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    O direito vida (digna) frente s descobertas da engenharia gentica

    Maria Lcia Luz LeiriaDesa. Federal do Tribunal Regional Federal da 4 Regio. Doutoranda em Direito na UniversidadeFederal do Vale do Rio dos Sinos. Trabalho apresentado na disciplina A Dimenso Jurdica da Biotica,Profa. Dra. Maria Cludia Crespo Brauner.

    Nada eterno, exceto a mudana, Herclito, 500 A.C.

    O amor faz perdermos a imagem ou a figura de quem cerrou os olhos para sempre, Miguel Reale.

    Artigo 1 da Declarao da UNESCO

    O GENOMA HUMANO compreende a unidade fundamental de todos os membros da famlia humana,bem como o reconhecimento de sua dignidade intrnseca e de sua diversidade. EM UM SENTIDO

    SIMBLICO, O PATRIMNIO DA HUMANIDADE.

    Resumo:Em face dos avanos do Programa Genoma Humano, surgem novos enfrentamentos entre os valores dasociedade organizada e as novas descobertas tecnolgicas. Conforme a postura ou a posio ideolgicade determinado meio cultural, as solues apresentadas diferem na forma e no modo de aplicao destesavanos. Apenas com a conciliao de princpios maiores, regedores de condutas no plano universal, serpossvel o estabelecimento de limites e parmetros para o uso destas descobertas sem que se macule ouderrube o princpio da dignidade da pessoa humana.

    Sumrio: I Resumo. II Introduo. III Breve histrico dos enfrentamentos das questes dadenominada Biotica. IV O Projeto Genoma Humano: IV.1 seus benefcios, IV.2 problemas ticos,sociais e jurdicos, IV.3 o reconhecimento pela UNESCO sobre os princpios norteadores da questo do

    genoma humano e dos direitos do homem. V O direito vida (digna) versus a liberdade de pesquisa degenes: V.1 o binmio Projeto Genoma Humano e direito dignidade, intimidade e vida os genesso nossos, as escolhas tambm. VI Necessidade ou desnecessidade de princpios gerais e globais parareger a matria versus impossibilidade de enclausuramento em normas rgidas e nacionais sobre osavanos das cincias mdica e biolgica. VII Consideraes finais a alteridade e a diferena precisamser trabalhadas caso a caso, no h como engessar a soluo. VIII Referncias bibliogrficas.

    II -Introduo:Debruado cada vez mais o homem na sociedade atual sobre pesquisas,descobertas, inventos, aliados interdisciplinariedade do conhecimento, aopluralismo poltico e social, crescente demanda pela efetivao dos direitosfundamentais, quer de 1, 2, 3 ou 4 dimenso, surge no panorama cientficoum espao de discusso, dilogo, questes, perguntas com e sem resposta,desafios crescentes e busca incessante pela to almejada igualdade dos sereshumanos, no que diz com suas mais primrias necessidades, at o acesso dasmais elevadas conquistas da tecnologia, o que se convencionou chamarbiotica.Como tudo o que novo, tudo o que desconhecido e se vem desvelando, hnum primeiro momento radicalismo de todos os envolvidos, cientistas dasade, cientistas das chamadas cincias humanas, pesquisadores autnomos,ideologias, religies, crenas, governos, mercado econmico. Da a grandeperplexidade em certas temas como o que agora se enfrenta: o acesso s

    descobertas do genoma humano e o uso destas descobertas ou invenespor todos e para todos.

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    III Breve histrico dos enfrentamentos das questes da denominada bioticaCunhado pela primeira vez o termo biotica pelo oncologista Van RensselerPotter, ao publicar seu livro Bioethic: bridge to the future, em 1971, o termobiotica incorporou-se ao vocabulrio dos profissionais das reas cientficas,principalmente nas instituies de ensino e institutos de pesquisas mdicas.

    Alada a disciplina, a biotica representa o estudo de todos os aspectos ticosdas prticas mdicas e biolgicas, buscando avaliar suas implicaes nasrelaes em sociedade.H de ser anotado que discusses persistem sobre o prprio termo, fazendo-sediferena entre a biotica e o biodireito, porque o termo biodireito traria para acincia jurdica um possvel aprisionamento de todos os valores que sodiscutidos na biotica, podendo representar apenas as questes que foramenfrentadas pelos textos legais.No se v, no entanto, tamanha dificuldade, desde que, em atual e boainterpretao, entenda-se direito, no termo biodireito, no como direitopositivado em textos legais, mas sim direito como objeto da cincia jurdica,

    portanto capaz de albergar todos os enfrentamentos da biotica.A preocupao tica com as prticas da medicina remonta Grcia Antiga basta que se atente para o juramento de Hipcrates. Foi, no entanto, no sculoXX que a inveno do aparelho para hemodilise passou a determinar umamaior reflexo nas decises sobre o seu uso. o que se v nas consideraesde Bruno Torquato de Oliveira Naves:No sculo XX, vrias so as situaes que exigiram avaliaes da tica ante a experimentos etratamentos mdicos. Baseado em Fernando Lolas, podemos citar quatro importantes casos queimpulsionaram a Biotica.1) Por volta de 1961, o mdico Scribner inventou um aparelho capaz de realizar a funo do rim,depurando artificialmente o sangue de substncias residuais - a hemodilise. Diante do sucesso dotratamento, a demanda logo superava as possibilidades de atendimento. Era necessrio, ento, decidir

