Eliane Brum_ Os Índios e o Golpe Na Constituição _ Opinião _ EL PAÍS Brasil

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ELIANE BRUM 13 ABR 2015 - 11:55 BRT COLUNA Os índios e o golpe na Constituição Por que você deve ler essa coluna “apesar” da palavra índio Arquivado em: Opinião Indígenas Constituição Atividade legislativa Brasil Parlamento América do Sul América Latina Etnias América Política Sociedade Os índios vão ocupar Brasília nesta semana. Ao escrever a palavra “índio”, perco uma parte dos meus leitores. É uma associação imediata: “Índio? Não me interessa. Índio é longe, índio é chato, índio não me diz respeito”. E, pronto, clique fatal, página seguinte. Bem, para quem ainda está aqui, uma informação: mais de mil lideranças indígenas ocupam Brasília de 13 a 16 de abril em nome dos seus direitos, mas também em nome dos direitos de todos os brasileiros. Há um golpe contra a Constituição em curso no Congresso Nacional. Para ser consumado, é preciso exatamente o seu desinteresse. Guarde essa sigla e esse número: PEC 215. Quando se fala em PEC 215, só a sigla e o número já afastam as pessoas, porque neles estão embutidos toda uma carga de burocracia e um processo legislativo do qual a maioria da população se sente apartada. Os parlamentares que querem aprovála contam com esse afastamento, porque a desinformação da maioria sobre o que de fato está em jogo é o que pode garantir a aprovação da PEC 215. Se durante séculos a palavra escrita foi um instrumento de dominação das elites sobre o povo, hoje é essa linguagem, é essa terminologia, que nos faz analfabetos e nos mantém à margem do centro do poder onde nosso destino é decidido. É preciso vencer essa barreira e se apropriar dos códigos para participar do debate que muda a vida de todos. A alienação, desta vez, tem um preço impagável. O que é uma PEC? PEC é uma Proposta de Emenda à Constituição. Um instrumento para, em tese, aprimorar a Constituição de 1988. O que essa PEC, a 215, pretende, em resumo, é transferir do Executivo para o Congresso o poder de demarcar terras indígenas, territórios quilombolas e unidades de conservação. Só que o resumo, como a gente sabe, nunca explica muita coisa. O direito ao território ancestral é uma garantia fundamental da Constituição porque a terra é parte essencial da vida dos índios. Sem ela, condenase povos inteiros à morte física (genocídio) e cultural (etnocídio). Isso explica por que, em 2012, um grupo de Guarani Kaiowá do Mato Grosso do Sul pediu, numa carta aos brancos, que fossem declarados mortos. Preferiam ser extintos a ser expulsos mais uma vez: “Pedimos ao Governo e à Justiça Federal para não decretar a ordem de despejo/expulsão, mas decretar nossa morte OPINIÃO

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Artigo de Eliane Brum sobre as condições do grupos indígenas brasileiros.

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ELIANE BRUM 13 ABR 2015 - 11:55 BRT

COLUNA

Os índios e o golpe na ConstituiçãoPor que você deve ler essa coluna “apesar” da palavra índio

Arquivado em: Opinião Indígenas Constituição Atividade legislativa Brasil Parlamento

América do Sul América Latina Etnias América Política Sociedade

Os índios vão ocupar Brasília nesta semana. Ao escrever apalavra “índio”, perco uma parte dos meus leitores. É umaassociação imediata: “Índio? Não me interessa. Índio élonge, índio é chato, índio não me diz respeito”. E, pronto,clique fatal, página seguinte. Bem, para quem ainda estáaqui, uma informação: mais de mil lideranças indígenasocupam Brasília de 13 a 16 de abril em nome dos seusdireitos, mas também em nome dos direitos de todos osbrasileiros. Há um golpe contra a Constituição em curso noCongresso Nacional. Para ser consumado, é precisoexatamente o seu desinteresse.

