Em busca de um modelo linguístico para o estudo filosófico ...€¦ · trabalhos de Patrick...
Transcript of Em busca de um modelo linguístico para o estudo filosófico ...€¦ · trabalhos de Patrick...
Em busca de um modelo linguístico para o estudo filosófico e histórico das ciências:
design e potencialidades de um protótipo para o caso geográfico
Dante F. C. Reis Jr.
Professor Adjunto IV, Depto. de Geografia, Universidade de Brasília
Pós-doutorando IHPST (Université de Paris 1, Panthéon Sorbonne)
1. A linguagem nas epistemologias internalista e externalista; uma agenda de pesquisa
Se formos traçar um eixo evolutivo especialmente atento aos empreendimentos analíticos
desenvolvidos por autores da cena anglofônica (isto é, sem dar realce prioritário à produção
associada à filosofia continental), veremos que o inventário já será bastante heterogêneo e,
portanto, complexo de sistematizar. Ainda assim, baseados em literatura de revisão histórica do
campo da Filosofia da Ciência (LORENZANO, 2011; MOULINES, 2011), decidimos iniciar
nossa comunicação apresentando um panorama geral dessa particular matriz dos estudos
filosóficos da ciência. Por uma razão: nela talvez consigamos identificar o peso relativo que a
linguagem jogou nas diversas propostas metacientíficas – seja enquanto fundamento mesmo do
rigor lógico inerente à ciência (quando, então, os fatores statement, reference e meaning, tendem
a ganhar destaque); seja enquanto apenas “indicador indireto” dos valores sustentados pelos
praticantes da ciência (quando, por sua vez, indivíduos e comunidades podem ter suas pretensões
radiografadas pelos discursos que veiculam; os quais devem provavelmente carregar ideários de
época). Mas, na linha do tempo, onde estão uma e outra perspectiva?
Irrompe um campo especial de estudo filosófico sobre as ciências empíricas, muito em
decorrência das insatisfações com as filosofias alemãs hegemônicas. Em se tratando do Idealismo
Alemão, ali pontificavam nomes como Johann Fichte, Friedrich Schelling e Georg Hegel –
autores que foram dos textos clássicos (em inglês, respectivamente) Foundations of the Entire
Science of Knowledge (1794), Ideas for a Philosophy of Nature: as introduction to the study of
this science (1797) e The Encyclopedia of the Philosophical Sciences in Basic Outline (1817).
Subministraram filosoficamente os primeiros filósofos da ciência um neo-Racionalismo creditado
a Bertrand Russell (Principia Mathematica, 1910) e um neo-Empirismo associado a Ernst Mach
(The Analysis of Sensations: and the relation of the physical to psychical, 1886). Os filósofos da
ciência de primeira geração constituem o que alguns acham justo chamar Positivismo Lógico
(PL), e deles viriam a público textos que inauguraram o compromisso com um rigor linguístico
(de Rudolf Carnap, The Logical Structure of the World, 1928; de Moritz Schlick, Meaning and
Verification, 1936; e de Hans Reichenbach, Experience and Prediction: an analysis of the
foundations and the structure of knowledge, 1938). Esses primeiros filósofos profissionais da
ciência enfrentariam interlocutores difíceis, tal como foi o caso de Karl Popper (The Logic of
Scientific Discovery, 1934) e seu Racionalismo Crítico (RC); num contexto em que, aliás, de
modo independente, também outros personagens já vinham frisando aspectos que os empiristas
lógicos austríacos e alemães parecem ter negligenciado – caso de Ludwik Fleck e sua The
Genesis and Development of a Scientific Fact (1935). Findo o projeto neopositivista em solo
europeu, coube a alguns nomes emigrados ressemear a causa em outras geografias, sofisticando
questões geradoras de dissenso. Tendo encontrado doutrinas locais preexistentes, essa
retransmissão institucionaliza uma Philosophy of Science oficial: nos Estados Unidos,
interagindo com o Pragmatismo de Charles Peirce (Illustrations of the Logic of Science, 1877) e
com o Operacionalismo de Percy Bridgman (The Logic of Modern Physics, 1927), e, na cena
britânica, mesclando-se às ideias ali difundidas de Ludwig Wittgenstein (Tractatus Logico-
Philosophicus, 1921). Surgia a chamada Concepção Herdada (CH), personificada, na Inglaterra,
por Alfred Ayer (The Foundations of Empirical Knowledge, 1940), e, nos EUA, por autores
como Nelson Goodman (Fact, Fiction, and Forecast, 1954), Ernest Nagel (The Structure of
Science: problems in the logic of scientific explanation, 1961) e principalmente Carl Hempel
(Philosophy of Natural Science, 1966) – que procurou salvar algo do legado neopositivista,
agregando apontamentos que os tornassem mais consistentes.
