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Universidade Estadual de Maringá 27 e 28 de abril de 2010 1 EMANCIPAÇÃO HUMANA E A AMBIGUIDADE PRESENTE NO HOMEM GREGO NA FORMAÇÃO DO HOMEM CÍVICO: UMA PROPOSTA DE SÓFOCLES EM ÉDIPO REI. CZADOTZ, Regina Celia Rampazzo (UEM) PEREIRA MELO, José Joaquim (Orientador/UEM) INTRODUÇÃO O presente trabalho tem como objetivo estudar a peça Édipo Rei, de Sófocles, na busca de compreender a relação estabelecida entre os deuses e o homem, após a emergência da polis, unidade independente e autônoma que possibilitou o desenvolvimento de uma individualidade e o sentimento de justiça terreno, presente no cidadão grego, no período de transição entre a Grécia Arcaica e a Clássica, século V e IV a.C., características que marcaram a formação do homem cívico. SURGIMENTO DA PÓLIS NO PERÍODO DE TRANSIÇÃO ENTRE A GRÉCIA ARCAICA E A CLÁSSICA A falta de comunicação, devido ao relevo montanhoso, fez parte da dinâmica que possibilitou o surgimento da cidade-estado. Compreende-se, no entanto, que alguns fatores psicológicos trazem explicações sobre sua organização política. Conforme assinala Pereira (1997): [...] é que a insegurança posterior à invasão dórica e a falta de um poder central forte que defendesse os homens os levou a unir-se em pequenos territórios. Qual terá sido, todavia, a causa psicológica da formação desse regime? Como observa EHRENBERG, era costume antigamente dizer que o particularismo grego impedia a formação de uma nação unificada; mais recentemente entendeu-se que cada polis era uma pequena nação, e a Hélade uma unidade supranacional, como a Europa moderna em relação aos vários países independentes que a compõem, mas nenhuma destas explicações é perfeitamente exacta, pois o Pan- Helenismo desperta como força política, é um sinal de fadiga e de desejo de paz ( PEREIRA,1997, p.171e172).

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EMANCIPAÇÃO HUMANA E A AMBIGUIDADE PRESENTE NO HOMEM

GREGO NA FORMAÇÃO DO HOMEM CÍVICO: UMA PROPOSTA DE

SÓFOCLES EM ÉDIPO REI.

CZADOTZ, Regina Celia Rampazzo (UEM)

PEREIRA MELO, José Joaquim (Orientador/UEM)

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como objetivo estudar a peça Édipo Rei, de Sófocles, na busca

de compreender a relação estabelecida entre os deuses e o homem, após a emergência

da polis, unidade independente e autônoma que possibilitou o desenvolvimento de uma

individualidade e o sentimento de justiça terreno, presente no cidadão grego, no período

de transição entre a Grécia Arcaica e a Clássica, século V e IV a.C., características que

marcaram a formação do homem cívico.

SURGIMENTO DA PÓLIS NO PERÍODO DE TRANSIÇÃO ENTRE A GRÉCIA

ARCAICA E A CLÁSSICA

A falta de comunicação, devido ao relevo montanhoso, fez parte da dinâmica que

possibilitou o surgimento da cidade-estado. Compreende-se, no entanto, que alguns

fatores psicológicos trazem explicações sobre sua organização política. Conforme

assinala Pereira (1997):

[...] é que a insegurança posterior à invasão dórica e a falta de um poder central forte que defendesse os homens os levou a unir-se em pequenos territórios. Qual terá sido, todavia, a causa psicológica da formação desse regime? Como observa EHRENBERG, era costume antigamente dizer que o particularismo grego impedia a formação de uma nação unificada; mais recentemente entendeu-se que cada polis era uma pequena nação, e a Hélade uma unidade supranacional, como a Europa moderna em relação aos vários países independentes que a compõem, mas nenhuma destas explicações é perfeitamente exacta, pois o Pan- Helenismo desperta como força política, é um sinal de fadiga e de desejo de paz ( PEREIRA,1997, p.171e172).

