EM BUSCA DE UM ETHOS: NARRATIVAS DA FUNDAÇÃO DA … · RESUMO Com o ensejo de cultivar a memória...
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DANIELA OLIVEIRA DE CARVALHO VERISSIMO E MELO
EM BUSCA DE UM ETHOS: NARRATIVAS DA FUNDAO DA
TERAPIA OCUPACIONAL NA CIDADE DE SO PAULO
(1956-1969)
VOLUME 01
Dissertao apresentada Universidade
Federal de So Paulo - UNIFESP para
obteno do ttulo de Mestre Profissional em
Ensino em Cincias da Sade.
SO PAULO
2015
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DANIELA OLIVEIRA DE CARVALHO VERISSIMO E MELO
EM BUSCA DE UM ETHOS: NARRATIVAS DA FUNDAO DA
TERAPIA OCUPACIONAL NA CIDADE DE SO PAULO
(1956-1969)
VOLUME 01
SO PAULO
2015
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SO PAULO
CENTRO DE DESENVOLVIMENTO DO ENSINO SUPERIOR EM SADE
PROGRAMA DE PS-GRADUAO ENSINO EM CINCIAS DA SADE
EM BUSCA DE UM ETHOS: NARRATIVAS DA FUNDAO DA
TERAPIA OCUPACIONAL NA CIDADE DE SO PAULO
(1956-1969)
VOLUME 01
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-
graduao Ensino em Cincias da Sade do
Centro de Desenvolvimento do Ensino
Superior em Sade (CEDESS) da
Universidade Federal de So Paulo
(UNIFESP) para obteno do ttulo de Mestre
Profissional em Ensino em Cincias da Sade.
Orientador: Prof. Dr. Dante Marcello
Claramonte Gallian
SO PAULO
2015
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DANIELA OLIVEIRA DE CARVALHO VERISSIMO E MELO
EM BUSCA DE UM ETHOS: Narrativas da Fundao da Terapia
Ocupacional na Cidade de So Paulo (1956-1969)
VOLUME 01
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-
Graduao Ensino em Cincias da Sade do
Centro de Desenvolvimento do Ensino
Superior da Universidade Federal de So
Paulo para obteno do ttulo de Mestre
Profissional em Ensino em Cincias da Sade.
rea de Concentrao: Ensino em Cincias
da Sade
Orientador: Prof. Dr. Dante Marcello
Claramonte Gallian
BANCA EXAMINADORA
Prof Dr Dante Marcello Claramonte Gallian (Presidente)
Prof Dr Tas Quevedo Marcolino (UFSCar)
Prof Dr Sandra Maria Galheigo (USP)
Prof Dr Rosana Rossit (UNIFESP)
Prof Dr Fabola Holanda Barbosa Fernandez (Suplente)
So Paulo, 10 de junho de 2015.
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Pilar
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AGRADECIMENTOS
s professoras Marcela e Selma por transmitirem o apreo pela Histria.
Aos colegas da turma, funcionrios e docentes do Programa de Ps-Graduao
Ensino em Sade do Centro de Desenvolvimento em Ensino Superior da
Universidade Federal de So Paulo pela sensibilidade durante minha gestao
e perodo de licena-maternidade.
s docentes Bel, Carminha, Denise, Mari, Sandra, Betinha, Eli, Bete, Fernanda,
Selma, Maria Helena, Ftima, Eucenir e, em especial, Marta por se dedicarem
ao curso de Terapia Ocupacional da Universidade de So Paulo e por me
formarem terapeuta ocupacional.
A todos os colegas da Turma 34 do curso de Terapia Ocupacional da
Universidade de So Paulo por compartilharem a experincia da graduao, em
toda sua complexidade, em especial, Ellen Cristina Ricci e Karen de Arruda
Zerrenner.
s terapeutas ocupacionais Caroline Palermo Carlone, Daniela Figueiredo
Canguu, Gabriela Cruz de Moraes, Snia Ferrari e Tatiane Ceccato por
acolherem meus primeiros passos profissionais e por me indicar um caminho a
seguir.
J por respeitar minha formao e lapid-la.
A Fabiola pelo incentivo pesquisa e Rosana, Sandra e Tais por investirem
seus afetos e conhecimentos em nosso encontro.
Ao meu orientador, Professor Dante, pela preciosa conduo e por confiar na
realizao deste trabalho desde a primeira conversa.
s colaboradoras desta pesquisa pela generosidade com que se dispuseram ao
projeto.
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Aos meus pais, Joo Lus e Marli, por me ensinarem que a educao sempre
ser o melhor investimento e a melhor herana.
minha irm, Gabriela, por sua amizade, carinho e presena incondicionais.
Ao meu esposo, Gneves, pelo emprstimo do dicionrio de grego e pelo amor
que construmos e vivemos daquele dia em diante.
minha filha, Pilar, por me presentear todos os dias com sua vida e me lanar
em novas histrias.
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Nos bailes da vida
Compositor: Milton Nascimento
Foi nos bailes da vida ou num bar
Em troca de po
Que muita gente boa ps o p na profisso
De tocar um instrumento e de cantar
No importando se quem pagou quis ouvir
Foi assim
Cantar era buscar o caminho
Que vai dar no sol
Tenho comigo as lembranas do que eu era
Para cantar nada era longe tudo to bom
At a estrada de terra na boleia de caminho
Era assim
Com a roupa encharcada e a alma
Repleta de cho
Todo artista tem de ir aonde o povo est
Se for assim, assim ser
Cantando me disfaro e no me canso
De viver nem de cantar
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Em busca de um ethos: Narrativas da Fundao da Terapia Ocupacional na
Cidade de So Paulo (1956-1969)
RESUMO
Com o ensejo de cultivar a memria profissional e ampliar o debate
historiogrfico, a presente pesquisa visa compreender a fundao da Terapia
Ocupacional na cidade de So Paulo e, em especial, identificar o ethos dos
profissionais engajados neste processo. Para reduzir a escala de observao e
aprofundar o estudo, foi necessria a delimitao espacial o municpio de So
Paulo e temporal de 1956, ano de criao do Instituto Nacional de
Reabilitao (INAR) a 1969, ano de regulamentao da profisso com o Decreto-
lei 938/69. Cabe salientar que trataremos das bases, da fundao, da profisso
em uma determinada cidade e no pretendemos afirmar que ela foi o bero do
estabelecimento da profisso no Brasil. Dada a escassez de pesquisas de cunho
historiogrfico sobre a Terapia Ocupacional no pas, conhecer trajetrias de vida
de terapeutas ocupacionais participantes da fundao da profisso nesta cidade
nos pareceu o melhor caminho a ser trilhado e, para tanto, adotamos a histria
oral de vida como metodologia especfica da Histria. Findo processo de
Imerso/Cristalizao trs categorias de anlise foram discutidas, a saber:
Projeto poltico-pedaggico; Profisso humanista fundada por mulheres;
Orfandade e legado profissional. Deflagramos a constituio da profisso como
resultado de um imbricado jogo de foras, interesses e discursos entre as
prprias terapeutas ocupacionais no contexto de enfraquecimento poltico do
Servio Social e ascenso da Psicologia no interior da instituio de ensino
responsvel pelo primeiro curso na cidade de So Paulo. No segundo volume,
as narrativas transcriadas das cinco colaboradoras sero apresentadas, alm de
nossa proposta de interveno na realidade como desdobramento da pesquisa
de acordo com os pressupostos do programa de mestrado profissional em que
nos inserimos.
Palavras-chave: Terapia Ocupacional. Terapia Ocupacional/Histria.
Identidade Profissional. Histria Oral de Vida. Narrativas.
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Looking for an ethos: Narratives of Occupational Therapy Foundation in the
City of So Paulo (1956-1969)
ABSTRACTY
With the opportunity to cultivate professional memory and expand the
historiographical debate, this research aims to understand the foundation of
Occupational Therapy in the city of So Paulo and, in particular, identify the ethos
of professionals engaged in this process. To reduce the scale of observation and
intensify the study, the espatial delimitation was necessary - the city of So Paulo
as well as temporal delimitation - 1956, year of creation of the INAR to 1969,
year of regulation of the profession . It should be noted that the research deals
with the foundation of the profession in a particular city and do not intend to assert
that it was the birthplace of the establishment of the profession in Brazil. We
adopted the oral history of life as a methodological approach because
historiagraphical researche of Occupational Therapy is scarce in this country.
Ended process of Immersion/ Crystallization, three categories of analysis were
discussed: Political and pedagogical project; Humanistic profession founded by
women; Orphanhood and professional legacy. We understand the establishment
of the profession as a result of an interwoven set of interests and discourses in
their own occupational therapists in the context of political weakening of Social
Work and rise of Psychology in the educational institution that offering the course
in So Paulo. Finally, we will present the full narratives of the five collaborators
and, as research unfolding, a proposal for intervention in reality researched.
Keywords: Occupational Therapy. Occupational Therapy/History. Professional
Identity. Oral History of Life. Narratives.
