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32 Bomfim; E.M. Históricos Cursos de Psicologia Social no Brasil INTRODU˙ˆO O percurso do ensino de Psicologia Social no Brasil Ø, atØ hoje, pouco conhecido. A escassez de documentos escritos e de registros audiovisuais aliada à raridade de pesquisas em relaçªo à temÆtica abre lacunas na compreensªo das prÆti- cas educativas em Psicologia Social. Os parcos re- gistros documentais existentes em relaçªo à pri- meira metade do sØculo XX, no Brasil, só permitem trazer à cena vestígios dessas prÆticas, restringin- do as informaçıes ao teor temÆtico e metodológico e às influŒncias teóricas. O que se propıe nesse momento Ø articular os desdobramentos desses re- gistros existentes que quer pelo pioneirismo, quer pela relevância marcaram o trajeto do ensino de Psicologia Social no país. Elegem-se, assim, quatro cursos de Psico- logia Social que, em suas diversidades, apontaram o momento de imprecisªo, fragilidade e constru- çªo do campo científico. Sªo eles: o curso minis- trado por Raul Carlos Briquet, no segundo semes- tre de 1933, na Escola Livre de Sociologia e Políti- ca de Sªo Paulo; o curso ministrado por Arthur Ramos, em 1935, na Escola de Economia e Direito HISTÓRICOS CURSOS DE PSICOLOGIA SOCIAL NO BRASIL Elizabeth de Melo Bomfim Universidade Federal de Sªo Joªo Del-Rei RESUMO:O artigo ancora-se numa reflexªo sobre quatro cursos de Psicologia Social ministrados no Brasil na primeira metade do sØculo XX. O legado documental de seus proponentes traz à cena vestígios das prÆticas educativas, informando o teor temÆtico e metodológico assim como as influŒncias teóricas. Aberta às contribuiçıes de vÆrios campos de conhecimento, a Psicologia Social Ø revelada em seu mo- mento de imprecisªo, fragilidade e construçªo como campo científico. PALAVRAS-CHAVE: Ensino de Psicologia Social História da Psicologia Social Construçªo do Conhe- cimento Científico. HISTORICAL COURSES OF SOCIAL PSYCHOLOGY IN BRAZIL ABSTRACT: The article is a reflection on four courses of Social Psychology ministered in Brazil during the first half of the twentieth century. The documental legacy brings to light educational practices, informing us of its thematical and methodological contents besides theoretical influences. Opened to the contributions of different fields of knowledge, Social Psychology shows itself in a moment of fragility, imprecision and construction as a scientific field. KEY-WORDS: Social Psychology Education - Social Psychology History - Construction of Scientific Knowledge da extinta Universidade do Distrito Federal situa- da no Rio de Janeiro; o curso ministrado por Donald Pierson, na dØcada de 1940, na Escola Li- vre de Sociologia e Política de Sªo Paulo; e o curso de Psicologia Social e Econômica, ministrado por Nilton Campos, na dØcada de 1950, na Faculdade Nacional de CiŒncias Econômicas da Universida- de do Brasil. HISTÓRICOS CURSOS DE PSICOLOGIA SOCIAL NO BRASIL O pioneiro curso de Psicologia Social mi- nistrado por Raul Briquet na Escola Livre de Socio- logia e Política de Sªo Paulo resultou na publica- çªo do seu livro Psicologia Social (1935). Nessa Øpoca, Raul Briquet jÆ formava, juntamente com Roberto Simonsen, Jorge Street, Armando de Sales Oliveira, Pacheco e Silva e AndrØ Dreyfuss, a lista dos mantenedores da Escola Livre de Sociologia e Política de Sªo Paulo, que acabou sendo anexada à Universidade de Sªo Paulo em 6 de dezembro de 1938. Raul Briquet, um paulista nascido em Li-

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Bomfim; E.M. �Históricos Cursos de Psicologia Social no Brasil�

INTRODUÇÃO

O percurso do ensino de Psicologia Socialno Brasil é, até hoje, pouco conhecido. A escassezde documentos escritos e de registros audiovisuaisaliada à raridade de pesquisas em relação àtemática abre lacunas na compreensão das práti-cas educativas em Psicologia Social. Os parcos re-gistros documentais existentes em relação à pri-meira metade do século XX, no Brasil, só permitemtrazer à cena vestígios dessas práticas, restringin-do as informações ao teor temático e metodológicoe às influências teóricas. O que se propõe nessemomento é articular os desdobramentos desses re-gistros existentes que � quer pelo pioneirismo, querpela relevância � marcaram o trajeto do ensino dePsicologia Social no país.

