro República, são lidos,além do seu Ultimatum e do ManifestoFuturista da Luxúria, de Valentine deSaint-Point, os manifestos de M. Music--hall (ou seja, Il teatro di varietà, pelaprimeira vez publicado em Lacerba, a1.9.1913) e Tuons le clair de lunel (Ucci-diamo il chiaro di luna!, dado aos prelosem Poesia, 7-8-9, 1909). «Consegui, ins-pirado na revelação de Marinetti e apoia-do no genial optimismo da minha juven-tude, transpor essa bitola de insipidezem que se gasta Lisboa inteira», afirmaAlmada, comentando o evento nas pági-nas de Portugal Futurista. Nesta rev.(1917), fica contida uma sinopse de al-guns dos principais manifestos marinet-

tianos (Manifesto tecnico della letteratu-rafuturista, 1912; Destruzione dellasintassi - Imaginazione senza fili - Pa-role in libertà, 1913; Lo splendore geo-metrico e meccanico e la sensibilità nu-merica, 1914), traduzida e organizada,com notável argúcia interpretativa, porBettencourt Rebelo. Nela são integra-dos, ademais, passos de escritos teóricosque dizem respeito à pintura e à escultu-ra de autoria de outros membros do gru-po futurista. Mas M. é também uma im-portante referência para os artistasplásticos. Além de Santa-Ri ta e de Alma-da Negreiros, recorde-se Amadeu deSousa Cardoso, que, na entrevista queconcede a a Dia de 5.12.1916, parafra-seia vários passos de Fondazione e Mani-festo del Futurismo e de outros textosmarinettianos, sem deixar de pôr em rele-vo, todavia, o eclectismo do seu trabalho.

É neste contexto que surge uma sériede manifestos de teor vanguardista, cujagénese não pode ser cabalmante inter-pretada à margem do entusiamo suscita-do pelos escritos teóricos de M., de entreos quais se destacam o Manifesto Anti-'-Dantas (1915) e o Ultimatum Futuristaàs Gerações Portuguesas do Século XX(1917) de Alrnada; Negreiros - Dantas.Uma Página para a História da Litera-tura Nacional (1916), de Francisco Levi-ta; e o Ultimatum, de Álvaro de Campos(1917). A margem de qualquer tipo deseguidismo, o ideário marinettiano éadaptado à realidade portuguesa. Numasociedade que permanecera alheia àsgrandes inovações da era industrial, a es-tética da máquina não merece especialrelevo. De outro modo, já Stegagno Pie-chio notou uma possível influência daretórica dos manifestos dos anarquistasdo fim do séc. XIX sobre os ultimatun(s)de Alrnada e de Campos. Mas, no mani-festo do estudante de Coimbra FranciscoLevita (a reacção de um vanguardista aum outro vanguardista, Alrnada) são uti-lizados surpreendentes efeitos gráficosde cariz marinettiano. Aliás, se as durascríticas desferidas por Almada, no seuultimatum, contra a atávica passividadedos portugueses têm por contraponto aapologia da guerra, a proclamação dacriação científica do super-homern leva-da a cabo por Alvaro de Campos assen-

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ta, além do mais, na abolição de trêsdogmas (dogmas da personalidade, dopreconceito da individualidade e do ob-jectivismo pessoal) na qual ficam conti-dos, in nuce, os fundamentos da hetero-nímia pessoana.

O interesse suscitado pelos manifestosteóricos de M. nem sempre se sobrepôs,porém, à atenção merecida pela poesiafuturista. São sintomáticas, a este propó-sito, as impressões de leitura do voI. Ipoeti [uturisti (uma antologia de poemasescritos em verso livre, que se abre, cu-riosamente, com uma série de textos teó-ricos de M.: excertos de Movimento po-litico futurista, o Manifesto tecnico dellaletteratura futurista, ao qual se segueRisposte alie obiezioni, e a apresentaçãoda exposição de pintores futuristas emParis, seguida pelo manifesto Il verso li-bero, de Paolo Buzzi) registadas por Má-rio de Sã-Carneiro na mesma carta de13.8.1915. Não são nem esses escritosteóricos nem o uso do verso livre quefascinam o emigrado parisiense, mas«uns Fu fu ... cri-cri ... corcurucu ... Is--holá ... , etc., muito recomendáveis».Apesar de Sá-Carneiro, em Manicure,incluir o nome de M. nos seus grafismos,as aproximações são sempre feitas comcautela. Quando diz a Femando Pessoa,em carta de 20.6.1,914, que a partir domomento em que Alvaro de Campos es-creveu a Ode Triunfal M. é um grandehomem, visto que o Futurismo produziua sua maravilha, antepõe, aos objectivosdo movimento, o valor do poema.

