EM BUSCA DE UM ETHOS: NARRATIVAS DA FUNDAÇÃO DA … · RESUMO Com o ensejo de cultivar a memória...

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  • DANIELA OLIVEIRA DE CARVALHO VERISSIMO E MELO

    EM BUSCA DE UM ETHOS: NARRATIVAS DA FUNDAO DA

    TERAPIA OCUPACIONAL NA CIDADE DE SO PAULO

    (1956-1969)

    VOLUME 01

    Dissertao apresentada Universidade

    Federal de So Paulo - UNIFESP para

    obteno do ttulo de Mestre Profissional em

    Ensino em Cincias da Sade.

    SO PAULO

    2015

  • DANIELA OLIVEIRA DE CARVALHO VERISSIMO E MELO

    EM BUSCA DE UM ETHOS: NARRATIVAS DA FUNDAO DA

    TERAPIA OCUPACIONAL NA CIDADE DE SO PAULO

    (1956-1969)

    VOLUME 01

    SO PAULO

    2015

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE SO PAULO

    CENTRO DE DESENVOLVIMENTO DO ENSINO SUPERIOR EM SADE

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO ENSINO EM CINCIAS DA SADE

    EM BUSCA DE UM ETHOS: NARRATIVAS DA FUNDAO DA

    TERAPIA OCUPACIONAL NA CIDADE DE SO PAULO

    (1956-1969)

    VOLUME 01

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-

    graduao Ensino em Cincias da Sade do

    Centro de Desenvolvimento do Ensino

    Superior em Sade (CEDESS) da

    Universidade Federal de So Paulo

    (UNIFESP) para obteno do ttulo de Mestre

    Profissional em Ensino em Cincias da Sade.

    Orientador: Prof. Dr. Dante Marcello

    Claramonte Gallian

    SO PAULO

    2015

  • DANIELA OLIVEIRA DE CARVALHO VERISSIMO E MELO

    EM BUSCA DE UM ETHOS: Narrativas da Fundao da Terapia

    Ocupacional na Cidade de So Paulo (1956-1969)

    VOLUME 01

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-

    Graduao Ensino em Cincias da Sade do

    Centro de Desenvolvimento do Ensino

    Superior da Universidade Federal de So

    Paulo para obteno do ttulo de Mestre

    Profissional em Ensino em Cincias da Sade.

    rea de Concentrao: Ensino em Cincias

    da Sade

    Orientador: Prof. Dr. Dante Marcello

    Claramonte Gallian

    BANCA EXAMINADORA

    Prof Dr Dante Marcello Claramonte Gallian (Presidente)

    Prof Dr Tas Quevedo Marcolino (UFSCar)

    Prof Dr Sandra Maria Galheigo (USP)

    Prof Dr Rosana Rossit (UNIFESP)

    Prof Dr Fabola Holanda Barbosa Fernandez (Suplente)

    So Paulo, 10 de junho de 2015.

  • Pilar

  • AGRADECIMENTOS

    s professoras Marcela e Selma por transmitirem o apreo pela Histria.

    Aos colegas da turma, funcionrios e docentes do Programa de Ps-Graduao

    Ensino em Sade do Centro de Desenvolvimento em Ensino Superior da

    Universidade Federal de So Paulo pela sensibilidade durante minha gestao

    e perodo de licena-maternidade.

    s docentes Bel, Carminha, Denise, Mari, Sandra, Betinha, Eli, Bete, Fernanda,

    Selma, Maria Helena, Ftima, Eucenir e, em especial, Marta por se dedicarem

    ao curso de Terapia Ocupacional da Universidade de So Paulo e por me

    formarem terapeuta ocupacional.

    A todos os colegas da Turma 34 do curso de Terapia Ocupacional da

    Universidade de So Paulo por compartilharem a experincia da graduao, em

    toda sua complexidade, em especial, Ellen Cristina Ricci e Karen de Arruda

    Zerrenner.

    s terapeutas ocupacionais Caroline Palermo Carlone, Daniela Figueiredo

    Canguu, Gabriela Cruz de Moraes, Snia Ferrari e Tatiane Ceccato por

    acolherem meus primeiros passos profissionais e por me indicar um caminho a

    seguir.

    J por respeitar minha formao e lapid-la.

    A Fabiola pelo incentivo pesquisa e Rosana, Sandra e Tais por investirem

    seus afetos e conhecimentos em nosso encontro.

    Ao meu orientador, Professor Dante, pela preciosa conduo e por confiar na

    realizao deste trabalho desde a primeira conversa.

    s colaboradoras desta pesquisa pela generosidade com que se dispuseram ao

    projeto.

  • Aos meus pais, Joo Lus e Marli, por me ensinarem que a educao sempre

    ser o melhor investimento e a melhor herana.

    minha irm, Gabriela, por sua amizade, carinho e presena incondicionais.

    Ao meu esposo, Gneves, pelo emprstimo do dicionrio de grego e pelo amor

    que construmos e vivemos daquele dia em diante.

    minha filha, Pilar, por me presentear todos os dias com sua vida e me lanar

    em novas histrias.

  • Nos bailes da vida

    Compositor: Milton Nascimento

    Foi nos bailes da vida ou num bar

    Em troca de po

    Que muita gente boa ps o p na profisso

    De tocar um instrumento e de cantar

    No importando se quem pagou quis ouvir

    Foi assim

    Cantar era buscar o caminho

    Que vai dar no sol

    Tenho comigo as lembranas do que eu era

    Para cantar nada era longe tudo to bom

    At a estrada de terra na boleia de caminho

    Era assim

    Com a roupa encharcada e a alma

    Repleta de cho

    Todo artista tem de ir aonde o povo est

    Se for assim, assim ser

    Cantando me disfaro e no me canso

    De viver nem de cantar

  • Em busca de um ethos: Narrativas da Fundao da Terapia Ocupacional na

    Cidade de So Paulo (1956-1969)

    RESUMO

    Com o ensejo de cultivar a memria profissional e ampliar o debate

    historiogrfico, a presente pesquisa visa compreender a fundao da Terapia

    Ocupacional na cidade de So Paulo e, em especial, identificar o ethos dos

    profissionais engajados neste processo. Para reduzir a escala de observao e

    aprofundar o estudo, foi necessria a delimitao espacial o municpio de So

    Paulo e temporal de 1956, ano de criao do Instituto Nacional de

    Reabilitao (INAR) a 1969, ano de regulamentao da profisso com o Decreto-

    lei 938/69. Cabe salientar que trataremos das bases, da fundao, da profisso

    em uma determinada cidade e no pretendemos afirmar que ela foi o bero do

    estabelecimento da profisso no Brasil. Dada a escassez de pesquisas de cunho

    historiogrfico sobre a Terapia Ocupacional no pas, conhecer trajetrias de vida

    de terapeutas ocupacionais participantes da fundao da profisso nesta cidade

    nos pareceu o melhor caminho a ser trilhado e, para tanto, adotamos a histria

    oral de vida como metodologia especfica da Histria. Findo processo de

    Imerso/Cristalizao trs categorias de anlise foram discutidas, a saber:

    Projeto poltico-pedaggico; Profisso humanista fundada por mulheres;

    Orfandade e legado profissional. Deflagramos a constituio da profisso como

    resultado de um imbricado jogo de foras, interesses e discursos entre as

    prprias terapeutas ocupacionais no contexto de enfraquecimento poltico do

    Servio Social e ascenso da Psicologia no interior da instituio de ensino

    responsvel pelo primeiro curso na cidade de So Paulo. No segundo volume,

    as narrativas transcriadas das cinco colaboradoras sero apresentadas, alm de

    nossa proposta de interveno na realidade como desdobramento da pesquisa

    de acordo com os pressupostos do programa de mestrado profissional em que

    nos inserimos.

    Palavras-chave: Terapia Ocupacional. Terapia Ocupacional/Histria.

    Identidade Profissional. Histria Oral de Vida. Narrativas.

  • Looking for an ethos: Narratives of Occupational Therapy Foundation in the

    City of So Paulo (1956-1969)

    ABSTRACTY

    With the opportunity to cultivate professional memory and expand the

    historiographical debate, this research aims to understand the foundation of

    Occupational Therapy in the city of So Paulo and, in particular, identify the ethos

    of professionals engaged in this process. To reduce the scale of observation and

    intensify the study, the espatial delimitation was necessary - the city of So Paulo

    as well as temporal delimitation - 1956, year of creation of the INAR to 1969,

    year of regulation of the profession . It should be noted that the research deals

    with the foundation of the profession in a particular city and do not intend to assert

    that it was the birthplace of the establishment of the profession in Brazil. We

    adopted the oral history of life as a methodological approach because

    historiagraphical researche of Occupational Therapy is scarce in this country.

    Ended process of Immersion/ Crystallization, three categories of analysis were

    discussed: Political and pedagogical project; Humanistic profession founded by

    women; Orphanhood and professional legacy. We understand the establishment

    of the profession as a result of an interwoven set of interests and discourses in

    their own occupational therapists in the context of political weakening of Social

    Work and rise of Psychology in the educational institution that offering the course

    in So Paulo. Finally, we will present the full narratives of the five collaborators

    and, as research unfolding, a proposal for intervention in reality researched.

    Keywords: Occupational Therapy. Occupational Therapy/History. Professional

    Identity. Oral History of Life. Narratives.