Elegem-se, assim, quatro cursos de Psico-logia Social que, em suas diversidades, apontaramo momento de imprecisão, fragilidade e constru-ção do campo científico. São eles: o curso minis-trado por Raul Carlos Briquet, no segundo semes-tre de 1933, na Escola Livre de Sociologia e Políti-ca de São Paulo; o curso ministrado por ArthurRamos, em 1935, na Escola de Economia e Direito

HISTÓRICOS CURSOS DEPSICOLOGIA SOCIAL NO BRASIL

Elizabeth de Melo BomfimUniversidade Federal de São João Del-Rei

RESUMO:O artigo ancora-se numa reflexão sobre quatro cursos de Psicologia Social ministrados noBrasil na primeira metade do século XX. O legado documental de seus proponentes traz à cena vestígiosdas práticas educativas, informando o teor temático e metodológico assim como as influências teóricas.Aberta às contribuições de vários campos de conhecimento, a Psicologia Social é revelada em seu mo-mento de imprecisão, fragilidade e construção como campo científico.

PALAVRAS-CHAVE: Ensino de Psicologia Social � História da Psicologia Social � Construção do Conhe-cimento Científico.

HISTORICAL COURSES OF SOCIAL PSYCHOLOGY IN BRAZIL

ABSTRACT: The article is a reflection on four courses of Social Psychology ministered in Brazil during thefirst half of the twentieth century. The documental legacy brings to light educational practices, informingus of its thematical and methodological contents besides theoretical influences. Opened to the contributionsof different fields of knowledge, Social Psychology shows itself in a moment of fragility, imprecision andconstruction as a scientific field.

KEY-WORDS: Social Psychology Education - Social Psychology History - Construction of ScientificKnowledge

da extinta Universidade do Distrito Federal situa-da no Rio de Janeiro; o curso ministrado porDonald Pierson, na década de 1940, na Escola Li-vre de Sociologia e Política de São Paulo; e o cursode Psicologia Social e Econômica, ministrado porNilton Campos, na década de 1950, na FaculdadeNacional de Ciências Econômicas da Universida-de do Brasil.

HISTÓRICOS CURSOS DEPSICOLOGIA SOCIAL NO BRASIL

O pioneiro curso de Psicologia Social mi-nistrado por Raul Briquet na Escola Livre de Socio-logia e Política de São Paulo resultou na publica-ção do seu livro Psicologia Social (1935). Nessaépoca, Raul Briquet já formava, juntamente comRoberto Simonsen, Jorge Street, Armando de SalesOliveira, Pacheco e Silva e André Dreyfuss, a listados mantenedores da Escola Livre de Sociologia ePolítica de São Paulo, que acabou sendo anexadaà Universidade de São Paulo em 6 de dezembro de1938.

Raul Briquet, um paulista nascido em Li-

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meira no ano de 1887, era filho de um engenheirofrancês interessado em trabalhar nas estradas fer-roviárias que se abriam no Brasil. Após conhecer afilha de um diplomada brasileiro em missão naFrança, casou-se e constituiu família, que cresceunos caminhos de uma estrada ferroviária que seconstruía no interior do Estado de Minas Gerais.Graças à requintada formação de sua mãe, suaúnica professora, com quem adquiriu conhecimen-tos de idiomas e de música, conseguiu ingressarna Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, ondedefendeu sua tese relativa à psicofisiologia e à pa-tologia musical. Era poliglota, exímio pianista, co-nhecido como sendo um devorador de livros e umser humano muito solidário, conforme relata o li-vro Raul Carlos Briquet (BOMFIM, 2002).

Sua especialização em ginecologia e obs-tetrícia e suas publicações na área, a partir de 1914,propiciaram a criação de uma postura científica,conhecida como �Escola Briquet de Ginecologia�.Em 1925, assumiu a cátedra de �Clínica Obstétri-ca� da Faculdade de Medicina e Cirurgia de SãoPaulo. Em 1927, juntamente com Franco da Ro-cha, Durval Marcondes e Lourenço Filho, partici-pou da criação da �Sociedade Brasileira de Psica-nálise�, primeira entidade associativa dos psica-nalistas brasileiros, tendo ocupado o cargo de vice-presidente. Em 1930, envolveu-se na criação da�Sociedade de Filosofia e Letras de São Paulo�, ins-tituição que acabou viabilizando a fundação daUniversidade de São Paulo, onde Briquet tornaria-se Catedrático de Clínica Obstetrícia e Puericultu-ra Neonatal. Briquet foi, também, signatário de umdos mais importantes documentos da educaçãobrasileira: o �Manifesto dos Pioneiros da EscolaNova�, ou mais comumente conhecido como �Ma-nifesto dos Pioneiros�, publicado em 1932.