M. não teve, em Portugal, um grupode seguidores ortodoxos. O isolamentoda cultura portuguesa em relação à Eu-ropa e o seu arreigamento a costumesancestrais, juntamente com a hostilidadecom que as instituições da época aco-lhiam qualquer proposta que pisasse orisco da ousadia, não propiciavam umareacção positiva ao seu arrojado progra-ma. Além disso, faltou aos vanguardistasportugueses o mecenato do qual pude-ram auferir muitos movimentos de pon-ta, e que os futuristas italianos encontra-ram no próprio M., possuidor de umaconsiderável fortuna pessoal. Não quere-rá isto dizer, de forma alguma, que a re-cepção do seu ideário seja redutível a umfenómeno de exíguos confins. Os ecos

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das suas propostas não se fizeram apenassentir no ambiente lisboeta, mas tambémnos meios da boémia coimbrã e no Al-garve, onde um grupo de admiradores deM., reunidos em torno do jornal O He-raldo, levou a cabo várias actividades deteor vanguardista. Aliás, será lícito per-guntarmo-nos até que ponto um movi-mento que declara guerra às escolas po-derá fazer escola.

As propostas de M. tiveram vastas re-percussões na literatura de todos os paísesda Europa Ocidental. A sua influência so-bre Apollinaire e a cultura francesa, so-bre o Expressionismo alemão e sobre oDadaísmo foi decisiva. Todavia, em ne-nhum destes casos o seu programa foirecuperado em bloco, erigindo-se, deoutra forma, numa espécie de propulsordas vanguardas europeias. Sob este pon-to de vista, a literatura portuguesa nãofoge à regra, revelando-se mesmo umcampo muito fértil - entre o drama in-terior de Mário de Sá-Carneiro, a hete-ronímia pessoana, o simultaneísmo deAlmada, o interseccionismo, a poesia vi-sual, o messianismo. Na verdade, o no-me do líder do Futurismo italiano é in-dissociável não só da trajectória descritapelo Modernismo bem como de outrosmovimentos de vanguarda que surgiram,em Portugal, ao longo do séc. xx.

A constatação de que M. não é, nestecontexto, uma referência ocasional ficabem patente nas reacções suscitadas pelasua acomodação ao status quo, naquelafase da sua biografia intelectual em quesupera o período heróico do Futurismo.O seu ingresso na Academia de Itália,em Março de 1929, é acolhido com iro-nia acre pelo Álvaro de Campos de Ma-rinetti Académico: "Lá chegam todos, láchegam todos ... » Quando, finalmente,em Novembro de 1932, visita Portugal, érecebido por Júlio Dantas (o presidenteda Academia das Ciências, destinatáriodo Manifesto Anti-Dantas), Adães Ber-mudes (o discípulo de Blondel que con-tinuou a praticar uma arquitecturaBeaux-Arts até meados do séc. xx) e An-tónio Ferro (cuja acção, enquanto inte-lectual ao serviço do Estado Novo, deixatransparecer, aliás, os elos que manteve,na sua juventude, com a vanguarda ita-liana). o célebre artigo inrirulado "Um

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ponto. no i do Futu~ismo», Almada N~-greiros logo denuncia que «o que Marl-netti [ ... ] trouxe anteontem às. Belas--Artes é velho de 23 anos e um dia, nemmais nem menos», acusando o líder doFuturismo italiano, em nome dos futu-ristas portugueses, de ignorar que "Por-tugal é o único país latino, além .da pró-pria Itália, onde houve movimentofuturista».