    quem receberia tratamento e quem morreria. Formou-se um comit de pessoas leigas, em 1962, emSeattle, para realizar essa deciso. Este comit criou um procedimento para tomada de decises.2) Em 1966, Henry Beecher, professor de anestesia de Harvard, publicou um artigo demonstrandoestatisticamente que 12% dos artigos mdicos publicados em uma importante revista cientfica aplicavamtodos contrrios tica. Fortaleceu-se, assim, a necessidade de criao de mecanismos de controle empesquisas e tratamentos.3) O terceiro caso ganhou grande notoriedade e refere-se ao primeiro transplante de corao, realizadopor Christian Barnard. Para proceder-se ao transplante era necessrio remover o corao ainda emfuncionamento, isto , de um indivduo com morte cerebral. Deparamos, assim, com questes como:quando algum pode ser considerado morto? Quem determina esse momento, a cincia ou a lei? A vidaconsciente a nica forma de vida? Morto o crebro, morre tambm a pessoa?4) Por fim, o caso de Tuskegee, revelado em 1972. Tuskegee uma cidade do Alabama, Estados Unidos,onde, em 1932, iniciou-se uma pesquisa sobre a evoluo natural da sfilis, sem qualquer tratamento. Osvoluntrios, todos negros, acreditavam estar recebendo tratamento, mas no era o que ocorria.1

    V-se, pois, que as questes ligadas biotica esto em pleno curso dedebates. , pois, o momento apropriado para que os operadores do direitotomem posies consentneas com a atualidade, de forma a permitir, medianteuma interpretao fincada na realidade social e nos avanos tecnolgicos, apossibilidade de se equacionar as relaes que se forem realizando, por meiode normas jurdicas entendidas como quer Bonavides , normas queenfeixam princpios com carga normativa.Como diz Maria Claudia Crespo Brauner2:

    1 NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Introduo ao biodireito: da zettica dogmtica. IN: FREIREDE S, Maria de Ftima.Biodireito. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. p. 130-131.

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    Todas essas novas tcnicas que recorrem manipulao gentica e interveno direta nos processovitais, envolvem, certamente, uma grande complexidade e este fato exige a ateno no apenas dacomunidade cientfica, mas da sociedade como um todo, haja vista que as descobertas cientficas e a suautilizao na medicina, atravs das terapias genticas, da reproduo artificial, dos transplantes e doaesde rgos atuam diretamente sobre a vida e o destino de toda humanidade.Neste contexto de complexidades entre a utilizao dos recursos cientficos e a necessidade de

    reconciliao com os princpios ticos, frutos da construo do saber humanista, surge um movimento dereao objetivando construir premissas para fundamentar as escolhas no mbito da biomedicina, a partirde uma reflexo pluralista e dialogal.As questes enfrentadas passaram em um primeiro momento a ser vistas,estudadas e analisadas por meio de uma viso teolgica, aps filosfica, tudona procura de soluo de regras que enfeixassem e no maculassem valores ebens universalmente reconhecidos.Da, surgem grandes disputas: de um lado pelos pesquisadores das cinciasbiolgicas na busca de uma eticidade prpria dos enfrentamentos surgidos comas novas descobertas; de outro, os operadores das humanidades, buscandovalores prprios e supremos, muita vezes parciais e locais.

    o que se v, por exemplo, no caso de novos medicamentos que surgem emfuno das descobertas biolgicas e do acesso a todos os cidados em facedas leis patentrias, onde se constata, ocasionalmente, a necessidade deinterveno do poder constitudo, como foi o caso recente dos medicamentosgenricos.A limitao do uso das descobertas ou invenes da tecnologia cientfica alvo de regulao por leis patentrias, que buscam, de um lado, estimular omercado econmico, permitindo-lhe que, durante certo tempo e emdeterminadas condies, apenas aquele que registrou o produto possacomercializ-lo. Caso importante ocorreu no somente com os medicamentoscontra a AIDS, mas tambm com a lei reguladora dos medicamentos genricos

    e similares.As descobertas tecnolgicas especficas do Programa Genoma Humano,iniciado formalmente nos EUA em 1990, visando ao mapeamento do genehumano e ao seqenciamento do nosso genoma vm, com todo o progressoda tcnica cientfica, avanando de forma ininterrupta e rpida. Dado isto,sabido que os limites impostos aos pesquisadores e aos homens da cincia spodem tornar-se efetivos se qualquer normativo trouxer consigo a capacidadede coero, mesmo quando o poder econmico e os interesses de gruposforem proeminentes em dada sociedade.IV - O Projeto Genoma Humano: seus benefcios, problemas ticos, sociais ejurdicos

    O denominado Programa Genoma Humano desafio de cientistas de vriospases do mundo que acreditam seja possvel decifrar completamente todas asinformaes contidas no genoma humano. Genoma o termo utilizado paradesignar um complemento total de genes em uma clula em indivduos ou emuma espcie3:Genoma o termo usado para designarum complemento total de genes em uma clula, um indivduo ouuma espcie. Assim, os gametas (clulas haplides) possuem uma cpia do genoma, enquanto as clulassomticas (diplides) apresentam duas cpias.A informao gentica nas clulas humanas est organizada em dois tipos de genoma: o genoma nuclear eo genoma mitocondrial.

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    BRAUNER, Maria Cludia Crespo.Direito, sexualidade e reproduo humana;conquistas mdicas e odebate biotico. Rio de Janeiro-So Paulo: Renovar, 2003, p. 150-151.3 FARAH, Solange Bento.DNA. Segredos & mistrios.So Paulo: Sarvier, 2000. p. 75.

