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ELLERY QUEEN

O MISTÉRIO DOS FÓSFOROS QUEIMADOS

tradução dewilson velloso

LIVROS D O BRASIL

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I

A TRAGÉDIA

… a peça é a tragédia, «Homem», e o seu herói o Verme Triunfador.

— Trenton é a capital de Nova Jérsia. Segundo o recensea-mento de 1930, tem uma população de 123 356 homens, mu-lheres e crianças. Chamou-se inicialmente Cidade de Trent, em honra de William Trent, magistrado real. (Sabia isso, Mr. Kloppenheimer?) Fica na margem do Delaware, naturalmente, o mais belo rio que existe nos Estados Unidos.

O homenzinho seco acenou com a cabeça, cauteloso.— Delaware? Olhe, foi aqui que George Washington deu

uma coça àqueles (como se chamavam?) hessianos. Tudo se passou no Natal de 1776 — continuou o homenzarrão gordo, enfiando o focinho na caneca de cerveja —, durante uma ter-rível tempestade. O velho George meteu os rapazes nos bar-cos, atravessou o Delaware e apanhou os malvados hessianos com as calças na mão. Não perdeu um homem… como toda a gente sabe. E onde é que isso aconteceu? Em Trenton, Mr. Kloppenheimer, em Trenton!

Mr. Kloppenheimer esfregou o queixo seco e resmungou qualquer coisa indicando anuência.

— Sabe que mais? — prosseguiu o gordo, batendo com a caneca de vidro fosco. — Certa vez, Trenton quase foi sede do

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Capitólio nacional! É  um facto. O  Congresso reuniu-se aqui mesmo, neste burgozinho, em 84, Mr. Kloppenheimer, e votou que se construísse uma cidade federal em cada uma das mar-gens do rio!

— Mas o Capitólio fica em Washington — acentuou Mr. Kloppenheimer, timidamente.

O homenzarrão soltou uma exclamação desdenhosa:— Política, Mr. Kloppenheimer. Porque…Havia já algum tempo que aquele homem grande, vagamente

parecido com Herbert Hoover, cantava as glórias de Trenton aos ouvidos exaustos de Mr. Kloppenheimer. Fascinado, o jovem alto e magro, de pince-nez, que ocupava a mesa vizinha, dividira as suas energias entre o pé de porco com chucrute que lhe haviam posto na frente e o monólogo que se travava atrás de si. Não era preciso ter a capacidade de raciocínio de Poe para concluir que o gordo queria vender alguma coisa ao homem tí-mido. Mas, que seria? A cidade de Trenton? Parecia impossí-vel… Ouviu então Mr. Kloppenheimer pronunciar a palavra «lúpulo» e logo a seguir a palavra «cevada», com reverente unção, e a névoa desfez-se. Era claro que Mr. Kloppenheimer re-presentava interesses cervejeiros e sem dúvida alguma o gordo falava em nome da Câmara de Comércio local.

— Sítio esplêndido para uma fábrica de cerveja — excla-mou o gordo. — Oh, como tem passado, senador? Olhe, Mr. Kloppenheimer…

Esclarecido o mistério, o jovem magro não prestou mais atenção. Não obstante o pé de porco e a caneca de cerveja que tinha à frente, os enigmas eram o seu pão de cada dia; não havia quebra-cabeças que não lhe aguçasse o apetite. O gordo ajudara a matar uma boa meia hora. Porque, no meio de todos aqueles homens, no pequeno bar do Stacy-Trent, cheio de estofos ver-melhos e brancos, e do tilintar dos copos, atrás do biombo de

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madeira, sentia-se um forasteiro num país estranho. À sombra da cúpula doirada do Capitólio, que ficava na West State Street, o Stacy-Trent era frequentado por homens que falavam outra língua; o ar fremia de conversas legislativas… e ele não era capaz de distinguir uma obstrução de um congresso político! O rapaz magro suspirou. Fez sinal ao criado, pediu uma boa fatia de tarte de maçã e um café, e consultou o relógio de pulso. Oito e qua-renta e dois. Nada mau. Ia…

— Ellery Queen, sua fuinha!Espantado, levantou o olhar, dando com um rapaz tão magro

e tão alto como ele. O recém-chegado ria-se, estendendo-lhe a mão.