Guarde essa sigla e esse número: PEC 215. Quando se falaem PEC 215, só a sigla e o número já afastam as pessoas,porque neles estão embutidos toda uma carga de burocraciae um processo legislativo do qual a maioria da população sesente apartada. Os parlamentares que querem aprová­lacontam com esse afastamento, porque a desinformação damaioria sobre o que de fato está em jogo é o que podegarantir a aprovação da PEC 215. Se durante séculos apalavra escrita foi um instrumento de dominação das elitessobre o povo, hoje é essa linguagem, é essa terminologia,que nos faz analfabetos e nos mantém à margem do centrodo poder onde nosso destino é decidido. É preciso venceressa barreira e se apropriar dos códigos para participar dodebate que muda a vida de todos. A alienação, desta vez,tem um preço impagável.

O que é uma PEC? PEC é uma Proposta de Emenda àConstituição. Um instrumento para, em tese, aprimorar aConstituição de 1988. O que essa PEC, a 215, pretende, emresumo, é transferir do Executivo para o Congresso o poderde demarcar terras indígenas, territórios quilombolas eunidades de conservação. Só que o resumo, como a gentesabe, nunca explica muita coisa. O direito ao territórioancestral é uma garantia fundamental da Constituiçãoporque a terra é parte essencial da vida dos índios. Sem ela,condena­se povos inteiros à morte física (genocídio) ecultural (etnocídio). Isso explica por que, em 2012, umgrupo de Guarani Kaiowá do Mato Grosso do Sul pediu,numa carta aos brancos, que fossem declarados mortos.Preferiam ser extintos a ser expulsos mais uma vez:

“Pedimos ao Governo e à JustiçaFederal para não decretar a

ordem de despejo/expulsão, mas decretar nossa morte

OPINIÃO

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Essesparlamentares nãoquerem aprimorara Constituição, masdar um golpe nela

coletiva e enterrar nós todos aqui. Pedimos, de uma vez portodas, para decretar nossa extinção/dizimação total, alémde enviar vários tratores para cavar um grande buraco parajogar e enterrar nossos corpos. Este é o nosso pedido aosjuízes federais”.

Sem a terra de seus ancestrais, um índio não é. Não existe.Os Guarani Kaiowá, uma das etnias em situação maisdramática do Brasil e possivelmente do mundo,testemunham o suicídio de um adolescente a cada seis dias,em geral enforcado num pé de árvore, por falta deperspectiva de viver com dignidade no território dos seusantepassados. Por isso esse grupo afirmou que preferiamorrer a ser expulso, mais uma vez, porque pelo menoshomens, mulheres e crianças morreriam juntos, já que osindígenas se conjugam no plural, e morreriam no lugar aoqual pertencem.

O pacote maligno

O poder de demarcar terrasindígenas, territóriosquilombolas e unidades deconservação é atribuído aoExecutivo pela Constituição nãopor acaso, como se fosse umjogo de dados, em que a sortedetermina o resultado e tantofaz. Foi atribuído por critérios claros, estudados emprofundidade, com o objetivo de reconhecer direitos eproteger o interesse de todos os brasileiros. É o Executivoque tem a estrutura e as condições técnicas para cumprir orito necessário à demarcação, desde equipes capacitadaspara fazer os estudos de comprovação da ocupaçãotradicional até a resolução de conflitos e a eventualnecessidade de indenizações. Da mesma forma, é bastanteóbvio que a criação de áreas de preservação são parteestratégica da política social e ambiental de qualquergoverno.

Quando os parlamentares tentam tirar o poder dedemarcação do Executivo para entregá­lo a eles próprios, oque estão tentando fazer não é aprimorar a Constituição,mas dar um golpe nela. Na prática, a PEC 215 é apenas apior entre as várias estratégias em curso para acabar com osavanços da Constituição no que diz respeito à preservaçãodo meio ambiente e aos povos indígenas, aos quilombolas eaos ribeirinhos agroextrativistas que o protegem.Na prática,se a PEC 215 for aprovada, o mais provável é a paralisaçãodo processo de demarcação de terras indígenas equilombolas, assim como a paralisação da criação deunidades de conservação. É nesse ponto que a PEC 215passa a ameaçar também o direito fundamental de todos osbrasileiros a um meio ambiente ecologicamente equilibradoe, por extensão, ameaçar o direito à vida.