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    Entre 2% e 3% do genoma humano composto de DNA codificadorresponsvel pela informao gentica para a sntese de polipeptdeos ou RNA.Mapear um gene definir sua posio (locus) no genoma. Existem

    basicamente dois tipos de mapa: o gentico, que refere posio de um geneem relao a outro gene ou a um marcador conhecido, e o mapa fsico, que da posio de um gene em unidades de distncia, por exemplo, pares debases.4

    Mapas genticos ou fsicos podem ser construdos em diferentes nveis deresoluo, sendo que a localizao de um gene pode variar de umcromossomo ou regio cromossmica a uma definio precisa dentro depoucas kilobases, permitindo seu isolamento e sua clonagem.Genes isolados podem ser seqenciados, ou seja, pode-se determinarcompletamente a seqncia de bases ao longo do seu comprimento.O Projeto Genoma uma arrojada iniciativa dos pases desenvolvidos que

    pretende mapear os 100.000 genes e seqenciar os 3 bilhes de pares debases do DNA humano.Existe uma variao entre o DNA de diferentes indivduos, e a grande maioria insignificante do ponto de vista mdico, pois ocorrente dentro do DNA no-codificador ou resulta em protenas idnticas. Estas variaes genticas, semconseqncias na protena, precisam ser distinguidas daquelas que causam oaparecimento de doenas genticas, pois afetam regies importantes de genesfundamentais para o indivduo. Na verdade, o que ser obtido um mapa querepresenta a sntese de cromossomos ou partes de cromossomos de muitosindivduos diferentes5, sendo certo que a obteno da seqncia complete dogenoma humano ter implicaes profundas na medicina, na gentica bsica eaplicada, e ajudar a esclarecer a histria evolutiva da nossa espcie6. Parafacilitar a interpretao da informao gentica, importante mapear eseqenciar o genoma de outras espcies mais simples, de forma a distinguir asseqncias de DNA que realmente carregam genes e compreender a funode cada gene. Para isto, tem-se utilizado nos estudos a bactria E. coli, oneomatdeo Caenorhabditis elegans, a levedura Saccharomyces cerevisiae, amosca do vinagre Drosophila e o camundongo (este, contudo, tem genoma tocomplicado quanto o humano, mas tm grandes semelhanas bioqumicas)7.Isto, em realidade, levanta diversas questes: Quem ter direito a utilizar ainformao acumulada? O perfil gentico, determinado em um indivduo, serconfidencial, ou outros podero ter acesso a esses dados, sem necessidade deprvia autorizao ou permisso? Como evitar que o diagnstico de doenaincurvel sirva para discriminao ou estigmatizao de um indivduo? Quetipos de descobertas podem e devem ser patenteadas?Tem-se argumentado, por outro lado, que o acesso informao cientficagerada pelo desenvolvimento do Projeto Genoma Humano deveria sergarantido a todos, porque, como o genoma representa a essncia mais ntimado ser humano, ningum poderia ter o direito de apossar-se de seqncias deDNA que compem um patrimnio da humanidade.

    4 FARAH, op. cit., p. 101-102.5

    Idem, p. 966 Idem, p. 97.7 Idem, p. 99.

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    Solange Farah, contudo, destaca que a questo no simples como parece primeira vista8:As leis de patentes estipulam o direito de uma pessoa de, por um tempo limitado, explorar os frutos desua atividade intelectual ou criativa. Esse direito tem sido reconhecido universalmente e apresenta, para asociedade, o benefcio de encorajar indivduos ou companhias a investirem tempo, dinheiro e esforo

    intelectual para criarem alguma coisa de valor para eles prprios e para os outros. Quantas companhiasfarmacuticas investiriam 100 milhes de dlares necessrios para desenvolver uma nova droga se,posteriormente, o medicamento pudesse ser copiado por outros e vendido por um preo mais baixo, queno inclusse os custos de pesquisa? Alm disso, negando-se aos cientistas o acesso s leis de propriedadeintelectual, provavelmente haveria uma tendncia a no se divulgar de imediato os resultados daspesquisas, reduzindo a disseminao do conhecimento.Parece claro que seqncias de DNA no poderiam ser requisitadas como propriedade de algum. Poroutro lado, no deveria haver qualquer dvida quanto ao direito de se patentear mtodos que sedestinassem a isolar, analisar ou expressar uma seqncia de DNA especfica. Dessa forma, companhiasou indivduos teriam o direito de patentear, por exemplo, mtodos para a produo de protenas humanas,pela tcnica do DNA recombinante, ou plantas e animais transgnicos. Entretanto, o que dizer dasseqncias de DNA utilizadas para fins prticos como, por exemplo, diagnstico? A linha divisria quesepara inveno de descobrimento muito tnue nesse caso.