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SUMRIO
Introduo ..................................................................................................03
1.1. Memrias de pesquisadora, histria do projeto ...............................04
1.2. Consideraes iniciais para aproximar a Terapia Ocupacional da
Histria ...................................................................................................10
1.3. Historiografia: a escrita da histria na perspectiva dos Analles e da
Histria Oral ............................................................................................13
1.4. Formas de compreender a constituio da Terapia Ocupacional no
Brasil .......................................................................................................15
1.5. Objetivos ..........................................................................................22
1.6. Estrutura da dissertao ..................................................................22
Captulo 1 - Por uma nova histria: (re) visitando o contexto de
surgimento da profisso ...........................................................................24
2.1. Parte 1 A Terapia Ocupacional nos Estados Unidos ................24
- Os Estados Unidos no incio do sculo XX ................................ 25
- A Criao da Hull House ............................................................27
- As razes da Terapia Ocupacional ..............................................29
2.2. Parte 2 A Terapia Ocupacional no Rio de Janeiro ....................39
2.3. Parte 3 - A Terapia Ocupacional em So Paulo ..........................48
Captulo 2 - Percurso Metodolgico .........................................................63
3.1. Histria Oral e suas etapas ..........................................................63
3.2. Composio da rede ....................................................................67
3.3. Os desdobramentos do encontro com as colaboradoras na
pesquisa .......................................................................................68
3.4. Anlise de Dados .........................................................................70
Captulo 3 - Resultados e Discusso ..............................................................72
4.1. Projeto poltico-pedaggico ..........................................................72
4.2. Profisso humanista fundada por mulheres .................................83
4.3. Orfandade e legado profissional ...................................................89
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2
Concluso ........................................................................................................98
Referncias ....................................................................................................102
Bibliografia ......................................................................................................102
Filme ...............................................................................................................109
Fontes Primrias .............................................................................................109
Jornais .............................................................................................................109
ANEXOS .........................................................................................................110
Anexo 01 Relao de Scios Fundadores e Primeira Diretoria do Centro
Acadmico Arnaldo Vieira de Carvalho (CAAVC) ............................................111
Anexo 02 Lista de alunos dos cursos de Fisioterapia e Terapia Ocupacional do
Instituto de Reabilitao elaborada pelo CAAVC .............................................113
Anexo 03 - Proposta curricular de Elizabeth Eagles para o curso de Terapia
Ocupacional do Instituto de Reabilitao .........................................................115
Anexo 04 Carta do Instituto de Reabilitao interessada no curso de Terapia
Ocupacional ....................................................................................................116
Anexo 05 Parecer Consubstanciado do Comit de tica e Pesquisa da
UNIFESP .........................................................................................................117
Anexo 06 Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ..............................120
Anexo 07 Resultado da seleo dos candidatos aos cursos do Instituto de
Reabilitao ....................................................................................................122
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3
INTRODUO
1.1. Memrias de pesquisadora, histria do projeto
Sou paulistana e fao aniversrio em 25 de janeiro, dia de So Paulo.
Carrego um sobrenome quase quatrocento, mas, no se engane: sou
descendente de migrantes nordestinos e filha de professores da rede municipal
de ensino. Cresci no bairro de So Miguel Paulista, extremo da Zona Leste da
cidade. Apesar da distncia do centro e incipincia rede de servios e transporte
pblico, tive o privilgio de acessar a riqueza da cultura do Nordeste por meio da
tradio oral, da msica, dos temperos, da dana.
Neta de baianos e filha de piauiense, cresci ao lado de filhos e netos de
pernambucanos, cearenses, alagoanos, sergipanos e outros baianos em solo
paulista. Isto significa que, quando Diego Ayres Guerreiro, do alto de seus seis
ou sete anos, tocou uma sanfona imaginria e, xaxando, entoou o rio s
Francisco vai bat no mei do ma1, a professora Valria no conseguiu controlar
a classe, tampouco, suas risadas pois, mesmo no interior do melhor colgio
particular do bairro, todos conheciam a msica, todos sabiam que ele imitava
com perfeio o timbre e a performance de Luiz Gonzaga.
Na mesma poca, muitos amigos do condomnio onde morava
ingressaram na catequese, mas no pude acompanh-los no curso. Minha me,
Marli Oliveira de Carvalho, e meu pai, Joo Lus Verssimo de Melo, tementes
Marx, explicaram-me que a religio o pio do homem e orientaram-me a
responder assim para a crianada caso algum perguntasse o porqu de no
frequentarmos Igreja. Foi neste momento que estreitei meus laos com a
escola e com os amigos de l. Isadora Anglica Franco e, posteriormente,
Juliana Velasques Domingos de Melo so duas grandes amigas da escola para
a vida.
Devo minha av, Lourdes Oliveira Lopes, e minha tia, Ftima Oliveira
de Carvalho, a iniciao no mundo cor-de-rosa de mimos, penteados, frufrus,
vestidos, pulseiras, cremes, babados, contos de fada, perfumes e toda a sorte
de frivolidades para uma feminista mais aguerrida. Justamente, em um de
1 O rio So Francisco vai bater no meio do mar, trecho da msica Riacho do Navio de Luiz Gonzaga.
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nossos passeios, minha tia me levou para assistir ao filme O Corcunda de Notre
Dame2: opresso e perseguio do povo cigano pelo governo francs, uma
criana com deficincia humilhada e chamada de monstro que cresce e vive
isolada na torre de uma igreja. Quando Quasmodo saiu s ruas foi humilhado e
torturado pela multido foi defendido por uma cigana - ora pedinte, ora danarina
sensual - que lhe teve compaixo, mas no lhe correspondeu o amor. Apesar de
ser um desenho animado, o enredo no era nada infantil. Onde estaria Jaqueline,
nica criana com deficincia com quem convivi ainda na primeira srie e que
abandonou a escola? Onde ficavam as pessoas com deficincia? Na torre das
igrejas? No havia espao interno para um lanche feliz depois desse filme.
Anos mais tarde, desisti do curso de Direito ao ler no Manual da FUVEST3
2003:
A Terapia Ocupacional um campo de conhecimento e de interveno em sade,
educao e na esfera social, reunindo tecnologias orientadas para a emancipao e
autonomia de pessoas que, por razes ligadas problemtica especfica, fsicas,
sensoriais, mentais, psicolgicas e/ou sociais apresentam temporariamente ou
definitivamente dificuldade na insero e participao na vida social4
A inquietao motriz desta pesquisa surgiu em 2003, no comeo da
graduao em Terapia Ocupacional na Universidade de So Paulo, quando
cursvamos a primeira disciplina de constituio do campo e histria da Terapia
Ocupacional com a docente Marta Carvalho de Almeida. Alm do contato com a
bibliografia clssica sobre o tema, o aprendizado sobre a histria do curso muito
mobilizou nossa turma profundamente.
Ausncia de professores. Aulas em escadas e corredores por falta de salas
de aula. Mobilizao dos alunos por condies mnimas de estudo e contratao
de professores. Peregrinao da FOFITO5 em diferentes departamentos da
2 Filmado pelos estdios de Walt Disney, filme inspirado na obra Notre-Dame de Paris de Vitor Hugo. 3 Fundao Universitria para o Vestibular (FUVEST) 4 Trecho da definio de Terapia Ocupacional elaborada pelo curso de Terapia Ocupacional da
Universidade de So Paulo em 1997.
5 Frequentemente utilizada, trata-se da abreviao de Fonoaudiologia, Fisioterapia e Terapia
Ocupacional, cursos que compe um dos departamentos da Faculdade de Medicina da
Universidade de So Paulo.
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Faculdade de Medicina at a criao do Departamento em 1999. Dificuldade de
dilogo entre alunos e coordenao do curso. Mudana de coordenao.
Contratao de professores. Alunos que se tornaram professores. Compromisso
em transmitir aos novos o caminho j percorrido. Convite militncia pela
profisso. Necessidade de construo de bloco didtico, contratao de mais
tcnicos e docentes.
Lembro das acaloradas conversas de minha turma, TO 34, nos intervalos,
momento em que tentvamos elaborar coletivamente a histria do curso e a
precariedade do Bloco 8, barraco deteriorado na Cidade Universitria em que
assistamos s aulas. No raro, questionvamo-nos sobre nossas reais
possibilidades de levar a profisso adiante. De fato, alguns alunos desistiram j
nas primeiras aulas e ao longo do primeiro ano do curso.
Findo o primeiro ano, eu mesma prestei vestibular novamente para o curso
de Direito e, por um ponto, no alcancei a nota de corte da primeira fase. Um
querido amigo, Leonardo Assis Lopes me deu a notcia. Ele tambm prestou
vestibular novamente e ingressou no curso de Psicologia da Pontifcia
Universidade Catlica de So Paulo (PUC-SP). Existiam outras possibilidades,
mas decidi ficar.
Lembro-me de um almoo na casa dos meus avs em que, mais uma vez,
eu me sentia sabatinada e convocada a dar explicaes sobre minha escolha
profissional: afinal, o que era essa tal de Terapia Ocupacional que eu iria cursar
at o fim? Nessa altura, j possua algum estofo terico pois j havia lido as
dissertaes de algumas das docentes do estado de So Paulo e todo o material
bibliogrfico das disciplinas e, pretensiosamente, resolvi discorrer sobre a
trajetria das polticas de sade no Brasil desde as Caixas de Aposentadorias e
Penses at o Sistema nico de Sade, marcando a funo exercida pela
Terapia Ocupacional na expanso da indstria em So Paulo no tocante
recuperao dos trabalhadores acidentados e tudo mais que lembrava.
Foi quando meu av, Albino Lopes de Carvalho - que sempre pedia para
comermos em paz e evitarmos assuntos polmicos durante as refeies em
famlia contou que quando chegou So Paulo trabalhou na instalao da rede
eltrica, viajando por todo o estado com inmeros outros colegas tambm
migrantes nordestinos. Falou de seus irmos, outros conterrneos e elencou
diversas pessoas que conhecamos e seus postos de trabalho na indstria.
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Ele prprio trabalhou at ser demitido - s vsperas da aposentadoria - em
uma grande multinacional de pneus, que trouxe para So Paulo o maquinrio
considerado ferro velho nos Estados Unidos e cujo critrio de seleo dos
trabalhadores era a altura - pois os americanos, em mdia, eram mais altos que
os brasileiros de modo que o funcionrio precisaria caber nos postos de
trabalho. Relembrou inmeros amigos que foram demitidos aps algum acidente
de trabalho, sem direito indenizao ou qualquer programa de reabilitao
profissional.
Anos-luz do esteretipo do coronel, do jaguno e do cangaceiro, no interior
das famlias nordestinas, vivemos um matriarcado. Sim. Ento, minha v
descansou os talheres e sentenciou: era tudo muito bonito o que estava nos
livros, mas a minha bisav me dela tambm perdera uma parte do dedo e
foi mandada embora da indstria com uma mo na frente e outra atrs. Na raa
e sem tratamento, procurou trabalho em outras indstrias porque perder uma
parte to pequena do corpo no era considerado deficincia. Inclusive, ainda
de acordo com a minha v, no se teve notcia em So Miguel Paulista e nem
no Brs onde ela mesma trabalhou como tipgrafa at se casar - de nenhum
deficiente ou louco que tenha trabalhando na indstria desde que a nossa famlia
chegou em So Paulo na dcada de 1940. Caramba... Eu e minhas refeies
felizes em famlia!
Quando a realidade se mostrava implacvel, Ellen Cristina Ricci ocupava um
lugar fundamental na constituio de nossa turma como grupo de futuros
terapeutas ocupacionais e, na amizade que cultivava com cada um de ns.