A PEC 215, a qual espertamente foram sendo juntadosvários penduricalhos perigosos, tornou­se uma espécie depacote maligno. Ela também pretende determinar queapenas os povos indígenas que estavam “fisicamente” emsuas terras na promulgação da Constituição de 1988 teriam

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Se a PEC 215 passar,por um lado não sedemarca maisterras indígenas,por outro, éretirada a proteçãodaquelas que jáestavam garantidas

direito a elas. Assim, todos aqueles que foram arrancadosde suas terras tanto por grileiros quanto pelos projetos deocupação promovidos pelo Estado, seriam agora expulsosem definitivo. A proposta aqui é legalizar o crime, já que osíndios tirados de suas terras pela força lá atrás seriam“culpados” por não estarem nelas, perdendo­as parasempre. Parece coisa de maluco, mas é isso que se defende.Ao investigar os crimes da ditadura, a Comissão Nacionalda Verdade constatou que, em apenas dez etnias, 8.350índios foram assassinados. A reparação por meio dademarcação e da recuperação ambiental de suas terrasforam consideradas medidas mínimas e indispensáveispara a restauração da justiça.

Mas há algo ainda pior na PEC215. Ela pretende abrir exceçõesao usufruto exclusivo dos povosindígenas, como arrendamentosa não índios, permanência denúcleos urbanos e propriedadesrurais, construção de rodovias,ferrovias e hidrovias. Buscatambém revisar os processos dedemarcação em andamento,assim como impedir a ampliaçãode terras já demarcadas. Háainda o risco de a PEC 215 abrir espaço, se aprovada, paraque as terras já asseguradas sofram modificações segundoos novos critérios. Para entender: se a PEC 215 passar, oque pode acontecer é que, por um lado, não há demarcaçãode novas terras; por outro, é retirada a proteção daquelasque já estavam garantidas.

As mãos por trás do golpe

Este é um mundo perfeito para quem? Para mim, paravocê? Acredito que não. Mas é para alguns. Sempre é paraalguns. Basta ver quem está no comando da comissão daPEC 215 para entender. Toda a coordenação é da chamada“bancada ruralista”. Mas é importante compreender de queruralistas estamos falando, para não reforçar uma falsaoposição com os produtores rurais do Brasil, com aquelesque de fato têm interesse em colocar o alimento na mesados brasileiros. Um mundo sem terras indígenas e semunidades de conservação seria bom para quem produzalimentos para o país? Me parece que não. Produtoresrurais inteligentes e com espírito público, sejam elespequenos ou grandes, sabem que precisam de água paraproduzir. Se precisam de água pra produzir, precisam defloresta em pé. Se precisam de floresta em pé, precisam deterras indígenas e de áreas de conservação.

Então, se este mundo não é bom nem para mim nem paravocê nem para quem produz alimentos, para quem estemundo é bom? Sempre é possível ter uma pista seguindo odinheiro. No caso, o dinheiro do financiamento dascampanhas. Segundo o Portal de Políticas Socioambientais,em análise feita a partir de dados do Tribunal SuperiorEleitoral (TSE), pelo menos 20 dos quase 50 deputados dacomissão especial que analisa a PEC 215 foram financiados

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O objetivo étransformar terraspúblicas eprotegidas emterras privadaspara a exploração eo lucro de poucos

por grandes empresas do agronegócio, de mineração e deenergia, por empreiteiras, por madeireiras e por bancos.Alguns destes parlamentares receberam, sozinhos, mais deum milhão de reais de empresas ligadas a esses segmentos.

Este é um capítulo importante para compreender osporquês. Tanto as terras indígenas quanto as unidades deconservação são terras públicas. Aos povos indígenas cabe ousufruto dessas terras. As unidades de conservação sãoparques e florestas nacionais, estações ecológicas, reservasextrativistas ou biológicas, refúgios da vida silvestre etc,que pertencem a todos nós e que são criadas para impedir aexploração predatória e proteger a biodiversidade,estratégica para o desenvolvimento sustentável.