    Inobstante os diversos problemas ticos decorrentes da nova metodologiaserem srios, isto no pode servir como desculpa para se estancar a evoluodo conhecimento cientfico, que representa uma parcela do desenvolvimentoda humanidade, de tal forma que a maioria dos problemas ticos poderia serresumida na seguinte assertiva: a tecnologia do DNA recombinante tem sido,at o momento, muito mais eficiente em predizer riscos do que em oferecerintervenes para solucionar esses riscos. 9

    Em realidade, a terapia gnica de clulas somticas no apresenta maioresproblemas ticos do que os transplantes de rgos; entretanto, a terapia gnicaque envolve a linhagem germinativa provavelmente no ser aceitvel por um

    longo perodo, pois altera o patrimnio gentico das geraes futuras e daespcie humana. De qualquer forma, a melhor forma de se garantir que atecnologia do DNA recombinante seja utilizada somente em benefcio dahumanidade por meio da divulgao correta da informao cientfica,permitindo que toda a sociedade participe na deciso sobre os rumos quesero dados engenharia gentica10

    O uso da decodificao dos genes, com o avano da tcnica, gera, por bvio,vrios enfrentamentos no campo da tica e da sociedade, necessitando serlimitado e regulado pelo locus privilegiado que o campo da cincia jurdica.

    V O direito vida (digna) versus a liberdade de pesquisa de genes:

    V.1 O binmio Projeto Genoma Humano e o direito dignidade, intimidade e vidaSem sombra de dvida, os profissionais da sade, os bioeticistas, os filsofos etelogos podem apresentar posies, conceitos e solues. Mas somente como Direito possvel a alterao da realidade, com o enfrentamento pacfico dasquestes surgidas com as novas e constantes descobertas. Neste tempo, tem-se que o direito vida e dignidade da pessoa humana, elevados a princpioconstitucional, necessitam, primeiro, um aprofundamento no conceito de

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    Idem, p. 248.9 Idem, p. 251.10 Idem, p. 253.

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    dignidade. H uma releitura do pensamento kantiano vigorante nestes tempos,pela qual a dignidade qualidade intrnseca da pessoa humana, no se a podedar, no se pode a ela acrescer, porque valor.Nas palavras de Ingo Sarlet:11

    A ntima e indissocivel vinculao entre a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais,constitui, atualmente, um dos postulados nos quais se assenta o direito constitucional, o que vale inclusivenas ordens constitucionais onde a dignidade ainda no foi expressamente reconhecida no mbito dodireito positivo. Todavia, mesmo que virtualmente incontroverso o liame entre a dignidade da pessoa e osdireitos fundamentais, o consenso, por sua vez - como logo teremos oportunidade de demonstrar -,praticamente se limita ao reconhecimento da existncia e da importncia desta vinculao. Quanto aomais - inclusive no que diz com a prpria compreenso do contedo e significado da dignidade da pessoahumana na (e para a) ordem jurdica registra-se farta discusso em nvel doutrinrio e at mesmojurisprudencial. Assim, definindo o objeto do presente ensaio, precisamente sobre as relaes entre adignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais, que pretendemos tecer algumas consideraes,destacando pelo menos parte dos inmeros aspectos que poderiam ser colacionados a respeito do tema,com o objetivo de explorar, mesmo que sumariamente, algumas possveis aplicaes concretas dadignidade da pessoa no mbito da sua conexo com os direitos fundamentais.

    Verifica-se, pois que somente caso a caso, isto , de uma interpretao

    debaixo para cima, possvel construir-se um consenso que se quer universal,capaz de administrar os resultados dessas novas tcnicas.

    VI Necessidade ou desnecessidade de princpios gerais e globais para reger amatria versusimpossibilidade de enclausuramento em normas jurdicas rgidas e

    nacionais sobre os avanos das cincias mdica e biolgica.No entanto, para o presente trabalho e procurando pensar a partir de umapostura e de uma dimenso jurdica, constata-se que o grande impasse, agrande questo a ser enfrentada, , sim, entre o direito fundamental vida,encartado em vrias constituies nacionais, elevado a direito universalmentereconhecido, e a liberdade de pesquisa dos genes, que gera um primeiro

    problema: o uso do material humano, e ao depois a possibilidade deexplorao destas descobertas e destas invenes.A viso atual do constitucionalismo moderno matiza todo o direito privado, ouseja, as codificaes civis devem ser lidas com as cores dos direitos aliconsagrados.Da que o impasse est justamente no que seja vida e, ao depois, o quepodemos dispor sobre o nosso corpo - como, quando e porqu. Por isso, naatualidade, busca-se um consenso universal capaz de permitir a manutenodos direitos mais elementares do ser humano, sem que se freie o uso de taisdescobertas.Por isso, a formatao, em nvel internacional, de princpios regradores de taisintervenes biomdicas, biocientficas, basicamente consistentes nosseguintes12:a) beneficncia, que implica fazer o bem ao paciente, e que considerado ocritrio mais antigo da tica mdica, enunciado no princpio hipocrtico damedicina, onde o compromisso do mdico fazer o bem ao paciente,restabelecendo sua sade;

    11 SARLET, Ingo. Algumas notas em torno da relao entre o princpio da dignidade da pessoa humana eos direitos fundamentais na ordem constitucional brasileira. IN: BALDI, Csar Augusto, org. Os direitos

    humanos na sociedade cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2003 (no prelo).12 BRAUNER, Maria Claudia Crespo.Direito, sexualidade e reproduo humana;conquistas mdicas eo debate biotico. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 159.