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Esta busca de paz, destacado por Pereira (1997), como característica surgida pela

forma do homem produzir a vida, neste caso, a guerra, desencadeou bases para o

aparecimento do período helenístico, tempo caracterizado pela morte do herói e o

nascimento do cidadão grego, que buscava, na polis, as bases para a sua organização

política, social e religiosa.

A polis é um sistema de vida, e, por conseqüência, forma os cidadãos que nela habitam.... Uma certa extensão territorial, nunca muito grande, continha uma cidade, onde havia o lar como fogo sagrado, os templos e as repartições dos magistrados principais, a ágora, onde se efectuavam as transacções; e, habitualmente, a cidadela, na acrópole. A cidade vivia do seu território e a sua economia era essencialmente agrária. Cada uma tinha a sua constituição própria, de acordo com a qual exercia três espécies de actividade: legislativa, judiciária e administrativa. Não menores eram os deveres para com os deuses, pois a polis assentava em bases religiosas, e as cerimônias do culto eram ao mesmo tempo obrigações civis, desempenhadas pelos magistrados. (PEREIRA, 1997, p.173).

A emergência da polis possibilitou ao cidadão grego a formação da sua nova

organização social, isto é, anteriormente o que se tinha era uma sociedade estruturada

no patriarcalismo, ou seja, sociedade constituída por homens de uma aristocracia que

vivenciavam o costume da vida arraigada na terra. Época do líder familiar, que buscava

segurança nos muros dos palácios reais, bem como no mito e nos deuses, a

tranquilidade e os direcionamentos da vida, na busca da continuidade da organização da

ordem social estabelecida a qual defendiam com um heroísmo o que caracterizou a

mentalidade do período que se convencionou chamar de Grécia Arcaica.

O período micênico ( séculos XVI a XII a. C.) apresenta o surgimento de uma sociedade ligada às grandes civilizações do Mediterrâneo oriental, integrada por com seguinte, ao mundo oriental. Nessa época, ocorreu o apogeu do mundo palaciano e aristocrático. A sociedade apoiava-se no mito e concentrava na figura do rei divino os poderes administrativos, econômicos, militares e religiosos. Surge o soberano absoluto, habitante de uma fortaleza cercada de muros cuja peça central era a sala do trono. (COSTA, 1988, p.6).

As mudanças que ocorreram na estrutura da Grécia Arcaica que, ocasionou o

surgimento da Grécia Clássica, decorreram de fatores econômicos, sociais e políticos

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que se contrapuseram as formas de organização social vigentes. Neste movimento,

destacam-se homens que conseguiram acumular bens materiais, a exemplo daqueles que

enriqueceram com o advento do comércio marítimo.

Essa época (século XII a.C.) caracterizou-se, principalmente, pela dissolução do poder absoluto simultaneamente à institucionalização de uma estrutura de poder que compreendia quatro domínios: religioso, o guerreiro, o agrícola e o mágico. Momento em que a monarquia cedeu lugar à aristocracia, é um período de transição onde o mágico ligava-se as forças do fogo e onde as forças do artesão serviu para expressar a idade do ferro (COSTA, 1988, p.8).

Esta dinâmica criou condições para a formação da cidade-estado, deve-se, não apenas

ao desenvolvimento do comércio, mas, também, constituiu-se em função das

necessidades presentes na própria condição de vida do grego, provocando uma série de

migrações, na medida em que ocorria o fenômeno da superpopulação.

A fundação era precedida de todo um ritual, devidamente planeado. Depois de consultar o oráculo ( geralmente o de Apolo em Delfos), um grupo de cidadão abandonava sua terra, sob a direção de um colonizador ( oίκιστης), levando consigo fogo sagrado do lar da cidade, para fundar longe dali uma colónia( άποικία = “ lar distante”). Este chefe da expedição distribuía as terras e recebia mais tarde culto, na qualidade de fundador. A colónia herdava da cidade - mãe (µητρόπολις), além do fogo sagrado, a religião, instituições, calendário, dialecto, alfabeto. Mas não lhe incubiam obrigações tributárias (salvo raríssimas excepções), nem tinha quaisquer outros deveres políticos para com a fundadora. Os laços existentes eram de ordem moral. (PEREIRA, 1997, p.175 e 176).