— Olá, Bill Angell  — disse Ellery, num tom satisfeito. — Oxalá estes meus olhos cansados não me estejam a pregar uma partida. Bill! Senta-te. De onde raio apareceste tu? Rapaz, outra cerveja! Afinal de…

— Uma de cada vez  — respondeu o jovem, rindo e dei-xando-se cair numa cadeira. — Sempre rápido no gatilho, hem? Meti a cabeça aqui para descobrir uma pessoa de quem ando à procura e levei mais de um minuto a reconhecer-te a ti, sua fui-nha! Por onde tens andado?

— De um lado para outro… Pensei que morasses em Fila-délfia.

— Moro, sim. Estou aqui a tratar de assuntos particulares.— A raposa muda de pele — citou Ellery —, mas não muda

de hábitos. Preferes que o diga em latim? Dantes irritavas-te com as minhas citações de clássicos.

— Sempre o mesmo Ellery. Que fazes em Trenton?— Vim de passagem. Fui até Baltimore investigar um caso.

E então, Bill Angell? Há quanto tempo, hem?— Quase onze anos. Nisso a raposa não mudou muito. —

Os olhos negros de Angell estavam calmos e controlados, mas

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Ellery calculou que, por detrás daquela alegria, se dissimulasse alguma preocupação. — E eu? Que tal me achas?

— Rugas nos cantos dos olhos — respondeu Ellery, com um olhar crítico. — Uma rigidez de mastim no maxilar, coisa que não existia outrora, e um certo afilamento dessas sensíveis na-rinas. Cabelo microscopicamente mais ralo nas têmporas. Um bolso cheio de lápis com os bicos bem afiados, o que denota, pelo menos, recetividade ao trabalho. As roupas descuidadas, mal passadas e com o bom corte de sempre. Um ar de autocon-fiança, mesclado com o que se poderia chamar um fremente qui vive… Bill, envelheceste…

— Que dedução! — zombou Bill.— Mas, no fundo, continuas igual. Ainda és o mesmo me-

nino revoltado com as injustiças do mundo e a tentar reagir. E um rapaz muito simpático, Bill. Tenho lido a teu respeito.

Angell corou e ergueu a caneca.— As patranhas de sempre… Não param de as explorar.

Aquele caso do testamento do Curry foi um golpe de sorte!— Sorte uma história! Eu segui-o bem de perto. O Samp-

son, do Ministério Público de Nova Iorque, disse-me que foi a mais brilhante peça de pesquisa legal do ano. Acha que tens um grande futuro pela frente.

O rapaz bebeu mais um gole de cerveja, calmamente.— Não neste mundo de ricos. Futuro? — Encolheu os om-

bros. — Acabarei nas ruas da amargura a tratar de casos ordina-ríssimos com velhos bodes de mau fígado e hálito pior.

— Sempre na defensiva. Lembro-me de que na faculdade tinhas um crónico complexo de inferioridade.

— O pobre não tem… — Angell sorriu mostrando os den-tes miúdos e claros. — Deixa-te disso. Estás a divertir-te à minha custa. Como vai o inspetor? Gostava muito do velho.

— Vai muito bem, obrigado. Casaste-te, Bill?

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— Não, obrigado. Todas as pobretonas que conheço acham que tenho um parafuso a menos; e nem imaginas o que penso das ricaças.

— Conheci algumas bem aceitáveis  — suspirou Ellery. — E como vai a tua encantadora irmã?

— A  Lucy vai muito bem. Casou com um viajante… Joe Wilson. Um sujeito muito decente; não bebe, não fuma, não joga nem bate na mulher. Simpatizarias com ele.  — Angell olhou para o relógio. — Recordas-te bem da Lucy?

— Então não?! Lembro-me de como partia em mil peda-ços o meu pobre coração de adolescente. Botticelli teria uma apoplexia, se não a pudesse pintar.

— Ainda é muito bonita. Comprou uma casinha, modesta, em Fairmount Park. O Joe está bem na vida… para um burguês.

— Ora, ora — comentou Ellery. — O que é que ele faz?— Joalharia barata. Quinquilharias. — Sentia-se amargura

na voz de Bill. — Receio ter dado uma impressão falsa. Para ser franco, o marido da Lucy trabalha por conta própria e mais não é do que um vendedor ambulante. Tem o seu mérito; não tem família e conseguiu sair da miséria a pulso. Um dos que se fize-ram por si. Mas sempre pensei que a minha irmã… — Franziu o sobrolho.

— Que mal há em que um homem que vive do seu trabalho ande de um lugar para outro a vender mercadorias honestas? Seu snob de uma figa!