Multiplicadas, ainda assim, as fragilidades da tradição axiomático-sintática, persistiu uma frente
normativa sob a insígnia de uma Filosofia da Ciência Neo-Analítica (FCnA). Bem exemplificada
por nomes como Mario Bunge (Scientific Research: strategy and philosophy, 1967) e James
Ladyman (What is Structural Realism?, 1998). Mas os holofotes girariam mesmo para duas
zonas desviadas do eixo; onde propostas mais ousadas de remodelação se dariam.
Para uma direção encontramos, por exemplo, a Nova Filosofia da Ciência (NFC); a qual
compreendeu uma vertente menos transgressora, a “Crítica Interna”, e uma mais radical, a FC
“Historicista”. A primeira, ilustrada pelas contribuições de Willard Quine (Two Dogmas of
Empiricism, 1951), Norwood Hanson (Patterns of Discovery: an inquiry into the conceptual
foundations of science, 1958) e Hilary Putnam (The Many Faces of Realism, 1987); a segunda,
pelas de Thomas Kuhn (The Structure of Scientific Revolutions, 1962), Stephen Toulmin (Human
Understanding: the collective use and evolution of concepts, 1972) e Imre Lakatos (The
Methodology of Scientific Research Programmes, 1978). Na trilha de um empenho em
esclarecimentos suplementares, trazendo à luz aspectos que até então vinham sendo
negligenciados, tais como o papel decisivo dos experimentos e instrumentos (logo, para mais
além da simples consideração dos contextos históricos), instaura-se uma Filosofia da Ciência
Pós-Kuhniana (FCpK) – ilustrada por Paul Feyerabend (Against Method: outline of an anarchist
theory of knowledge, 1975), Larry Laudan (Progress and its Problems: towards a theory of
scientific growth, 1977), Nancy Cartwright (How the Laws of Physics Lie, 1983) e Ian Hacking
(Representing and Intervening, 1983).
Para outra direção, temos contribuições contemporâneas que mantêm um compromisso (se bem
que noutros termos) com os expedientes analíticos; são propostas que visam ainda a ordem lógica
do trabalho científico, e não tanto seus fatores sociológicos ou axiológicos. E do mesmo modo
que aquela primeira zona desviante encerra duas grandes orientações (NFC e FCpK), esta
segunda também apresenta duas vertentes mais ou menos independentes: a do Estruturalismo
metateórico (E) e a da Família Semanticista (FS). A primeira estando exemplificada pelos
trabalhos de Patrick Suppes (Models of Data, 1962), Joseph Sneed (The Logical Structure of
Mathematical Physics, 1971), Wolfgang Stegmüller (The Structuralist View of Theories, 1979),
Wolfgang Balzer e Carlos Moulines (An Architectonic for Science: the structuralist program,
1987). A segunda, pelas contribuições de Frederick Suppe (The Structure of Scientific Theories,
1977), Bas van Fraassen (The Scientific Image, 1980) e Ronald Giere (Explaining Science: a
cognitive approach, 1988).
FIGURA 1
[Panorama dos estudos filosóficos sobre a ciência (adaptado do “fish” de Adúriz-Bravo, 2013)]
O perspicaz artefato de Adúriz-Bravo, a nosso juízo, contém também um riquíssimo potencial
para orientar uma análise sobre a natureza da ciência (elegendo-se alguns tópicos universais) sob
o ponto de vista linguístico. Porque neste seu esquema, que já estampa a evolução dos modos de
entender ou propor a prática científica, devem estar igualmente presentes indícios interessantes
sobre como (na literatura que o autor enfatiza, principalmente anglo-americana) os fenômenos da
língua são valorizados nessa mesma prática. Assim, se fôssemos eleger, por exemplo, um tópico
universal que poderíamos denominar “estratégias de representação”, o esquema deverá ser
altamente sugestivo em falar-nos tanto de períodos de consenso ou divergência (linguística
sincrônica), quanto de notáveis transições ocorridas no tempo (linguística diacrônica).