Diante de desventuras como o meu almoo de domingo e outras situaes
vividas pelo grupo, ela soltava um calma, gente! de sotaque bem campineiro
acompanhado do seu sorriso acolhedor. Sempre tinha gua e mais um pacote
de bolacha para dividir conosco. Ela era, e ainda , a mezona da nossa turma
e, no tenho certeza, foi nossa representante discente.
Rapidamente, aprendemos a utilizar alguns recursos da comunidade uspiana
como, por exemplo, os banheiros da Faculdade de Economia e Administrao
(FEA), os computadores da sala pr-aluno da Escola Politcnica (EP), o
restaurante universitrio do Instituto de Fsica, as feiras de livro da Faculdade de
Filosofia, Letras e Cincias Humanas (FFLCH), etc. Assim como eu, a maioria
do grupo permaneceu e se formou. De qualquer modo, as desistncias e a
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vontade de investir na profisso deixaram marcas profundas em minha formao
pessoal e profissional, assim como a rede de solidariedade e apoio mtuo dos
alunos, professores e colegas de trabalho.
Enfim, graduei-me terapeuta ocupacional pela Faculdade de Medicina da
Universidade de So Paulo em dezembro de 2006 e, no ano seguinte, ingressei
no Programa de Aprimoramento Profissional6 promovido pelo CAPS Prof. Lus
da Rocha Cerqueira, comumente, chamado de CAPS Itapeva servio pblico
de sade mental destinado ao atendimento de pessoas com transtornos mentais
severos e persistentes (psicticos e neurticos graves) e cujo objetivo central
substituir um modelo de atendimento centrado nas internaes de longa
permanncia em manicmios.
Naquele ano, enfrentei toda a angstia de uma escolha profissional, no
mnimo, excntrica para o olhar da famlia, amigos e, inclusive, outros
profissionais da sade. Revivia uma ntima reflexo acerca das razes que me
levaram a ser terapeuta ocupacional e na construo da prtica profissional
possvel para uma recm-formada. E, devo dizer, sentia-me perdida: ao atender
os pacientes ou nas reunies clnicas com a equipe, percebia que tomava
emprestados conceitos de outros campos do conhecimento para legitimar o
trabalho que desenvolvia com aqueles pacientes e, principalmente, para me
fazer escutar e ter condutas profissionais validadas.
Neste contexto, fui acolhida com generosidade por Caroline Palermo
Carlone terapeuta ocupacional recm-contratada pelo servio. Inicialmente, ela
me apresentou a sua prtica profissional de maneira muito concreta: conversou
com Sonia Maria Leonardi Ferrari para que eu pudesse conhecer os grupos de
terapia ocupacional que desenvolvia no Instituto A Casa7, alm de me convidar
para acompanha-la nos grupos que desenvolvia no CAPS. Carol me mostrava
o seu raciocnio clnico como terapeuta ocupacional, conversvamos muito. O
6 O Programa de Aprimoramento Multiprofissional em Sade Mental do Centro de Ateno
Psicossocial (CAPS) Prof. Lus da Rocha Cerqueira est vinculado Fundao do
Desenvolvimento Administrativo (FUNDAP). Com durao de um ano, voltado aos profissionais
recm-formados das reas de Psicologia, Servio Social, enfermagem e Terapia Ocupacional.
7 O hospital-dia A Casa foi fundado em 1979 e hoje um departamento do Instituto do
Desenvolvimento e Pesquisa da Sade Mental e Psicossocial A Casa.
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investimento e o afeto desta colega de profisso me trouxeram a segurana
necessria na experimentao profissional.
Ela tambm me aproximou das demais terapeutas ocupacionais
contratadas naquele ano: Gabriela Cruz de Morais, Tatiane Ceccato e Daniela
Figueiredo Canguu. Lembro que em uma de nossas conversas, Gabi associava
minha angstia de Tais Quevedo Marcolino e me indicou uma atividade: a
leitura da dissertao de Tais8. Tatiane sugeriu que eu fizesse o atendimento
individual de Terapia Ocupacional de uma usuria do servio, pois considerava
que eu s perceberia que eu sabia o que fazer quando estivesse na prtica.
Daniela me convidou para um grupo de estudos sobre psicanlise junto a outras
duas aprimorandas. Quem era essa tal Benetton que a Marcolino citava e eu s
havia lido um texto dela no primeiro ano na disciplina de Atividades e Recursos
Teraputicos (ART) com a Betinha? Tatiane tambm encomendou para mim um
exemplar do livro Trilhas Associativas: Ampliando Subsdios Metodolgicos
Clnica da Terapia Ocupacional (BENETTON, 2006). Cada uma destas
terapeutas ocupacionais me acolheu muito, da melhor forma possvel e, para
mim, inimaginvel.
Com o objetivo de aprender algum raciocnio clnico como terapeuta
ocupacional, em 2008, cheguei ao Centro de Especialidades em Terapia
Ocupacional, o CETO9. Com muito investimento, um pesadelo e algum temor,
pois havia anos que nenhuma uspiana se matriculava, fui recebida por J
Benetton. Tambm tive a alegria de reencontrar Sonia Ferrari e, posteriormente,
o privilgio de compor uma das equipes do Instituto A Casa, cuja superviso era
desenvolvida por Snia.
Minha trajetria profissional se desenvolve, majoritariamente, no Sistema
nico de Sade (SUS), no campo da Sade Mental em servios da Rede de
Ateno Psicossocial (RAPS): como terapeuta ocupacional em diferentes
Centros de Ateno Psicossocial (CAPS) e em Ncleo de Apoio Sade da
8 MARCOLINO, T. Q. A dimenso pedaggica nos procedimentos de Terapia Ocupacional.
Universidade Federal de So Carlos: Programa de Ps-graduao em Educao, 2005.
Dissertao.
9 Instituio, dirigida por Maria Jos Benetton e Sonia Maria Ferrari, destinada formao clnica
de terapeutas ocupacionais no denominado Mtodo Terapia Ocupacional Dinmica (MTOD) em
nvel de ps-graduao.
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9
Famlia (NASF); como coordenadora de Servio Residencial Teraputico (SRT).
Para mim, ingressar na Sade Pblica como ingerir o comprimido vermelho
que Morpheus oferece a Neo em Matrix10. Trabalhar no SUS uma escolha
tica, poltica e esttica.
No CETO, a partir de estudos epistemolgicos da Terapia Ocupacional e
do resgate histrico do surgimento da profisso nos Estados Unidos as reflexes
de outrora foram lapidadas e as questes norteadoras deste projeto de mestrado
comearam a ser esboadas: como teria sido a construo das bases da
profisso no Brasil? Se mesmo com mais de 50 anos de curso, temos tantas
dvidas em relao profisso como teria sido com os primeiros profissionais?
Ao compartilhar todas estas questes com meu orientador, Dante
Marcello Claramonte Gallian, a abordagem metodolgica da Histria Oral de
Vida se mostrou a mais indicada, assim como o Programa de Mestrado
Profissional Ensino em Cincias da Sade. Com a convico de que este tipo de
projeto revelaria uma parte ignorada da histria oficial, alm da valorosa
preservao da memria da profisso, as narrativas dos colaboradores tornam-
se documentos, fontes orais, que poderiam ser utilizadas por novos
pesquisadores em futuras pesquisas.
Em uma das primeiras idas Universidade Federal de So Paulo
(UNIFESP) para o Grupo de Histria Oral e Sade (GEHOS), conheci a
historiadora Fabola Holanda Barbosa Fernandez, grande incentivadora desta
pesquisa. Logo ela me disse que eu lhe trazia a lembrana de uma querida tia
dela que tambm era terapeuta ocupacional e se formou em Pernambuco. At
em Pernambuco as terapeutas ocupacionais se angustiavam e sofriam em seus
processos formativos!
Estes primeiros encontros tambm aconteciam em uma sala simples e
com poucos recursos da Universidade Federal de So Paulo. Hoje, balzaquiana,
me, trabalhando h algum tempo no Sistema nico de Sade, percebo que no
era a precariedade do Bloco 8 que nos assustava, era o mrmore daquelas
10 O filme Matrix, lanado em 1999, foi dirigido por Lana e Andy Wachowski. Inaugura uma
trilogia, inspirada pelo Mito da Caverna de Plato e outros tericos da Filosofia, que narra a
histria de um grupo que quebra as correntes da ignorncia e deseja conhecer a verdade sobre
a Matrix, simulao da realidade onde os seres humanos so prisioneiros.
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escadas do nmero 455 da Avenida Doutor Arnaldo que marcava o abismo entre
aquela instituio de ensino e as prerrogativas da Terapia Ocupacional.
Entre o primeiro contato com o Professor Dante, aproximaes e
distanciamentos do Grupo de Estudos Histria Oral e Sade (GEHOS),
casamento, ingresso no mestrado, maternidade, licena-maternidade, mudana
de cidade e a concluso desta pesquisa, alguns anos se passaram. Tempo de
amadurecimento pessoal, profissional e de construo de autonomia das minhas
ideias. com imensa alegria e uma boa dose de saudade do processo de
trabalho, que apresento a pesquisa Em busca de um Ethos: Narrativas da
Fundao da Terapia Ocupacional na Cidade de So Paulo (1956-1969).
1. 2. Consideraes iniciais para aproximar a Terapia Ocupacional da
Histria
Com o ensejo de cultivar a memria profissional e ampliar o debate
historiogrfico, a presente pesquisa utiliza a Histria Oral de Vida para
compreender a fundao da Terapia Ocupacional na cidade de So Paulo e, em
especial, identificar o ethos11 dos profissionais engajados neste processo, isto ,
o conjunto de caractersticas prprias desse grupo de pessoas que lhes
diferenciou das demais e lhes conferiu identidade social.
Para reduzir a escala de observao e aprofundar o estudo, foi necessria
a delimitao espacial o municpio de So Paulo e temporal de 1956, ano
de criao do Instituto Nacional de Reabilitao12 a 1969, ano de
regulamentao da profisso no pas por meio do Decreto-lei 938/69. Cabe
salientar que trataremos das bases, da fundao, da profisso em uma
determinada cidade e no pretendemos afirmar que ela foi o bero do
11 Cortella (2010) explica que, de origem grega, ethos significava morada do humano, isto , o
carter, o modo de vida habitual, aquilo que nos abriga e nos mostra o que somos. A casa como
representao do ser e, por excelncia, o local em que deixamos nossas marcas. Por
conseguinte, esta morada humana morada coletiva precisa ser preservada e protegida. 12 Na medida em que a criao do Instituto Nacional de Reabilitao se deu por um decreto
estadual e estabeleceu o incio de cooperao tcnica internacional e repasses financeiros pela
Organizao das Naes Unidas, apenas em relao ao estabelecimento do curso no estado de
So Paulo, o ano de 1956 pode ser considerado marco das polticas indutoras da formao de
terapeutas ocupacionais.