As novas colônias surgidas reforçavam o desenvolvimento do comércio e, o avanço

nesta área, levou ao surgimento de algumas necessidades, até então não vivenciadas. A

utilização da moeda, o reaparecimento da escrita que, neste momento, tinha como

objetivo o registro das leis públicas necessárias à organização da vida da polis,

possibilitaram ao cidadão grego manifestar seus interesses e a reivindicar seus direitos

cívicos e políticos. Nesse cenário aparecem grupos que se destacaram socialmente

pelas suas posses, abalando as antigas relações gentílicas, que passaram a dar lugar às

novas formas de vida estabelecidas pela legislação da polis.

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O herói hábil do manejo das armas, das estratégias de guerra, já não correspondia às

exigências que estavam surgindo na polis democrática. A morte do guerreiro, cortesão,

e, temente aos deuses, suscitava o aparecimento de um novo modelo de homem.

Cidadão com capacidade de participar da assembleia e, assim, decidir sobre os rumos da

sua existência.

A polis, a formação da cidade estado, consolidou-se em um dos instrumentos

fundamentais para o desenvolvimento de todo o pensamento da Grécia Clássica, surgida

e organizada mediante as condições de sobrevivência na forma do homem produzir a

vida.

O DESENVOLVIMENTO DO INDIVIDUALISMO E O SENTIMENTO DE

JUSTIÇA RELACIONADO AO TRABALHO DO HOMEM

Neste processo de desenvolvimento das cidades, a Grécia, e de forma especial Atenas,

passou por uma série de transformações que marcaram e influenciaram algumas

medidas relacionadas à política, isto é, os metecos e os escravos livres, embora não

apresentassem a condição de cidadãos, tiveram uma significativa participação nas

transformações que afligiram o mundo grego. Pois, a efetiva colaboração dos mesmos

no campo do comércio lhes abriram as portas para que o cidadão grego, provenientes da

aristocracia, lhes concedesse a legalidade dos seus contratos e profissões que

realizavam.

Metecos e libertos, apesar do tratamento discriminatório a que eram submetidos, amavam Atenas. Consideravam-na sua pátria e dela se orgulhavam. Foram eles que lhe formaram a substância e a fôrça. Dê suas fileiras saíram os grandes médicos, os grandes engenheiros, os grandes filósofos, os grandes dramaturgos, os grandes e pequenos artistas. O ateniense que, fiel à vocação do ócio, procurava um bom administrador, um bom capataz, um bom sapateiro, um bom professor particular etc., entre eles os encontrava (MONTANELLI, 1968,p.112).

As condições sociais de existência, promoveram o aumento da população das cidades

marítimas da Jônia, bem como o sentimento de liberdade e, consequentemente, a

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confiança nos homens de ampliarem as suas iniciativas de atuação e de crescimento

pessoal. Portanto, o nascimento de uma nova forma de vida baseada na auto confiança

e na necessidade de superação possibilitou ao grego buscar em si mesmo

direcionamentos sobre a sua existência no mundo.

No entanto, esta liberdade surgida no decorrer das transformações na forma de produzir

a vida e a ruptura com os ideais tradicionais, presentes no modelo aristocrático,

promoveu uma instabilidade a respeito de como se apresentar no mundo, considerando

que a ânsia de superação levava o próprio homem à decadência.