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    b) autonomia: o paciente e o mdico devem compartilhar as decises, o quecorresponde a dizer que, no gozo pleno de seus direitos, o paciente devedecidir o que melhor para si, buscando a concordncia de seu mdico;c) justia: garantia a todos de uma distribuio justa, eqitativa e universal dosbenefcios da cincia, oferecida amplamente pelos servios de sade;

    d) alteridade: considera a pessoa como fundamento de toda reflexo dabiotica;e) sacralidade da vida humana: atribuindo valor e respeito vida.Surge, ento, no panorama das relaes internacionais, a declarao universalsobre o genoma humano e os direitos do homem, que pretende, por meio deadoo de princpios, normatizar os efeitos do avano tecnolgico,reconhecendo que as pesquisas sobre o genoma humano e a sua aplicaoabrem imensas perspectivas de melhoramento da sade dos indivduos ehumanidade, sempre tendo em vista o respeito dignidade, liberdade e proibio de qualquer forma de discriminao fundada em caractersticasgenticas.

    Partindo da reflexo sobre esta realidade, cunharam-se os artigos daDeclarao dos quais pinam-se os arts. 1 e 10:Artigo 1 - O genoma humano compreende a unidade fundamental de todos os membros da famliahumana, bem como o reconhecimento de sua dignidade intrnseca e de sua diversidade, em um sentidosimblico o patrimnio da humanidade.Artigo 10 - Qualquer pesquisa sobre o genoma humano e qualquer de suas aplicaes, em particular nodomnio da biologia, da gentica e da medicina, no devero prevalecer sobre o respeito dos direitos dohomem, das liberdades fundamentais e da dignidade humana dos indivduos, ou, se for o caso, de gruposde indivduos.Estes artigos identificam a preocupao de que sejam estabelecidos limites portodos os pases. Limites esses que so identificados, em ltima anlise, peloprincpio fundamental j acolhido por muitas Constituies e constante da

    Declarao Universal dos Direitos do Homem, que o princpio da vida comdignidade, cujo contedo plasmado pelas necessidades bsicas do homemcomo indivduo e do homem como sociedade.Para Ingo Sarlet:A despeito das inmeras tentativas de conceituao da dignidade da pessoa formuladas ao longo dostempos, notadamente (mas no exclusivamente) no mbito da fecunda tradio filosfica ocidental, queaqui no temos condies de rastrear nem reproduzir, verifica-se que uma conceituao clara do queefetivamente seja esta dignidade, inclusive para efeitos de definio do seu mbito de proteo comonorma jurdica fundamental, se revela no mnimo difcil de ser obtida, isto sem falar na questionvel (equestionada) viabilidade de se alcanar algum conceito satisfatrio do que, afinal de contas, e significa adignidade da pessoa humana hoje. Tal dificuldade, consoante exaustiva e corretamente destacado nadoutrina, decorre certamente (ao menos tambm) da circunstncia de que se cuida de conceito de

    contornos vagos e imprecisos, caracterizado por sua ambigidade e porosidade, assim como por suanatureza necessariamente polissmica, muito embora tais atributos no possam ser exclusivamenteatribudos dignidade da pessoa. Uma das principais dificuldades, todavia e aqui recolhemos a lio deMichael Sachs reside no fato de que no caso da dignidade da pessoa, diversamente do que ocorre comas demais normas jusfundamentais, no se cuida de aspectos mais ou menos especficos da existnciahumana (integridade fsica, intimidade, vida, propriedade, etc.), mas, sim, de uma qualidade tida comoinerente a todo e qualquer ser humano, de tal sorte que a dignidade como j restou evidenciado passoua ser habitualmente definida como constituindo o valor prprio que identifica o ser humano como tal,definio esta que, todavia, acaba por no contribuir muito para uma compreenso satisfatria do queefetivamente o mbito de proteo da dignidade, na sua condio jurdico-normativa.Alm disso, verifica-se que a doutrina e a jurisprudncia notadamente no que diz com a construo deuma noo jurdica de dignidade cuidaram, ao longo do tempo, de estabelecer alguns contornosbasilares do conceito, concretizando minimamente o seu contedo, ainda que no se possa falar, tambm

    aqui, de uma definio genrica e abstrata consensualmente aceita, isto sem falar no ceticismo manifestode alguns no que diz com a prpria possibilidade de uma concepo jurdica da dignidade. Neste

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    contexto, costuma apontar-se corretamente para a circunstncia de que a dignidade da pessoa humana(por tratar-se, evidncia e nisto no diverge de outros valores e princpios jurdicos de categoriaaxiolgica aberta) no poder ser conceituada de maneira fixista, ainda mais quando se verifica que umadefinio desta natureza no harmoniza com o pluralismo e a diversidade de valores que se manifestamnas sociedades democrticas contemporneas, razo pela qual correto afirmar-se que (tambm aqui) nosdeparamos com um conceito em permanente processo de construo e desenvolvimento. Assim, h que

    reconhecer que tambm o contedo da noo de dignidade da pessoa humana, na sua condio deconceito jurdico-normativo, a exemplo de tantos outros conceitos de contornos vagos e abertos, reclamauma constante concretizao e delimitao pela prxis constitucional, tarefa cometida a todos os rgosestatais.13