2. O estudo de caso: descrição geral do tema; justificativas e objetivos; hipótese-guia
Os estudos sobre “História do Pensamento Geográfico” (campo em que, no país, os temas de
“segunda ordem” da disciplina costumam ser tratados) raramente exploram outros parâmetros da
linguagem, que não o discurso, em sua vertente social crítica. Provável fruto de uma afinidade
ideológica com os imaginários em torno do que se entende por “ciências humanas” (a qual parece
impor diagnósticos acerca, sobretudo, dos determinantes sociológicos), a menor atenção aos
aspectos estrutural e cognitivo por trás da comunicação do conhecimento torna-os, por
conseguinte, uma grande e interessante lacuna a ser explorada pelos epistemólogos da Geografia.
É alvissareiro, porém, o aparecimento pontual de resultados de pesquisa em que seus autores
nitidamente se esforçam em construir um quadro sistemático para levar a cabo uma análise mais
sofisticada daquilo que, displicentemente, muitos sumariam sob o designativo “discurso”.
Trabalhos como os de Costa (2013) ilustram muito bem essa espécie de compromisso com uma
construção metodológica abastecida pelo aporte da literatura em Linguística. Este jovem
pesquisador elaborou índices de qualificação – que chamou “gênero de discurso” e “recurso
argumentativo”, p.ex. –, pelos quais classificou as inclinações epistemológicas do pensamento
geográfico de Milton Santos (1926-2001). E concluiu a existência de “variantes”, identificadas ao
longo das primeiras décadas da trajetória intelectual do personagem.
Mas com a preponderância de pesquisas que dão relevo prioritário às motivações contextuais da
produção do conhecimento geográfico, restam pobremente avaliadas perspectivas outras (lógico-
estruturais), que também operam na constituição da prática e da linguagem científicas: estratégias
representacionais, análises de consistência, critérios de julgamento etc. Certo expediente ao largo
do qual não apenas a comunidade de epistemólogos da Geografia, mas muitos outros analistas de
ciências sociais têm passado displicentemente, possui uma notável qualidade: enfatizando (a
princípio) o aspecto lógico das produções textuais, conjuga-lo ao sociológico.
Já há muito percebida por outros estudiosos em Filosofia da Ciência (particularmente os
interessados em ciências naturais), a vantagem de devotar atenção a questões tais como
“vocabulário” e “argumentação” reside no esclarecimento que a linguagem tende a oportunizar:
por determinados signos, ela demonstra o acordo entre formas de racionalidade e sustentação de
convicções. Isto é, no próprio fato de que ela, linguagem, pressupõe processos cognitivos e
motivações socioculturais; processos que, num acordo aproximativo entre Epistemologia e
Linguística, traduziriam, igualmente, o “internalismo” e o “externalismo” da língua do cientista.
Entendemos que um projeto de pesquisa orientado a fazer ver a utilidade em estreitar os dois
campos (numa teoria da produção do conhecimento geográfico, no caso) pode cumprir pelo
menos duas funções úteis e operacionais: 1ª) a de sofisticar a compreensão sobre a “natureza da
ciência” (propondo, pela referida aproximação, modelos alternativos de tratamento
metodológico); e 2ª) a de contribuir à instrumentação das dinâmicas de ensino, sendo que com o
preciso desígnio de diversificar a aprendizagem (no âmbito da formação universitária) dos
chamados temas de “segunda ordem” (metacientíficos, ou simplesmente epistemológicos).