Como então colocar a mãonessas terras públicas eprotegidas (ou que aindadeverão ser protegidas), terrasque são patrimônio de todos osbrasileiros, para que elaspossam se tornar privadas, paraa exploração e o lucro depoucos? Desprotegendo essasterras. E como fazer isso? Dandoum golpe na Constituição. Mas como dar um golpe naConstituição? Travestindo esse golpe de legalidade peloprocesso legislativo. Junta­se a isso um governo fragilizado,com baixa aprovação popular e pouco apoio até mesmoentre suas bases, e o Congresso mais conservador desde aredemocratização. Pronto, estão dadas as condições para ocrime.

Se depois o Supremo Tribunal Federal considerarinconstitucional a emenda, anos já se passaram e tanto aprivatização do que é público quanto a devastação debiomas como a floresta amazônica e o Cerrado já setornaram fatos consumados. E o Brasil, como se sabe, é opaís do fato consumado. Basta acompanhar a trajetória deBelo Monte, que entre ilegalidades constantementedenunciadas, várias ações movidas pelo Ministério PúblicoFederal e a suspeita de pagamento de propinas pelasempreiteiras investigadas pela Operação Lava Jato, virafato consumado à beira do Xingu. Quando finalmentechegar ao Supremo, já será tarde demais.

Os índios, esses estrangeiros nativos

A conversão do público para o privado, em benefício dosgrandes interesses particulares de exploração da terra e dosrecursos naturais do Brasil, é o que está na mesa nesse jogode gente bem grande. Cabe à população brasileira seinformar e participar do debate, se concluir que este não é oprojeto de país que deseja. Por causa dos povos indígenas,dos quilombolas, dos ribeirinhos? Me parece que seriamotivo mais do que suficiente. Sobre os índios, em especial,aqueles que têm grandes interesses nas riquezas das terrasque ocupam, costumam espalhar preconceitos como o deque seriam “entraves ao desenvolvimento” e o de que nãoseriam índios “de verdade”. Mas entraves a qualdesenvolvimento e ao desenvolvimento para quem? E o que

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No atual Congressonão há nenhumrepresentanteindígena

seria essa categoria, “um índio de verdade”?

Vale a pena examinar os preconceitos de perto, paraperceber que eles não param em pé depois de um confrontomínimo com a realidade. Para começar, não existe “o”índio, mas uma enorme diversidade na forma como cadaum dos 242 povos indígenas listados pelo InstitutoSocioambiental dá sentidos ao que chamamos de mundo ese vê dentro do mundo – ou dos mundos. O Brasil lidera oranking dos 17 países mais megadiversos, em grande partepor causa dos povos indígenas. Por países megadiversoscompreende­se aqueles que concentram a maior parte dabiodiversidade do mundo e, portanto, da sua preservaçãodepende o planeta inteiro. Essa é maior riqueza do Brasil,mas a ganância de poucos e a ignorância de muitos aameaça e destrói, colocando em risco a vida de todos.

Os povos indígenas, guardiõesda biodiversidade, sãosilenciados também pelasimplificação, às vezes apenasburra, em geral malintencionada, de fazê­losparecerem um só, chapadoscomo “entraves ao desenvolvimento”. Estima­se que haviamais de mil povos indígenas quando os europeusdesembarcaram no Brasil. Hoje, parte dos parlamentaresdo atual Congresso não mede esforços para completar ogenocídio iniciado 500 anos atrás.

Quando a Constituição assegurou os direitos dos povosindígenas, em 1988, não criou direitos novos, apenasreconheceu direitos pré­existentes, já que eles estavam aquiantes de qualquer europeu. Legalmente, não se trata de“dar” terra aos povos indígenas, mas apenas de demarcar aterra que sempre foi deles. Nesse processo, deresponsabilidade do Executivo, é preciso indenizar aquelesfazendeiros e agricultores que possuem títulos legais depropriedade (e o “legais” aqui deve ser bem sublinhado),dados pelos governos nos tantos projetos de ocupação,gente que não têm a menor culpa de ter sido despachadacom suas famílias para território indígena. PelaConstituição, o Estado tinha um prazo de cinco anos parademarcar as terras indígenas. Como sabemos, passaram­semais de 25 anos e dezenas delas ainda não foramdemarcadas.