  • 1

    SUMRIO

    Introduo ..................................................................................................03

    1.1. Memrias de pesquisadora, histria do projeto ...............................04

    1.2. Consideraes iniciais para aproximar a Terapia Ocupacional da

    Histria ...................................................................................................10

    1.3. Historiografia: a escrita da histria na perspectiva dos Analles e da

    Histria Oral ............................................................................................13

    1.4. Formas de compreender a constituio da Terapia Ocupacional no

    Brasil .......................................................................................................15

    1.5. Objetivos ..........................................................................................22

    1.6. Estrutura da dissertao ..................................................................22

    Captulo 1 - Por uma nova histria: (re) visitando o contexto de

    surgimento da profisso ...........................................................................24

    2.1. Parte 1 A Terapia Ocupacional nos Estados Unidos ................24

    - Os Estados Unidos no incio do sculo XX ................................ 25

    - A Criao da Hull House ............................................................27

    - As razes da Terapia Ocupacional ..............................................29

    2.2. Parte 2 A Terapia Ocupacional no Rio de Janeiro ....................39

    2.3. Parte 3 - A Terapia Ocupacional em So Paulo ..........................48

    Captulo 2 - Percurso Metodolgico .........................................................63

    3.1. Histria Oral e suas etapas ..........................................................63

    3.2. Composio da rede ....................................................................67

    3.3. Os desdobramentos do encontro com as colaboradoras na

    pesquisa .......................................................................................68

    3.4. Anlise de Dados .........................................................................70

    Captulo 3 - Resultados e Discusso ..............................................................72

    4.1. Projeto poltico-pedaggico ..........................................................72

    4.2. Profisso humanista fundada por mulheres .................................83

    4.3. Orfandade e legado profissional ...................................................89

  • 2

    Concluso ........................................................................................................98

    Referncias ....................................................................................................102

    Bibliografia ......................................................................................................102

    Filme ...............................................................................................................109

    Fontes Primrias .............................................................................................109

    Jornais .............................................................................................................109

    ANEXOS .........................................................................................................110

    Anexo 01 Relao de Scios Fundadores e Primeira Diretoria do Centro

    Acadmico Arnaldo Vieira de Carvalho (CAAVC) ............................................111

    Anexo 02 Lista de alunos dos cursos de Fisioterapia e Terapia Ocupacional do

    Instituto de Reabilitao elaborada pelo CAAVC .............................................113

    Anexo 03 - Proposta curricular de Elizabeth Eagles para o curso de Terapia

    Ocupacional do Instituto de Reabilitao .........................................................115

    Anexo 04 Carta do Instituto de Reabilitao interessada no curso de Terapia

    Ocupacional ....................................................................................................116

    Anexo 05 Parecer Consubstanciado do Comit de tica e Pesquisa da

    UNIFESP .........................................................................................................117

    Anexo 06 Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ..............................120

    Anexo 07 Resultado da seleo dos candidatos aos cursos do Instituto de

    Reabilitao ....................................................................................................122

  • 3

    INTRODUO

    1.1. Memrias de pesquisadora, histria do projeto

    Sou paulistana e fao aniversrio em 25 de janeiro, dia de So Paulo.

    Carrego um sobrenome quase quatrocento, mas, no se engane: sou

    descendente de migrantes nordestinos e filha de professores da rede municipal

    de ensino. Cresci no bairro de So Miguel Paulista, extremo da Zona Leste da

    cidade. Apesar da distncia do centro e incipincia rede de servios e transporte

    pblico, tive o privilgio de acessar a riqueza da cultura do Nordeste por meio da

    tradio oral, da msica, dos temperos, da dana.

    Neta de baianos e filha de piauiense, cresci ao lado de filhos e netos de

    pernambucanos, cearenses, alagoanos, sergipanos e outros baianos em solo

    paulista. Isto significa que, quando Diego Ayres Guerreiro, do alto de seus seis

    ou sete anos, tocou uma sanfona imaginria e, xaxando, entoou o rio s

    Francisco vai bat no mei do ma1, a professora Valria no conseguiu controlar

    a classe, tampouco, suas risadas pois, mesmo no interior do melhor colgio

    particular do bairro, todos conheciam a msica, todos sabiam que ele imitava

    com perfeio o timbre e a performance de Luiz Gonzaga.

    Na mesma poca, muitos amigos do condomnio onde morava

    ingressaram na catequese, mas no pude acompanh-los no curso. Minha me,

    Marli Oliveira de Carvalho, e meu pai, Joo Lus Verssimo de Melo, tementes

    Marx, explicaram-me que a religio o pio do homem e orientaram-me a

    responder assim para a crianada caso algum perguntasse o porqu de no

    frequentarmos Igreja. Foi neste momento que estreitei meus laos com a

    escola e com os amigos de l. Isadora Anglica Franco e, posteriormente,

    Juliana Velasques Domingos de Melo so duas grandes amigas da escola para

    a vida.

    Devo minha av, Lourdes Oliveira Lopes, e minha tia, Ftima Oliveira

    de Carvalho, a iniciao no mundo cor-de-rosa de mimos, penteados, frufrus,

    vestidos, pulseiras, cremes, babados, contos de fada, perfumes e toda a sorte

    de frivolidades para uma feminista mais aguerrida. Justamente, em um de

    1 O rio So Francisco vai bater no meio do mar, trecho da msica Riacho do Navio de Luiz Gonzaga.

  • 4

    nossos passeios, minha tia me levou para assistir ao filme O Corcunda de Notre

    Dame2: opresso e perseguio do povo cigano pelo governo francs, uma

    criana com deficincia humilhada e chamada de monstro que cresce e vive

    isolada na torre de uma igreja. Quando Quasmodo saiu s ruas foi humilhado e

    torturado pela multido foi defendido por uma cigana - ora pedinte, ora danarina

    sensual - que lhe teve compaixo, mas no lhe correspondeu o amor. Apesar de

    ser um desenho animado, o enredo no era nada infantil. Onde estaria Jaqueline,

    nica criana com deficincia com quem convivi ainda na primeira srie e que

    abandonou a escola? Onde ficavam as pessoas com deficincia? Na torre das

    igrejas? No havia espao interno para um lanche feliz depois desse filme.

    Anos mais tarde, desisti do curso de Direito ao ler no Manual da FUVEST3

    2003:

    A Terapia Ocupacional um campo de conhecimento e de interveno em sade,

    educao e na esfera social, reunindo tecnologias orientadas para a emancipao e

    autonomia de pessoas que, por razes ligadas problemtica especfica, fsicas,

    sensoriais, mentais, psicolgicas e/ou sociais apresentam temporariamente ou

    definitivamente dificuldade na insero e participao na vida social4

    A inquietao motriz desta pesquisa surgiu em 2003, no comeo da

    graduao em Terapia Ocupacional na Universidade de So Paulo, quando

    cursvamos a primeira disciplina de constituio do campo e histria da Terapia

    Ocupacional com a docente Marta Carvalho de Almeida. Alm do contato com a

    bibliografia clssica sobre o tema, o aprendizado sobre a histria do curso muito

    mobilizou nossa turma profundamente.

    Ausncia de professores. Aulas em escadas e corredores por falta de salas

    de aula. Mobilizao dos alunos por condies mnimas de estudo e contratao

    de professores. Peregrinao da FOFITO5 em diferentes departamentos da

    2 Filmado pelos estdios de Walt Disney, filme inspirado na obra Notre-Dame de Paris de Vitor Hugo. 3 Fundao Universitria para o Vestibular (FUVEST) 4 Trecho da definio de Terapia Ocupacional elaborada pelo curso de Terapia Ocupacional da

    Universidade de So Paulo em 1997.

    5 Frequentemente utilizada, trata-se da abreviao de Fonoaudiologia, Fisioterapia e Terapia

    Ocupacional, cursos que compe um dos departamentos da Faculdade de Medicina da

    Universidade de So Paulo.

  • 5

    Faculdade de Medicina at a criao do Departamento em 1999. Dificuldade de

    dilogo entre alunos e coordenao do curso. Mudana de coordenao.

    Contratao de professores. Alunos que se tornaram professores. Compromisso

    em transmitir aos novos o caminho j percorrido. Convite militncia pela

    profisso. Necessidade de construo de bloco didtico, contratao de mais

    tcnicos e docentes.

    Lembro das acaloradas conversas de minha turma, TO 34, nos intervalos,

    momento em que tentvamos elaborar coletivamente a histria do curso e a

    precariedade do Bloco 8, barraco deteriorado na Cidade Universitria em que

    assistamos s aulas. No raro, questionvamo-nos sobre nossas reais

    possibilidades de levar a profisso adiante. De fato, alguns alunos desistiram j

    nas primeiras aulas e ao longo do primeiro ano do curso.

    Findo o primeiro ano, eu mesma prestei vestibular novamente para o curso

    de Direito e, por um ponto, no alcancei a nota de corte da primeira fase. Um

    querido amigo, Leonardo Assis Lopes me deu a notcia. Ele tambm prestou

    vestibular novamente e ingressou no curso de Psicologia da Pontifcia

    Universidade Catlica de So Paulo (PUC-SP). Existiam outras possibilidades,

    mas decidi ficar.

    Lembro-me de um almoo na casa dos meus avs em que, mais uma vez,

    eu me sentia sabatinada e convocada a dar explicaes sobre minha escolha

    profissional: afinal, o que era essa tal de Terapia Ocupacional que eu iria cursar

    at o fim? Nessa altura, j possua algum estofo terico pois j havia lido as

    dissertaes de algumas das docentes do estado de So Paulo e todo o material

    bibliogrfico das disciplinas e, pretensiosamente, resolvi discorrer sobre a

    trajetria das polticas de sade no Brasil desde as Caixas de Aposentadorias e

    Penses at o Sistema nico de Sade, marcando a funo exercida pela

    Terapia Ocupacional na expanso da indstria em So Paulo no tocante

    recuperao dos trabalhadores acidentados e tudo mais que lembrava.

    Foi quando meu av, Albino Lopes de Carvalho - que sempre pedia para

    comermos em paz e evitarmos assuntos polmicos durante as refeies em

    famlia contou que quando chegou So Paulo trabalhou na instalao da rede

    eltrica, viajando por todo o estado com inmeros outros colegas tambm

    migrantes nordestinos. Falou de seus irmos, outros conterrneos e elencou

    diversas pessoas que conhecamos e seus postos de trabalho na indstria.

  • 6

    Ele prprio trabalhou at ser demitido - s vsperas da aposentadoria - em

    uma grande multinacional de pneus, que trouxe para So Paulo o maquinrio

    considerado ferro velho nos Estados Unidos e cujo critrio de seleo dos

    trabalhadores era a altura - pois os americanos, em mdia, eram mais altos que

    os brasileiros de modo que o funcionrio precisaria caber nos postos de

    trabalho. Relembrou inmeros amigos que foram demitidos aps algum acidente

    de trabalho, sem direito indenizao ou qualquer programa de reabilitao

    profissional.

    Anos-luz do esteretipo do coronel, do jaguno e do cangaceiro, no interior

    das famlias nordestinas, vivemos um matriarcado. Sim. Ento, minha v

    descansou os talheres e sentenciou: era tudo muito bonito o que estava nos

    livros, mas a minha bisav me dela tambm perdera uma parte do dedo e

    foi mandada embora da indstria com uma mo na frente e outra atrs. Na raa

    e sem tratamento, procurou trabalho em outras indstrias porque perder uma

    parte to pequena do corpo no era considerado deficincia. Inclusive, ainda

    de acordo com a minha v, no se teve notcia em So Miguel Paulista e nem

    no Brs onde ela mesma trabalhou como tipgrafa at se casar - de nenhum

    deficiente ou louco que tenha trabalhando na indstria desde que a nossa famlia

    chegou em So Paulo na dcada de 1940. Caramba... Eu e minhas refeies

    felizes em famlia!

    Quando a realidade se mostrava implacvel, Ellen Cristina Ricci ocupava um

    lugar fundamental na constituio de nossa turma como grupo de futuros

    terapeutas ocupacionais e, na amizade que cultivava com cada um de ns.