Divulgamos aqui os traços gerais de uma modalidade de pesquisa. Por um lado, ela está sendo
posta em execução (mas sob uma perspectiva particular1) em temporada de pós-doutoramento
1 No caso particular de nossa pesquisa de Pós-Doutorado (cujo projeto intitula-se « Histoire, Philosophie et Langage
de la Science : analyse linguistique des systèmes philosophiques sous-jacents aux théories géographiques »), o
propósito especial é o de verificar (i) o quanto duas tradições de pesquisa em Geografia (vigorantes nas épocas
chamadas « L’Âge d’Or », entre os anos aprox.1890-1950, e « Nouvelle Géographie », entre aprox.1960-1980)
produziram um conhecimento científico “filosoficamente orientado” (pelos sistemas de pensamento,
respectivamente, « Positiviste » e « Néopositiviste »); e (ii) o quanto esta orientação se permite demonstrar por
“estigmas linguísticos” (representados pelas mencionadas quatro chaves de linguagem). A duração prevista da
pesquisa foi de seis meses (01Fev.–31Jul.2018).
junto ao IHPST, “Institut d’Histoire et de Philosophie des Sciences et des Techniques”, sob
supervisão do Professor Michel Bourdeau. Por outro, o projeto visa aprimorar programas
preliminares de investigação, já aplicados com alunos de Iniciação Científica da Universidade de
Brasília, há cerca de cinco anos (REIS JR. et al., 2016; COELHO; REIS JR., 2017).
Em plano geral, objetivamos (A) examinar a evolução e o estado atual da literatura sobre
linguagem (especialmente pelas chaves “argumento”, “discurso”, “vocabulário” e “retórica” –
vinculando-as, tanto quanto possível, à linguagem entendida como do gênero “científica”); (B)
constituir, a partir daí, um modelo tipológico para a análise da linguagem geográfica; e (C) incidir
o protótipo sobre três emblemáticas amostras de documentos textuais (respectivas aos matizes de
pensamento geográfico chamados “Teorético”, “Radical” e “Humanista”), a fim de verificar se
aquelas quatro expressões da linguagem assumem conteúdos variantes, a depender dos preceitos
filosóficos subjacentes a cada corrente ou tendência. Em ângulo mais específico, objetivamos (i)
inspecionar a literatura em Linguística em busca de obras (livros e artigos) que demarquem,
como possuidoras de significação particular, aquelas quatro expressões-chave da linguagem; (ii)
[subentendendo a saliência da bibliografia especializada] destacar da literatura que trata de
“argumento”, “discurso”, “vocabulário” e “retórica” em ciência, elementos que sustentem as
ideias (respectivamente) de “construção lógica” da linguagem, de linguagem como “prática
contextual”, de linguagem como “articulação conceitual” e de linguagem como “explanação
persuasiva”; e (iii) amostrar e inspecionar, à luz do virtual protótipo linguístico, obras
(prioritariamente fontes primárias) de personagens protagonistas em cada um dos três matizes
epistemológicos da Geografia (GT, GR e GH) – na intenção de constituir potencial acervo
linguístico para futuras análises comparativas.
No Projeto de post-doc, em particular, instituímos as concepções de “operadores linguísticos” e
de “estilos de declaração”. Os primeiros vindo a ser justo aquelas quatro “chaves” destacadas
acima; enquanto os segundos estabelecem um modo de atestar, pelo viés da linguagem
empregada pelos personagens, o quanto a “tradição de pesquisa científica” especialmente
vinculada à chamada Geografia Teorética (“TPCGT”, veiculada nos textos selecionados) tem
correspondência com o “sistema de pensamento filosófico” alegado como lhe sendo subjacente: o
(neo)Positivismo (“SPF(n)P”).
FIGURA 2
[“Estigma linguístico” de uma influência filosófica – caso GT (nossa organização)]
A ideia é desenvolver um estudo pelo qual, neste propósito de aproximar os campos tradicionais
do filósofo da ciência e do linguista, possamos nos debruçar sobre a linguagem do geógrafo na
história da disciplina – analisando, por exemplo, até que ponto as chamadas “escolas de
pensamento” (que preferimos chamar “correntes”, ou tendências, de pensamento em ciência)
permitem-se caracterizar por um respectivo “léxico”. Mas, mais que isso, o quanto elas se
permitem identificar por “estilos de argumentação”; sendo que, para esta específica expressão
linguística, conjecturamos que uma hipótese mais razoável deva ser negativa: “As correntes ‘não’
distinguem-se pela estrutura dos argumentos, ainda que vocabulários respectivos possam
insinuar que sim”.