Foi nessa condição que Briquet propôs, em1933, o curso de Psicologia Social à Escola Livrede Sociologia e Política. O primeiro contato com omaterial legado por Briquet revela que, no seu cur-so, uma vasta e atualizada lista de referências bi-bliográficas foi facultada aos alunos.

Iniciando sua performance com uma apre-sentação das principais contribuições à PsicologiaSocial advindas da Biologia, da Psicologia e daSociologia, Briquet deu a cada uma dessas contri-buições um peso semelhante. Num tratamento igua-litário, posicionou a Psicologia Social como umcampo dependente tanto da Psicologia quanto daSociologia e da Biologia. Nessa parte do curso, con-siderada como parte geral, articulavam-se uma in-trodução, uma apresentação dos subsídios da Bio-logia, uma apresentação dos subsídios da Psicolo-gia � incluindo o behaviorismo, o gestaltismo, as

leis da natureza humana e a aprendizagem � euma apresentação dos subsídios da Sociologia.

Na segunda parte, denominada parte es-pecial, a relevância era direcionada aos fatores psí-quicos e à vida social, situando, reflexivamente,as seguintes temáticas:

Fatores psíquicos: Vida social:instinto grupos sociaisinstinto agressivo eu socialhábito personalidadesugestão adaptação socialimitação preconceito de raçasimpatia liderançainteligênciea opinião pública

multidãorevolução

Ao engendrar-se nas temáticas específicasda Psicologia Social, Briquet privilegiou, em pri-meira instância, os fatores psíquicos que motiva-vam o comportamento social, relacionando o ins-tinto, o hábito, a inteligência e o que ele conside-rava como as três formas de identidade social: asugestão, a imitação e a simpatia. Num segundomomento, Briquet articulou, em sua concepção devida social, os grupos sociais, o eu social, a perso-nalidade, a adaptação social e � o que nomeoucomo Psicologia Coletiva � as questões relativasao preconceito de raça, à liderança, à opinião pú-blica, à multidão e à revolução.

Quanto aos métodos e medidas, Briquet,ampliando a questão além da experimentação,relevava quanto o método experimental seria alea-tório em Psicologia Social devendo, dessa manei-ra, harmonizar-se com outros métodos. Ele propu-nha a utilização de análise de biografias, autobio-grafias e casuística, além de alguns métodos espe-ciais para o estudo do eu social, como a medidade distância social proposta por Bogardus.

Seu estudo sobre grupos foi fortemente in-fluenciado pelo materialismo histórico de Karl Marx(abrangendo o determinismo econômico, a concep-ção materialista da história, a luta de classes e ateoria econômica) e pelo método dialético de Hegel.Com isso, concorria Raul Briquet para a introdu-ção da visão materialista histórica em PsicologiaSocial no Brasil, conforme Bomfim (2003).

Sua atitude anti-racista levou-o a um fer-renho combate ao preconceito racial num momen-to histórico em que � aos preconceitos contra ne-gros e mulatos � eram acrescidas as barreiras àimigração japonesa. Posicionou-se, ainda, contraa censura e defendeu a possibilidade de revoluçãocontra um governo injusto.

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Privilegiou autores como Dewey, James,Hall, Watson, Thorndike, Politzer, Woodworth,Bechterew, Pavlov, Koffka, Hohler, Wertheimer,Ribot, Sorokin, Comte, Delacroix, Condorcet, Freud,Jonas, Wundt, Simmel, Tarde, Durkhleim Blondel,Essetier, Duprat e Klineberg e relacionou os, entãorecentes, manuais de Psicologia Social: de Ellwood,de Allport, de Murphy e Murphy, de Murchison,de Folsom, de Bernard, de Kruger e Reklless, deYoung e de Gault, dentre outros. Mencionou, tam-bém, as revisões históricas de Psicologia Social fei-tas por Geck, na Alemanha, e por Karpf, nos Esta-dos Unidos. Entre os brasileiros, Briquet privile-giou, entre outros, Oliveira Vianna, Salles, Lins,Medeiros e Albuquerque, Kehl, Neves-Manta, NinaRodrigues, Porto-Carrero, Roquette-Pinto, MiguelCouto e Arthur Ramos, em sua já publicada obrasobre o negro brasileiro.