    Diante de desventuras como o meu almoo de domingo e outras situaes

    vividas pelo grupo, ela soltava um calma, gente! de sotaque bem campineiro

    acompanhado do seu sorriso acolhedor. Sempre tinha gua e mais um pacote

    de bolacha para dividir conosco. Ela era, e ainda , a mezona da nossa turma

    e, no tenho certeza, foi nossa representante discente.

    Rapidamente, aprendemos a utilizar alguns recursos da comunidade uspiana

    como, por exemplo, os banheiros da Faculdade de Economia e Administrao

    (FEA), os computadores da sala pr-aluno da Escola Politcnica (EP), o

    restaurante universitrio do Instituto de Fsica, as feiras de livro da Faculdade de

    Filosofia, Letras e Cincias Humanas (FFLCH), etc. Assim como eu, a maioria

    do grupo permaneceu e se formou. De qualquer modo, as desistncias e a

  • 7

    vontade de investir na profisso deixaram marcas profundas em minha formao

    pessoal e profissional, assim como a rede de solidariedade e apoio mtuo dos

    alunos, professores e colegas de trabalho.

    Enfim, graduei-me terapeuta ocupacional pela Faculdade de Medicina da

    Universidade de So Paulo em dezembro de 2006 e, no ano seguinte, ingressei

    no Programa de Aprimoramento Profissional6 promovido pelo CAPS Prof. Lus

    da Rocha Cerqueira, comumente, chamado de CAPS Itapeva servio pblico

    de sade mental destinado ao atendimento de pessoas com transtornos mentais

    severos e persistentes (psicticos e neurticos graves) e cujo objetivo central

    substituir um modelo de atendimento centrado nas internaes de longa

    permanncia em manicmios.

    Naquele ano, enfrentei toda a angstia de uma escolha profissional, no

    mnimo, excntrica para o olhar da famlia, amigos e, inclusive, outros

    profissionais da sade. Revivia uma ntima reflexo acerca das razes que me

    levaram a ser terapeuta ocupacional e na construo da prtica profissional

    possvel para uma recm-formada. E, devo dizer, sentia-me perdida: ao atender

    os pacientes ou nas reunies clnicas com a equipe, percebia que tomava

    emprestados conceitos de outros campos do conhecimento para legitimar o

    trabalho que desenvolvia com aqueles pacientes e, principalmente, para me

    fazer escutar e ter condutas profissionais validadas.

    Neste contexto, fui acolhida com generosidade por Caroline Palermo

    Carlone terapeuta ocupacional recm-contratada pelo servio. Inicialmente, ela

    me apresentou a sua prtica profissional de maneira muito concreta: conversou

    com Sonia Maria Leonardi Ferrari para que eu pudesse conhecer os grupos de

    terapia ocupacional que desenvolvia no Instituto A Casa7, alm de me convidar

    para acompanha-la nos grupos que desenvolvia no CAPS. Carol me mostrava

    o seu raciocnio clnico como terapeuta ocupacional, conversvamos muito. O

    6 O Programa de Aprimoramento Multiprofissional em Sade Mental do Centro de Ateno

    Psicossocial (CAPS) Prof. Lus da Rocha Cerqueira est vinculado Fundao do

    Desenvolvimento Administrativo (FUNDAP). Com durao de um ano, voltado aos profissionais

    recm-formados das reas de Psicologia, Servio Social, enfermagem e Terapia Ocupacional.

    7 O hospital-dia A Casa foi fundado em 1979 e hoje um departamento do Instituto do

    Desenvolvimento e Pesquisa da Sade Mental e Psicossocial A Casa.

  • 8

    investimento e o afeto desta colega de profisso me trouxeram a segurana

    necessria na experimentao profissional.

    Ela tambm me aproximou das demais terapeutas ocupacionais

    contratadas naquele ano: Gabriela Cruz de Morais, Tatiane Ceccato e Daniela

    Figueiredo Canguu. Lembro que em uma de nossas conversas, Gabi associava

    minha angstia de Tais Quevedo Marcolino e me indicou uma atividade: a

    leitura da dissertao de Tais8. Tatiane sugeriu que eu fizesse o atendimento

    individual de Terapia Ocupacional de uma usuria do servio, pois considerava

    que eu s perceberia que eu sabia o que fazer quando estivesse na prtica.

    Daniela me convidou para um grupo de estudos sobre psicanlise junto a outras

    duas aprimorandas. Quem era essa tal Benetton que a Marcolino citava e eu s

    havia lido um texto dela no primeiro ano na disciplina de Atividades e Recursos

    Teraputicos (ART) com a Betinha? Tatiane tambm encomendou para mim um

    exemplar do livro Trilhas Associativas: Ampliando Subsdios Metodolgicos

    Clnica da Terapia Ocupacional (BENETTON, 2006). Cada uma destas

    terapeutas ocupacionais me acolheu muito, da melhor forma possvel e, para

    mim, inimaginvel.

    Com o objetivo de aprender algum raciocnio clnico como terapeuta

    ocupacional, em 2008, cheguei ao Centro de Especialidades em Terapia

    Ocupacional, o CETO9. Com muito investimento, um pesadelo e algum temor,

    pois havia anos que nenhuma uspiana se matriculava, fui recebida por J

    Benetton. Tambm tive a alegria de reencontrar Sonia Ferrari e, posteriormente,

    o privilgio de compor uma das equipes do Instituto A Casa, cuja superviso era

    desenvolvida por Snia.

    Minha trajetria profissional se desenvolve, majoritariamente, no Sistema

    nico de Sade (SUS), no campo da Sade Mental em servios da Rede de

    Ateno Psicossocial (RAPS): como terapeuta ocupacional em diferentes

    Centros de Ateno Psicossocial (CAPS) e em Ncleo de Apoio Sade da

    8 MARCOLINO, T. Q. A dimenso pedaggica nos procedimentos de Terapia Ocupacional.

    Universidade Federal de So Carlos: Programa de Ps-graduao em Educao, 2005.

    Dissertao.

    9 Instituio, dirigida por Maria Jos Benetton e Sonia Maria Ferrari, destinada formao clnica

    de terapeutas ocupacionais no denominado Mtodo Terapia Ocupacional Dinmica (MTOD) em

    nvel de ps-graduao.

  • 9

    Famlia (NASF); como coordenadora de Servio Residencial Teraputico (SRT).

    Para mim, ingressar na Sade Pblica como ingerir o comprimido vermelho

    que Morpheus oferece a Neo em Matrix10. Trabalhar no SUS uma escolha

    tica, poltica e esttica.

    No CETO, a partir de estudos epistemolgicos da Terapia Ocupacional e

    do resgate histrico do surgimento da profisso nos Estados Unidos as reflexes

    de outrora foram lapidadas e as questes norteadoras deste projeto de mestrado

    comearam a ser esboadas: como teria sido a construo das bases da

    profisso no Brasil? Se mesmo com mais de 50 anos de curso, temos tantas

    dvidas em relao profisso como teria sido com os primeiros profissionais?

    Ao compartilhar todas estas questes com meu orientador, Dante

    Marcello Claramonte Gallian, a abordagem metodolgica da Histria Oral de

    Vida se mostrou a mais indicada, assim como o Programa de Mestrado

    Profissional Ensino em Cincias da Sade. Com a convico de que este tipo de

    projeto revelaria uma parte ignorada da histria oficial, alm da valorosa

    preservao da memria da profisso, as narrativas dos colaboradores tornam-

    se documentos, fontes orais, que poderiam ser utilizadas por novos

    pesquisadores em futuras pesquisas.

    Em uma das primeiras idas Universidade Federal de So Paulo

    (UNIFESP) para o Grupo de Histria Oral e Sade (GEHOS), conheci a

    historiadora Fabola Holanda Barbosa Fernandez, grande incentivadora desta

    pesquisa. Logo ela me disse que eu lhe trazia a lembrana de uma querida tia

    dela que tambm era terapeuta ocupacional e se formou em Pernambuco. At

    em Pernambuco as terapeutas ocupacionais se angustiavam e sofriam em seus

    processos formativos!

    Estes primeiros encontros tambm aconteciam em uma sala simples e

    com poucos recursos da Universidade Federal de So Paulo. Hoje, balzaquiana,

    me, trabalhando h algum tempo no Sistema nico de Sade, percebo que no

    era a precariedade do Bloco 8 que nos assustava, era o mrmore daquelas

    10 O filme Matrix, lanado em 1999, foi dirigido por Lana e Andy Wachowski. Inaugura uma

    trilogia, inspirada pelo Mito da Caverna de Plato e outros tericos da Filosofia, que narra a

    histria de um grupo que quebra as correntes da ignorncia e deseja conhecer a verdade sobre

    a Matrix, simulao da realidade onde os seres humanos so prisioneiros.

  • 10

    escadas do nmero 455 da Avenida Doutor Arnaldo que marcava o abismo entre

    aquela instituio de ensino e as prerrogativas da Terapia Ocupacional.

    Entre o primeiro contato com o Professor Dante, aproximaes e

    distanciamentos do Grupo de Estudos Histria Oral e Sade (GEHOS),

    casamento, ingresso no mestrado, maternidade, licena-maternidade, mudana

    de cidade e a concluso desta pesquisa, alguns anos se passaram. Tempo de

    amadurecimento pessoal, profissional e de construo de autonomia das minhas

    ideias. com imensa alegria e uma boa dose de saudade do processo de

    trabalho, que apresento a pesquisa Em busca de um Ethos: Narrativas da

    Fundao da Terapia Ocupacional na Cidade de So Paulo (1956-1969).

    1. 2. Consideraes iniciais para aproximar a Terapia Ocupacional da

    Histria

    Com o ensejo de cultivar a memria profissional e ampliar o debate

    historiogrfico, a presente pesquisa utiliza a Histria Oral de Vida para

    compreender a fundao da Terapia Ocupacional na cidade de So Paulo e, em

    especial, identificar o ethos11 dos profissionais engajados neste processo, isto ,

    o conjunto de caractersticas prprias desse grupo de pessoas que lhes

    diferenciou das demais e lhes conferiu identidade social.

    Para reduzir a escala de observao e aprofundar o estudo, foi necessria

    a delimitao espacial o municpio de So Paulo e temporal de 1956, ano

    de criao do Instituto Nacional de Reabilitao12 a 1969, ano de

    regulamentao da profisso no pas por meio do Decreto-lei 938/69. Cabe

    salientar que trataremos das bases, da fundao, da profisso em uma

    determinada cidade e no pretendemos afirmar que ela foi o bero do

    11 Cortella (2010) explica que, de origem grega, ethos significava morada do humano, isto , o

    carter, o modo de vida habitual, aquilo que nos abriga e nos mostra o que somos. A casa como

    representao do ser e, por excelncia, o local em que deixamos nossas marcas. Por

    conseguinte, esta morada humana morada coletiva precisa ser preservada e protegida. 12 Na medida em que a criao do Instituto Nacional de Reabilitao se deu por um decreto

    estadual e estabeleceu o incio de cooperao tcnica internacional e repasses financeiros pela

    Organizao das Naes Unidas, apenas em relao ao estabelecimento do curso no estado de

    So Paulo, o ano de 1956 pode ser considerado marco das polticas indutoras da formao de

    terapeutas ocupacionais.