O que realmente era novo e trouxe definitivamente consigo a urbanização progressiva e geral do Homem foi a exigência de todos os indivíduos participarem ativamente no Estado e na vida pública e adquirirem consciência dos seus direitos cívicos, completamente diversos daqueles da esfera da sua profissão privada. Esta aptidão “geral”, política, pertencia até então unicamente aos nobres . Estes exerciam o poder desde tempos imemoriais e tinham uma escola superior e ainda indispensável. O novo Estado não podia esquecer esta arete se compreendia corretamente os seus próprios interesses . Bastava-lhe evitar a sua exploração em proveito do interesse pessoal e da injustiça. Era este, em todo caso, o ideal, tal como exprimem Péricles e Tucídides. Assim, tanto na livre Jônia como na severa Esparta, a formação política encontrava-se intimamente ligada à antiga educação aristocrática, isto é, ao ideal da arete que abarca o Homem inteiro com todas as suas faculdades. Não deixou de lado os direitos da moral do trabalho, de Hesíodo; mas o ideal de cidadão, com o tal, permaneceu o que Fênix já ensinara à Aquiles: estar apto a proferir belas palavras e a realizar ações. Os homens dirigentes da burguesia ascendente deviam atingir este ideal, e até os indivíduos da grande massa deviam participar, em certa medida, no pensamento desta arete. (JAEGER,1994 p.99).

A participação de todos os cidadãos frente aos direcionamentos relacionados à vida

pública, proclamada pelos interesses manifestados pelo homem em função das

condições existência material na busca da sobrevivência, exigiu do grego pensar uma

nova formar de conviver com as manifestações originadas na produção da vida. Isto é, a

leis cívicas, garantia a convivência em comunidade, com a participação de todos os que

eram considerados cidadãos.

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As dificuldades surgidas nesta época, pelo modo de produção da vida dos gregos,

desencadeou um sistema de poder, a tirania, no qual o governante, apoiado pelos

comerciantes, adquire a força e o poder. Esta forma de governo, relacionada às leis da

Grécia arcaica, também está ligada a uma das grandes conquista da cultura ocidental,

desenvolvida pelos gregos, o surgimento da democracia.

Em Atenas, cuja tirania foi, por mais surpreendente que pareça, das últimas a acabar, a ação dos Pisístratos é notável. Fazem grandes obras, quer na Acrópole, quer na Ágora ( como altar dos doze deuses) e principiam o templo colossal de Zeus Olímpico – que, aliás, só seria concluído no séc. II d, C., no tempo de Adriano; abastecem de água a cidade; tomam medidas econômicas importantes, como o empréstimo aos lavradores em dificuldades; efectuam reformas religiosas, de grande projecção cultural também, como a reorganização das Panateneias, com a recitação dos Poemas Homéricos, e a instituição das Grandes Dionísias, junto das quais nascera o teatro ( PEREIRA, 1997, p.179).

O desenvolvimento de um sistema legislativo trouxe, para a época, uma maior

estabilidade social, substituindo a força pelo direito, em oposição à sociedade anterior,

pautada na concepção patriarcal. Este fato possibilitou o processo de formação cívica do

grego, o desenvolvimento da polis democrática e o surgimento do cidadão.

(...) De certo modo, como veremos, a história das cidades gregas é marcada pelo crescimento mais ou menos rápido desta minoria, que acabará por englobar todos os membros da comunidade, como acontecerá na Atenas democrática, a partir do século V a.C. Esta época será o termo de uma evolução que se prolongou por dois séculos, o cidadão tornar-se-á uma realidade... (MOSSÉ, 1999, p.10).

A Grécia, o solo ático, constituiu-se historicamente como o berço de toda a capacidade

de expressão individual atrelada a vida em comunidade. Os fundamentos da história do

povo grego exprimem toda a capacidade do homem de manifestação da sua totalidade,

na medida em que esta expressão está diretamente relacionada com a natureza e a

sociedade.

Foi neste processo de formação do novo homem, frente a necessidade de dar suporte a

formação da nova consciência requisitada é que se torna expressiva a notoriedade de

Sólon como legislador.