Foi, exatamente, Arthur Ramos o respon-sável pelo curso de Psicologia Social ministrado,entre julho e dezembro de 1935, na Escola de Eco-nomia e Direito da extinta Universidade do Distri-to Federal situada no Rio de Janeiro. Do curso,resultou a publicação do livro Introdução àPsychologia Social (1936).

Na ocasião, Arthur Ramos de Araújo Perei-ra (1903-1949) já era conhecido por suas publica-ções, ressaltando entre elas: Estudos de Psicanáli-se (1931), Psiquiatria e Psicanálise (1934), O ne-gro brasileiro (1934), Educação e Psicanálise (1934)e O folk-lore negro do Brasil (1935). Assim comoRaul Briquet, Artur Ramos teve sua graduação emMedicina, tendo estudado na Bahia e tido por mes-tre Nina Rodrigues, que o orientou em suas pri-meiras pesquisas.

Pelos desdobramentos de seu curso, é pos-sível constatar similaridade, em vários tópicos, aocurso de Briquet, cuja obra foi objeto de referên-cia. Além de Briquet, Ramos apoiava-se em auto-res como Thorndike, Watson, Blonsky, Blondel,Dewey, Tarde, Vigotski, Luria, Pavlov, Koffka,Kohler, Aron, Bion, Kornilov, Freud, Adler, Jung,Reich, Ferenczi, Gesell, Adam Smith, Piaget,McDougall, Ross, Bogardus, Gault, F. Allport,Ellwood, Bernard, Murphy e Murphy, Young eMurchison. Dos brasileiros, Ramos privilegiou, en-tre outros, Juliano Moreira, Afrânio Peixoto, Por-to-Carrero, Fernando de Azevedo, Delgado de Car-valho, Gustavo Lessa, Lourenço Filho, AnísioTeixeira, Sílvio Romero e o mestre Nina Rodrigues.

Para Ramos, a Psicologia Social, uma dis-ciplina entre a Psicologia e a Sociologia, estavaem crescente importância, embora não tivesse seusmétodos e objetivos ainda claros. Resultava daí aimprecisão em sua própria nomeação, sendo deno-

minada como interpsicologia, psicologia social,psicologia coletiva, psicologia das raças, psicolo-gia dos povos, psicologia das multidões ou psico-logia das seitas. O próprio Ramos nomeava o pro-fissional da área ora como psicossociólogo, oracomo sociopsicólogo. Ainda que imprecisa em suadefinição, à Psicologia Social caberia o estudo dasbases psicológicas do comportamento social, dasinter-relações psicológicas dos indivíduos na vidasocial e da influência dos grupos sobre a persona-lidade.

Tal como Briquet, Ramos forneceu um pa-norama geral da Psicologia, tendo acentuado ascontribuições do behaviorismo, da psicanálise e dogestaltismo. Tratou de forma semelhante temascomo a sugestão, a imitação, a simpatia, a opiniãopública, a censura e a propaganda. Adentrou nosfundamentos da Psicologia Social, na biologia dosmotivos, no hábito, na aprendizagem social, nasestruturas instintivo-afetivas, nas reações da per-sonalidade, na interação mental, na interferência,no conflito e nos desajustamentos psicossociais.Abordou, ainda, a vida dos grupos, a relação entreo individual e o social, a psicologia da cultura, aestrutura da mentalidade primitiva, a lógica afetivae sua relação com o pensamento mágico-simbóli-co, as esferas primitivas da realidade e a sobrevi-vência das estruturas primitivas.

Uma importante contribuição do curso deRamos foi a articulação da Psicologia Social com aAntropologia Social, fundamentada nos escritos deMalinowski, Franz, Boas e Lévy-Bruhl. Numa pers-pectiva culturalista, Ramos propunha uma novaordenação que seria a Psicologia Social Compara-da que, ao complementar a Antropologia Cultural,facultaria, pelo seu ponto de vista cultural, a cor-reção do critério evolucionista linear, permitindoa evolução psicológica dentro de suas culturas.

Metodologicamente, Ramos propunha autilização dos métodos fisiológicos e morfológicos,dos métodos biográficos, dos métodos de �impres-são pessoal�, dos métodos de questionários e en-trevistas e dos métodos de testes.

Entre os vários pontos de congruência nosdois cursos, ressalta a visão panorâmica da Psico-logia Social presente tanto no curso de Ramos comono de Briquet.