  • 11

    estabelecimento da profisso no Brasil. importante salientar que se tratam de

    recortes de tempo e espao.

    Goubert e cols. (2002) afirmam que para atingir o objetivo de construir

    histrias e/ou Histria, preciso observar que percursos humanos individuais se

    repetem de maneira idntica em determinados contextos culturais. Para os

    autores, ethos compreendido como a sntese das caractersticas de um grupo

    que o diferencia de outros, isto , os costumes originais e os hbitos de

    determinado grupo em determinada cultura.

    Lancman (1998) destaca a influncia da capacitao de terapeutas

    ocupacionais no processo de constituio da profisso no Brasil. Assinala que a

    formao de professores ocorre em reas afins e, por conseguinte, o processo

    de criao de um repertrio profissional e cultural comum aos terapeutas

    ocupacionais dificultado.

    Ademais, Emmel e col. (2001) apresentaram importantes contribuies

    acerca dos papis assumidos pelo terapeuta ocupacional que atua na docncia.

    Observaram a concepo dos docentes de que o aluno deve constituir um

    percurso induvidual resultante do engendramento histrico, tico e poltico das

    prticas sociais. Alm de promover no estudante dvida, questionamento e

    curiosidade, o professor possibilitaria uma construo ideolgica da profisso,

    conduzindo-o na criao de um conjunto de saberes norteadores da prtica

    profissional. Logo, torna-se responsvel pela formao da identidade profissional

    do aluno.

    Cunha (1997) apresenta uma reflexo sobre as narrativas como

    instrumental educativo e acrescenta que um dos objetivos principais do emprego

    delas se insere na proposta de construo de conhecimento para fins de ensino.

    Quando um sujeito relata suas experincias, ele reconstri sua trajetria e atribui

    a ela novos sentidos e significados. A narrativa , ento, percebida como capaz

    de transformar a realidade na medida em que ela compreendida como

    representao do sujeito inserido em determinado tempo e contexto social. Logo,

    o relato da realidade significa a produo da histria.

    Isto posto, a aproximao com a Histria nos pareceu interessante pois a

    narrativa de acontecimentos est vinculada, intimamente, ancestral

    necessidade humana de constituir memria individual e coletiva, quer seja,

    memria social. Em sua longeva trajetria, justamente a prerrogativa de

  • 12

    promover a memria social que confere especificidade Histria e a distingue

    dos demais campos do conhecimento na grande rea das Cincias Humanas.

    Mas o objetivo final [da Histria] sempre o mesmo, a reconstituio do

    acontecimento, quer dizer, a revivescncia de um fragmento da vida num determinado

    momento. Esta nsia de criao reviver a vida no texto imprime ao discurso do

    historiador uma dimenso de arte, e um carter inevitvel de utopia (NOVAIS; SILVA,

    2011, p. 26)

    Em Galheigo (1988), temos que a oralidade a principal caracterstica da

    transmisso do conhecimento na Terapia Ocupacional de professor para

    aluno, de terapeuta para terapeuta. Lanando mo de narrativas de terapeutas

    ocupacionais para construir um depoimento coletivo, a autora assume os

    objetivos de escrever histrias no escritas de Terapia Ocupacional e refleti-las

    num contexto histrico dialeticamente situado (p.3) e recusa a pretensiosa

    tarefa de escrever a Histria da Terapia Ocupacional brasileira, apesar de

    salientar sua inexistncia (idem).

    Ao publicar Como se escreve a Histria, Paul Veyne (1971) inaugura a

    concepo de que a Histria no existe, o que existe uma histria sobre algo.

    Ao comparar o historiador ao romancista e, por conseguinte, aproximar a prpria

    Histria da fico, o autor revelou que a produo de fatos histricos marcada

    pela subjetividade do pesquisador: ao se apropriar de determinados eventos

    (reais ou irreais), organiz-los e atribuir-lhes significados, o historiador pode se

    confundir com o romancista, autor de obras de fico, e afirmar como verdade

    histrica uma perspectiva pessoal sobre determinados acontecimentos. Trata-se

    de uma reflexo crtica sobre a arbitrariedade na produo e transmisso do

    conhecimento, alm da negao da neutralidade do historiador.

    Possivelmente amparado nas reflexes j consolidadas por Veyne, seu

    contemporneo, Jean-Pierre Goubert, historiador francs da cole des Hautes

    tudes en Sciences Sociales de Paris (Escola de Altos Estudos em Cincias

    Sociais de Paris), explicou a Maria Jos Benetton, terapeuta ocupacional

    brasileira e sua orientanda no ps-doutorado, que a escrita da Histria da

    Terapia Ocupacional s poderia ser feita em primeira pessoa (Benetton, 2006,

    p. 31). Abordaremos, ento, no prximo tpico, como histrias so escritas por

    pesquisadores alinhados Escola dos Analles.

  • 13

    1.3. Historiografia, a escrita da Histria, na perspectiva dos Analles e da

    Histria Oral

    No sculo XIX, impe-se Histria o dilogo com as cincias: a

    reconstituio de um acontecimento passou a ser acompanhada de uma

    explicao para se tornar cientfica. A tenso estabelecida entre

    narrativa/reconstituio e anlise/explicao se caracteriza como marco da

    historiografia moderna. Os acontecimentos passaram a ser historicizados, isto ,

    so conceituados e contextualizados luz de outros campos do conhecimento,

    em especial, aqueles pertencentes grande rea das Cincias Humanas.

    A institucionalizao deste dilogo aconteceu na Escola dos Analles, na

    Frana, em 1929, ou seja, o historiador assume tal funo em seu ofcio e ao

    longo do texto ora enfatizando a narrativa/reconstituio, ora enfatizando a

    anlise/explicao. Neste movimento, so reconhecidas trs fases: a primeira,

    chamada de Bloch-Febvre por ter sido inaugurada com suas obras,

    estabeleceu um intercmbio generalizado com todas as Cincias Humanas e,

    em maior intensidade, com a Sociologia; a segunda, Braudel, inaugurada pelo

    autor, privilegiou o dilogo com a Economia; a terceira e atual, chamada de

    Nova Histria, retoma a generalizao do dilogo, mas intensificando-o com a

    Etnografia13 (NOVAIS; FREITAS, 2011).

    Na primeira, houve equilbrio entre narrativa/reconstituio e anlise

    explicao; na segunda, houve desequilbrio com favorecimento da anlise,

    conceituao e explicao; na terceira, ocorre desequilbrio no sentido da

    narrativa e constatao. Graas proximidade com a Etnografia, a Nova Histria

    recusa a tradicional premissa historiogrfica de abordar o objeto-acontecimento

    em sua totalidade (histria totalizante ou total), privilegia a descrio de um

    acontecimento em escala menor, no micro, no sentido de que a compreenso do

    todo deve se pautar na complexa articulao de diversos micro contextos em

    detrimento de grandes generalizaes em que se toma o todo por uma nica

    parte (idem).

    13 Para Spradley (1979), etnografia seria a descrio de uma cultura desde um pequeno grupo

    tribal at um grupo de jovens em uma grande cidade - baseada em atenta observao e no

    contato intersubjetivo. Ao investigador etnogrfico, cabe compreender o modo de vida dos

    nativos em questo sob a perspectiva deles prprios.

  • 14

    Esse redimensionamento do trabalho do historiador e a crescente revalorizao da

    oralidade embora mediatizada trazida pela expanso dos meios de comunicao de

    massa como rdio, a televiso, o cinema, discos, etc., indicam a oportunidade de uma

    reviso das posturas historiogrficas que tm, at hoje, olhado com grande

    desconfiana o testemunho pessoal. importante destacar que certos historiadores

    tm procurado orientar suas reflexes nesse sentido, apresentando seus primeiros

    frutos (FREITAS, 2006, p.46-47).

    Por excelncia, aqui se insere a legitimidade da Histria Oral como

    Disciplina da Histria: o historiador assume a funo de transformar em histria-

    discurso a narrativa-memria de pessoas envolvidas no acontecimento que se

    pretende reconstituir. Para Thompsom:

    A histria oral uma histria construda em torno de pessoas. Ela lana a vida para

    dentro da prpria histria e isso alarga seu campo de ao. Admite heris vindos no

    s dentre os lderes, mas dentre a maioria desconhecida do povo. Estimula professores

    e alunos a se tornarem companheiros de trabalho. Traz a histria para dentro da

    comunidade e extrai a histria de dentro da comunidade. Ajuda os menos privilegiados,

    e especialmente os idosos, a conquistar dignidade e autoconfiana. Propicia o contato

    - e, pois, a compreenso entre classes sociais e entre geraes. E para cada um dos

    historiadores e outros que partilhem das mesmas intenes, ela pode dar um

    sentimento de pertencer a determinado lugar e a determinada poca. Em suma,

    contribui para formar seres humanos mais completos. Paralelamente, a histria oral

    prope um desafio aos mitos consagrados da histria, ao juzo autoritrio inerente a

    sua tradio. E oferece os meios para uma transformao radical no sentido social da

    histria (THOMPSON, 1992, p. 44).

    Todavia, a utilizao de narrativa pessoal para constituir memria social,

    implica em reflexo sobre o fenmeno da memria em si. Halbwachs (1990)

    enfatiza que a conservao total do passado impossvel porque o adulto no

    mantm inalterado todo o sistema de representaes, hbitos e relaes sociais

    da infncia. Por conseguinte, temos que a memria de uma pessoa

    influenciada pelas relaes que estabelece com os diversos grupos de convvio

    a que pertence: famlia, escola, trabalho, religio, etc. Logo, para este autor,

    recordar no reviver.

  • 15

    Ainda segundo Halbwachs, a reconstituio do passado depende da

    integrao da pessoa que recorda em um grupo social: une-se a ele pela

    identidade e em seu interior compartilha experincias. Nesta perspectiva, Bosi

    (1994) afirma que, embora o indivduo seja o memorizador, a memria s se

    constri no interior de um grupo e, assim, lembrar-se de um acontecimento

    sempre uma ao coletiva.

    Diante de todas as consideraes anteriores, no tpico seguinte,

    apresentaremos as contribuies de autores brasileiros que, a partir dos grupos

    em que se inserem, buscaram a compreenso da constituio da Terapia

    Ocupacional no Brasil.