3. Materiais e procedimentos para o desenho do modelo
Demos já a entender na seção anterior, a pesquisa deve prever, antes do exame propriamente da
amostra de textos “geográficos”, certas ações de fundamentação: inventário bibliográfico junto a
um manancial híbrido de literatura (textos acadêmicos em torno da interface linguagem–ciência)
e design de um protótipo ou modelo de partida, em que apareça sugerida uma dada articulação
entre os parâmetros distintivos da linguagem. Como se depreende, esta segunda ação presume
que a bibliografia analisada na antecedência sustente minimamente a hipótese ad hoc da
“articulação entre parâmetros”. Para tal, deve-se procurar identificar naquela literatura
miscigenada assertivas de algum modo coordenadas às seguintes pressuposições: (a) teóricos da
linguagem reconhecem que se possa definir um campo de análise particular para o que seria o
“caso ciência”, digamos; (b) estes mesmos profissionais também reconhecem como razoável uma
demarcação identitária das expressões da linguagem; e (c) é aceitável que algumas dessas
expressões sejam entendidas como possuidoras de um caráter essencialmente lógico, enquanto
outras possuiriam uma identidade mais ideológica. Sendo assim, uma vez selecionada dada
amostra de textos científicos (preferencialmente livros icônicos em cada paradigma reconhecido),
procede-se ao exercício de estimar o quanto cada parâmetro linguístico coopera à diferenciação
(ou, quem sabe, à demonstração de semelhanças) entre as tradições de pesquisa surgidas na
história do campo científico. E, em complemento, o quanto um parâmetro internalista (lógico-
estrutural) necessariamente aproxima os matizes, ao passo que um parâmetro externalista
(sociológico-contextual) tenderia a discerni-los.
Entendemos que sendo confirmada a hipótese de que autores vinculados a um certo matiz
epistemológico, naturalmente tendem a expressar um modo particular de construção textual, fica
corroborada a tese de que há sim uma compatibilidade suficientemente clara entre Linguística e
Filosofia da Ciência (correspondência ainda subexplorada em Geografia; porém, fértil para
robustecer a formação epistemológica de estudantes e futuros professores da disciplina).
FIGURA 3
[Três obras icônicas da evolução do pensamento geográfico examinadas (nossa organização)]
3.1 O primeiro protótipo de um modelo de articulação
Baseados, preliminarmente, em alguns manuais de linguística (BUSSMANN, 2006;
CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2016), vimos como possível a proposição dos seguintes
significados coordenados para as quatro expressões da linguagem (L):
- Argumento (A) é expressão da linguagem que se caracteriza por uma estruturação lógica
municiada por raciocínios inferenciais. Sob uma perspectiva epistemológica, pode ser
considerada, portanto, uma variante “Internalista” (I).
- Discurso (D) é expressão geral da linguagem que se caracteriza pela transmissão de valores
socialmente condicionados. Apresenta-se, assim, como variante “Externalista” (E).
- O vocabulário (v) é expressão que define, para cada linguagem especialista, um léxico; e,
considerando que as especializações se dão no seio de uma comunidade, ele exprime uma
articulação conceitual, relativamente estável, que veicula valores partilhados por essa
comunidade. Entendemos que possa ser considerada, por isso, uma espécie de “subvariante
internalista” (i) da Variante Externalista Discurso.
- A retórica (r) é expressão da linguagem que se caracteriza por ser uma comunicação persuasiva;
e, considerando que táticas de convencimento pressupõem a validação de uma certa visão de
mundo, ela exprime um plano para incitar ou demover o interlocutor. Seria, por conseguinte, uma
subvariante externalista (e) da Variante, ela própria já Externalista, Discurso.
FIGURA 4
[Enquadramento epistemológico das expressões da linguagem (nossa organização)]
Quanto ao parâmetro do argumento, em particular, ele vem inspirando estudos bastante
interessantes no âmbito do Ensino de Ciências; quando, pelo termo “argumentação”, os
pesquisadores o exploram no intuito de demonstrar a dimensão racionalista da prática científica –
p.ex., estimulando a que estudantes de Licenciatura compreendam (e, depois, retransmitam a seus
futuros alunos) a estruturação das modalidades de raciocínio e explanação. “Scientific arguments
are [...] important because they expose the justification for belief in the scientific worldview and
the underlying rationality that lies at the heart of science.” (OSBORNE; ERDURAN; SIMON,
2004, p. 998, grifo nosso); “[...] the logical element [‘in a school scientific argumentation’],
meaning that arguments have a rich syntactic structure and can be formalized as reasoning
patterns (for instance: deductive, abductive, analogical, relational, causal, functional) [...]