Essa abordagem abrangente seria contras-tada, na década de 1940, num terceiro curso, cujolegado documental foi possível acessar. Trata-sedo curso ministrado por Donald Pierson na EscolaLivre de Sociologia e Política da Universidade deSão Paulo. O referido curso foi registrado no livroTeoria e Pesquisa em Sociologia (1945), uma cole-tânea de artigos sobre Sociologia e Ecologia Hu-

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mana.Donald Pierson, quando o publicou em

1945, já estava há seis anos no Brasil lecionandoSociologia, Psicologia Social e Antropologia Socialna Escola Livre de Sociologia e Política de São Pau-lo. Havia organizado o Departamento de Sociolo-gia e Antropologia Social, transformado, em 1943,em Divisão de Estudos Pós-Graduados. Entre seustrabalhos técnicos, já destacava-se a coordenaçãoda coleção �Biblioteca de Ciências Sociais� e a pu-blicação da obra Negroes in Brazil: a study of racecontact at Bahia (1942). Posteriormente, organi-zaria as publicações de Estudos de Ecologia Hu-mana (1948) e de Estudos de Organização Social(1949).

Tendo sido orientando de Robert Park(1864-1944), o fundador da �Escola de Chicago�,Pierson trazia em sua formação a influência de seusprofessores de Chicago, entre eles: George Mead.Com tal bagagem, iria registrar, como objetivos doseu curso de Psicologia Social, o estudo dos meiospelos quais o organismo homo sapiens assumiria anatureza humana e, ao mesmo tempo, a análisede como a pessoa resultante desse processo se in-corporaria ao seu grupo social, através da aquisi-ção de um self que a capacitaria ao controle pesso-al e social e à participação de uma ação conjugada.

A influência da obra de Mead e o espaçoprivilegiado dado à abordagem do interacionismosocial não o impediram, contudo, de dar uma vi-são abrangente da origem da Psicologia Social, daclassificação dos psicólogos sociais e da relaçãoentre a Psicologia Social e as ciências sociais. En-tre as concepções e os conceitos fundamentais daPsicologia Social Sistemática, incluiu a noção doindivíduo, os conceitos de objeto, significado, com-portamento, conduta, gestos, sentimentos, blo-queio, desejos, frustração, sublimação, perversão,racionalização, neurose, rapport, imitação, suges-tão, simbolismo, self, comunicação e a categoria�do assumir o papel de outrem�.

Pierson entendia, ainda, a Psicologia Soci-al como um subcampo tanto da Sociologia quantoda Psicologia.

Sua vasta e atualizada lista de referênciasbibliográficas incluía, como proposta de leitura in-dispensável, as obras de George Mead � sua prin-cipal referência bibliográfica �, Dewey, Cooley, G.Allport, Thomas, Young, Adler, Sullivan, Koffka eKarpf. Como leitura suplementar, propunha umarelação de cerca de 50 livros que influíram na for-mação da Psicologia Social, incluindo os autoresWundt, Durkheim, Berkeley, Hobbes, Hume,Simmel, Spencer, Bekhterev, Lazarus, Stern, Pavlov,Franz Boas, Stanley Hall, Judd, Ross, Le Bon, Levy-

Bruhl, Freud, Jung e Bernard. Relacionou, ainda,uma lista de estudos selecionados, composta portextos de Park, Burgess, Faris, Smith e Wright,Thurstone, Znaniecki, Kardiner, Kluckhohn, Lewin,F. Allport, Kohler, Margaret Mead, Murphy, JohnDollard e Stern. E, finalmente, numa seção deno-minada de esforços para resumir ou sistematizar ocampo, incluiu os textos de Raul Briquet, ArthurRamos, Otto Klineberg, Bernard, Ellwood, Folson,Gault, Gordon, Murchison, Reinhardt, Znanieckie W. McDougall.

À ampla lista de referências bibliográficascontrasta-se a ausência de referência no registrolegado por Nilton Campos, um dos introdutoresdo pensamento fenomenológico no Brasil, que, nadécada de 1950, foi o responsável pelo Curso dePsicologia Social e Econômica, da Faculdade Na-cional de Ciências Econômicas, instituição vincu-lada à antiga Universidade do Brasil situada noRio de Janeiro.