    1.4. Formas de compreender a constituio da Terapia Ocupacional no

    Brasil

    Extrapolando as fronteiras da Terapia Ocupacional, alguns autores da

    Sociologia e da Histria tem aprofundado a discusso acerca das possibilidades

    e implicaes das contribuies geradas por cada uma, pois, dado que a

    grande rea das Cincias Humanas se volta ao estudo da vida em sociedade,

    busca o dilogo entre seus campos de conhecimento e a complementaridade de

    olhares. Porm, como cada campo constri conhecimento de uma determinada

    maneira e a partir de sua especificidade, foram necessrias negociaes e

    estabelecimento de limites, inclusive, para fomentar o dilogo entre os diversos

    campos.

    Ainda que nossa pesquisa se alinhe Histria e, dentro desta, s

    contribuies de autores referenciados Nova Histria - terceira fase da Escola

    dos Analles est consolidada, entre Sociologia e Histria, a distino entre

    cincia social retrospectiva e historiografia. Tratam-se de dois estilos de discurso

    que pretendem explicar e reconstituir realidades vividas de maneira distinta, por

    vezes, complementares:

    Sintetizemos: as cincias sociais (por que cincias) sacrificam a totalidade pela

    conceitualizao; a histria sacrifica a conceitualizao pela totalidade. Ou, noutros

    termos, o historiador visa explicar para reconstituir; o cientista social visa reconstituir

    para explicar; para o historiador, a explicao o meio, a reconstituio o fim; para o

    cientista social, ao contrrio, a reconstituio o meio, a explicao o fim (NOVAIS &

    SILVA, 2011, p.26).

  • 16

    Em outras palavras, a cincia social retrospectiva enfatiza a anlise dos

    fatos, principalmente, luz do materialismo-histrico; a historiografia enfatiza a

    narrativa destes mesmos fatos dimensionando-os no tempo e no espao e

    contextualizando-os. Ao retornarmos literatura especfica, localizamos quatro

    autores nacionais que se dedicaram complexa tarefa de compreender a

    constituio da Terapia Ocupacional no Brasil: Benetton (2001), Bezerra (2011),

    Marinho (2008) e Soares (1991).

    Iniciaremos a apresentao das produes alinhadas cincia social

    retrospectiva, reforaremos, produes que enfatizam a anlise do surgimento

    da profisso luz do materialismo-histrico: Bezerra (2011) e Soares (1991).

    Posteriormente, as produes alinhadas historiografia, reforaremos,

    produes com o objetivo de narrar o surgimento da profisso por meio das

    variveis tempo e espao e contextualizando os acontecimentos: Benetton

    (2001) e Marinho (2008).

    De partida, as produes alinhadas cincia social retrospectiva

    explicitam sua filiao nos ttulos: A Terapia Ocupacional na Sociedade

    Capitalista e sua Insero Profissional nas Polticas Sociais no Brasil (Bezerra,

    2011) e Terapia Ocupacional: Lgica do Capital ou do Trabalho? (Soares, 1991).

    Ademais, ambas as obras dedicam captulos ao aprofundamento de termos,

    conceitos e constataes consagradas pela tradio marxista com o objetivo de

    analisar dialeticamente o processo de constituio da profisso no Brasil.

    Bezerra (2011) argumenta que, no capitalismo, as profisses so criadas

    para responder demandas sociais determinadas historicamente, de modo que a

    constituio da Terapia Ocupacional responderia necessidade de manuteno

    e recuperao dos trabalhadores na rbita do avano do capitalismo monopolista

    desde o incio do sculo XX. O autor dialoga com a produo bibliogrfica sobre

    a gnese do Servio Social para identificar na literatura da Terapia Ocupacional

    a existncia de duas perspectivas antagnicas de anlise da gnese da Terapia

    Ocupacional definidas pelo modo como os autores compreendem o surgimento

    da profisso. A primeira, endogenista, composta por autores que:

    compreendem a Terapia Ocupacional a partir de uma evoluo que lhe seria prpria, ao

    desconsiderar o processo histrico - com seus aspectos econmicos, polticos e sociais

  • 17

    como determinante do surgimento e desenvolvimento da profisso. Nesses autores,

    observa-se a existncia de uma autonomia da profisso, com relao base material da

    sociedade, de modo que, as transformaes das condies objetivas de vida parecem

    no interferir nos rumos da mesma. Sendo assim, os autores apenas situam o

    desenvolvimento da profisso em fases do seu processo histrico, mas, sem colocar os

    aspectos econmicos, polticos e sociais da histria como o fundamento da existncia

    profissional. Nessa linha de anlise, a profisso teria seu grmen na utilizao da

    atividade nas prticas de sade e, neste caso, a Terapia Ocupacional seria, ento, a

    evoluo e aperfeioamento dessas prticas, com o passar do tempo (BEZERRA, 2011,

    p. 98)

    J a segunda, histrico-crtica, busca embasamento no conceito marxista

    de reproduo social, quer seja, a produo e reproduo das relaes sociais

    em sociedade desvelando a forma como a reproduo do capital impacta e

    permeia a vida de toda a sociedade. Para Bezerra, os autores dessa perspectiva

    alcanam o entendimento de que:

    ao intervir sobre os problemas originados da explorao do trabalho na produo

    capitalista, principalmente os relacionados sade, o terapeuta ocupacional contribui

    para a recuperao da fora de trabalho, ou seja, para a reproduo da base de

    sustentao do capital, uma vez que, a fora de trabalho - em atividade -, que gera a

    mais-valia capitalista.

    Assim, constatamos tambm, que a anlise da Terapia Ocupacional, na perspectiva

    histrico-crtica, possibilita entender que a ao profissional do terapeuta ocupacional,

    ao ser mediada pelas polticas e pelos servios sociais e desenvolvida em instituies,

    necessariamente permeada pelas contradies que atravessam essas polticas, servios

    e instituies. Isto, tendo em vista que essas instncias se configuram como expresses

    das respostas do Estado do capital, s reivindicaes dos trabalhadores e s

    necessidades de reproduo do capital, significando dizer, que a ao do terapeuta

    ocupacional est permeada pela relao conflituosa entre capital e trabalho. Desse

    modo, ela essencialmente permeada por interesses de classes sociais antagnicas e

    em relao, e no pode ser pensada fora dessa trama, j que a mesma surge como parte

    das iniciativas sociais que interferem no enfrentamento dos conflitos de classe.

    (BEZERRA, 2011, p. 101)

    Em Terapia Ocupacional: Lgica do Capital ou do Trabalho, publicado em

    1991, fruto da dissertao de La Beatriz Teixeira Soares, amplamente

    divulgado e adotado pela academia como referencial para a constituio da

  • 18

    profisso no pas. De partida, o objetivo central da obra apresentar uma

    retrospectiva histrica da profisso no estado brasileiro no perodo de 1950 a

    1980, constatando que a Terapia Ocupacional no Brasil estaria,

    tradicionalmente, vinculada reabilitao e exerceria funes polticas,

    ideolgicas e econmicas que corroboram com os interesses do Estado na

    implantao de polticas pblicas de sade.

    A argumentao da autora insere a constituio brasileira da profisso na

    rbita do avano do capitalismo industrial na cidade de So Paulo: a Terapia

    Ocupacional teria sido importada pelo Estado como resposta necessidade de

    criao do denominado exrcito de reserva (Soares, 1991). Tratar-se-ia do

    recrutamento de grupos sociais marginalizados de acordo com a demanda de

    mo-de-obra nas indstrias paulistas. Na perspectiva da autora, formao e

    prtica profissional devem estar dirigidas superao de tais funes e,

    sobretudo, da alienao do espao teraputico. O profissional deve buscar a

    transformao das instituies em que se insere com vistas construo de uma

    nova realidade social:

    No seu vaivm histrico, a necessidade de reabilitao tem sido determinada pelo

    modelo econmico, que, ao promover condies insalubres de vida e trabalho, ainda

    favorece o crescimento da populao enferma e de incapazes para o trabalho e novos

    contingentes marginais, alm de, em determinados momentos especficos, requisitar a

    absoro de parcelas do exrcito de reserva estagnadas, onde est parte dos

    incapacitados (SOARES, 1991, p. 110).

    Antes de passarmos aos autores da historiografia, faremos uma reflexo

    sobre a importncia da contextualizao dos acontecimentos e a necessidade

    do dilogo entre perspectivas distintas quando se objetiva compreender os

    diversos fenmenos da vida em sociedade e aprofundar a compreenso dos

    processos histricos. Para Lopes (1999), que assume a perspectiva da

    populao-alvo da Terapia Ocupacional em seus estudos, temos que este grupo

    de pessoas esteve no Brasil, historicamente, margem das polticas pblicas de

    sade por estarem excludas do mercado formal de trabalho e,

    consequentemente, sua assistncia em sade foi, majoritariamente,

    desenvolvida por instituies filantrpicas e/ou asilares at o advento do Sistema

    nico de Sade em 1988.

  • 19

    Por outro lado, Fontes (2008) apresenta o panorama geral do movimento

    migratrio da populao rural para as cidades e crescente industrializao do

    pas entre as dcadas de 1950-1960 no Brasil. Alm de desconstruir o

    esteretipo do nordestino desqualificado e vitimado pela seca, marca que desde

    o incio do sculo XX, milhares de migrantes nordestinos chegaram a So Paulo

    em busca de emprego e foram absorvidos pela crescente indstria, centralizando

    sua anlise no bairro operrio de So Miguel Paulista.

    Dialogando apenas com as contribuies destes dois autores, como

    podemos afirmar que a Terapia Ocupacional brasileira se constitui como

    instrumento estatal de dominao de classe - reprimindo e oprimindo os

    trabalhadores para preservar a venda da fora de trabalho e assegurar a

    acumulao e multiplicao do capital se a fora de trabalho dos migrantes

    nordestinos foi maciamente absorvida pelas indstrias paulistas? Se a incluso

    da populao-alvo da Terapia Ocupacional no mundo do trabalho e superao

    da lgica asilar so desafios cotidianos de nossas prticas profissionais apesar

    do crescente escopo das polticas pblicas inclusivas nos mais variados setores?

    Assim, permitimo-nos vislumbrar o terapeuta ocupacional como sujeito

    coletivo, ativo, empreendedor, questionador, desafiador de realidades

    institucionais e sociais desde os primeiros momentos da profisso e engajado na

    constituio da profisso em detrimento de uma figura engessada, que por

    mais criativa, no limite, ser sempre refm do modo de produo capitalista e do

    Estado como mantenedor do status quo. Discordamos da possvel compreenso

    de que, ao menos, uma primeira gerao de profissionais teria realizado um

    trabalho alienado e, consequentemente, as futuras geraes de profissionais

    devem se engajar na desconstruo do legado recebido a alienao do espao

    teraputico.