(ADÚRIZ-BRAVO et al., 2005, p. 78, g. n.).
Nestes mesmos estudos, que, a bem dizer, exploram a fronteira entre Epistemologia e Didática,
costuma haver o recurso a um modelo tornado célebre, e concebido, aliás, por um dos autores
presentes no “peixe” de Adúriz-Bravo (2013). Trata-se de Stephen Toulmin e seu “padrão de
argumento”. Modelo apresentado no livro The Uses of Argument (1958), em linhas gerais
estabelece que toda cadeia de explanação pode ser decomposta em seis elementos: Claim (a
alegação, ou afirmação “conclusiva”, cujo mérito será estabelecido pelo argumento), Data (dados
ou “fatos” trazidos para dar suporte ao argumento), Warrant (regra que “garante” ou dá
justificação à correspondência dado↔afirmação), Backing (o “apoio”, ou suposições subjacentes
às regras), Qualifiers (condições para que “então, provavelmente” a afirmação seja verdadeira) e
Rebuttal (condições do tipo “a menos que”, quando se reconhece que ela até poderia ser
invalidada). A “garantia” (Warrant) é uma afirmação geral e hipotética aceitável; uma proposição
que serve como ponte para justificar e pautar a relação entre os dados (anteriormente
apresentados) e a alegação. O “apoio” (Backing) é necessário para reforçar e estabelecer a
garantia; é uma fundamentação, mas que possivelmente varia de acordo com o campo de estudo.
Queremos entender que o padrão de argumento de Toulmin, embora não se alinhe a uma
concepção chomskyana “dura” (que sustenta o papel, na linguagem, de faculdades cognitivas
inatas), dá suficiente realce à ideia de que, quando argumentamos, estamos linguisticamente
dando uma expressão ordenada ao raciocínio – e isso, é legítimo presumir, não vai estar tanto na
dependência de posicionamentos contextualmente inscritos (o que já definiria uma concepção
foucaultiana). Pelo menos em se tratando da “armação lógica” do argumento, é claro. Pois que
alguns dos elementos do modelo de Toulmin, no quesito “conteúdo” digamos (ou, os enxertos
vocabulares à armação lógica), naturalmente indicarão valores e crenças do sujeito argumentador.
FIGURA 5
[Adaptação aproximada do modelo de Toulmin a um caso de argumentação em GR (nossa organização)]
Ainda assim, preferimos destacar a função de veículo, por excelência, dessa espécie de juízo
“conjunturalmente inscrito” (época histórica, lugar geográfico, círculo social) para a expressão de
linguagem Discurso – respeitando, portanto, uma acepção que já está consagrada. Por outro lado,
na intenção de ressalvar a complexidade desses termos todos, propomos que dentro de uma
própria tipologia de discurso (o de uma disciplina científica, p.ex.) a expressão vocabulário
serviria a comprovar que, mesmo no interior de uma modalidade de linguagem tida por
“externalista” por natureza (já que não blindada a demandas e interesses de contexto), verificam-
se traços identitários que poderão constituir um patrimônio bastante peculiar; isto é, o fato de que
o praticante da disciplina científica em questão emprega terminologias que os de outras não
utilizam e possivelmente até desconheçam.
FIGURA 6
[Amostra de vocabulários respectivos a três correntes da Geografia (nossa organização)]
Considerações
O tema “linguagem” é, de fato, antigo na literatura epistemológica. Toda a recomendação de
rigor em torno do estilo explanatório que a scientific explanation deveria praticar já indicava
mesmo o caráter decisivo que ela, linguagem, assumia entre os teóricos da ciência do início do
século vinte. Mas como preponderou, de início, o entendimento de que a lógica de enunciados
definia um âmbito estritamente cognitivo para as estruturas linguísticas e, em seguida (com a
emergência da filosofia da ciência historicista), o logicismo perde o holofote para os
determinantes sociológicos, logo pareceu insuficiente ou irrelevante a consideração dessas
referidas estruturas. No entanto, negligenciavam-se, deste modo, as dimensões da linguagem que
também permitem a identificação de valores e ideologias ligados a contexto.