— É honesto, isso é. Acho que sou um idiota. Ele ama a Lucy apaixonadamente e é correspondido. Trata-a sempre com muito carinho. O que me apoquenta é esta minha mania de descon-fiar de tudo!

— Andas preocupado com alguma coisa.— Nada disso! O que tenho é a consciência pesada, isso sim.

A minha casa fica no coração da cidade e não visito a Lucy com

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muita frequência. Tenho sido um grande preguiçoso; o Joe anda a maior parte do tempo em viagem e ela deve sentir-se sozinha.

— Oh! — exclamou Ellery. — Então suspeitas de algum rabo de saia?

Bill Angell começou a examinar as próprias mãos.— Meu velho amigo, vejo que é asneira querer ocultar-te o

que quer que seja; sempre foste perito em arrancar segredos. O diabo é que ele nunca para em casa. Está fora quatro, cinco dias por semana. É assim há dez anos… desde que se casaram. Anda na estrada, naturalmente, e não tenho razão alguma, ex-ceto a minha natureza desconfiada, para crer que se ocupe de outra coisa que não de negócios… — Tornou a olhar para o relógio. — Olha, Ellery, tenho de ir. Vou encontrar-me com o meu cunhado às nove horas, perto daqui, e só faltam dez minu-tos. Quando vais para Nova Iorque?

— Logo que consiga ressuscitar o velho Duesey.— O  Duesenberg! Meu Deus, ainda tens aquele calham-

beque? Pensei que já o tivesses doado a um museu há muito tempo! Que tal um companheiro na curta viagem de volta?

— Bill, o prazer é todo meu!— Podes esperar uma hora, ou coisa assim?— A noite inteira, se quiseres.Bill ergueu-se e disse lentamente:— O Joe não me tomará muito tempo. — Fez uma pausa. Ao

continuar, retomou o tom habitual: — Eu tinha a intenção de ir para Nova Iorque esta noite; amanhã é domingo, e tenho lá um cliente com quem não me posso encontrar noutro dia. Deixarei o carro em Trenton. Onde estarás tu?

— Ali no átrio. Queres ficar esta noite comigo e com o meu pai?

— Com muito prazer. Então, até já.Mr. Ellery Queen relaxou, observando as costas em forma

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de cunha do amigo desaparecerem para lá da encarregada do vestiário de senhoras. Coitado do Bill, sempre levará aos om-bros fardos alheios!… Por um momento, Ellery imaginou qual seria o assunto que Bill iria tratar com o cunhado. Depois, enco-lhendo ombros, respondeu a si próprio que não era da sua conta e pediu ao criado outro café. Aborrecido ou eufórico (refletiu, enquanto esperava), Bill seria um tónico; e, na sua companhia, os noventa minutos até ao Holland Tunnel escoar-se-iam num instante.

No entanto, o destino interveio. Porque, embora Mr. Ellery Queen não tivesse a noção disso naquele momento, nem ele nem Mr. William Angell, jovem advogado de Filadélfia, sairiam de Trenton naquela tépida noite de sábado, a primeira de junho.

O velho Pontiac de Bill Angell rodava pela erma Lamberton Road, que seguia paralela à margem oriental do Delaware. A es-trada era estreita e os pequenos faróis refletiam-se nas poças de água acumulada nas depressões do macadame negro. Uma chuva quente caíra à tarde e, embora tivesse parado pouco antes das sete horas, o piso e os campos desolados que se estendiam à esquerda continuavam lamacentos. Umas luzinhas brilhavam palidamente no rio, a oeste, para os lados de Moon Island; para oriente, o terreno irregular era cinzento e desinteressante como se tivesse levado uma demão de tinta.

Bill abrandou ao passar junto do vulto maciço dos edifícios da beira-rio, o terminal marítimo. Não devia ser longe dali, pen-sou. Isto, segundo as instruções de Joe… Conhecia bem a es-trada; percorrera-a várias vezes, quando ia de automóvel de Fi-ladélfia para Trenton, pela ponte de Camden. Nas vizinhanças do terminal marítimo havia apenas armazéns e depósitos de mercadorias. A fábrica de tratamento de esgotos, mais a leste,

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inutilizara completamente a zona como bairro residencial e não havia moradias nas vizinhanças. As instruções haviam sido pre-cisas: algumas centenas de metros depois do terminal marítimo, contados a partir de Trenton.

Travou. À direita, para o lado do rio, na estreita faixa de prata entre a Lamberton Road e a água transformada em aço polido pela luz do crepúsculo, encontrava-se uma casa, através de cujas janelas se escoava uma luminosidade ténue.