    Finda reflexo, partiremos as contribuies da historiografia na

    compreenso da constituio da Terapia Ocupacional no Brasil. Novamente, os

    ttulos das obras - FOFITO: 50 anos de Pioneirismos e Lutas e Ergothrapie e

    Terapia Ocupacional no Brasil e na Frana - Um Projeto de Histria Comparada

    (1964-2000) explicitam o tempo e o espao como variveis caras Histria.

    Na primeira, o perodo de 1958 a 2008 (recorte temporal) para marcar a saga

    dos alunos da Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional no interior da

    Faculdade de Medicina da Universidade de So Paulo (recorte espacial). Na

  • 20

    segunda, o recorte temporal (1964-2000) delimita uma linha do tempo para

    comparar brasileiros e franceses.

    Observamos que, em 2008, os cursos de Fisioterapia, Fonoaudiologia e

    Terapia Ocupacional da Universidade de So Paulo completaram 50 anos de

    atividades e para marcar tal efemride foi lanado o Livro Institucional FOFITO:

    50 anos de Pioneirismos e Lutas (MARINHO e cols., 2008), que apresenta uma

    breve contextualizao do surgimento dos cursos e pequenos depoimentos de

    ex-alunos. Em nossa perspectiva, o captulo destinado Terapia Ocupacional,

    assinado pela historiadora Maria Gabriela Marinho14, apresenta metodologia e

    discusso superficiais no historiciza os acontecimentos, no dialoga com

    fontes primrias ou secundrias -, alm de reforar o equvoco estabelecido com

    a histria da Psiquiatria, detendo-se Frana de Pinel em detrimento da

    realidade local.

    J em Ergothrapie e Terapia Ocupacional no Brasil e na Frana um

    Projeto de Histria Comparada (1960-2000)15, Benetton (2001) avanou no

    sentido de adotar metodologia especfica da Histria a histria comparada -

    para abordar a histria da Terapia Ocupacional nos dois pases. Todavia, o

    recorte temporal adotado pela pesquisadora ao menos em relao ao Brasil -

    est relacionado entrada de Elizabeth Eagles na coordenao do curso de

    Terapia Ocupacional em So Paulo e a pesquisa objetivou a construo de linha

    do tempo para comparar os principais marcos e personagens histricos do

    14 Esta autora produziu relevantes contribuies historiogrficas acerca da constituio da

    Faculdade de Medicina em So Paulo a partir de correspondncias entre a instituio paulista e

    a norte-americana Fundao Rockefeller, que adotaremos na segunda parte do captulo

    seguinte. curioso, inclusive, observar a discrepncia entre as obras da autora: Livro

    Institucional FOFITO - 50 anos de Pioneirismos e Lutas e O papel da Fundao Rockefeller na

    organizao do ensino e da pesquisa na Faculdade de Medicina de So Paulo (1916-1931).

    15 Apesar da referida pesquisa ter recebido auxlio da Fundao de Amparo Pesquisa de So

    Paulo (FAPESP), considerada indita na academia pois ainda no foi publicada integralmente

    como livro ou parcialmente em revistas indexadas. Alm do Relatrio Final enviado FAPESP,

    gentilmente, a pesquisadora nos disponibilizou o acervo gerado por sua pesquisa. Entretanto,

    por adotarmos recortes temporais e espaciais distintos, selecionamos algumas das fotocpias

    de fontes primrias arquivadas pela pesquisadora. Digitalizamos estas fotocpias selecionadas

    e as anexamos em nossa pesquisa, pois foram utilizadas como referncia.

  • 21

    processo de constituio da profisso nos dois pases, abdicando de maior

    aprofundamento terico e discusso sobre os acontecimentos.

    Em nossa perspectiva, estas obras ainda almejam a construo de uma

    histria totalizante, a Histria, da Terapia Ocupacional brasileira a partir da

    nfase da experincia de So Paulo sem o dilogo fundamental com os

    processos de outros estados pois ainda hoje existem localidades em que

    inexistem terapeutas ocupacionais, de modo que podemos afirmar que o

    processo de constituio da profisso em mbito nacional est em processo,

    apesar de todo arcabouo jurdico que institucionaliza da profisso no Brasil.

    Do ponto de vista historiogrfico, imperativa a necessidade de ampla

    adoo do espao e do tempo como as duas variveis de anlise mais

    importantes da Histria e suas inmeras combinaes - para compreender a

    constituio da Terapia Ocupacional no Brasil. Ademais, faz-se necessrio

    redimensionar e contextualizar o processo de constituio da profisso em So

    Paulo como uma experincia local em um determinado perodo. Do norte do

    Oiapoque ao sul do Chu a Terapia Ocupacional se constituiu da mesma maneira

    como So Paulo e por suas mesmas motivaes?

    Desta forma, conhecer trajetrias de vida de terapeutas ocupacionais

    participantes da fundao da profisso a partir do micro uma cidade em um

    perodo pareceu-nos o melhor caminho a ser trilhado para construir a Histria,

    isto , construir memria social dos terapeutas ocupacionais. Inclusive, tal

    panorama reforou a necessidade de adoo de uma metodologia prpria da

    Histria a Histria Oral.

    Ao se filiar a uma linhagem de autores da Escola dos Analles, nossa

    pesquisa parte do relato em primeira pessoa da pesquisadora e legitima a

    oralidade na produo e transmisso do conhecimento como caracterstica dos

    terapeutas ocupacionais por meio da adoo da Histria Oral como Disciplina da

    Histria no como abordagem de coleta de dados.

    Como indicado pela histria do projeto, naturalmente, as questes

    norteadoras da pesquisa versaram sobre o processo de formao dos primeiros

    terapeutas ocupacionais; como vivenciaram o curso; a relao com colegas e

    professores; a reao da famlia com a escolha profissional e, especialmente, o

    porqu de permanecerem na profisso. Isto posto, os objetivos da pesquisa

    sero apresentados e, na sequncia, a estrutura da tese.

  • 22

    1.5. Objetivos

    a) Objetivo Geral:

    - Identificar caractersticas comuns ou seja, o ethos dos primeiros

    terapeutas ocupacionais da cidade de So Paulo;

    b) Objetivos Especficos:

    - Compreender a fundao da Terapia Ocupacional na perspectiva dos

    profissionais engajados neste processo e luz de suas histrias de vida;

    - Identificar as diretrizes curriculares ou os referenciais pedaggicos que

    nortearam a formao de terapeutas ocupacionais no perodo de 1956 a 1969;

    c) Objetivos Complementares:

    - Compor acervo de Histrias de Vida e objetos biogrficos dos

    colaboradores desta pesquisa para

    - Estruturar um Banco de Memrias sobre a fundao da Terapia

    Ocupacional na cidade de So Paulo

    1.6. Estrutura da dissertao

    No primeiro captulo Por uma nova histria: Re-visitando o surgimento

    da Terapia Ocupacional como profisso a fundamentao terica est

    organizada em duas partes: a primeira, O contexto do surgimento da profisso

    nos Estados Unidos; a segunda, A Terapia Ocupacional no Brasil a partir do

    estabelecimento dos cursos no Rio de Janeiro e em So Paulo.

    O segundo captulo Percurso Metodolgico se prope a justificar a

    adoo da Histria Oral como abordagem metodolgica, explicitar suas etapas,

    comunidade de destino e composio da rede; e a adoo do mtodo de

    Imerso/Cristalizao para a anlise dos dados.

    No terceiro captulo Resultados e Discusso - apresentaremos as

    categorias de anlise produzidas pelo processo de imerso/cristalizao, a

    saber: a) Projeto poltico-pedaggico; b) Profisso humanista fundada por

    mulheres; c) Orfandade e legado profissional.

    No quinto captulo Concluso os principais achados da pesquisa

    recebero o contorno necessrio para o encerramento da pesquisa. Na

  • 23

    sequncia, sero apresentadas as Referncias Bibliogrficas utilizadas e,

    finalmente, os Anexos.

    fundamental destacar a importncia do Volume 02 de nossa pesquisa,

    pois nele as narrativas transcriadas das colaboradoras da pesquisa sero

    apresentas. Nele, tambm apresentaremos uma Proposta de interveno na

    realidade como desdobramento da pesquisa de acordo com os pressupostos do

    Programa de Mestrado Profissional em que nos inserimos.

  • 24

    CAPTULO 1

    Por uma nova histria: (re) visitando o

    contexto de surgimento da profisso

    PARTE 1 A Terapia Ocupacional em Chicago nos Estados Unidos

    Como j mencionado, a produo bibliogrfica sobre a constituio da

    Terapia Ocupacional brasileira ainda escassa. Entretanto, alguns referenciais

    tem sido muito explorados no pas para abordar teoricamente a fundao da

    profisso nos Estados Unidos, de modo que identificamos duas principais

    correntes bibliogrficas. A primeira valoriza o papel de Eleanor Clarke Slagle e

    seu Treinamento de Hbitos neste processo a partir das contribuies de

    Benetton (1994; 2006) e demais colaboradores da Revista do Centro de

    Especialidades em Terapia Ocupacional (CETO-SP). J a segunda, prope a

    crtica precarizao e desvalorizao profissional como principais

    desdobramentos dos padres femininos de comportamento, como a

    benevolncia e a subservincia, preconizados no surgimento e

    institucionalizao da profisso (Bezerra, 2011; Galheigo, 1988; Lopes, 1999;

    Magalhes, 1989).

    Entretanto, curioso observar que, justamente, aps uma forte crise de

    identidade profissional - pautada na recusa do lugar ocupado pelas primeiras

    profissionais a partir do final da dcada de 1980 e na dcada de 1990, a

    Associao Americana de Terapia Ocupacional (AOTA) tenha convocado a

    historiadora Virginia Metaxas e a antroploga Cheryl Mattingly16 para

    compreender, respectivamente, o processo de constituio e institucionalizao

    16 As contribuies de Cherryl Mattingly foram apresentadas ao Brasil por meio dos estudos de

    Tais Quevedo Marcolino. Sugerimos a leitura de: MARCOLINO, T.Q. A porta est aberta:

    aprendizagem colaborativa, prtica iniciante, raciocnio clnico e terapia ocupacional. So Carlos:

    UFSCar, 2009; MATTINGLY, C. A natureza narrativa do raciocnio clnico. In: Revista do Ceto,

    So Paulo, v. 10, n.10, 2007.

  • 25

    da profisso e os elementos norteadores (contedos e raciocnio clnico) da

    prtica profissional das terapeutas ocupacionais.

    A partir desta interface com outros campos, novas perspectivas foram

    desveladas e novas histrias da Terapia Ocupacional tem sido produzidas.