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11
estabelecimento da profisso no Brasil. importante salientar que se tratam de
recortes de tempo e espao.
Goubert e cols. (2002) afirmam que para atingir o objetivo de construir
histrias e/ou Histria, preciso observar que percursos humanos individuais se
repetem de maneira idntica em determinados contextos culturais. Para os
autores, ethos compreendido como a sntese das caractersticas de um grupo
que o diferencia de outros, isto , os costumes originais e os hbitos de
determinado grupo em determinada cultura.
Lancman (1998) destaca a influncia da capacitao de terapeutas
ocupacionais no processo de constituio da profisso no Brasil. Assinala que a
formao de professores ocorre em reas afins e, por conseguinte, o processo
de criao de um repertrio profissional e cultural comum aos terapeutas
ocupacionais dificultado.
Ademais, Emmel e col. (2001) apresentaram importantes contribuies
acerca dos papis assumidos pelo terapeuta ocupacional que atua na docncia.
Observaram a concepo dos docentes de que o aluno deve constituir um
percurso induvidual resultante do engendramento histrico, tico e poltico das
prticas sociais. Alm de promover no estudante dvida, questionamento e
curiosidade, o professor possibilitaria uma construo ideolgica da profisso,
conduzindo-o na criao de um conjunto de saberes norteadores da prtica
profissional. Logo, torna-se responsvel pela formao da identidade profissional
do aluno.
Cunha (1997) apresenta uma reflexo sobre as narrativas como
instrumental educativo e acrescenta que um dos objetivos principais do emprego
delas se insere na proposta de construo de conhecimento para fins de ensino.
Quando um sujeito relata suas experincias, ele reconstri sua trajetria e atribui
a ela novos sentidos e significados. A narrativa , ento, percebida como capaz
de transformar a realidade na medida em que ela compreendida como
representao do sujeito inserido em determinado tempo e contexto social. Logo,
o relato da realidade significa a produo da histria.
Isto posto, a aproximao com a Histria nos pareceu interessante pois a
narrativa de acontecimentos est vinculada, intimamente, ancestral
necessidade humana de constituir memria individual e coletiva, quer seja,
memria social. Em sua longeva trajetria, justamente a prerrogativa de
-
12
promover a memria social que confere especificidade Histria e a distingue
dos demais campos do conhecimento na grande rea das Cincias Humanas.
Mas o objetivo final [da Histria] sempre o mesmo, a reconstituio do
acontecimento, quer dizer, a revivescncia de um fragmento da vida num determinado
momento. Esta nsia de criao reviver a vida no texto imprime ao discurso do
historiador uma dimenso de arte, e um carter inevitvel de utopia (NOVAIS; SILVA,
2011, p. 26)
Em Galheigo (1988), temos que a oralidade a principal caracterstica da
transmisso do conhecimento na Terapia Ocupacional de professor para
aluno, de terapeuta para terapeuta. Lanando mo de narrativas de terapeutas
ocupacionais para construir um depoimento coletivo, a autora assume os
objetivos de escrever histrias no escritas de Terapia Ocupacional e refleti-las
num contexto histrico dialeticamente situado (p.3) e recusa a pretensiosa
tarefa de escrever a Histria da Terapia Ocupacional brasileira, apesar de
salientar sua inexistncia (idem).
Ao publicar Como se escreve a Histria, Paul Veyne (1971) inaugura a
concepo de que a Histria no existe, o que existe uma histria sobre algo.
Ao comparar o historiador ao romancista e, por conseguinte, aproximar a prpria
Histria da fico, o autor revelou que a produo de fatos histricos marcada
pela subjetividade do pesquisador: ao se apropriar de determinados eventos
(reais ou irreais), organiz-los e atribuir-lhes significados, o historiador pode se
confundir com o romancista, autor de obras de fico, e afirmar como verdade
histrica uma perspectiva pessoal sobre determinados acontecimentos. Trata-se
de uma reflexo crtica sobre a arbitrariedade na produo e transmisso do
conhecimento, alm da negao da neutralidade do historiador.
Possivelmente amparado nas reflexes j consolidadas por Veyne, seu
contemporneo, Jean-Pierre Goubert, historiador francs da cole des Hautes
tudes en Sciences Sociales de Paris (Escola de Altos Estudos em Cincias
Sociais de Paris), explicou a Maria Jos Benetton, terapeuta ocupacional
brasileira e sua orientanda no ps-doutorado, que a escrita da Histria da
Terapia Ocupacional s poderia ser feita em primeira pessoa (Benetton, 2006,
p. 31). Abordaremos, ento, no prximo tpico, como histrias so escritas por
pesquisadores alinhados Escola dos Analles.
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13
1.3. Historiografia, a escrita da Histria, na perspectiva dos Analles e da
Histria Oral
No sculo XIX, impe-se Histria o dilogo com as cincias: a
reconstituio de um acontecimento passou a ser acompanhada de uma
explicao para se tornar cientfica. A tenso estabelecida entre
narrativa/reconstituio e anlise/explicao se caracteriza como marco da
historiografia moderna. Os acontecimentos passaram a ser historicizados, isto ,
so conceituados e contextualizados luz de outros campos do conhecimento,
em especial, aqueles pertencentes grande rea das Cincias Humanas.
A institucionalizao deste dilogo aconteceu na Escola dos Analles, na
Frana, em 1929, ou seja, o historiador assume tal funo em seu ofcio e ao
longo do texto ora enfatizando a narrativa/reconstituio, ora enfatizando a
anlise/explicao. Neste movimento, so reconhecidas trs fases: a primeira,
chamada de Bloch-Febvre por ter sido inaugurada com suas obras,
estabeleceu um intercmbio generalizado com todas as Cincias Humanas e,
em maior intensidade, com a Sociologia; a segunda, Braudel, inaugurada pelo
autor, privilegiou o dilogo com a Economia; a terceira e atual, chamada de
Nova Histria, retoma a generalizao do dilogo, mas intensificando-o com a
Etnografia13 (NOVAIS; FREITAS, 2011).
Na primeira, houve equilbrio entre narrativa/reconstituio e anlise
explicao; na segunda, houve desequilbrio com favorecimento da anlise,
conceituao e explicao; na terceira, ocorre desequilbrio no sentido da
narrativa e constatao. Graas proximidade com a Etnografia, a Nova Histria
recusa a tradicional premissa historiogrfica de abordar o objeto-acontecimento
em sua totalidade (histria totalizante ou total), privilegia a descrio de um
acontecimento em escala menor, no micro, no sentido de que a compreenso do
todo deve se pautar na complexa articulao de diversos micro contextos em
detrimento de grandes generalizaes em que se toma o todo por uma nica
parte (idem).
13 Para Spradley (1979), etnografia seria a descrio de uma cultura desde um pequeno grupo
tribal at um grupo de jovens em uma grande cidade - baseada em atenta observao e no
contato intersubjetivo. Ao investigador etnogrfico, cabe compreender o modo de vida dos
nativos em questo sob a perspectiva deles prprios.
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14
Esse redimensionamento do trabalho do historiador e a crescente revalorizao da
oralidade embora mediatizada trazida pela expanso dos meios de comunicao de
massa como rdio, a televiso, o cinema, discos, etc., indicam a oportunidade de uma
reviso das posturas historiogrficas que tm, at hoje, olhado com grande
desconfiana o testemunho pessoal. importante destacar que certos historiadores
tm procurado orientar suas reflexes nesse sentido, apresentando seus primeiros
frutos (FREITAS, 2006, p.46-47).
Por excelncia, aqui se insere a legitimidade da Histria Oral como
Disciplina da Histria: o historiador assume a funo de transformar em histria-
discurso a narrativa-memria de pessoas envolvidas no acontecimento que se
pretende reconstituir. Para Thompsom:
A histria oral uma histria construda em torno de pessoas. Ela lana a vida para
dentro da prpria histria e isso alarga seu campo de ao. Admite heris vindos no
s dentre os lderes, mas dentre a maioria desconhecida do povo. Estimula professores
e alunos a se tornarem companheiros de trabalho. Traz a histria para dentro da
comunidade e extrai a histria de dentro da comunidade. Ajuda os menos privilegiados,
e especialmente os idosos, a conquistar dignidade e autoconfiana. Propicia o contato
- e, pois, a compreenso entre classes sociais e entre geraes. E para cada um dos
historiadores e outros que partilhem das mesmas intenes, ela pode dar um
sentimento de pertencer a determinado lugar e a determinada poca. Em suma,
contribui para formar seres humanos mais completos. Paralelamente, a histria oral
prope um desafio aos mitos consagrados da histria, ao juzo autoritrio inerente a
sua tradio. E oferece os meios para uma transformao radical no sentido social da
histria (THOMPSON, 1992, p. 44).
Todavia, a utilizao de narrativa pessoal para constituir memria social,
implica em reflexo sobre o fenmeno da memria em si. Halbwachs (1990)
enfatiza que a conservao total do passado impossvel porque o adulto no
mantm inalterado todo o sistema de representaes, hbitos e relaes sociais
da infncia. Por conseguinte, temos que a memria de uma pessoa
influenciada pelas relaes que estabelece com os diversos grupos de convvio
a que pertence: famlia, escola, trabalho, religio, etc. Logo, para este autor,
recordar no reviver.
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15
Ainda segundo Halbwachs, a reconstituio do passado depende da
integrao da pessoa que recorda em um grupo social: une-se a ele pela
identidade e em seu interior compartilha experincias. Nesta perspectiva, Bosi
(1994) afirma que, embora o indivduo seja o memorizador, a memria s se
constri no interior de um grupo e, assim, lembrar-se de um acontecimento
sempre uma ao coletiva.
Diante de todas as consideraes anteriores, no tpico seguinte,
apresentaremos as contribuies de autores brasileiros que, a partir dos grupos
em que se inserem, buscaram a compreenso da constituio da Terapia
Ocupacional no Brasil.