O Pontiac roncou e parou, Bill examinou atentamente o local. A construção, que se destacava como uma silhueta adiante do rio, era pouco mais do que um casebre — um casinhoto aban-donado e em mau estado, feito de tábuas semi-inutilizadas pelas intempéries, com uma cobertura a que faltavam muitas telhas e por onde se elevava, inclinada, uma chaminé. Situava-se bem para dentro do terreno e para o alcançar era preciso seguir por um trilho semicircular, construído num estilo pomposo e algo grotesco, que saía da Lamberton Road, contornava a casa e tor-nava a entroncar na estrada. Ao cair da noite, aquele lugar tinha algo de repulsivo.

Um roadster vazio, enorme, estava parado diante da porta fe-chada do casebre, rente à soleira de pedra. O nariz do monstro silencioso encarava Bill.

Angell olhou em redor, como um animal desconfiado, pro-curando esquadrinhar novos pormenores por entre a escuridão que se tornava cada vez mais densa. Aquele carro… Lucy tinha um automóvel pequeno que usava no dia a dia — Joe era aten-cioso e parecia perceber como deveria sentir-se isolada; quanto a ele, utilizava um velho mas prestimoso Packard. Porém, ali estava um magnífico e superpotente Cadillac de dezasseis ci-lindros; e até a carroçaria lhe pareceu especial. Facto singu-lar, apesar de todo aquele tamanho, havia algo de feminino no seu aspeto. Na semiobscuridade, parecia creme e os inúmeros

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acessórios cromados destacavam-se perfeitamente. O carro des-portivo de alguma ricaça…

Bill descobriu, depois, o Packard do cunhado postado de frente para o lado do casebre que lhe estava mais próximo; e viu pela primeira vez que havia outro caminho, um trilho sujo e mal conservado, que saía da Lamberton Road, logo à sua frente. Essa viela, que era um lamaçal, não se cruzava com o caminho semi-circular; ladeava-o e curvava-se um pouco para dentro, indo dar a uma segunda porta, na lateral da casa. Dois caminhos, duas portas, dois carros…

Bill Angell permaneceu sentado, imóvel. A noite estava se-rena, e o silêncio acentuava-se com o cricrilar dos grilos, o ronco longínquo de um motor no rio, o ronronar do seu próprio carro. Salvo o terminal marítimo e um casinhoto de guarda-noturno, diante do grande edifício, Bill não passara por moradia alguma, desde que deixara os arredores de Trenton; e, até onde a sua vista alcançava, por detrás do casebre só havia um campo de-serto. Era ali o ponto de encontro.

Não saberia dizer há quanto tempo se achava naquele lugar quando, abruptamente, se desfez por completo a calma da noite, sacudida por um som horrível. O coração de Bill agitou-se em estado de alerta, antes que os seus sentidos percebessem a na-tureza do som.

Fora um grito e saíra da garganta de uma mulher: um só pro-testo de cordas vocais que se encontravam de repente livres da paralisia do medo e vibravam como as cordas de um instru-mento. Foi curto e agudo, e morreu tão inesperadamente como havia nascido.

De repente, Bill Angell, sentado muito direito ao volante do Pontiac, percebeu que nunca ouvira um grito assim. Sentiu al-guma coisa tremer dentro de si; estava realmente atónito. Ao mesmo tempo, sem qualquer razão consciente, levou os olhos

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ao relógio de pulso e viu as horas, à luz do quadro de instrumen-tos. Eram nove e oito minutos.

Tornou a levantar o olhar rápido; diante dele, a luz sofrera uma leve alteração. A porta da frente fora escancarada: ouvira-a inclusive bater contra a parede, dentro do casebre. Um prisma de luz banhou um lado do roadster, diante da soleira de pedra. Depois, a luz foi parcialmente tapada por um vulto.

Bill soergueu-se atrás do volante, procurando ver melhor.Era uma sombra de mulher, as mãos diante do rosto, como

para não ver alguma coisa de repulsivo. Deteve-se apenas um instante, uma silhueta de contornos imprecisos. A luz banhava--lhe as costas e o rosto estava imerso na obscuridade; talvez fosse jovem, talvez velha; a sua própria elegância era imprecisa. Ele não conseguia perceber-lhe pormenores do vestido. Aquela mulher gritara e fugira do casebre atordoada e cega de repug-nância.