    Ademais, para ampliar a discusso terica, mas com foco nos objetivos de nossa

    pesquisa, apresentaremos alguns dos principais referenciais bibliogrficos

    adotados por pesquisadores do Canad, Chile, Espanha e Estados Unidos uma

    vez que, nestes pases, h fartura de contribuies sobre a constituio da

    Terapia Ocupacional luz da historiografia, isto , com nfase a narrativa e

    historicizao dos fatos por meio das variveis tempo e espao.

    Os Estados Unidos no incio do sculo XX

    No longa-metragem Novo Mundo (Nuovomondo, Itlia/Alemanha/Frana,

    2006), o diretor talo-americano Emanuele Crialese retratou com maestria a saga

    de uma famlia siciliana os Mancuso desde a deciso de fazer a Amrica

    at a inspeo sanitria na ilha de Ellis, costa da Nova Jersey nos Estados

    Unidos. O roteiro deste filme foi baseado em milhares de cartas escritas por

    italianos em que descreviam detalhadamente a experincia vivida na ilha das

    lgrimas. Curiosamente, o ttulo adotado neste pas foi Golden Door (porta

    dourada). Utilizando a expresso norte-americana golden key, temos uma

    charada: se uma chave dourada (golden key) abre qualquer porta, qual a chave

    ideal para abrir a premiada porta dourada (golden door)?

    [...] refere-se ao estado de Nova Iorque, que em 1824 introduziu em sua legislao

    dispositivos no sentido de impedir a entrada de alienados e atrasados mentais em seu

    territrio. Em 1838, a Comisso de Justia do Congresso norte-americano recomendou

    a promulgao de leis proibitrias da entrada de idiotas, alienados, doentes de afeces

    incurveis e condenados por crimes. Para Moreira, de nada serviria envidar esforos no

    sentido de melhorar as condies de sade fsica e mental da populao se tivesse

    sempre a chegar novas levas de tais indesejveis (SOUZA; BOARINI, 2008, p. 285).

    Kay (apud Kobayashi, 2007) afirma que a dcada de 1890 um marco

    para as preocupaes norte-americanas com a imigrao. At ento, os

    imigrantes eram originrios do norte e oeste da Europa. Entre os anos de 1890

    e 1918, imigraram mais de 18 milhes de pessoas oriundas do Sul e do Leste

  • 26

    Europeu: indesejados, com cultura estranha, mo-de-obra barata, ditos

    disseminadores de doenas, estas pessoas viveram em deplorveis condies

    sociais alm de serem consideradas pertencentes raa inferior de

    temperamento retrgrado.

    Em Kobayashi (2007), tem-se que, j na Inglaterra do sculo XIX, vivia-se

    um mal-estar em relao ao futuro e ao progresso face perda de hegemonia

    na competio econmica internacional e novas demandas impostas por grupos

    outrora marginalizados, dentre os quais, os trabalhadores assalariados e as

    mulheres. Em voga estava a ideia de degenerao social provocada pelo

    crescimento urbano, trabalho feminino, imigrao, vcios, crimes, doenas que

    se alastravam entre pessoas em situao de vulnerabilidade social. Tais

    condies teriam despertado o interesse pela melhoria da sociedade uma vez

    que o nmero de incapazes e inadequados se multiplicava.

    Ainda segundo a mesma autora, dentre os desdobramentos da chamada

    eugenia positiva de Galton17, deve-se destacar a eugenia preventiva e a eugenia

    negativa. A primeira se voltava eliminao dos chamados venenos da raa

    atravs da educao sexual, preveno de doenas sexualmente transmissveis,

    orientao pr-natal e puericultura. J a segunda, pregava o fim da multiplicao

    dos ditos degenerados e, para tanto, desencorajava a maternidade e a

    paternidade em determinados grupos, alm do extermnio propriamente dito.

    Considera-se que a eugenia negativa foi amplamente desenvolvida nos Estados

    Unidos e na Alemanha. J o Brasil teria sido influenciado pelas trs correntes,

    com predomnio da eugenia positiva e preventiva.

    17 Para Del Cont (2008), ao cunhar o termo Eugenia (o termo grego eugens significa

    bem-nascido), o ingls Francis J. Galton foi inspirado pela obra do primo Charles Darwin e

    objetivou aplicar a teoria da seleo artificial nos seres humanos por meio do controle cientfico

    dos casamentos. Desde ento, investiu no desenvolvimento de uma cincia sobre a

    hereditariedade humana que pudesse identificar os exemplares detentores de melhores

    caractersticas e incentivar sua reproduo, bem como, encontrar os de piores caractersticas

    e evitar sua reproduo como feito com o gado, por exemplo. Acreditava no somente na

    hereditariedade de caractersticas fsicas, mas, especialmente, de habilidades e talentos

    individuais.

  • 27

    A criao da Hull House

    Schwartz (2009) assinala que muitos desafios sociais marcaram as

    primeiras dcadas do sculo XX nos Estados nicos: guerra, imigrao,

    industrializao, explorao de trabalhadores, escolas precrias, servios de

    sade inadequados. Entretanto, a Era Progressista (1890-1920) tambm foi um

    tempo de grande otimismo na medida em que se difundiu a ideia de que os

    problemas sociais podiam ser enfrentados com reformas sociais altura das

    necessidades identificadas.

    Baseados em slido entendimento de democracia e justia social, os

    chamados reformadores (reformers), dentre outras pautas, defendiam o sufrgio

    feminino e a proibio do trabalho infantil. Jane Addams foi um dos expoentes

    do movimento reformista e estabeleceu parceria com mdicos, advogados,

    professores universitrios, artistas e msicos. Com sua persuaso, Addams

    contou ainda com a colaborao de John Dewey (reconhecido terico do

    pragmatismo) e Adolph Meyer (um dos psiquiatras mais influentes dos Estados

    Unidos no perodo de 1895 a 1940).

    Criada em Chicago, em 1889, por Jane Addams (1860-1935) e Ellen

    Gates Starr (1859-1940) socialistas e ativistas sociais - com claro objetivo

    reformista, a Hull House foi o primeiro assentamento (settlement) de imigrantes

    recm-chegados de diversas partes da Europa. Esta instituio foi responsvel

    por expandir a participao social das mulheres em diferentes campos e

    consolidar sua fora poltica. As ativistas da Hull House ocuparam diversos

    cargos estratgicos em instituies pblicas e privadas com o objetivo de

    promover direitos sociais a todos os grupos, especialmente, grupos

    marginalizados e submetidos controversas aes do Estado como por

    exemplo, os imigrantes.

    Cabe lembrar que as ltimas dcadas do sculo XIX assistiram o

    crescimento do movimento feminista. Mulheres exigiam maior participao social

    e, dentre diversas conquistas, essa luta culminou na aprovao da primeira

    emenda constitucional que lhes garantiu o direito de voto em todos os estados

    norte-americanos em 1919, isto , trinta anos depois da criao da Hull House e

    sua intensa atuao.

    Gratuitamente, na Hull House, desenvolviam-se inmeras atividades

    culturais e de aprendizado para adultos e crianas. Apostava-se, pois, na

  • 28

    convivncia entre voluntrios de classe mdia em sua maioria mulheres que

    tambm viviam assentadas - com as famlias de trabalhadores de baixa renda.

    Por conseguinte, objetivava a aproximao de ricos e pobres para o surgimento

    de uma comunidade interdependente na qual o intercmbio cultural e a

    construo de direitos sociais fossem favorecidos. (Camargo, 2010).

    Em seus escritos, Jane Addams criticava abertamente as desigualdades

    sociais e de gnero e pregava a coeso social. Com a perspectiva de que nossas

    ideias so representaes mutveis, esforou-se em integrar suas aes

    teoria, desenvolvendo uma filosofia imersa e impregnada de ao social. Jara

    (2012) explica que o pragmatismo18 foi a base constituinte de seu pensamento

    poltico: pregava que as desigualdades sociais refletem hbitos e aprendizados

    arraigados culturalmente e que poderiam ser transformados.

    Em sua perspectiva, para desenvolver tica social e construir uma

    verdade social comum necessrio negar juzos de valor, dialogar

    intensamente, ouvir e compartilhar entendimentos sobre a realidade social.

    Assim, os hbitos mentais poderiam ser modificados e, por conseguinte, a

    condio de vida de todas as pessoas tambm se modificaria. Afirmava que a

    fora da democracia era ainda desconhecida. Jane Addams manteve a

    convico de que pessoas e comunidades so capazes de criar novas realidades

    e transformar suas condies de vida. Chamava manifestao grupos

    oprimidos e desconsiderados pelas polticas pblicas.

    As consideraes anteriores podem justificar a afirmao de J. Edgar

    Hoover - diretor do FBI (Federal Bureau of Investigation) da poca: Jane

    Addams a mulher mais perigosa da Amrica (Camargo, 2010). Em seu

    trabalho, ela pretendia que a Hull House fosse totalmente embasada pela

    filosofia de solidariedade de toda a raa humana. Em sua concepo, eram os

    prprios frequentadores e moradores do assentamento que elaborariam e

    desenvolveriam aes de solidariedade, concebida como unio da

    humanidade. Pelo trabalho desenvolvido, Jane Addams recebeu um Prmio

    Nobel da Paz em 1911.

    18 O primeiro movimento filosfico prprio dos Estados e que se desenvolveu no sculo XX,

    considera que os hbitos influenciam a trajetria de vida das pessoas.

  • 29

    As razes da Terapia Ocupacional

    Em Minha amiga, Julia Lathrop, livro publicado originalmente em 1935,

    Addams (2004) apresenta a biografia de uma importante colaboradora da Hull

    House cujo ativismo poltico marcou significativamente a histria das conquistas

    sociais nos Estados Unidos. Julia Lathrop, que viveu assentada na Hull House

    por cerca de 20 anos, atuou em prol dos imigrantes, direitos das crianas,

    equiparao de direitos entre homens e mulheres, melhorias no tratamento de

    pessoas com sofrimento mental, enfim, da ampla reforma social.

    Dentre outros importantes cargos ocupados, pertenceu ao grupo de

    fundadores da Comisso Nacional de Higiene Mental em 1909; foi diretora da

    Escola de Civismo e Filantropia de Chicago (vinculada Hull House) no perodo

    de 1907 a 1920; foi fundadora da Liga Protetiva dos Imigrantes de Illinois; foi

    nomeada a primeira diretora da Agncia Federal da Infncia (Federal Childrens

    Bureau), foi presidente da Liga de Mulheres Eleitoras de Illinois, dentre outros

    cargos de destaque.

    Ao observar a precria atuao das atendentes (depreende-se do texto

    que se trata da equipe de enfermagem) nos hospitais psiquitrico estatais,

    Lathrop procurou oferecer alguns subsdios para a prtica destes profissionais.