1.4. Formas de compreender a constituio da Terapia Ocupacional no
Brasil
Extrapolando as fronteiras da Terapia Ocupacional, alguns autores da
Sociologia e da Histria tem aprofundado a discusso acerca das possibilidades
e implicaes das contribuies geradas por cada uma, pois, dado que a
grande rea das Cincias Humanas se volta ao estudo da vida em sociedade,
busca o dilogo entre seus campos de conhecimento e a complementaridade de
olhares. Porm, como cada campo constri conhecimento de uma determinada
maneira e a partir de sua especificidade, foram necessrias negociaes e
estabelecimento de limites, inclusive, para fomentar o dilogo entre os diversos
campos.
Ainda que nossa pesquisa se alinhe Histria e, dentro desta, s
contribuies de autores referenciados Nova Histria - terceira fase da Escola
dos Analles est consolidada, entre Sociologia e Histria, a distino entre
cincia social retrospectiva e historiografia. Tratam-se de dois estilos de discurso
que pretendem explicar e reconstituir realidades vividas de maneira distinta, por
vezes, complementares:
Sintetizemos: as cincias sociais (por que cincias) sacrificam a totalidade pela
conceitualizao; a histria sacrifica a conceitualizao pela totalidade. Ou, noutros
termos, o historiador visa explicar para reconstituir; o cientista social visa reconstituir
para explicar; para o historiador, a explicao o meio, a reconstituio o fim; para o
cientista social, ao contrrio, a reconstituio o meio, a explicao o fim (NOVAIS &
SILVA, 2011, p.26).
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16
Em outras palavras, a cincia social retrospectiva enfatiza a anlise dos
fatos, principalmente, luz do materialismo-histrico; a historiografia enfatiza a
narrativa destes mesmos fatos dimensionando-os no tempo e no espao e
contextualizando-os. Ao retornarmos literatura especfica, localizamos quatro
autores nacionais que se dedicaram complexa tarefa de compreender a
constituio da Terapia Ocupacional no Brasil: Benetton (2001), Bezerra (2011),
Marinho (2008) e Soares (1991).
Iniciaremos a apresentao das produes alinhadas cincia social
retrospectiva, reforaremos, produes que enfatizam a anlise do surgimento
da profisso luz do materialismo-histrico: Bezerra (2011) e Soares (1991).
Posteriormente, as produes alinhadas historiografia, reforaremos,
produes com o objetivo de narrar o surgimento da profisso por meio das
variveis tempo e espao e contextualizando os acontecimentos: Benetton
(2001) e Marinho (2008).
De partida, as produes alinhadas cincia social retrospectiva
explicitam sua filiao nos ttulos: A Terapia Ocupacional na Sociedade
Capitalista e sua Insero Profissional nas Polticas Sociais no Brasil (Bezerra,
2011) e Terapia Ocupacional: Lgica do Capital ou do Trabalho? (Soares, 1991).
Ademais, ambas as obras dedicam captulos ao aprofundamento de termos,
conceitos e constataes consagradas pela tradio marxista com o objetivo de
analisar dialeticamente o processo de constituio da profisso no Brasil.
Bezerra (2011) argumenta que, no capitalismo, as profisses so criadas
para responder demandas sociais determinadas historicamente, de modo que a
constituio da Terapia Ocupacional responderia necessidade de manuteno
e recuperao dos trabalhadores na rbita do avano do capitalismo monopolista
desde o incio do sculo XX. O autor dialoga com a produo bibliogrfica sobre
a gnese do Servio Social para identificar na literatura da Terapia Ocupacional
a existncia de duas perspectivas antagnicas de anlise da gnese da Terapia
Ocupacional definidas pelo modo como os autores compreendem o surgimento
da profisso. A primeira, endogenista, composta por autores que:
compreendem a Terapia Ocupacional a partir de uma evoluo que lhe seria prpria, ao
desconsiderar o processo histrico - com seus aspectos econmicos, polticos e sociais
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17
como determinante do surgimento e desenvolvimento da profisso. Nesses autores,
observa-se a existncia de uma autonomia da profisso, com relao base material da
sociedade, de modo que, as transformaes das condies objetivas de vida parecem
no interferir nos rumos da mesma. Sendo assim, os autores apenas situam o
desenvolvimento da profisso em fases do seu processo histrico, mas, sem colocar os
aspectos econmicos, polticos e sociais da histria como o fundamento da existncia
profissional. Nessa linha de anlise, a profisso teria seu grmen na utilizao da
atividade nas prticas de sade e, neste caso, a Terapia Ocupacional seria, ento, a
evoluo e aperfeioamento dessas prticas, com o passar do tempo (BEZERRA, 2011,
p. 98)
J a segunda, histrico-crtica, busca embasamento no conceito marxista
de reproduo social, quer seja, a produo e reproduo das relaes sociais
em sociedade desvelando a forma como a reproduo do capital impacta e
permeia a vida de toda a sociedade. Para Bezerra, os autores dessa perspectiva
alcanam o entendimento de que:
ao intervir sobre os problemas originados da explorao do trabalho na produo
capitalista, principalmente os relacionados sade, o terapeuta ocupacional contribui
para a recuperao da fora de trabalho, ou seja, para a reproduo da base de
sustentao do capital, uma vez que, a fora de trabalho - em atividade -, que gera a
mais-valia capitalista.
Assim, constatamos tambm, que a anlise da Terapia Ocupacional, na perspectiva
histrico-crtica, possibilita entender que a ao profissional do terapeuta ocupacional,
ao ser mediada pelas polticas e pelos servios sociais e desenvolvida em instituies,
necessariamente permeada pelas contradies que atravessam essas polticas, servios
e instituies. Isto, tendo em vista que essas instncias se configuram como expresses
das respostas do Estado do capital, s reivindicaes dos trabalhadores e s
necessidades de reproduo do capital, significando dizer, que a ao do terapeuta
ocupacional est permeada pela relao conflituosa entre capital e trabalho. Desse
modo, ela essencialmente permeada por interesses de classes sociais antagnicas e
em relao, e no pode ser pensada fora dessa trama, j que a mesma surge como parte
das iniciativas sociais que interferem no enfrentamento dos conflitos de classe.
(BEZERRA, 2011, p. 101)
Em Terapia Ocupacional: Lgica do Capital ou do Trabalho, publicado em
1991, fruto da dissertao de La Beatriz Teixeira Soares, amplamente
divulgado e adotado pela academia como referencial para a constituio da
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profisso no pas. De partida, o objetivo central da obra apresentar uma
retrospectiva histrica da profisso no estado brasileiro no perodo de 1950 a
1980, constatando que a Terapia Ocupacional no Brasil estaria,
tradicionalmente, vinculada reabilitao e exerceria funes polticas,
ideolgicas e econmicas que corroboram com os interesses do Estado na
implantao de polticas pblicas de sade.
A argumentao da autora insere a constituio brasileira da profisso na
rbita do avano do capitalismo industrial na cidade de So Paulo: a Terapia
Ocupacional teria sido importada pelo Estado como resposta necessidade de
criao do denominado exrcito de reserva (Soares, 1991). Tratar-se-ia do
recrutamento de grupos sociais marginalizados de acordo com a demanda de
mo-de-obra nas indstrias paulistas. Na perspectiva da autora, formao e
prtica profissional devem estar dirigidas superao de tais funes e,
sobretudo, da alienao do espao teraputico. O profissional deve buscar a
transformao das instituies em que se insere com vistas construo de uma
nova realidade social:
No seu vaivm histrico, a necessidade de reabilitao tem sido determinada pelo
modelo econmico, que, ao promover condies insalubres de vida e trabalho, ainda
favorece o crescimento da populao enferma e de incapazes para o trabalho e novos
contingentes marginais, alm de, em determinados momentos especficos, requisitar a
absoro de parcelas do exrcito de reserva estagnadas, onde est parte dos
incapacitados (SOARES, 1991, p. 110).
Antes de passarmos aos autores da historiografia, faremos uma reflexo
sobre a importncia da contextualizao dos acontecimentos e a necessidade
do dilogo entre perspectivas distintas quando se objetiva compreender os
diversos fenmenos da vida em sociedade e aprofundar a compreenso dos
processos histricos. Para Lopes (1999), que assume a perspectiva da
populao-alvo da Terapia Ocupacional em seus estudos, temos que este grupo
de pessoas esteve no Brasil, historicamente, margem das polticas pblicas de
sade por estarem excludas do mercado formal de trabalho e,
consequentemente, sua assistncia em sade foi, majoritariamente,
desenvolvida por instituies filantrpicas e/ou asilares at o advento do Sistema
nico de Sade em 1988.
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Por outro lado, Fontes (2008) apresenta o panorama geral do movimento
migratrio da populao rural para as cidades e crescente industrializao do
pas entre as dcadas de 1950-1960 no Brasil. Alm de desconstruir o
esteretipo do nordestino desqualificado e vitimado pela seca, marca que desde
o incio do sculo XX, milhares de migrantes nordestinos chegaram a So Paulo
em busca de emprego e foram absorvidos pela crescente indstria, centralizando
sua anlise no bairro operrio de So Miguel Paulista.
Dialogando apenas com as contribuies destes dois autores, como
podemos afirmar que a Terapia Ocupacional brasileira se constitui como
instrumento estatal de dominao de classe - reprimindo e oprimindo os
trabalhadores para preservar a venda da fora de trabalho e assegurar a
acumulao e multiplicao do capital se a fora de trabalho dos migrantes
nordestinos foi maciamente absorvida pelas indstrias paulistas? Se a incluso
da populao-alvo da Terapia Ocupacional no mundo do trabalho e superao
da lgica asilar so desafios cotidianos de nossas prticas profissionais apesar
do crescente escopo das polticas pblicas inclusivas nos mais variados setores?
Assim, permitimo-nos vislumbrar o terapeuta ocupacional como sujeito
coletivo, ativo, empreendedor, questionador, desafiador de realidades
institucionais e sociais desde os primeiros momentos da profisso e engajado na
constituio da profisso em detrimento de uma figura engessada, que por
mais criativa, no limite, ser sempre refm do modo de produo capitalista e do
Estado como mantenedor do status quo. Discordamos da possvel compreenso
de que, ao menos, uma primeira gerao de profissionais teria realizado um
trabalho alienado e, consequentemente, as futuras geraes de profissionais
devem se engajar na desconstruo do legado recebido a alienao do espao
teraputico.