O carioca Nilton Campos (1898-1963), for-mado na Faculdade Nacional de Medicina (1923),já havia defendido, em 1945, a tese �O métodofenomenológico na Psicologia�, para o provimentoda Cátedra de Psicologia na Faculdade Nacionalde Filosofia da antiga Universidade do Brasil e,em 1948, assumido a direção do �Instituto de Psi-cologia� em substituição à Jaime Grabois. Traziaem sua bagagem profissional a publicação de seulivro Psychologia da vida affectiva (1930) e a expe-riência na Colônia de Psicopatas do Engenho deDentro, onde foi assistente de Waclaw Radecki etrabalhou no Laboratório de Psicologia da Colôniade Psicopatas Engenho de Dentro com companhei-ros como Helina Radecka, Lucília Tavares,Ubirajara da Rocha, Arauld Bretas, Alberto Moore,A. Bulhões Pedreira e Euryalo Cannabrava.

No Instituto de Psicologia, Nilton Camposcriou o Boletim do Instituto de Psicologia, em 1951,no qual publicava periodicamente. Foi nesse perió-dico que Campos divulgou, em 1952, o programado seu curso de Psicologia Social e Econômica.

O curso de Psicologia Social e Econômicade Nilton Campos continha 27 tópicos sobre diver-sas temáticas que incluíam: a) conceito e relaçõesda Psicologia Social com as ciências afins; b) obje-to da Psicologia Social; c) natureza dos fenôme-nos psicossociais; d) fases do desenvolvimento daPsicologia Social; e) métodos de pesquisa; f) natu-reza das relações entre o indivíduo e a sociedade;g) fenômeno de interação; h) isolamento social; i)identidade humana e diversidade de culturas; j)percepção e cognição; k) cultura e personalidade;l) formação e integração da personalidade; m) im-pulsos, desejos, instintos e tendências; n) crenças

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e atitudes; o) grupo social; p) relações inter-hu-manas; r) tensões sociais; s) criminalidade e in-fância abandonada; t) sugestibilidade, imitação,simpatia e antipatia; u) propaganda e opinião pú-blica; v) liderança; x) organização científica dotrabalho e desajustamento no trabalho; w) costu-mes e moda; y) progresso nas investigações cientí-ficas da psicologia; e z) apreciação das fontes bi-bliográficas.

Na questão metodológica, Nilton Campospropunha a utilização de métodos de pesquisa vin-culados às correntes behaviorista, gestaltista e psi-canalítica e nomeava as possibilidades e as limita-ções da pesquisa experimental.

A ausência � quer dos objetivos, quer dasfontes bibliográficas � deixou, contudo, lacunasirremediáveis, limitando a análise à uma exposi-ção de temáticas.

Finalmente, vale ressaltar que, situandoreflexivamente, todos os cursos estiveram estreita-mente vinculados à construção do pensamento emPsicologia Social no Brasil. Eles apontam que, atémeados do século XX, a prioridade na busca dostatus de conhecimento científico para o campopsicossocial realizava-se num clima de alegada faltade espírito universitário de pesquisa e da ausênciade objetividade e de imparcialidade necessárias aopaís.

À visão generalista, própria da década de1930, buscou-se a alternância através do privilé-gio a determinadas abordagens teóricas nas déca-das seguintes. Contudo, pelos seus desdobramen-tos basilares, observa-se que persistiram os doismodelos na segunda metade do século XX. Sãocontribuições históricas, importantes marcos nopassado, que deixam, para os interessados, regis-tros relevantes sobre a Psicologia Social no Brasil.

REFERÊNCIAS:

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BOMFIM, E. Psicologia Social no Brasil. Belo Hori-zonte: Edições do Campo Social, 2003.

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RAMOS, A. Introdução à Psychologia Social. Riode Janeiro: J. Olympio, 1936. (2. ed. Rio de Janei-ro: Casa do Estudante do Brasil, 1952.).

Elizabeth de Melo Bomfim é pesquisadora visitante noLaboratório de Pesquisa e Intervenção Psicossocial da

Universidade Federal de São João Del-Rei, com bolsa daFundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas

Gerais. Foi presidente da Associação Nacional de Pesqui-sa e Pós-Graduação em Psicologia � ANPPEP (gestão

1994-1996), presidente da Associação Brasileira de Psico-logia Social � ABRAPSO (gestão 1987-1989 e gestão

1997-1998) e Coordenadora do Programa de Pós-Gradu-ação em Psicologia da UFMG (gestão 1991-1994). O

endereço eletrônico da autora é:[email protected]

Elizabeth de Melo BomfimHistóricos cursos depsicologia social no BrasilRecebido: 4/3/20041ª revisão: 6/5/2004Aceite final: 21/6/2004