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Não podemos esquecer, no entanto, que ela é resultante de um processo histórico, cuja raízes se encontram no começo do séc.VI e, mais concretamente, na ação de Sólon, que aliás, não foi o primeiro legislador ateniense. Antes dele existiu Drácon, autor de leis que ficaram famosas pela sua extrema severidade... Ora precisamente uma das medidas mais importantes de Sólon foi a abolição da escravatura por dívidas. Outras foram de proteção à agricultura e indústria (obrigação de cada pai ensinar ao filho a sua arte, e chamada a Atenas de artífices de fora, aos quais concedia a cidadania) e ao comércio, a criação de uma moeda própria, com a concomitante alteração de pesos e medidas, e, sobretudo, instituição do tribunal da Helieia, para o qual todos tinham o direito de apelar contra as sentenças dos magistrados, cujo poder ficava assim cerceado. (PEREIRA, 1997, p.189)

Atenas, por meio das suas produções artísticas buscava a harmonia entre a manifestação

da individualidade e as leis públicas, questões que foram discutidas e representadas

pelas expressões artísticas, que culminaram nas Grandes Dionísias.

[...] enquadrada numa série de cerimônias de caráter cívico e religioso simultaneamente, a ela assiste toda polis, pois até os pobres podem levantar os seus bilhetes numa espécie de fundo comum, o theoricon. Não é divertimento e distração para o espírito cansado pelas tarefas quotidianas. O cuidado em que tais actos se efectuem anualmente com toda regularidade era uma das grandes preocupações dos Atenienses, que até encerravam os tribunais durante esse período. (PEREIRA, 1997, p.392).

Assim, todos os que eram considerados cidadãos participavam, em praça pública, dos

direcionamentos da cidade estado e refletiam, por meio das representações artísticas, a

vida e a forma de manifestar a mesma. Neste sentido, a figura do cidadão é valorizada,

permitindo ao grego participar das decisões a respeito da sua vida e, da vida da polis.

SENTIMENTO DE AMBIGUIDADE E FRAGILIDADE DO HOMEM EM

DECORRÊNCIA DA EMANCIPAÇÃO HUMANA

Na esteira desse processo de mudanças e contradições, o cidadão grego encontrou, no

teatro, uma das maneiras de entender suas dúvidas e anseios. A representação artística,

por meio das narrativas trágicas, orientava o homem na formação da sua consciência, na

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medida em que o conduzia a refletir a respeito das coisas do mundo, perante a nova

ordem social que se organizava.

A obra artística, por meio do enredo trágico, mobilizava a todos pensarem a respeito

dos conflitos presentes da própria vida dos gregos, bem como refletir os meios na

condução da sua existência. O herói trágico, ao transgredir uma lei, aceita pela

comunidade e, sancionada pelos deuses, recebe a punição em decorrência da sua

desobediência. Instala-se a desgraça humana, reflexo da desordem e do caos.

A articulação entre o humano e divino, na tragédia, comprova o conflito entre o pensamento racional e o mítico, o que demonstra que o domínio da tragédia se localiza onde os atos humanos se articulam com os deuses [...]. Outra característica é revelar a ambigüidade resultante do choque entre ethos e dáimon, já que, na tragédia, o herói trágico quer guiar-se por seu próprio caráter (ethos), mas está subordinado à força, ao gênio mau ( daimon). Também caracteriza a tragédia um acontecimento aterrorizante, representado pelas interdições do mundo cultural grego: o parricídio, o incesto, o regicídio. ( COSTA,1988,p.9).

O herói trágico, ao representar as fragilidades e inseguranças vividas pelo cidadão da

polis, sem demonstrar preocupação, revela uma proposta formativa, pois permite ao

espectador, em praça pública, vivenciar meios para pensar a respeito da própria

existência, formar a sua consciência, frente as exigências surgidas na polis. Este

processo de transformação, vivido pelo cidadão grego, reflete a necessidade da

sociedade de buscar um modelo formativo, tendo em vista o homem que deveria

responder a nova ordem social.