Finda reflexo, partiremos as contribuies da historiografia na
compreenso da constituio da Terapia Ocupacional no Brasil. Novamente, os
ttulos das obras - FOFITO: 50 anos de Pioneirismos e Lutas e Ergothrapie e
Terapia Ocupacional no Brasil e na Frana - Um Projeto de Histria Comparada
(1964-2000) explicitam o tempo e o espao como variveis caras Histria.
Na primeira, o perodo de 1958 a 2008 (recorte temporal) para marcar a saga
dos alunos da Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional no interior da
Faculdade de Medicina da Universidade de So Paulo (recorte espacial). Na
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segunda, o recorte temporal (1964-2000) delimita uma linha do tempo para
comparar brasileiros e franceses.
Observamos que, em 2008, os cursos de Fisioterapia, Fonoaudiologia e
Terapia Ocupacional da Universidade de So Paulo completaram 50 anos de
atividades e para marcar tal efemride foi lanado o Livro Institucional FOFITO:
50 anos de Pioneirismos e Lutas (MARINHO e cols., 2008), que apresenta uma
breve contextualizao do surgimento dos cursos e pequenos depoimentos de
ex-alunos. Em nossa perspectiva, o captulo destinado Terapia Ocupacional,
assinado pela historiadora Maria Gabriela Marinho14, apresenta metodologia e
discusso superficiais no historiciza os acontecimentos, no dialoga com
fontes primrias ou secundrias -, alm de reforar o equvoco estabelecido com
a histria da Psiquiatria, detendo-se Frana de Pinel em detrimento da
realidade local.
J em Ergothrapie e Terapia Ocupacional no Brasil e na Frana um
Projeto de Histria Comparada (1960-2000)15, Benetton (2001) avanou no
sentido de adotar metodologia especfica da Histria a histria comparada -
para abordar a histria da Terapia Ocupacional nos dois pases. Todavia, o
recorte temporal adotado pela pesquisadora ao menos em relao ao Brasil -
est relacionado entrada de Elizabeth Eagles na coordenao do curso de
Terapia Ocupacional em So Paulo e a pesquisa objetivou a construo de linha
do tempo para comparar os principais marcos e personagens histricos do
14 Esta autora produziu relevantes contribuies historiogrficas acerca da constituio da
Faculdade de Medicina em So Paulo a partir de correspondncias entre a instituio paulista e
a norte-americana Fundao Rockefeller, que adotaremos na segunda parte do captulo
seguinte. curioso, inclusive, observar a discrepncia entre as obras da autora: Livro
Institucional FOFITO - 50 anos de Pioneirismos e Lutas e O papel da Fundao Rockefeller na
organizao do ensino e da pesquisa na Faculdade de Medicina de So Paulo (1916-1931).
15 Apesar da referida pesquisa ter recebido auxlio da Fundao de Amparo Pesquisa de So
Paulo (FAPESP), considerada indita na academia pois ainda no foi publicada integralmente
como livro ou parcialmente em revistas indexadas. Alm do Relatrio Final enviado FAPESP,
gentilmente, a pesquisadora nos disponibilizou o acervo gerado por sua pesquisa. Entretanto,
por adotarmos recortes temporais e espaciais distintos, selecionamos algumas das fotocpias
de fontes primrias arquivadas pela pesquisadora. Digitalizamos estas fotocpias selecionadas
e as anexamos em nossa pesquisa, pois foram utilizadas como referncia.
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21
processo de constituio da profisso nos dois pases, abdicando de maior
aprofundamento terico e discusso sobre os acontecimentos.
Em nossa perspectiva, estas obras ainda almejam a construo de uma
histria totalizante, a Histria, da Terapia Ocupacional brasileira a partir da
nfase da experincia de So Paulo sem o dilogo fundamental com os
processos de outros estados pois ainda hoje existem localidades em que
inexistem terapeutas ocupacionais, de modo que podemos afirmar que o
processo de constituio da profisso em mbito nacional est em processo,
apesar de todo arcabouo jurdico que institucionaliza da profisso no Brasil.
Do ponto de vista historiogrfico, imperativa a necessidade de ampla
adoo do espao e do tempo como as duas variveis de anlise mais
importantes da Histria e suas inmeras combinaes - para compreender a
constituio da Terapia Ocupacional no Brasil. Ademais, faz-se necessrio
redimensionar e contextualizar o processo de constituio da profisso em So
Paulo como uma experincia local em um determinado perodo. Do norte do
Oiapoque ao sul do Chu a Terapia Ocupacional se constituiu da mesma maneira
como So Paulo e por suas mesmas motivaes?
Desta forma, conhecer trajetrias de vida de terapeutas ocupacionais
participantes da fundao da profisso a partir do micro uma cidade em um
perodo pareceu-nos o melhor caminho a ser trilhado para construir a Histria,
isto , construir memria social dos terapeutas ocupacionais. Inclusive, tal
panorama reforou a necessidade de adoo de uma metodologia prpria da
Histria a Histria Oral.
Ao se filiar a uma linhagem de autores da Escola dos Analles, nossa
pesquisa parte do relato em primeira pessoa da pesquisadora e legitima a
oralidade na produo e transmisso do conhecimento como caracterstica dos
terapeutas ocupacionais por meio da adoo da Histria Oral como Disciplina da
Histria no como abordagem de coleta de dados.
Como indicado pela histria do projeto, naturalmente, as questes
norteadoras da pesquisa versaram sobre o processo de formao dos primeiros
terapeutas ocupacionais; como vivenciaram o curso; a relao com colegas e
professores; a reao da famlia com a escolha profissional e, especialmente, o
porqu de permanecerem na profisso. Isto posto, os objetivos da pesquisa
sero apresentados e, na sequncia, a estrutura da tese.
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1.5. Objetivos
a) Objetivo Geral:
- Identificar caractersticas comuns ou seja, o ethos dos primeiros
terapeutas ocupacionais da cidade de So Paulo;
b) Objetivos Especficos:
- Compreender a fundao da Terapia Ocupacional na perspectiva dos
profissionais engajados neste processo e luz de suas histrias de vida;
- Identificar as diretrizes curriculares ou os referenciais pedaggicos que
nortearam a formao de terapeutas ocupacionais no perodo de 1956 a 1969;
c) Objetivos Complementares:
- Compor acervo de Histrias de Vida e objetos biogrficos dos
colaboradores desta pesquisa para
- Estruturar um Banco de Memrias sobre a fundao da Terapia
Ocupacional na cidade de So Paulo
1.6. Estrutura da dissertao
No primeiro captulo Por uma nova histria: Re-visitando o surgimento
da Terapia Ocupacional como profisso a fundamentao terica est
organizada em duas partes: a primeira, O contexto do surgimento da profisso
nos Estados Unidos; a segunda, A Terapia Ocupacional no Brasil a partir do
estabelecimento dos cursos no Rio de Janeiro e em So Paulo.
O segundo captulo Percurso Metodolgico se prope a justificar a
adoo da Histria Oral como abordagem metodolgica, explicitar suas etapas,
comunidade de destino e composio da rede; e a adoo do mtodo de
Imerso/Cristalizao para a anlise dos dados.
No terceiro captulo Resultados e Discusso - apresentaremos as
categorias de anlise produzidas pelo processo de imerso/cristalizao, a
saber: a) Projeto poltico-pedaggico; b) Profisso humanista fundada por
mulheres; c) Orfandade e legado profissional.
No quinto captulo Concluso os principais achados da pesquisa
recebero o contorno necessrio para o encerramento da pesquisa. Na
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23
sequncia, sero apresentadas as Referncias Bibliogrficas utilizadas e,
finalmente, os Anexos.
fundamental destacar a importncia do Volume 02 de nossa pesquisa,
pois nele as narrativas transcriadas das colaboradoras da pesquisa sero
apresentas. Nele, tambm apresentaremos uma Proposta de interveno na
realidade como desdobramento da pesquisa de acordo com os pressupostos do
Programa de Mestrado Profissional em que nos inserimos.
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CAPTULO 1
Por uma nova histria: (re) visitando o
contexto de surgimento da profisso
PARTE 1 A Terapia Ocupacional em Chicago nos Estados Unidos
Como j mencionado, a produo bibliogrfica sobre a constituio da
Terapia Ocupacional brasileira ainda escassa. Entretanto, alguns referenciais
tem sido muito explorados no pas para abordar teoricamente a fundao da
profisso nos Estados Unidos, de modo que identificamos duas principais
correntes bibliogrficas. A primeira valoriza o papel de Eleanor Clarke Slagle e
seu Treinamento de Hbitos neste processo a partir das contribuies de
Benetton (1994; 2006) e demais colaboradores da Revista do Centro de
Especialidades em Terapia Ocupacional (CETO-SP). J a segunda, prope a
crtica precarizao e desvalorizao profissional como principais
desdobramentos dos padres femininos de comportamento, como a
benevolncia e a subservincia, preconizados no surgimento e
institucionalizao da profisso (Bezerra, 2011; Galheigo, 1988; Lopes, 1999;
Magalhes, 1989).
Entretanto, curioso observar que, justamente, aps uma forte crise de
identidade profissional - pautada na recusa do lugar ocupado pelas primeiras
profissionais a partir do final da dcada de 1980 e na dcada de 1990, a
Associao Americana de Terapia Ocupacional (AOTA) tenha convocado a
historiadora Virginia Metaxas e a antroploga Cheryl Mattingly16 para
compreender, respectivamente, o processo de constituio e institucionalizao
16 As contribuies de Cherryl Mattingly foram apresentadas ao Brasil por meio dos estudos de
Tais Quevedo Marcolino. Sugerimos a leitura de: MARCOLINO, T.Q. A porta est aberta:
aprendizagem colaborativa, prtica iniciante, raciocnio clnico e terapia ocupacional. So Carlos:
UFSCar, 2009; MATTINGLY, C. A natureza narrativa do raciocnio clnico. In: Revista do Ceto,
So Paulo, v. 10, n.10, 2007.
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da profisso e os elementos norteadores (contedos e raciocnio clnico) da
prtica profissional das terapeutas ocupacionais.
A partir desta interface com outros campos, novas perspectivas foram
desveladas e novas histrias da Terapia Ocupacional tem sido produzidas.