    13 Neste contexto, cumpre destacar que a dignidade, como qualidade intrnsecada pessoa humana, irrenuncivel e inalienvel, constituindo elemento quequalifica o ser humano como tal e dele no pode ser destacado, de tal sorte queno se pode cogitar na possibilidade de determinada pessoa ser titular de uma

    pretenso a que lhe seja concedida a dignidade. Esta, portanto, como expressoda prpria condio humana, pode (e deve) ser reconhecida, respeitada,

    promovida e protegida, no podendo, contudo (no sentido ora empregado) sercriada, concedida ou retirada, j que existe em cada ser humano como algo quelhe inerente. Ainda nesta linha de entendimento, houve at mesmo quemafirmasse que a dignidade representa o valor absoluto de cada ser humano, que,no sendo indispensvel, insubstituvel, o que, como se ver mais adiante, noafasta a possibilidade de uma abordagem de cunho crtico e no inviabiliza, aomenos no por si s, eventual relativizao de algumas dimenses da dignidade,notadamente na sua condio jurdico-normativa, tpico que aqui no temoscondies de desenvolver.Assim, vale lembrar que a dignidade evidentemente no existe apenas onde reconhecida pelo Direito e na medida que este a reconhece, j que constitui dado

    prvio, no esquecendo, todavia, que o Direito poder exercer (e tem exercido)papel crucial na sua proteo e promoo, de tal sorte que, especialmentequando se cuida de aferir a existncia de ofensas dignidade, no h como

    prescindir na esteira do que leciona Gonzlez Prez de uma clarificaoquanto ao que se entende por dignidade da pessoa, justamente para que se possaconstatar e, o que mais importante, coibir eventuais violaes da dignidade.Tal concepo encontra-se, de resto e reconhecidamente embasada nadoutrina de Dworkin, que, demonstrando a dificuldade de se explicar um direitoa tratamento com dignidade daqueles que j no logram sequer reconhecerinsultos a sua auto-estima, ou mesmo daquelas pessoas que j perderamcompletamente sua capacidade de autodeterminao, e que ainda assim devem

    receber um tratamento digno. Dworkin, portanto, parte do pressuposto de que adignidade possui tanto uma voz ativa quanto uma voz passiva e que ambasencontram-se conectadas, de tal sorte que no valor intrnseco (na santidade einviolabilidade) da vida humana, de todo e qualquer ser humano, queencontramos a explicao para o fato de que mesmo aquele que j perdeu aconscincia da prpria dignidade merece t-la (sua dignidade) considerada erespeitada.Assim, seguindo uma tendncia que parece estar conduzindo a uma releitura erecontextualizao da doutrina de Kant (ao menos naquilo em queaparentemente se encontra centrada exclusivamente na noo de autonomia davontade e racionalidade da pessoa humana), vale reproduzir a lio de DieterGrimm, eminente publicista e Magistrado germnico, ao sustentar que adignidade, na condio de valor intrnseco do ser humano, gera para o indivduo

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    o direito de decidir de forma autnoma sobre seus projetos existenciais efelicidade e, mesmo onde esta autonomia lhe faltar ou no puder ser atualizada,ainda assim ser considerado e respeitado pela sua condio humana.Por outro lado, pelo fato de a dignidade da pessoa encontrar-se ligada condio

    humana de cada indivduo, no h como descartar uma necessria dimensocomunitria (ou social) desta mesma dignidade de cada pessoa e de todas aspessoas, justamente por serem todos iguais em dignidade e direitos (nailuminada frmula da Declarao Universal de 1948) e pela circunstncia denesta condio conviverem em determinada comunidade ou grupo, destacando-se, portanto, o carter intersubjetivo e relacional da dignidade da pessoa humana,que j havia sido referido pelo prprio Kant, sugerindo inclusive a existncia deum dever de respeito recproco no mbito da comunidade dos seres humanos. justamente para efeitos da indispensvel hierarquizao que se faz presenteno processo hermenutico, que a dignidade da pessoa humana (ombreando emimportncia talvez apenas com a vida e mesmo esta h de ser vivida com

    dignidade) tem sido reiteradamente considerada como o princpio (e valor) demaior hierarquia da nossa e de todas as ordens jurdicas que a reconheceram,aspecto que nos remete ao problema de uma eventual relativizao da dignidadee da necessidade de uma ponderao (e, por conseguinte, tambm de umahierarquizao) de bens, que aqui vai apenas referido e que mereceu umaabordagem especfica em outra ocasio. Assim, precisamente no mbito destafuno hermenutica do princpio da dignidade da pessoa humana, poder-se-afirmar a existncia no apenas de um dever de interpretao conforme aConstituio e dos Direitos Fundamentais, mas acima de tudo aqui tambmafinados com o pensamento de Juarez Freitas de uma hermenutica que, paraalm do conhecido postulado do in dubio pro libertate, tenha sempre presente o

    imperativo segundo o qual em favor da dignidade no deve haver dvida.Igualmente nesta linha argumentativa, encontramos, alm dos exemplos jcitados, expressiva jurisprudncia ptria. Destacamos aqui, no mbito dosTribunais Superiores, o Acrdo proferido pela Quarta Turma do SuperiorTribunal de Justia que teve como Relator o ilustre Ministro Ruy Rosado deAguiar, que, em seu magistral voto, alm de destacar a necessria eficcia do

    princpio da dignidade da pessoa nas relaes entre particulares, sustentou ainconstitucionalidade da priso civil do depositrio na hiptese de contrato dealienao fiduciria em garantia, justamente com base numa exegese afinadacom as exigncias da dignidade da pessoa, entendimento que (no concernente

    primazia da dignidade no mbito de uma hierarquizao de valores) radicatambm na base das decises que tm considerado inconstitucional o dispositivolegislativo que permite a penhora do imvel do fiador, quando o mesmo lheserve de moradia, entre outras tantas que aqui poderiam ser colacionadas.Assim, para alm da compreenso de que tambm na sua perspectiva jurdico-normativa (que no exclui uma dimenso normativa de cunho moral) adignidade da pessoa reclama uma aproximao conceitual (possvel enecessria), verificamos que a construo de uma concepo jurdica dadignidade no dispensa uma contextualizao histrico-cultural e da atuaoconcretizadora dos rgos estatais, notadamente (mas no exclusivamente) dolegislador e dos rgos judicirios. Tambm importa destacar que na ordem

    constitucional brasileira a dignidade da pessoa assumiu (em que pese aspossveis controvrsias a respeito) a condio privilegiada de princpio e valor