Como também sabemos, a ilegalidade faz mal ao país: osconflitos de terra que se espalham pelo Brasil, semeandocadáveres, são resultado da demora em cumprir aConstituição, sobre a qual a bancada ruralista tenta agoradar um golpe. Vale lembrar ainda que os direitosfundamentais são colocados na Constituição também paraque a maioria de ocasião não possa ameaçá­los em nome deseus interesses. A importância dessa proteção fica maisclara se prestarmos atenção à atual composição doCongresso: há dezenas de ruralistas e nenhum indígena.

No capítulo “mentiras & manipulações” sobre os povosindígenas há pelo menos três linhas de não pensamentobastante populares no Congresso e fora dele. Há os

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O ápice daevolução: de “índiofalso” a “pobrelegítimo”

“atrasadistas”, gente que estudou e que coleciona diplomas,mas prefere ignorar a Antropologia e pensadores daestatura de Claude Lévi­Strauss, para considerar que osíndios são “atrasados”. Para estes, existe uma cadeiaevolutiva única e inescapável entre a pedra lascada e o Ipad.Não conseguem – ou não querem – ter a amplidão mínimade pensamento para compreender a multiplicidade deescolhas e de caminhos possíveis para a trajetória de umpovo. Tampouco alcançam perceber que são essas asdiferenças que formam a riqueza da experiência humana. E,claro, preferem se “esquecer” do que o tipo de “progresso”que defendem causou ao planeta.

A segunda linha de nãopensamento é a dos “fiscais deautenticidade”. Quando aclassificação dos índios como“atrasados” e “entraves aodesenvolvimento” falha, trata­seentão de dizer que, sim, osíndios têm direitos, mas só os “de verdade”. Haveria entãoos não legítimos, aqueles que falam português, usam celulare gostam de assistir à TV ou andar de carro. Nessa lógicaabaixo da linha da estupidez, os brasileiros que falaminglês, vão à Disney, preferem rock ao samba eultimamente andam gostando de torcer por times europeusde futebol, também poderiam ser considerados falsosbrasileiros e perder todos os seus direitos. Nessa altura dahistória humana e com tanto conhecimento produzido erade se esperar um pouco mais de sofisticação nacompreensão daquilo que faz de alguém o que é.

Quando as duas mentiras anteriores são desmascaradas,aparecem os “bons samaritanos” para salvar a Pátria –deles. Estes acham que quem gosta de mato é antropólogo eambientalista e que o sonho dos indígenas, o sonho mesmo,no “íntimo do seu intrínseco”, é viver em nossasmaravilhosas favelas e periferias, com esgoto serpenteandona porta e polícia dando tiro nas escadarias, à custa deBolsa Família e cesta básica. Este seria o ápice da evolução:de “índio falso” a “pobre brasileiro legítimo”. Quem, afinal,poderia resistir a tal progresso na vida?

Um golpe na Constituição aqui e acolá e estes bonssamaritanos chegam ao ponto ótimo: ajudam os índios quenão conseguiram matar a virar pobres e, pronto, para queterra para índio, se já não existe índio? A ignorância sóperde para a má fé. Mas é com preconceitos como estes,espertamente disseminados e manipulados, que se tentatransformar os indígenas numa espécie de estrangeirosnativos, como se os “de fora” fossem aqueles que sempreestiveram dentro. Essa xenofobia invertida seria apenasnonsense, não fosse totalmente perversa, a serviço deobjetivos bem determinados.

Aderir ou pensar?

Há muita terra para pouco índio? Não. Como costuma dizero socioambientalista Márcio Santilli, “há muita terra parapouco fazendeiro”. Segundo o Censo de 2010 do IBGE, há517 mil índios aldeados em menos de 107 milhões de

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Muita terra parapouco índio? Não.Muita terra parapouco fazendeiro

hectares de terras indígenas, o equivalente a 12,5% doterritório brasileiro. E onde estão essas terras? Mais de 98%delas estão na Amazônia Legal – e menos de 2% fora de lá.Já os 46 mil maiores proprietários de terras, segundo oCenso Agropecuário do IBGE, exploram uma área maior doque essa: mais de 144 milhões de hectares.