Ademais, para ampliar a discusso terica, mas com foco nos objetivos de nossa
pesquisa, apresentaremos alguns dos principais referenciais bibliogrficos
adotados por pesquisadores do Canad, Chile, Espanha e Estados Unidos uma
vez que, nestes pases, h fartura de contribuies sobre a constituio da
Terapia Ocupacional luz da historiografia, isto , com nfase a narrativa e
historicizao dos fatos por meio das variveis tempo e espao.
Os Estados Unidos no incio do sculo XX
No longa-metragem Novo Mundo (Nuovomondo, Itlia/Alemanha/Frana,
2006), o diretor talo-americano Emanuele Crialese retratou com maestria a saga
de uma famlia siciliana os Mancuso desde a deciso de fazer a Amrica
at a inspeo sanitria na ilha de Ellis, costa da Nova Jersey nos Estados
Unidos. O roteiro deste filme foi baseado em milhares de cartas escritas por
italianos em que descreviam detalhadamente a experincia vivida na ilha das
lgrimas. Curiosamente, o ttulo adotado neste pas foi Golden Door (porta
dourada). Utilizando a expresso norte-americana golden key, temos uma
charada: se uma chave dourada (golden key) abre qualquer porta, qual a chave
ideal para abrir a premiada porta dourada (golden door)?
[...] refere-se ao estado de Nova Iorque, que em 1824 introduziu em sua legislao
dispositivos no sentido de impedir a entrada de alienados e atrasados mentais em seu
territrio. Em 1838, a Comisso de Justia do Congresso norte-americano recomendou
a promulgao de leis proibitrias da entrada de idiotas, alienados, doentes de afeces
incurveis e condenados por crimes. Para Moreira, de nada serviria envidar esforos no
sentido de melhorar as condies de sade fsica e mental da populao se tivesse
sempre a chegar novas levas de tais indesejveis (SOUZA; BOARINI, 2008, p. 285).
Kay (apud Kobayashi, 2007) afirma que a dcada de 1890 um marco
para as preocupaes norte-americanas com a imigrao. At ento, os
imigrantes eram originrios do norte e oeste da Europa. Entre os anos de 1890
e 1918, imigraram mais de 18 milhes de pessoas oriundas do Sul e do Leste
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Europeu: indesejados, com cultura estranha, mo-de-obra barata, ditos
disseminadores de doenas, estas pessoas viveram em deplorveis condies
sociais alm de serem consideradas pertencentes raa inferior de
temperamento retrgrado.
Em Kobayashi (2007), tem-se que, j na Inglaterra do sculo XIX, vivia-se
um mal-estar em relao ao futuro e ao progresso face perda de hegemonia
na competio econmica internacional e novas demandas impostas por grupos
outrora marginalizados, dentre os quais, os trabalhadores assalariados e as
mulheres. Em voga estava a ideia de degenerao social provocada pelo
crescimento urbano, trabalho feminino, imigrao, vcios, crimes, doenas que
se alastravam entre pessoas em situao de vulnerabilidade social. Tais
condies teriam despertado o interesse pela melhoria da sociedade uma vez
que o nmero de incapazes e inadequados se multiplicava.
Ainda segundo a mesma autora, dentre os desdobramentos da chamada
eugenia positiva de Galton17, deve-se destacar a eugenia preventiva e a eugenia
negativa. A primeira se voltava eliminao dos chamados venenos da raa
atravs da educao sexual, preveno de doenas sexualmente transmissveis,
orientao pr-natal e puericultura. J a segunda, pregava o fim da multiplicao
dos ditos degenerados e, para tanto, desencorajava a maternidade e a
paternidade em determinados grupos, alm do extermnio propriamente dito.
Considera-se que a eugenia negativa foi amplamente desenvolvida nos Estados
Unidos e na Alemanha. J o Brasil teria sido influenciado pelas trs correntes,
com predomnio da eugenia positiva e preventiva.
17 Para Del Cont (2008), ao cunhar o termo Eugenia (o termo grego eugens significa
bem-nascido), o ingls Francis J. Galton foi inspirado pela obra do primo Charles Darwin e
objetivou aplicar a teoria da seleo artificial nos seres humanos por meio do controle cientfico
dos casamentos. Desde ento, investiu no desenvolvimento de uma cincia sobre a
hereditariedade humana que pudesse identificar os exemplares detentores de melhores
caractersticas e incentivar sua reproduo, bem como, encontrar os de piores caractersticas
e evitar sua reproduo como feito com o gado, por exemplo. Acreditava no somente na
hereditariedade de caractersticas fsicas, mas, especialmente, de habilidades e talentos
individuais.
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A criao da Hull House
Schwartz (2009) assinala que muitos desafios sociais marcaram as
primeiras dcadas do sculo XX nos Estados nicos: guerra, imigrao,
industrializao, explorao de trabalhadores, escolas precrias, servios de
sade inadequados. Entretanto, a Era Progressista (1890-1920) tambm foi um
tempo de grande otimismo na medida em que se difundiu a ideia de que os
problemas sociais podiam ser enfrentados com reformas sociais altura das
necessidades identificadas.
Baseados em slido entendimento de democracia e justia social, os
chamados reformadores (reformers), dentre outras pautas, defendiam o sufrgio
feminino e a proibio do trabalho infantil. Jane Addams foi um dos expoentes
do movimento reformista e estabeleceu parceria com mdicos, advogados,
professores universitrios, artistas e msicos. Com sua persuaso, Addams
contou ainda com a colaborao de John Dewey (reconhecido terico do
pragmatismo) e Adolph Meyer (um dos psiquiatras mais influentes dos Estados
Unidos no perodo de 1895 a 1940).
Criada em Chicago, em 1889, por Jane Addams (1860-1935) e Ellen
Gates Starr (1859-1940) socialistas e ativistas sociais - com claro objetivo
reformista, a Hull House foi o primeiro assentamento (settlement) de imigrantes
recm-chegados de diversas partes da Europa. Esta instituio foi responsvel
por expandir a participao social das mulheres em diferentes campos e
consolidar sua fora poltica. As ativistas da Hull House ocuparam diversos
cargos estratgicos em instituies pblicas e privadas com o objetivo de
promover direitos sociais a todos os grupos, especialmente, grupos
marginalizados e submetidos controversas aes do Estado como por
exemplo, os imigrantes.
Cabe lembrar que as ltimas dcadas do sculo XIX assistiram o
crescimento do movimento feminista. Mulheres exigiam maior participao social
e, dentre diversas conquistas, essa luta culminou na aprovao da primeira
emenda constitucional que lhes garantiu o direito de voto em todos os estados
norte-americanos em 1919, isto , trinta anos depois da criao da Hull House e
sua intensa atuao.
Gratuitamente, na Hull House, desenvolviam-se inmeras atividades
culturais e de aprendizado para adultos e crianas. Apostava-se, pois, na
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convivncia entre voluntrios de classe mdia em sua maioria mulheres que
tambm viviam assentadas - com as famlias de trabalhadores de baixa renda.
Por conseguinte, objetivava a aproximao de ricos e pobres para o surgimento
de uma comunidade interdependente na qual o intercmbio cultural e a
construo de direitos sociais fossem favorecidos. (Camargo, 2010).
Em seus escritos, Jane Addams criticava abertamente as desigualdades
sociais e de gnero e pregava a coeso social. Com a perspectiva de que nossas
ideias so representaes mutveis, esforou-se em integrar suas aes
teoria, desenvolvendo uma filosofia imersa e impregnada de ao social. Jara
(2012) explica que o pragmatismo18 foi a base constituinte de seu pensamento
poltico: pregava que as desigualdades sociais refletem hbitos e aprendizados
arraigados culturalmente e que poderiam ser transformados.
Em sua perspectiva, para desenvolver tica social e construir uma
verdade social comum necessrio negar juzos de valor, dialogar
intensamente, ouvir e compartilhar entendimentos sobre a realidade social.
Assim, os hbitos mentais poderiam ser modificados e, por conseguinte, a
condio de vida de todas as pessoas tambm se modificaria. Afirmava que a
fora da democracia era ainda desconhecida. Jane Addams manteve a
convico de que pessoas e comunidades so capazes de criar novas realidades
e transformar suas condies de vida. Chamava manifestao grupos
oprimidos e desconsiderados pelas polticas pblicas.
As consideraes anteriores podem justificar a afirmao de J. Edgar
Hoover - diretor do FBI (Federal Bureau of Investigation) da poca: Jane
Addams a mulher mais perigosa da Amrica (Camargo, 2010). Em seu
trabalho, ela pretendia que a Hull House fosse totalmente embasada pela
filosofia de solidariedade de toda a raa humana. Em sua concepo, eram os
prprios frequentadores e moradores do assentamento que elaborariam e
desenvolveriam aes de solidariedade, concebida como unio da
humanidade. Pelo trabalho desenvolvido, Jane Addams recebeu um Prmio
Nobel da Paz em 1911.
18 O primeiro movimento filosfico prprio dos Estados e que se desenvolveu no sculo XX,
considera que os hbitos influenciam a trajetria de vida das pessoas.
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As razes da Terapia Ocupacional
Em Minha amiga, Julia Lathrop, livro publicado originalmente em 1935,
Addams (2004) apresenta a biografia de uma importante colaboradora da Hull
House cujo ativismo poltico marcou significativamente a histria das conquistas
sociais nos Estados Unidos. Julia Lathrop, que viveu assentada na Hull House
por cerca de 20 anos, atuou em prol dos imigrantes, direitos das crianas,
equiparao de direitos entre homens e mulheres, melhorias no tratamento de
pessoas com sofrimento mental, enfim, da ampla reforma social.
Dentre outros importantes cargos ocupados, pertenceu ao grupo de
fundadores da Comisso Nacional de Higiene Mental em 1909; foi diretora da
Escola de Civismo e Filantropia de Chicago (vinculada Hull House) no perodo
de 1907 a 1920; foi fundadora da Liga Protetiva dos Imigrantes de Illinois; foi
nomeada a primeira diretora da Agncia Federal da Infncia (Federal Childrens
Bureau), foi presidente da Liga de Mulheres Eleitoras de Illinois, dentre outros
cargos de destaque.
Ao observar a precria atuao das atendentes (depreende-se do texto
que se trata da equipe de enfermagem) nos hospitais psiquitrico estatais,
Lathrop procurou oferecer alguns subsdios para a prtica destes profissionais.