2. No Brasil - Centro de grande cir-culação financeira, em função do café eda imigração, cidade tentacular, em cres-cimento vertiginoso, desde o séc. XIX,como assinalaram alguns visitantes es-trangeiros, São Paulo tomar-se-ia o cen-tro irradiador das ideias de Marinetti,embora não tenha sido exactamente onome do escritor que na maioria das ve-zes ganhou espaço nos jornais e na bocado povo, mas o seu Futurismo, que foimenosprezado, olhado com reservas,abertamente saudado e tomado comobandeira, acusado de reducionismo, as-sociado à política. Serão os escritorespaulistas - notadamente Oswald deAndrade, Menorti del Picchia, Mário deAndrade - mais do que os do Rio de Ja-neiro (onde é de destacar Graça Aranha),a discutir M. e o seu ideário. No entan-to, pode-se dizer que todo o Brasil o co-nheceu. Gerador de grandes debates an-tes da Semana de Arte Moderna (1922),o Futurismo, pelo seu próprio carácterinterdisciplinar, de início recebeu muitasatenções dos que nela tomaram parte,para, depois, ir sendo deixado de ladopor uns e vir ainda à tona na obra de ou-tros, sem que, no entanto, nunca tivessesido integralmente assumido por nin-guém, facto que só pode ser percebidoquando se observam as tomadas de posi-ção dos intelectuais e da imprensa antes,durante e depois da Semana de Arte Mo-derna, cujos participantes, aliás, aluga-ram o Teatro Municipal de São Paulopara uma Semana Futurista.

Oswald de Andrade, que tomara con-tacto com as ideias de M. na Europa,trouxe-as na bagagem juntamente comOutras tendências artísticas, quando, em1912, voltou ao Brasil, e Eduardo Berra-relli, em 1914, publicava em O Estado deS~o Paulo, o artigo «As Lições do Furu-nsmo». Já no ano de 1917, importante------~--------

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na génese do Modernismo brasileiro, apalavra futurismo aparecia no prefáciodo livro Carrilhões, de Murilo Araújo,para justificar o seu não discursivismo eo seu espírito de concisão, mas o conteú-do da obra nada tinha de futurista, co-mo, aliás, reconheceria mais tarde o pró-prio autor, embora Mário da Silva Brito,dos melhores historiadores do movi-mento modernista no Brasil, tenha visto,na" ota Indispensável» apensada porMurilo Araújo ao livro, ligações com asideias de M.

Antes da Semana de Arte Moderna, eprincipalmente, por um acontecimentodo ano de 1917 - a exposição de pinturada jovem Anita Malfatti -, o Futurismofoi muito discutido, embora pouco com-preendido. Futurista, mesmo entre os in-telectuais, era tudo o que se não com-preendia bem, o oposto à tradição. Seescritores ligados ao Simbolismo (casode Murilo Araújo) e outros que entãoiniciavam a ele estavam abertos, aquelesque ainda permaneciam reverentes aoRealismo, rechassavam-no. Foi o caso deMonteiro Lobato, que ao ver os quadrosde Anita, escreveria n'O Estado de SãoPaulo (10.12.1917): "Futurismo, cubis-mo, impressionismo e 'tutti quanti' nãopassam de outros tantos ramos de artecaricarural». Referindo-se à mesma ex-posição, a Revista do Brasil (possiv 1-mente com a pena de Nestor RangelPestana) tentaria elogiar Anita, emboralamentando que o seu talento tivesse si-do posto ao serviço das «extravagânciasdo futurismo», uma «pseudo-escola».

Oswald de Andrade defenderia a es-treante dos ataques de Lobato, alegandoque a sua arte era «a negação da cópia, aojeriza da oleografia» e atribuindo a máreceptividade obtida ao atraso culturaldo público; e não falaria em futurismo,porque realmente não era o caso. Mas,nas suas Memórias Sentimentais de JoãoMiramar, escritas em 1916 e das quaisalguns capítulos seriam publicados em1917, na rev. A Cigarra, podem ser vis-tOSvários preceitos do futurismo de M.:a temática cosmopolita; a destruição doespírito academicista e o enterro, via pa-ródia, da própria academia; o elogio davelocidade, a «metáfora lancinante»; oneologismo; as palavras em liberdade.