Nossa intenção foi a de apresentar um projeto de pesquisa (parcialmente executado no primeiro
semestre de 2018) que visa possibilitar a análise filosófica e histórica de disciplinas científicas à
base de um protótipo fundamentado em estudos de linguagem. O detalhe diferencial é que este
protótipo concebe uma articulação entre expressões linguísticas que tanto denotam a operação
geral do raciocínio (“argumentação”), quanto veiculam inclinações ancoradas em valores que são
mais conjunturais que propriamente lógicos (“discurso”, “vocabulário” e “retórica”). O modelo
coordena, assim, as funções cognitiva e social da linguagem. E o fazendo incidir sobre um
particular estudo de caso: a evolução do pensamento geográfico – manifesta pela eclosão de
distintas tradições de pesquisa. Tais tradições têm, segundo literatura da área, um substrato
filosófico respectivo (“positivista”, “marxista”, “fenomenológico” etc.); assim, nosso objetivo
tem sido o de verificar se essa suposta orientação de pensamento se permite identificar
precisamente por aquelas expressões de linguagem. Objetivo que decorre de uma questão-chave,
mobilizadora da pesquisa: os estilos de explanação estarão sempre em conformidade com o
horizonte filosófico assumido pelos personagens da ciência autores de textos? Questão que, por
sua vez, estimula uma hipótese de teste: se sistemas de pensamento filosófico influenciam
tradições de pesquisa científica (suas cláusulas ou preceitos aparecendo transmutados sob a forma
de premissas ou atributos identificados em modalidades de proposição explicativa), essa
“influência” deve ser atestada por certos modos de comunicar ou exprimir juízos – conceitos,
modelos teóricos, estilos de alegação (que serviriam de “estigmas linguísticos”, portanto).
Uma das questões que surgem como pertinentes, acerca do enquadramento funcional que as
quatro expressões da linguagem podem ter na análise de textos científicos tem a ver com as
múltiplas perspectivas que cada uma delas, eventualmente, possui. Muitos de nós, por exemplo,
enxergariam no modelo toulminiano uma forma de persuasão. Assim sendo, a força persuasiva de
um argumento não residiria tanto no aspecto lógico de sua estruturação (que parece advir
independentemente de uma “decisão consciente” de convencer), mas nas próprias deliberações,
bem esclarecidas, sobre que sentenças encadear a fim de que a sequência argumentativa venha a
ter o efeito desejado no leitor. Os contextos social e histórico teriam de ser considerados, então,
numa análise de argumentação. Mesmo porque a presença/ausência do elemento Rebuttal pode
dizer muito sobre a postura intelectual assumida (de modo consciente ou não) pelo autor do texto.
E até por essa razão, é necessário admitir, ademais, ser provavelmente dificultoso encontrarmos
um padrão estrutural argumentativo que esteja subjacente a diferentes textos de distintas
correntes de pensamento; ou mesmo que todos os seis elementos do modelo de Toulmin sejam
nitidamente identificados. Isso porque nada impede que, no seio de uma mesma comunidade
aderida a certo paradigma ou tradição de pesquisa, os representantes assim irmanados decidam
por táticas enunciativas bastante pessoais – gerando, quem sabe, várias “assinaturas”, ainda que
advogando o mesmo ideário de ciência. Do mesmo modo, pode não ser muito evidente que
distintas tradições de pesquisa operarão, linguisticamente, por discursos diferenciados; ainda que
para o quesito vocabulário pareçam inequívocos a definição e o usufruto de um respectivo léxico.
Expressões “externalistas” da linguagem (tal como a retórica r) servem, necessariamente, de
parâmetro indicativo de diferença entre correntes de pensamento? Afinal, apenas geógrafos
radicais seriam tendentes a persuadir/dissuadir os interlocutores com suas ideologias? Do mesmo
modo, expressões “internalistas” da linguagem (o argumento A, em nosso modelo) talvez não
obrigatoriamente indiquem um ponto comum a elas. Pois, do contrário, como desconsiderar que
os mesmos geógrafos radicais (diferentemente dos teoréticos – “neopositivistas”?) não costumam
agregar a suas cadeias de raciocínio um elemento refutador?