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    Todos os operadores de direito, convergem na contemporaneidade sobre anecessidade de que s com uma interpretao fundada na realidade histrica,com vistas a uma compreenso de que somos seres situados, que somos um

    com os outros, que estamos na busca de mtodos que na realidade nadamais so que ferramentas capazes de dar sentido aos textos e aos fatos deque s com a concretizao da efetiva dignidade da pessoa humana, qualidadeou elemento que a faz humana ,ser a sociedade universal capaz de coibir oude enfrentar as questes que envolvem a biotica. Ou seja, somente com acincia e a conscincia de que somos seres no mundo e de que somoscapazes de nos autodeterminarmos, sem prejuzos ou pr-juzos sobre osoutros.No se pode, tambm, olvidar que, guisa de atendimento ao princpio dadignidade humana, abre-se um leque de pareceres, doutrinas e decises que, mngua de qualquer liame com a essncia da dignidade, utilizam-na para dar

    um fundamento queles textos. No este o sentido que se deve ter do queseja dignidade. Dignidade sinnimo de ser humano, porque enfeixa oconjunto de necessidades fundamentais para que assim se o reconhea.Por tudo isso, mister que os avanos da biotecnologia sequer arranhem essaqualidade porque a o prprio objetivo e fim til e ltimo de tais pesquisastornar-se-iam irremediveis paradoxos. Busca-se a cura, busca-se o progressoe termina-se com a condio humana. Acaba-se com a humanidade, que aqualidade primeira e fundamental da pessoa humana. Portanto, humanidade edignidade esto umbilicalmente ungidas a um s elemento.

    VII - Consideraes finais:

    Constatada a efetiva necessidade de se plasmarem princpios universais comcarga de normatividade capazes de ingressarem nos sistemas jurdicosnacionais, de forma a permitir, por meio de uma fiscalizao efetiva, umacoero ou sano para sua obedincia, com objetivo de preservar a

    fundamental, que, por outro lado, no exclui uma dimenso subjetiva, no sentidode que a dignidade da pessoa pressupe e exige um complexo de direitos edeveres fundamentais da pessoa.Situando-nos j na seara das vinculaes entre a dignidade da pessoa e osdireitos fundamentais, destacamos aqui o princpio da necessria interpretao

    conforme a dignidade, que incide mesmo no mbito da soluo de conflitos entredireitos fundamentais, por ocasio da indispensvel hierarquizao levada aefeito nestas circunstncias, aspecto que j vem sendo considerado tambm pela

    jurisprudncia ptria. Para alm disso, tivemos oportunidade de demonstrar quea dignidade da pessoa opera como referencial para a construo de um conceitomaterialmente aberto de direitos fundamentais, seja para a segura identificaode direitos fundamentais dispersos pelo texto constitucional, seja para o efeito deviabilizar, com fundamento direto no princpio da dignidade da pessoa, oreconhecimento de posies jurdico-fundamentais (na condio de direitossubjetivos) autnomas ou pelo menos no expressamente reconhecidas peloConstituinte.

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    dignidade, a liberdade e a vida de qualquer ser humano, conclui-se, em umprimeiro momento, que esse campo novo da biotica pleno de questes emconstantes mutaes, de forma que somente o reconhecimento de princpiosnorteadores desta atividade ser capaz de frear o abuso possvel de ocorrer nabusca de controles sobre as descobertas e interveno nos genes.

    Constatado, tambm, que os princpios fundamentais, aqueles inscritos ouimanentes nas constituies dos Estados soberanos, s podem ser obtidos apartir de um consenso universal do que seja tolervel. Da a importncia dopensamento de Umberto Eco :14

    Houve formas de tolerncia no-racistas ( como a perseguio aos hereges ou a intolerncia dasditaduras contra seus opositores. A intolerncia algo mais bem profundo, que est na raiz de todos osfenmenos que considerei at aqui.Fundamentalismo, integrismo, racismo pseudo-cientfico so posies que pressupem uma doutrina. Aintolerncia coloca-se antes de qualquer doutrina. (...) A intolerncia em relao ao diferente ou aodesconhecido natural na criana, tanto quanto o instinto de se apossar de tudo quanto deseja. (...) atolerncia permanece um problema de educao permanente dos adultos, pois na vida cotidiana estamossempre expostos ao trauma da diferena. (...)A intolerncia mais perigosa exatamente aquela que surge na ausncia de qualquer doutrina, acionadapor pulses elementares. (...) A intolerncia selvagem baseia-se em um curto-circuito categorial que pode,depois, ser emprestada a qualquer doutrina racista: se alguns entre os albaneses que entraram na Itlia noano passado tornaram-se ladres ou prostitutas ( e verdade), todos os albaneses so, portanto, ladres eprostitutas. um curto-circuito terrvel porque constitui uma tentao constante para cada um de ns:basta que nos roubem a mala no aeroporto de um pas qualquer para que voltemos para casa dizendo que bom desconfiar da gente de tal pas.Os intelectuais no podem lutar contra a intolerncia selvagem, porque diante da animalidade pura, sempensamento, o pensamento fica desarmado. E sempre tarde demais quando decidem bater-se contra aintolerncia doutrinria, pois quando a intolerncia faz-se doutrina muito tarde para venc-la, e aquelesque deveriam faz-lo tornam-se suas primeiras vtimas.Mas a est o desafio. Educar para a tolerncia adultos que atiram uns nos outros por motivos tnicos ereligiosos tempo perdido. Tarde demais. A intolerncia selvagem deve ser, portanto, combatida em suas