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Menotti del Picchia hesita diante donovo. Nas «Notas de Arte» (jornal doComércio, 30.7.1920), embora não de-fendesse totalmente o credo de M., diziaque o grupo futurista parecia «enxergarmais que os outros»; em «Arte Nova»(Revista do Brasil, Jul. 1920), condenariao «delírio do último», ao passo que de-fendia uma visão dinâmica, da arte emBrecheret, premiado no Salão de Outo-no em Paris, reconheceria «a bandeira dofuturismo paulista». (<<AVitória de UmPatrício», Correio Paulistano,10.11.1920); num comentário feito sobreuma outra exposição de Anita Malfatti,agora no Clube Comercial de São Paulo,com o pseudónimo de Hélios, ele diriano Correio Paulistano (29.11.1920) queAnita rompeu com a «nossa sonolênciade redardatários e paralíticos da pintu-ra», mas, ao mesmo tempo, reportando--se aos ataques de Lobato à pintora, de-duziria que ele investiu contra «a castaarrelienta e delirante dos futuristas», oque parecia afastar Anita do Futurismo,e ao mesmo tempo condená-lo.

O Futurismo era, assim, o termo usa-do para designar tudo o que fosse contrao estabelecido (e a posteridade pôde ve-rificar essa ocorrência geralmente asso-ciada a um carácter depreciativo, na lin-guagem comum do p au lis t an o emparticular e do brasileiro medianamenteculto em geral). Sílvio Whitaker Pentea-do, aliás, dá conta dessa generalização,ainda tendo como assunto a pintura deAnita Malfatti, da qual afasta o rótulo de«futurista», observando que havia umatendência em chamar assim a toda a ma-nifestação «mais ou menos nova e origi-nal» (A Gazeta, 30.11.1920).

Talvez em decorrência dessa generali-zação, que opunha passadistas e futuris-tas, querendo dizer passadistas e moder-nistas, o próprio Oswald de Andrade,embora conhecedor das teorias de M.,tenha classificado, num artigo do Jornaldo Comércio (27.5.1921), corno «O meupoeta futurista», O seu então amigo Má-rio de Andrade, em função de versosainda inéditos de Pauliceia Desvairada,livro escrito em 1920 mas só publicadoem 1922 e cuja abertura é o famoso«Prefácio Interessantíssimo», no qualMário reage contra essa classificação de

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Oswald: «Não sou futurista (de Mari-netti) [Oo.] Disse e repito-o». Ligando omovimento ao nome do italiano, mas, aomesmo tempo confessando a sua parcialadesão, o escritor aludia talvez à cisãooperada entre os italianos desde 1914,quando Soficci, Papini e Palazzeschi as-sinaram «Futurismo e Marinettismo»,defendendo as bases teóricas do primeiroe atacando o dogmatismo, o chauvinis-mo, o moralismo, o profetismo e as ba-ses naturalistas do segundo. Antes de es-crever a Pauliceia, Mário tomaracontacto com Verhaeren e GustaveKahn, considerados por M. precursoresdo Futurismo; o poema «Villes Tentacu-laires» de Verhaeren, que informa o 11.0propósito do «Primeiro Manifesto Futu-rista», inspirou-lhe o texto sobre SãoPaulo, como o próprio escritor confessa,em O Movimento Modernista (1942).Daí talvez o facto de a sua poesia fugir àrima, aos ritmos estereotipados e tomarliberdades sintácticas, o que - notavano «Prefácio Interessantíssimo» - nãoera uma prática nova. Por outro lado,ainda no «Prefácio», Mário de Andraderepudiava o «futurismo funambulescodas Europas» e o «futurismo vago doBrasil». Aliás, também em 1921, antes daprópria Semana de Arte Moderna, por-tanto, Motta Júnior prevê o fim da tira-nia espiritual de M. (<<AModernaOrientação Estética», Jornal do Comér-cio, 21.11.1921).