Significativo, neste sentido, foram os conteúdos formativos presente no enredo trágico,

a exemplo das tragédias de Sófocles (496-406 a.C.), que compreendem a denominada

Trilogia Tebana: Édipo Rei, Édipo em Colono e Antígona. Os personagens da peça da

Trilogia Tebana, principalmente Édipo, Creonte e Teseu, revelam, no decorrer da

narrativa, o surgimento de novos conceitos a respeito do mundo. Concepção exigida por

uma nova ordem social, presentes na obra de Sófocles. De forma geral, a Trilogia

Tebana narra o mito de Édipo, um rei que tem a preocupação em esclarecer os mistérios

de um assassinato que foi realizado por ele próprio. Em Édipo rei, o ideal de homem

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Homérico é colocado à prova, na medida em que este herói cede lugar a um homem

com vontade própria, que desrespeita os desígnios dos deuses, e passa a buscar, no

próprio homem, as respostas para os seus questionamentos. No entanto, esta posição,

frente ao mundo, traz para o cidadão a responsabilidade de assumir as consequências

pelos seus atos.

Édipo Foi Apolo! Foi sim, meu amigo! Foi Apolo o autor dos meus males, De meus males terríveis; foi ele! Mas fui eu quem vazou os meus olhos. Mais ninguém. Fui eu mesmo o infeliz! Para que serviram os meus olhos Quando nada me resta de bom Para ver? Para que serviriam? (ÉDIPO REI, vv 1176-1182, p.67).

O tragediógrafo deixa claro que, caso o homem exceda na condução da sua própria vida,

terá o castigo dos deuses. Veicula, também, novas formas de pensar e agir no mundo,

que exigiam do grego encontrar, em si mesmo, respostas para os seus questionamentos

ainda influenciados pelo modo de pensar da Grécia arcaica.

Édipo ...pois cheguei, sem nada conhecer, eu Édipo e impus silêncio à esfinge; veio a solução de minha mente e não das aves agourentas... (Édipo REI, vv.476-479, p.39)

Sófocles convoca o homem a assumir a sua responsabilidade, tira das mãos dos deuses a

sua história e, neste sentido, propõe novos direcionamentos para a sociedade. No

entanto, ele levanta a preocupação com a justa medida, pois o homem que não a

apresenta, terá o castigo dos deuses.

Coro ...o homem que nos atos e palavras se deixa dominar por vão orgulho sem recear a obra da justiça e não cultua propriamente os deuses está fadado a dolororoso fim, vítima da arrogância criminosa

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que induziu a desmedidos ganhos, a sacrilégios, a loucura máxima de profanar até as coisas santas (Édipo Rei, vv. 1051-1059, p.63)

Assim, ao tirar das mãos dos deuses a sua história, mesmo que esta situação lhe tenha

como retorno o castigo, Sófocles mostra o drama de toda a sociedade e, nesta

perspectiva, busca a construção de uma nova história.

Édipo Ai de mim! Ai de mim! As dúvidas desfazem-me! Ah! Luz do sol. Queriam os deuses que esta seja a derradeira vez que te contemplo! Hoje tornou-se claro a todos que eu não poderia nascer de quem nasci, nem viver com quem vivo e, mais ainda, assassinei quem não devia! (Édipo Rei, VV. 1387-1392, p.82).

Com Sófocles ocorre a tentativa do homem, por meio do pensamento, se sobrepor ao

mito na medida em que se expressa certa racionalidade explícita na tentativa de

justificar e refletir sobre os acontecimentos, constituindo-se em um exercício

premeditado.

A FORMAÇÃO DO HOMEM CÍVICO PROPOSTO POR SÓFOCLES EM ÉDIPO

REI

A possibilidade de refletir, por meio do enredo trágico, sobre as dificuldades

vivenciadas pela sociedade, permitia ao cidadão grego expressar suas preocupações

referentes ao processo de transição entre a Grécia Arcaica e a Clássica. Pois, ao

expressarem um cenário de contradição, que revelam homens perdidos frente à negação

dos desígnios dos deuses, as tragédias evidenciam o surgimento de novos padrões

requeridos pela sociedade em transformação.