Teriam, ainda assim, uma orientação filosófica as teorizações científicas? (Sendo isso passível de
identificação via estigmas linguísticos?). Apresentamos aqui a construção de um modelo
preliminar que teria a função de fazer ver essa inoculação – protótipo que inclui as noções-chave
de “argumento”, “discurso”, “vocabulário” e “retórica”, enquanto potencialmente reveladoras
daqueles estigmas. Por ora, modelo que ainda não parece robusto o suficiente para validar nossa
hipótese, referida acima.
Referências
ADÚRIZ-BRAVO, A. School science as intervention: conceptual and material tools and the
nature of science. In: HEERING, P.; KLASSEN, S.; METZ, D. (Ed.). Enabling scientific
understanding through historical instruments and experiments in formal and non-formal learning
environments. Flensburg: Flensburg University Press, 2013. p. 283-301.
ADÚRIZ-BRAVO, A.; BONAN, L.; GONZÁLEZ-GALLI, L.; REVEL-CHION, A.;
MEINARDI, E. Scientific argumentation in pre-service biology teacher education. Eurasia
Journal of Mathematics, Science and Technology Education, v. 1, n. 1, p. 76-83, nov. 2005.
BUSSMANN, H. Routledge dictionary of language and linguistics. London: Routledge, 2006.
CHARAUDEAU, P.; MAINGUENEAU, D. Dicionário de análise do discurso. São Paulo:
Contexto, 2016.
COELHO, M. J. V.; REIS JR., D. F. C. Argumentação e vocabulário científicos: análise
linguística de textos geográficos teoréticos, radicais e humanistas. In: AFHIC, 11., 2018. Anais ...
Buenos Aires: Universidad Nacional de Tres de Febrero.
COSTA, P. H. F. O “Jovem Milton Santos”: personagem do protótipo metodológico: revelar
(matrizes clássicas originárias) para definir (vanguarda, universalidade e viés geográfico). 2013.
225f. Tese (Doutorado em Geografia). Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Universidade
Estadual Paulista, Rio Claro, 2013.
HAGGETT, P.; CHORLEY, R. J. Models, paradigms and the new geography. In: CHORLEY, R.
J.; HAGGETT, P. (Ed.). Models in geography. London: Methuen, 1967. p. 19-41.
HARVEY, D. Social justice and the city. London: E. Arnold, 1973.
LORENZANO, P. La teorización filosófica sobre la ciencia en el siglo XX (y lo que va del XXI).
Discusiones Filosóficas, v. 12, n. 19, p. 131-154, dic. 2011.
MOULINES, C. U. El desarrollo moderno de la filosofía de la ciencia (1890-2000). Ciudad de
México: UNAM, 2011.
OSBORNE, J.; ERDURAN, S.; SIMON, S. Enhancing the quality of argumentation in school
science. Journal of Research in Science Teaching, v. 41, n. 10, p. 994-1020, 2004.
REIS JR., D. F. C.; SOARES, E. A. S.; MOURA, L. D. M.; BEZERRA, R. R. D. Epistemologia
e linguagem: conjectura de um “modelo de correspondência” e ensaio-teste em um experimento
preliminar. Geographia Meridionalis, v. 2, n. 1, p. 63-83, jan./jun. 2016.
TOULMIN, S. The uses of argument. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 2003.
TUAN, Y.-F. Topophilia: a study of environmental perception, attitudes, and values. Englewood
Cliffs: Prentice-Hall, 1974.
Abstract
Aiming to contribute to the narrowing of the fields of Epistemology and Linguistics, we present
the conception of a research program that targets the case of geographic science. Our
underlying hypothesis is twofold: (i) if we take texts representative of some of the paradigms of
Geography, we identify authors who operate in a linguistically distinct way; however, (ii) diverse
and peculiar vocabularies do not prevent the identification of similar modalities of argumentative
reasoning. The proposed analysis is “epistemological” insofar as it is intended to make possible
the verification of how certain systems of thought ground philosophically given traditions of
scientific research; hence, a notion of correspondence. And it is “linguistic” because we want to
demonstrate the potentiality of language as an intermediary in the analysis of this so-called
“articulation”.
Keywords: language of science; philosophy of science; history of geographic thought.