Durante a Semana, porém, as ideias dofuturismo marinettiano andavam, que-rendo ou não os conferencistas, nas suasbocas. Menotti del Picchia, na sua pales-tra de 15 de Fevereiro, renegava o Futu-rismo, mas acabava por adoptá-lo, fossepela referência à velocidade, fosse emtrechos bastante semelhantes aos textosde M. Graça Aranha se não adoptava onome de M. e o seu Futurismo, tambémos não renegava. Já Klaxon (1922), pri-meira publicação modernista e que pos-sui vários pontos de contacto com o Fu-turismo de M. esclarecia no primeironúmero, à guisa de manifesto: «Klaxonnão é Futurista. Klaxon é klaxista». Talatitude significava uma posição de origi-nalidade, uma tentativa nacionalizantedo Modernismo brasileiro que já se co-meçava a delinear.

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Em 1923, Mário de Andrade, num ar-tigo que publica na Revista do Brasil, fa-la em «incidente futurista», «uma doençagrave, gravíssima», que teria durado demeados de 1920 a Março de 1922, tra-zendo «febres» e «delírios».

Em 1924, Oswald de Andrade escreviao «Manifesto da poesia pau brasil», reco-nhecendo o trabalho da Semana (que eleinsiste em relacionar com o futurismo,«um divisor de 'águas'), mas dando a en-tender que esta fase estava ultrapassada.O seu texto, no entanto, ainda surgebem informado pelo cubo-futurismo:além da apologia da geometria, das li-nhas e cores, do sentido puro, ele con-tinua a falar no reclame, nas turbinaseléctricas, nas usinas prod utoras, noscampos de aviação militar, na ciência, narepulsa às bibliotecas. A própria estru-tura do «Manifesto» tenta fugir ao queM.' chamou «o período latino» e abolirquanto possível a sintaxe (embora o fac-to de ser um manifesto limite bastanteesta pretensão).

Também em 1924, Menotti deI Pie-chia, contrariando as ideias de Oswald,acabaria por tornar-se seguidor do Futu-rismo de M. Juntamente com CassianoRicardo e Plínio Salgado (antigo parna-siano convertido ao futurismo, pela viado nacionalismo), enveredaria por umcaminho repleto de radicalizações, repu-diando o Futurismo como movimentode origem estrangeira e cosmopolita,mas dele se aproximando pelas estraté-gias adoptadas e pelo carácter político dedireita, que tomou o Verde-Amarelismo,movimento que resultaria na «revoluçãoda Anta», simbiose político-literária as-sumidamente integralista. Cassiano,aliás, chamaria M. de «semeador de bele-za e mocidade» num artigo publicadopelo Correio Paulistano (18.5.1926), di-zendo que, embora de directrizes dife-rentes das do futurismo italiano, as li-ções de M. estavam presentes no espíritoque animava a nova literatura brasileira.Mário de Andrade, porém, continuava asua busca de um caminho próprio e in-sistia em não ser futurista, como já afir-mara em 1921. N' A Escrava que nãoÉ Isaura (1925), tendia mesmo para umapoesia universalizante e com lugar para osentimentalismo. E não deixava de ano-

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tar: «Marineui, que muitos imaginam ocruciferário da procissão, vai atrasadote,preocupado em sustentar o seu futuris-mo, retórico às vezes, sempre gritalhão».O livro seria, como lhe chamou WilsonMartins, «um panfleto anti-marinertiano».

Se a partir de 1924 já é possível notarum afastamento geral dos modernistascom relação ao futurismo, e sobretudocom relação ao dogmatismo de M., nãoseria assim com a imprensa e com GraçaAranha. O jornal carioca A Noite,p. ex., quis publicar uma «Semana Futu-rista» e chegou a anunciá-la. Mário deAndrade só aceitou participar e convidaroutros escritores, depois de lhe mudar onome para «Semana Modernista». Na sé-rie de artigos que a compõe, Sérgio Mil-liet reconhece o trabalho de M., masconsidera-o como ultrapassado (<<OmêsModernista-tendências»). Graça Aranha,que aderiu ao Futurismo enquanto es-pírito aberto ao que fosse jovem e revo-lucionário, que académico rompeu coma Academia Brasileira de Letras, a13.5.1926, recebeu M. no Rio de Janeiro,reconhecendo nele o emancipador da es-tética, o criador da beleza da velocidade,o renovador político, «patriota, naciona-lista, militarista e imperialista» e prefa-ciou Futurismo. Manifestos de Marinettie seus Companheiros. Enquanto isso, oescritor italiano reconhecia no próprioAranha (e em nenhum dos paulistas) ointrodutor do futurismo no Brasil e viano Rio de Janeiro uma cidade futurista,o que incitava a rivalidade entre a inte-lecrualidade carioca e a paulista. Cobertode vaias no Teatro Lírico (RJ), em Santose em São Paulo (cujo progresso tambémelogiava e onde foi «abandonado» pelosmodernistas), quase sem conseguir exporo seu pensamento, onde não havia, defacto, nada de novo a ressaltar, M. usariatambém o rádio como veículo de divul-gação. E fosse pela sua aparência físicapassadista, fosse pelas suas ideias sobrearte e sobre política (associando futuris-mo e fascismo e elogiando Mussolini), aimprensa iria criticá-lo fortemente, dedi-cando-lhe páginas e páginas: ele - fossepelo escândalo, fosse pela sua grande ca-pacidade retórica, fosse pelo contrasteentre o esperado e o visto - podia não