Para tanto, em 1908, criou um curso de seis semanas sobre ocupao e
recreao curativa na Escola de Civismo e Filantropia de Chicago na ocasio,
a instituio era dirigida por Graham Taylor e vinculada Hull House. Addams
se reporta perspectiva de uma mdica, Alice Hamilton, para explicitar o
contexto de criao deste curso:
quilo que a Associao Mdica Americana chamou de novo e interessante
experimento educacional era um curso de vero para atendentes de hospitais
psiquitricos introduzido por Julia Lathrop na Escola de Educao Cvica e Filantropia
de Chicago. O curso inclua um treinamento prtico em terapia ocupacional, ainda
desconhecida nos hospitais estatais, bem como palestras sobre doena mental e seu
tratamento. Para persuadir, senhorita Lathrop pintava o quadro de uma tpica
enfermaria de insanos com fileiras de pacientes limpamente vestidos, sentados no cio
absoluto por horas a fio e os atendentes satisfeitos em suprir as necessidades
corporais deles e sem fazer esforo para despert-los e estimul-los e da no menos
desanimadora ala dos agitados onde os pacientes so deixados sem qualquer
orientao para suas atividades at que um deles cause um srio problema. Ela
insistia que o carter do asilo dependia do carter dos atendentes e, prosseguia, eram
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poucas as chances de um atendente no ser a pea de uma mquina. Uma vida rdua,
sem alegria e, particularmente, isolada. Tal instituio [psiquitrica] um pequeno
mundo em si mesmo e as ideias e propostas de mudana vindas do mundo exterior
entram lentamente. (ADDAMS, 2004, pp. 106-107, traduo nossa).
Para Jara (2011) este cenrio guarda as razes da Terapia Ocupacional
pois muitas das ideias preconizadas por Addams e Lathop foram retomadas por
Eleanor Clarke Slagle, de modo que, a prof isso assumiu um carter social,
crtico e comunitrio. Ademais, destaca a importncia de retomarmos os
pressupostos da filosofia do pragmatismo para melhor compreendermos a
histria e a consolidao da Terapia Ocupacional como profisso. Ao observar
uma pessoa atendida de uma perspectiva holstica, ao consider-la sujeito de
direitos, ao reconhecer os distintos atravessamentos polticos que ela sofre, o
terapeuta ocupacional faz uma reflexo alinhada ao pragmatismo. Acrescenta
que escutar ativamente, respeitar a diversidade e aceitar diferentes valores
dentro de uma mesma sociedade so caractersticas que evidenciam o quo
pragmtico se torna um terapeuta ocupacional desde sua formao.
Kielhofner (apud Valer e col., 2011) especula que as experincias
familiares de Eleanor Clarke Slagle teriam propiciado seu interesse pela
assistncia aos incapacitados: seu pai, veterano de guerra, regressou da Guerra
Civil americana ferido por arma de fogo; seu irmo sofreu de tuberculose e
dependncia qumica e seu sobrinho teve poliomielite.
Entretanto, para explicar as razes que a aproximaram da Terapia
Ocupacional, Eleanor nascida Ella May Clarke - remontou ao seu casamento
com Robert Slagle em 1894. Acreditava no corresponder s expectativas de ser
esposa e me, chegando a esta concluso logo nos primeiros anos de
relacionamento. Estava profundamente interessada nos problemas sociais e nas
mudanas que estavam em curso. Nesta poca, vivia em Saint Louis e via as
terrveis condies de vida: pobreza intensa, explorao de trabalhadores na
indstria, tenso social entre as classes, crimes, sofrimento da populao
imigrante. Aps a morte de seu pai, decidiu que deveria se juntar aos
reformadores sociais. Separou-se do marido e se mudou para Chicago em 1911
(BING, 1997).
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Procurou a Hull House. Assistiu a muitas palestras, participou de
discusses sobre os mais variados campos de reforma, sobre poltica, sobre
situaes inimaginveis para ela at ento. Gradativamente, sentiu a
necessidade de aprofundar os estudos junto ao grupo de Addams e, ainda em
1911, formou-se no curso de ocupao e recreao curativa na Escola de
Civismo e Filantropia de Chicago. Foi quando se aproximou de Julia Lathrop.
Passavam muitas horas juntas e Eleanor a acompanhava em visitas aos
hospitais psiquitricos em Illinois e conversavam sobre as condies dos
pacientes (BING, 1997). J formada, Eleanor implantou cursos semelhantes em
instituies psiquitricas de Michigan e em Nova Iorque, por exemplo (Valer e
col., 2011).
Em meados de 1912, em uma de suas viagens Chicago, Adolf Meyer
palestrou na Hull House e, naquela ocasio em especial, compartilhou com os
presentes o projeto de criao da Clnica Henry Phipps, vinculada ao John
Hopikns Hospital em Baltimore. Propunha um tratamento inovador para o doente
mental e associava pesquisa, ensino e assistncia. De acordo com as
contribuies de Guglielmo (2014), Meyer assumiu em 1908 a tarefa de
desenvolver programas de formao e treinamento de mdicos, bem como,
reorganizar a assistncia psiquitrica criando instituies de referncia por
muitas dcadas nos Estados Unidos. O modo como ele compreendia a doena
mental divergia profundamente da nosologia psiquitrica desenvolvida por
Kraeplin, seu contemporneo. Propunha que as doenas mentais
representariam diversos padres de reao, pois, as vivncias e histria de vida
so sempre singulares, contextualizadas e pessoais.
Sua aposta principal era de que os doentes mentais deveriam viver com
suas famlias e inseridos na comunidade. Para tanto, pregava a necessidade de
profissionais especficos no tratamento que, por meio de ocupaes teraputicas
- significativas e integradas histria de vida do paciente -, possibilitassem o
desenvolvimento das habilidades para que ele pudesse lidar melhor com as
exigncias ambientais, isto , adquirir mais recursos para conviver em sociedade
(MEYER apud BING, 1997).
Foi quando Meyer convidou Eleanor para compor a equipe de
profissionais da Clnica Henry Phipps. Intencionava criar um departamento de
ocupao teraputica coordenado por Eleanor e supervisionado por ele prprio.
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Ali, ela implantou o programa chamado de Treinamento de Hbitos, no qual,
pessoas com graves prejuzos eram incentivadas a: levantarem-se, fazer sua
higiene pessoal, vestirem-se, organizarem seus quartos, utilizarem a mesa para
as refeies e desenvolverem atividades artesanais conforme a proposta do
movimento de artes & ofcios19. Paralelamente, ministrava cursos de trs
semanas sobre ocupao teraputica para grupos de enfermeiras do hospital
John Hopkins (Valer e col., 2011).
Nacional e internacionalmente (BENETTON; GUGLIELMO; JARA;
PELOQUIN; VALLER e col., dentre outros) considerada criadora ou me da
profisso na medida em que propunha um programa de adaptao social de
pacientes institucionalizados com o objetivo especfico de promover o seu
retorno sociedade. Superando as propostas de Meyer e outros psiquiatras da
poca, Slagle props que as atividades fossem utilizadas como instrumento
teraputico capaz de suplantar, alterar e produzir novos hbitos em pacientes
gravemente comprometidos e cujo objetivo maior seria a restaurao e
manuteno do bem-estar. Falava em mudana de hbitos, distanciando-se do
paradigma mdico e fundando o paradigma da Terapia Ocupacional.
Em 1915, retornou a Chicago e, novamente na Hull House, participou
da criao da Estao Experimental da Higiene Mental de Illinois (Experimental
Station of Illinois Mental Higyene Society) cujo objetivo foi auxiliar na indicao
de ocupaes para pessoas impedidas de desenvolver suas atividades em razo
de processo de adoecimento. Posteriormente, em 1916, o nome da instituio
mudou para Escola de Ocupaes Henry B. Favill, sendo reconhecida como a
primeira escola de terapeutas ocupacionais. Eleanor dirigiu tal instituio de
ensino de 1918 at o seu fechamento em 1922.
Dialogando com as ideias de Meyer, salientava a interdependncia dos
aspectos fsico e mental; a necessidade de graduar progressivamente as
atividades propostas e do equilbrio entre trabalho e descanso. Salientava a
importncia dos pacientes construrem hbitos socialmente aceitos no sentido
19 Muito em voga na poca, o movimento de artes e ofcios valorizava o trabalho artesanal (no
qual o trabalhador conhece todas as etapas da produo) em resposta desvalorizao da mo-
de-obra dos trabalhadores no contexto da industrializao (funes especficas na linha de
produo, desconhecem a totalidade do processo de produo).
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de serem culturalmente compartilhados (higiene pessoal, por exemplo). Na
formao, os alunos aprendiam atividades de artesanato e de trabalho, jogos,
festas, ginstica e atividades recreativas (LOMIS apud Valer e col., 2011).
Entretanto, Jane Addams (2004) atribuiu a criao desta escola aos esforos de
Julia Lathrop e no faz meno participao de Eleanor na instituio.
importante explicitar que o termo Terapia Ocupacional foi cunhado
posteriormente, durante a participao dos Estados Unidos na I Guerra Mundial.
Em 15 de maro de 1917, George Edward Barton, Isabel G. Newton, Susan C.
Johnson, Thomas B. Kinder, Eleanor Clarke Slagle e Willian Rush Dunton se
reuniram, em Nova Iorque, para formar a Sociedade Nacional de Promoo da
Terapia Ocupacional (NSPOT). Posteriormente, em 1923, mudou seu nome para
Associao Americana de Terapia Ocupacional (AOTA).
Apesar de ausente nesta reunio e de no apoiar a profissionalizao
dos terapeutas ocupacionais, a enfermeira Susan Tracy reconhecida como
uma das fundadoras da profisso por ter formado enfermeiras em ocupao
teraputica, alm de ter escrito o primeiro livro sobre o tema. Ademais, Metaxas
(2000) explicita a desvantagem poltica de Tracy no estabelecimento da
profisso face fora poltica de Eleanor Clarke Slagle, representante da Hull
House, e s incisivas crticas acerca da ociosidade e falta de iniciativa dos
profissionais de enfermagem produzidas no perodo. Como historiadora e
lanando mo da biografia de ambas, Metaxas ainda aproxima Slagle e Tracy
pela caracterstica comum de contar para outras pessoas como a Terapia
Ocupacional atravessou suas histrias de vida e contar histrias, vinhetas
clnicas, da Terapia Ocupacional.
Para Peloquin (2007), o grupo de fundadores heterogneo do ponto
de vista de suas histrias de vid