    razes, atravs de uma educao constante que tenha incio na mais tenra infncia, antes que possa serescrita em um livro, e antes que se torne uma casca comportamental espessa e dura demais.(...) Aceitar o intolervel coloca em questo nossa prpria atividade. preciso assumir a responsabilidadede decidir o que intolervel e agir depois, prontos a pagar o preo do erro. (...)Mas reconhecer o intolervel quer dizer que em Nuremberg todos deveriam ser condenados forca,mesmo que o morto fosse apenas um, e por simples omisso de socorro. O novo intolervel no s ogenocdio, mas sua teorizao. E esta envolve e responsabiliza tambm os pees dos massacres. Diante dointolervel caem as distines de intenes, boa-f, erro: h somente a responsabilidade objetiva. (...)Para assumir esta regra de conduta ( que vale tambm para o intolervel futuro, que nos obriga a decidirdia a dia onde est o intolervel) uma sociedade deve estar pronta para muitas decises, algumas duras, edeve agir solidariamente ao assumir qualquer responsabilidade.

    H, pois, que se eleger o que intolervel e conscientemente pautarem-se osregramentos por este limite.

    Tem-se que, em termos de misso jurdica da biotica, no campo do direito vida digna versus progresso do acesso e uso das descobertas do programagenoma humano, h um princpio maior que talvez possa adequar-se questo primeira sobre os limites da biotecnologia, que a eleio dointolervel, ou seja, dentro da conscincia de que a diferena, a alteridade, uma realidade universal, somente com o consenso de todos que esto noplaneta Terra por meio do entendimento do que seja tolerncia que sepermitir o progresso da cincia sem o engessamento das culturas locais, sema liberalidade do poder econmico divorciado do social.A to requerida soluo para as questes ticas que surgem no embate datecnologia avanada do Projeto Genoma Humano; as infinitas variedades de

    14 ECO, Umberto. Cinco escritos morais.5 ed. Rio de Janeiro: Record, 2001. P.

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    pesquisas que culminaram com o reconhecimento e a comprovao dascausas de determinadas doenas, surgindo da a preveno por meio devacinas ou de alteraes genticas manipuladas, deve, tenho certeza, passarpelo regramento das normas jurdicas, porque s tais enunciados so capazesde executoriedade e eficcia so capazes de igualar ricos e pobres, so

    capazes de conter tudo aquilo que vai contra os direitos universalmentereconhecidos.No entanto, seria ingnuo considerar tal dimenso dentro da legislao positivahermtica, incapaz de abrir ao seu aplicador as portas de uma interpretaoconsentnea com os principais progressos da biotecnologia. Por tudo isso,entende-se que, em face das diferenas e da incapacidade de ver o outro doseu prprio prisma, sempre conhecemos, aprendemos, a partir de nossoprprio viver e, a, a grande dificuldade de se estabelecer parmetrosisonmicos para todas as culturas, para todas as sociedades deste planeta.Este , sem dvida, o grande desafio da Biotica.Por isso, s o estabelecimento de princpios gerais capaz de traar

    fundamentos, exigir reparaes, prover as insuficincias, atingir, enfim, ajustia social, que em uma de suas faces, a justia de cada um dos sereshumanos vivos em suas diferenas, em suas sociedades distintas, com ummnimo capaz de admiti-los como includos no planeta Terra, de forma a sedesenvolverem e serem capazes de gerir suas existncias.Este o ideal de uma biotica principiolgica e, por isso, a importncia cada vezmais candente de aproximao dos estudiosos de todos os campos doconhecimento humano, na busca de um denominador comum capaz deestabelecer os parmetros de atuao dos profissionais das cincias da sade,mormente quando se trata de uso de material humano para pesquisas doProjeto Genoma Humano.A viso de soberania das constituies nacionais deve ceder ante a viso dasoberania de acordos, tratados internacionais que permitam o gerenciamento ea fiscalizao dos programas no plano nacional.Por derradeiro, o direito vida e liberdade , do ponto de vista jurdico, noso direitos absolutos, foram elevados a status de direitos fundamentais, comose v da Declarao Universal dos Direitos do Homem, bem como do caputdoartigo 5 da Constituio Federal Brasileira, ao lado de outros tantos. Noentanto, no so absolutos, esto limitados, porque o contedo mesmo de suainviolabilidade determinado a partir de todo um processo dinmico de disputaentre os demais direitos fundamentais consagrados. o caso tpico do problema do aborto, onde o direito vida do feto e o direitode liberdade da me entram em conflito, necessitando-se, luz do direitopositivo, mas, com fincas em uma interdisciplinariedade, decidir-se qual o demais valia, qual o de maior importncia, naquele caso e naquele momentohistrico.Por isso, h efetiva necessidade de uma principiologia universal capaz de darconcretude queles direitos que toda e qualquer sociedade organizada tenhaeleito como fundamentais e necessrios sobrevivncia digna e livre do serhumano.

    Referncias Bibliogrficas:

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