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ser uma novidade, mas ainda fazia notí-era,

Mário de Andrade não compareceu àsconferências do escritor italiano em SãoPaulo, considerando-o superado e repe-titivo, «delegado do fascismo» mas ofe-receu-lhe livros seus com dedicatórias desimpatia e reconhecimento, e foi visitá--lo, sob o pretexto de «falta de educa-ção» para com quem havia sido «desde aItália gentilíssimo comigo». Embora ofurtar-se ao encontro com M. pudesseter sido motivado pelo orgulho paulista-no ferido de Mário ou pelo desejo denão ser rotulado de futurista, a verdade éque ele talvez estivesse, com essa atitude,homenageando, para usar palavras suas,um «Mestre do Passado» ou «as teorias--avós que bebeu».

POI;outro lado, ao publicar Macunaí-ma, em 1928, Mário dá à pá-de-cal teóri-ca e a sério que A Escrava que nãoÉ Isaura representa com relação ao Fu-turismo uma nova versão, mas não con-segue aboli-lo por inteiro das suas preo-cupações: o elogio de São Paulo comocidade tentacular, cosmopolita, e da má-quina, feito por meio da paródia, e o«herói da nossa gente», cansado e desilu-dido desta vida, que vira estrela, levandopara o céu, numa solução antropofágica,alguns elementos da civilização, podemser a deglutição do Futurismo, o seu fune-ral carnavalizado, a adopção de uma pos-tura nacionalista e, como chama a atençãoAnnateresa Fabris, a opção pelo ócio cria-dor, numa estratégia anti-rnarinettista;mas são também - e ainda - um diálo-go com M.BlBLlOGRAFIA: De 1 - Luciana Stegagno Pie-chio, «Marinerti et le fururisme mental des portu-gais-, in La méthode philologique. Écrits sur la liué-rature portugaise avec une préface de Romanjakobson. I. La poésie, Paris, 1982; Rita Marnoto,-Levira, Almada e Dantas. O feitiço contra o feiti-ceiro», in A Cidade. Revista Cultural de Portale-gre, n." 9, 1994. De 2 - Marta Rossetti Batista, Te-lê POrto Ancana Lopez, Yane oares de Lima,Brasil: I' Tempo Modernista-1917129, São Paulo,Instituto de Estudas Brasileiras, 1972; Pierre Rivas,-Futurisme et madernisme au Brésil. De l'incidentfururisre aux ideólagies rotalitaires», Presence deF. T. Marinetti. Actes du Col/. Intern. tenu àUNESCO, Paris, L'Âge d'Homme, 1982; WilsanMartins, -Mária Marinetti, Mallarmé-, A Literatu-ra no Brasil. O Modernismo, São Paulo, Cultrix,19; Jarge Schwartz, Vanguarda e Cosmopolitismona Década de 20 - Oliuêrio Girando e Oswald deAndrade, São Paulo, Perspectiva, 1983; Annateresa

Fabris, O Futurismo Paulista, Hipóteses para O Es-tudo da Chegada da Vanguarda ao Brasil, São Pau-la, Perspectiva, 1994.

Rita Marnoto 1Maria Aparecida Ribeiro 2