Foi então que viu o Pontiac e saltou para o grande roadster, agarrando-se à porta. Numa fração de segundo, acomodou-se no carro.

O  Cadillac rugiu na direção de Angell. Percorreu o cami-nho semicircular; só então os músculos de Bill reagiram. Pôs o Pontiac em primeira e voltou o volante para a direita. O carro meteu-se pelo caminho lamacento que levava à lateral da casa.

Os eixos dos automóveis entrechocaram-se. O Cadillac con-tinuou em disparada, guinchando sobre duas rodas. Por um rá-pido instante, quando os dois carros se acharam lado a lado, Bill notou que a mão direita enluvada da mulher segurava um lenço, com o qual escondia o rosto. Acima do lenço, viam-se dois olhos desmesuradamente abertos, nos quais se estampava o terror. Depois, foram-se, mulher e carro, devorando a Lamber-ton Road, rumo a Trenton; e logo se sumiram no lusco-fusco. Seria inútil segui-la, compreendeu Bill.

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Confuso, guiou o Pontiac pelo caminho enlameado e fê-lo parar ao lado do velho Packard do cunhado; tinha as mãos pe-gajosas e suadas. Desligou o motor e pulou do estribo para um alpendre de madeira, ao lado do casebre. A porta estava ligeira-mente aberta. Respirou fundo e empurrou-a.

Ofuscado pela luz, conseguiu apenas perceber as caracte-rísticas gerais do aposento. Encontrava-se numa sala de teto baixo e paredes desbotadas, cujo reboco em muitos lugares se soltara. Notou um antiquado cabide para roupa, desmontável, preso à parede fronteira, de onde pendiam fatos de homem; percebeu um pequeno lavatório de ferro num canto, uma la-reira nua e semelhante à entrada de um túmulo, uma mesa central, redonda, sobre a qual pendia a única lâmpada, fonte de toda a luz. Não havia cama nem catre, nem fogão nem ar-mários. Algumas cadeiras decrépitas e uma velha e desconjun-tada poltrona estofada.

Bill sentiu um choque.Atrás da mesa, caído no chão, jazia um homem. Viu-lhe as

calças torcidas nos joelhos. E, pela posição daquelas pernas, al-guma coisa lhe lembrava a morte.

Bill Angell ficou imóvel, perto da porta, procurando lenta-mente raciocinar. Cerrara com força os lábios. O  silêncio era completo no casebre. Começou a compreender que se encon-trava sozinho. A gente que respirava andava longe dali e um sor-riso seria um luxo remoto e inconcebível. As cortinas das ja-nelas moveram-se com a ligeira brisa do Delaware… Uma das pernas mexeu-se.

Bill observou aquele movimento com surpresa tardia e im-pessoal. E, involuntariamente, também se moveu, pisando o ta-pete que cobria o soalho do casebre.

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O homem jazia de costas, os olhos vítreos fixos no teto. As mãos, estranhamente cinzentas, procuravam agarrar o tapete num lento e paciente exercício digital. O casaco cor de canela estava desabotoado e a camisa branca tinha, na altura do cora-ção, grandes manchas de sangue, de um colorido quase alegre.

Bill deixou-se cair de joelhos e, com a mesma surpresa, ouviu a sua voz, que lhe pareceu estranha, dizer:

— Joe, pelo amor de Deus, Joe! — Não tocou, todavia, no corpo do cunhado.

O olhar apagara-se nos olhos do homem. As pupilas roda-ram sinistramente, descontroladas, e depois detiveram-se.

— Bill.— Água…?Os dedos acinzentados coçaram o tapete mais violentamente.— Não. Tarde… Bill, vou morrer.— Joe, quem…— Uma… mulher.  — A  voz interrompeu-se mas a boca

continuou a mover-se, os lábios formando sílabas, a língua mexendo-se. Depois, a voz tornou a elevar-se: — Mulher…

— Que mulher, Joe? Joe, pelo amor de Deus!— Mulher… Com véu… Véu pesado no rosto. Não vi.

Apunhalou-me… Bill, Bill…— Quem…— Beijos à Lucy. Bill, toma conta da Lucy…— Joe!A boca imobilizou-se, os lábios distenderam-se, a língua tre-

meu e caiu. Os olhos puseram-se-lhe novamente vítreos, mas continuaram a fitar Bill, com o mesmo selvático espanto de agonia. Bill certificou-se de que os dedos esfriavam e já não se mexiam.

Ergueu-se rapidamente e saiu do casebre.

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