    Para tanto, em 1908, criou um curso de seis semanas sobre ocupao e

    recreao curativa na Escola de Civismo e Filantropia de Chicago na ocasio,

    a instituio era dirigida por Graham Taylor e vinculada Hull House. Addams

    se reporta perspectiva de uma mdica, Alice Hamilton, para explicitar o

    contexto de criao deste curso:

    quilo que a Associao Mdica Americana chamou de novo e interessante

    experimento educacional era um curso de vero para atendentes de hospitais

    psiquitricos introduzido por Julia Lathrop na Escola de Educao Cvica e Filantropia

    de Chicago. O curso inclua um treinamento prtico em terapia ocupacional, ainda

    desconhecida nos hospitais estatais, bem como palestras sobre doena mental e seu

    tratamento. Para persuadir, senhorita Lathrop pintava o quadro de uma tpica

    enfermaria de insanos com fileiras de pacientes limpamente vestidos, sentados no cio

    absoluto por horas a fio e os atendentes satisfeitos em suprir as necessidades

    corporais deles e sem fazer esforo para despert-los e estimul-los e da no menos

    desanimadora ala dos agitados onde os pacientes so deixados sem qualquer

    orientao para suas atividades at que um deles cause um srio problema. Ela

    insistia que o carter do asilo dependia do carter dos atendentes e, prosseguia, eram

  • 30

    poucas as chances de um atendente no ser a pea de uma mquina. Uma vida rdua,

    sem alegria e, particularmente, isolada. Tal instituio [psiquitrica] um pequeno

    mundo em si mesmo e as ideias e propostas de mudana vindas do mundo exterior

    entram lentamente. (ADDAMS, 2004, pp. 106-107, traduo nossa).

    Para Jara (2011) este cenrio guarda as razes da Terapia Ocupacional

    pois muitas das ideias preconizadas por Addams e Lathop foram retomadas por

    Eleanor Clarke Slagle, de modo que, a prof isso assumiu um carter social,

    crtico e comunitrio. Ademais, destaca a importncia de retomarmos os

    pressupostos da filosofia do pragmatismo para melhor compreendermos a

    histria e a consolidao da Terapia Ocupacional como profisso. Ao observar

    uma pessoa atendida de uma perspectiva holstica, ao consider-la sujeito de

    direitos, ao reconhecer os distintos atravessamentos polticos que ela sofre, o

    terapeuta ocupacional faz uma reflexo alinhada ao pragmatismo. Acrescenta

    que escutar ativamente, respeitar a diversidade e aceitar diferentes valores

    dentro de uma mesma sociedade so caractersticas que evidenciam o quo

    pragmtico se torna um terapeuta ocupacional desde sua formao.

    Kielhofner (apud Valer e col., 2011) especula que as experincias

    familiares de Eleanor Clarke Slagle teriam propiciado seu interesse pela

    assistncia aos incapacitados: seu pai, veterano de guerra, regressou da Guerra

    Civil americana ferido por arma de fogo; seu irmo sofreu de tuberculose e

    dependncia qumica e seu sobrinho teve poliomielite.

    Entretanto, para explicar as razes que a aproximaram da Terapia

    Ocupacional, Eleanor nascida Ella May Clarke - remontou ao seu casamento

    com Robert Slagle em 1894. Acreditava no corresponder s expectativas de ser

    esposa e me, chegando a esta concluso logo nos primeiros anos de

    relacionamento. Estava profundamente interessada nos problemas sociais e nas

    mudanas que estavam em curso. Nesta poca, vivia em Saint Louis e via as

    terrveis condies de vida: pobreza intensa, explorao de trabalhadores na

    indstria, tenso social entre as classes, crimes, sofrimento da populao

    imigrante. Aps a morte de seu pai, decidiu que deveria se juntar aos

    reformadores sociais. Separou-se do marido e se mudou para Chicago em 1911

    (BING, 1997).

  • 31

    Procurou a Hull House. Assistiu a muitas palestras, participou de

    discusses sobre os mais variados campos de reforma, sobre poltica, sobre

    situaes inimaginveis para ela at ento. Gradativamente, sentiu a

    necessidade de aprofundar os estudos junto ao grupo de Addams e, ainda em

    1911, formou-se no curso de ocupao e recreao curativa na Escola de

    Civismo e Filantropia de Chicago. Foi quando se aproximou de Julia Lathrop.

    Passavam muitas horas juntas e Eleanor a acompanhava em visitas aos

    hospitais psiquitricos em Illinois e conversavam sobre as condies dos

    pacientes (BING, 1997). J formada, Eleanor implantou cursos semelhantes em

    instituies psiquitricas de Michigan e em Nova Iorque, por exemplo (Valer e

    col., 2011).

    Em meados de 1912, em uma de suas viagens Chicago, Adolf Meyer

    palestrou na Hull House e, naquela ocasio em especial, compartilhou com os

    presentes o projeto de criao da Clnica Henry Phipps, vinculada ao John

    Hopikns Hospital em Baltimore. Propunha um tratamento inovador para o doente

    mental e associava pesquisa, ensino e assistncia. De acordo com as

    contribuies de Guglielmo (2014), Meyer assumiu em 1908 a tarefa de

    desenvolver programas de formao e treinamento de mdicos, bem como,

    reorganizar a assistncia psiquitrica criando instituies de referncia por

    muitas dcadas nos Estados Unidos. O modo como ele compreendia a doena

    mental divergia profundamente da nosologia psiquitrica desenvolvida por

    Kraeplin, seu contemporneo. Propunha que as doenas mentais

    representariam diversos padres de reao, pois, as vivncias e histria de vida

    so sempre singulares, contextualizadas e pessoais.

    Sua aposta principal era de que os doentes mentais deveriam viver com

    suas famlias e inseridos na comunidade. Para tanto, pregava a necessidade de

    profissionais especficos no tratamento que, por meio de ocupaes teraputicas

    - significativas e integradas histria de vida do paciente -, possibilitassem o

    desenvolvimento das habilidades para que ele pudesse lidar melhor com as

    exigncias ambientais, isto , adquirir mais recursos para conviver em sociedade

    (MEYER apud BING, 1997).

    Foi quando Meyer convidou Eleanor para compor a equipe de

    profissionais da Clnica Henry Phipps. Intencionava criar um departamento de

    ocupao teraputica coordenado por Eleanor e supervisionado por ele prprio.

  • 32

    Ali, ela implantou o programa chamado de Treinamento de Hbitos, no qual,

    pessoas com graves prejuzos eram incentivadas a: levantarem-se, fazer sua

    higiene pessoal, vestirem-se, organizarem seus quartos, utilizarem a mesa para

    as refeies e desenvolverem atividades artesanais conforme a proposta do

    movimento de artes & ofcios19. Paralelamente, ministrava cursos de trs

    semanas sobre ocupao teraputica para grupos de enfermeiras do hospital

    John Hopkins (Valer e col., 2011).

    Nacional e internacionalmente (BENETTON; GUGLIELMO; JARA;

    PELOQUIN; VALLER e col., dentre outros) considerada criadora ou me da

    profisso na medida em que propunha um programa de adaptao social de

    pacientes institucionalizados com o objetivo especfico de promover o seu

    retorno sociedade. Superando as propostas de Meyer e outros psiquiatras da

    poca, Slagle props que as atividades fossem utilizadas como instrumento

    teraputico capaz de suplantar, alterar e produzir novos hbitos em pacientes

    gravemente comprometidos e cujo objetivo maior seria a restaurao e

    manuteno do bem-estar. Falava em mudana de hbitos, distanciando-se do

    paradigma mdico e fundando o paradigma da Terapia Ocupacional.

    Em 1915, retornou a Chicago e, novamente na Hull House, participou

    da criao da Estao Experimental da Higiene Mental de Illinois (Experimental

    Station of Illinois Mental Higyene Society) cujo objetivo foi auxiliar na indicao

    de ocupaes para pessoas impedidas de desenvolver suas atividades em razo

    de processo de adoecimento. Posteriormente, em 1916, o nome da instituio

    mudou para Escola de Ocupaes Henry B. Favill, sendo reconhecida como a

    primeira escola de terapeutas ocupacionais. Eleanor dirigiu tal instituio de

    ensino de 1918 at o seu fechamento em 1922.

    Dialogando com as ideias de Meyer, salientava a interdependncia dos

    aspectos fsico e mental; a necessidade de graduar progressivamente as

    atividades propostas e do equilbrio entre trabalho e descanso. Salientava a

    importncia dos pacientes construrem hbitos socialmente aceitos no sentido

    19 Muito em voga na poca, o movimento de artes e ofcios valorizava o trabalho artesanal (no

    qual o trabalhador conhece todas as etapas da produo) em resposta desvalorizao da mo-

    de-obra dos trabalhadores no contexto da industrializao (funes especficas na linha de

    produo, desconhecem a totalidade do processo de produo).

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    de serem culturalmente compartilhados (higiene pessoal, por exemplo). Na

    formao, os alunos aprendiam atividades de artesanato e de trabalho, jogos,

    festas, ginstica e atividades recreativas (LOMIS apud Valer e col., 2011).

    Entretanto, Jane Addams (2004) atribuiu a criao desta escola aos esforos de

    Julia Lathrop e no faz meno participao de Eleanor na instituio.

    importante explicitar que o termo Terapia Ocupacional foi cunhado

    posteriormente, durante a participao dos Estados Unidos na I Guerra Mundial.

    Em 15 de maro de 1917, George Edward Barton, Isabel G. Newton, Susan C.

    Johnson, Thomas B. Kinder, Eleanor Clarke Slagle e Willian Rush Dunton se

    reuniram, em Nova Iorque, para formar a Sociedade Nacional de Promoo da

    Terapia Ocupacional (NSPOT). Posteriormente, em 1923, mudou seu nome para

    Associao Americana de Terapia Ocupacional (AOTA).

    Apesar de ausente nesta reunio e de no apoiar a profissionalizao

    dos terapeutas ocupacionais, a enfermeira Susan Tracy reconhecida como

    uma das fundadoras da profisso por ter formado enfermeiras em ocupao

    teraputica, alm de ter escrito o primeiro livro sobre o tema. Ademais, Metaxas

    (2000) explicita a desvantagem poltica de Tracy no estabelecimento da

    profisso face fora poltica de Eleanor Clarke Slagle, representante da Hull

    House, e s incisivas crticas acerca da ociosidade e falta de iniciativa dos

    profissionais de enfermagem produzidas no perodo. Como historiadora e

    lanando mo da biografia de ambas, Metaxas ainda aproxima Slagle e Tracy

    pela caracterstica comum de contar para outras pessoas como a Terapia

    Ocupacional atravessou suas histrias de vida e contar histrias, vinhetas

    clnicas, da Terapia Ocupacional.

    Para Peloquin (2007), o grupo de fundadores heterogneo do ponto

    de vista de suas histrias de vid