CRIADO Ele esbraveja e manda que abram o palácio E mostrem aos tebanos logo o parricida, O filho cuja mãe...não posso repetir Suas sacrílegas palavras; ele fala Em exilar-se e afirma que não ficará

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Neste palácio, vítima das maldições Por ele mesmo proferidas. Deveremos Levar-lhe apoio, dar-lhe um guia, pois seu mal É muito grande para que ele sofra só (Édipo Rei,VV. 1525-1533,p.86)

A figura de Édipo chama a atenção para que a Cidade- Estado seja vista como o início e,

o fim das preocupações dos gregos, isto é, a valorização do público em detrimento aos

interesses pessoais. Neste sentido, a vida pública representava as bases da existência e

da felicidade do grego. Homem exemplar, que buscava na racionalidade as respostas

para seus anseios e dúvidas, resistindo aos desígnios dos deuses. Constituia-se em

preocupação primeira de Sófocles na peça Édipo Rei, motivo de ter exercido papel

significativo no processo formativo do homem grego do seu tempo.

Um escultor de hombres como Sófocles pertenece a la história de la educación humana. Y como ningún outro poeta griego. Y ello sentido completamente nuevo. Em su arte se manifiesta por primera vez la conciencia despierta de la educación humana. (JAEGER,1995,p.252).

O provável é que Sófocles entendeu que o herói, habilidoso no manejo das armas, na

arte de falar e das estratégias de guerra, não correspondia as exigências que surgiram na

polis democrática. A morte do guerreiro, cortesão e, temente aos deuses, suscitava o

aparecimento do cidadão com capacidade de participar da assembleia e, assim, decidir

sobre os rumos dela e da sua existência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O drama trágico narrado por Sófocles aborda temas caracterizados, vividos na época,

tais como: conflito entre as leis dos deuses e do homem, as limitações humanas e, a

necessidade do homem buscar, em si mesmo, as respostas para seus questionamentos. O

que propõe aos homens a direção da sua própria vida, exigência da nova forma de

organização social, surgida com a polis. No entanto, revela a ambiguidade vivida pelo

grego, na forma de constituir cidadão.

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Sófocles, com seu drama trágico, contribuiu, de maneira significativa, para que o

homem grego vivenciasse seus medos e, dessa forma, pensasse e refletisse sobre sua

própria existência e sobre a vida da cidade estado. Daí o seu papel formativo, mesmo

sem uma intenção clara, deste homem que a polis estava requisitando. Ao pensar,

refletir e vivenciar, por meio da obra artística, as contradições da sua existência, o

homem se potencializa frente a polis.

REFERÊNCIAS

COSTA, Lígia Militz da; REMÉDIOS, Maria Luiza Ritzel. A tragédia Estrutura e História. São Paulo: Editora Ática, 1988.

JAEGER, Werner. Paidéia: A formação do homem grego. Trad. Artur M. Parreira. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994.

MOSSÉ, Claude. A Grécia Arcaica de Homero a Ésquilo (Séculos VIII-VI a.C). Trad. Emanuel Lourenço Godinho. Portugal: Edições 70, 1984.

PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Estudos de História da Cultura Clássica – Cultura Grega. Coimbra: Fundação Calouste Gulbenakian, 1997. v.1.

SÓFOCLES. (496-406 A.c.) A Trilogia Tebana. Trad. Mário da Gama Kury. 9 ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2001.

__________. Édipo Rei. Trad. Mario da Gama Kury. 9 ed. Rio de Janeiro: zahar Editores, 2001.

__________. Édipo em Colono. Trad. Mario da Gama Kury. 9 ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2001.

__________. Antígona. Trad. Mario da Kury. 9 ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2001.