Sobre a realidade da concentração fundiária no país, quecontinua a crescer, o Cadastro de Imóveis Rurais do Incra(Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária)mostra que as 130 mil grandes propriedades ruraisparticulares concentram quase 50% de toda a área privadacadastrada no Incra. Já os quase quatro milhões deminifúndios equivalem, somados, a um quinto disso: 10%da área total registrada. Em entrevista ao jornal O Globo, opesquisador Ariovaldo Umbelino de Oliveira, coordenadordo Atlas da Terra, afirmou que quase 176 milhões dehectares são improdutivos no Brasil. Prestar atenção nosnúmeros já é um começo para pensar, em vez desimplesmente aderir.

Falta espaço para a produção dealimentos no país? Tudo indicaque não. Num país com essaquantidade de terras destinada àagropecuária e com essaconcentração de terras na mãode poucos, afirmar que oproblema do desenvolvimento são os povos indígenas sónão é mais ridículo do que Kátia Abreu, a latifundiária quediz não existir mais latifúndio no Brasil e hoje ministra daAgricultura, afirmar que “o problema é que os índios saíramda floresta e passaram a descer na área de produção”. Osíndios, esses invasores do mundo alheio. Mas é assim que ahistória vai sendo distorcida ao ser contada para apopulação.

Então, sim, respeitar os direitos dos povos indígenas jáseria um motivo suficiente para lutar contra a PEC 215. Masa PEC 215 não ameaça apenas os povos indígenas e aspopulações tradicionais. Ela ameaça a vida de todos osbrasileiros. E por quê? Porque se temos floresta em pé é porcausa dos povos indígenas e das populações tradicionais,são eles a pedra no caminho de um tipo de exploração que,depois de consumada, lucros privatizados na mão depoucos, deixa para nós todos o custo da devastação. Eagora, nos estados da região sudeste, nós finalmentecompreendemos, com o colapso da água, qual é o custo dadevastação. Nós finalmente começamos a compreender oquanto corroemos a nossa vida cotidiana ao destruir asflorestas e ao contaminar os rios. Não é mais algo subjetivo,uma abstração, mas algo bem concreto. Não é mais umfuturo distante, é aqui e é agora. Não são mais os nossosnetos, mas os nossos filhos que sofrerão e já sofrem comesse planeta mastigado. Assim como nós mesmos. E só estácomeçando.

Lutar democraticamente para barrar a PEC 215 não é umaatitude altruísta, não é um esforço para respeitar os direitosindígenas, não é algo que fazemos porque somos pessoas

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bacanas, gente do bem. Barrar a PEC 215 é atender aonosso instinto de sobrevivência num mundo em que asmudanças climáticas são possivelmente o maior desafio dahistória humana nesse planeta, que é o único que temos eque destruímos. Se o golpe à Constituição for consumado, omeio ambiente no Brasil perderá boa parte das barreirasque ainda impedem a devastação, reunindo condições eabrindo espaço para a aceleração da corrosão da vida.

Há muita atenção da imprensa e da população sobre osprotestos nas ruas do Brasil. O curioso é que, quando são osíndios que ocupam o espaço público, apesar de todo o seucolorido, de sua fascinante diversidade, eles correm o riscode tornar­se automaticamente invisíveis. Sua dor, suamorte e sua palavra parecem não existir – ou existir apenasno diminutivo. O olhar dos não índios os atravessa. Destavez, ainda que por instinto de sobrevivência, seriaconveniente enxergá­los. Mas, claro, sempre podemosconcluir que o melhor para todos nós é viver cercado decimento, fumaça e rios de cocô.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficçãoColuna Prestes ­ o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A MeninaQuebrada, Meus Desacontecimentos e do romance Uma Duas. Site:descontecimentos.com Email: [email protected] Twitter:@brumelianebrum

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