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Eleutério Prado Desmedida do valor Crítica da pós-grande indústria São Paulo 2005

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Eleutério Prado

Desmedida do valorCrítica da pós-grande indústria

São Paulo

2005

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ï̂̂ yRijp laêmmfm imrWii do TmbalkoSob a direção de Ruy Braga

A Europa do capital • Luciano Vasapollo (coord.)

Para além de Marx? • Sergio Lessa

Desmedida do valor • Eleutério Prado

O grande blefe capitalista • Michel Husson

A redução do tempo de trabalho em questão • Giuseppina R. de Gracia

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© 2005 by Eleutério Prado

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sem autorização expressa da editora.

Edição e capa: Expedito Correia Revisão: Esteia Carvalho

Editoração eletrônica: Xamã Editora

Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP)

P896 Prado, Eleutério.Desmedida do valor : critica da pós-grande

indústria / Eleutério Prado. São Paulo : Xamã, 2005.

14 4 p . ; 23 cm.

Bibliografia: p. 139. ISBN 85-7587-043-2

1. Economia - Filosofia. I. Titulo.

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P r e f á c io , 7

In t r o d u ç ã o , 9

P a c if ic a ç ã o do c o n f l it o de c l a s s e s? , 19

T r a b a l h o im a t e r ia l e f e t ic h is m o , 4 9

C r ít ic a à e c o n o m ia p o l ít ic a d o im a t e r ia l , 71

V a l o r d esm ed id o e d e s r e g r a m e n t o d o m u n d o ,

P ó s -g r a n d e in d ú s t r ia e n e o l ib e r a l is m o , 1 1 7

R e f e r ê n c ia s , 1 3 9

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P r e f á c io

Benedito Moraes Neto

A Xamã Editora brinda-nos com uma coletânea de trabalhos recentes de Eleutério Prado, referência em economia política no Brasil. Trata-se de importante iniciativa editorial, na medida em que esse autor tem procura­do, em seus textos recentes, colocar toda sua reconhecida competência e sua igualmente reconhecida honestidade intelectual a serviço do ciclópeo desafio do entendimento (ou seja, da crítica) do momento presente do regi­me capitalista de produção.

O fio condutor da reflexão de Eleutério é apenas na aparência surpre­endente, qual seja a teoria do valor trabalho tal como apresentada por Marx. Por que surpreendente? Porque, como o próprio autor afirmara em texto anterior, tratar-se-ia de instrumento teórico ultrapassado, na medida em que se distanciava das manifestações teóricas mais recentes na área da Econo­mia. Por que só aparentemente surpreendente? Porque o próprio Eleutério teria conseguido logo em Seguida ver com clareza a força teórica desse ins­trumento para o desvelamento do movimento recente e das possibilidades futuras do regime do capital. Essa visão teve como elemento fundamental a consideração extremamente feliz do autor de que, em verdade, em Marx a lei do valor teria sido “proposta para ser negada” pelo movimento do pró­prio modo de produção capitalista. Teria sido, assim, superada uma tão apre­goada visão pouco aprofundada dessa teoria, segundo a qual ela teria sua validade teórica dependente de sua capacidade de explicar os preços das mercadorias produzidas pelo capital.

Com o auxílio de intérpretes de fôlego da proposta teórica de Marx, Eleutério Prado nos ensina que a teoria do valor trabalho é instrumento teó­rico muito mais potente e sofisticado, na medida em que permite visualizar

Professor livre-docente do Departamento de Economia da Unesp Araraquara

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8ELEUTÉRIO PRADO - DESMEDIDA DO VALOR

os desdobramentos econômicos e sociais de sua sistemática negação pelo regime que a criou. Essa consideração leva-nos imediatamente para os des­dobramentos da negação ao paroxismo da lei do valor que marca o capita­lismo contemporâneo.

Após marcar seu terreno teórico, que implica a consideração da emer­gência recente do que nomeia, com Ruy Fausto, de “pós-grande indús­tria” , Eleutério parte para a análise dos desdobramentos do que chamei, em texto recente, de “grundrissização da sociedade”. Como também afir­mei nesse texto, a despeito de diferenças de caminho, chegamos juntos ao ponto fundamental: nos dias que correm, exacerba-se, por conta das grandes transformações tecnológicas, a contradição marxista clássica entre forças produtivas e relações sociais de produção (muito embora, parado­xalmente, este seja para alguns o momento histórico que exigiria o expur­go dessa “consideração marginal” de Marx).

Essa contradição exacerbada, posta historicamente pela superação da mediocridade produtiva taylorista-fordista, levaria para um momento histórico caracterizado, nas palavras de Eleutério, pela “desmedida do valor” e para o “desregramento do mundo”, cujas características ele tenta perscrutar. Trata-se de ponto de partida bastante rico, que leva o autor a identificar o neoliberalismo como “o momento da posição (ou do afloramento) da contradição entre o capital e o trabalho”.

Ao invés de lamentar a perda de um passado recente caracterizado por um “capitalismo arrumado” sob a lamentável égide do taylorismo-for- dismo, Eleutério nos remete para o correto e imenso desafio: o entendi­mento daquilo que, com ele, poderíamos chamar de início da “transição esquizofrênica”.

Acho que deveríamos todos aceitar teórica e politicamente essa suges­tão forte.

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In t r o d u ç ã o

Como o autor da presente introdução desenvolve, nos textos que se seguem, críticas ao modo como autores consagrados tais como Jürgen Habermas, Antonio Negri e André Gorz trataram a questão do valor trabalho tendo por referência a economia capitalista do fim do século XX, torna-se necessário - e mesmo honesto - começar por uma autocrítica. Num artigo escrito em 1996, com a persistente pretensão subjacente de manter viva uma atitude de não-conformação com a sociedade atual, este autor escre­veu convicto que “a teoria de Marx encontra-se, hoje, em dificuldade, por­que, em face da própria perda de centralidade da categoria trabalho no pensamento econômico, não parece mais plausível fundar o valor no traba­lho” (PRADO, 1996, p. 204).

Do ponto de vista da compreensão do sistema econômico do capital que foi capaz de desenvolver cerca de seis anos depois, esta afirmação afi­gura-se como um erro. Em primeiro lugar porque, se os economistas e soci­ólogos desprezam o trabalho enquanto atividade criadora e recriadora das bases da vida social, daí não se pode concluir que não seja central no pro­cesso de reprodução da sociedade humana. Ao contrário, é possível argu­mentar que assim eles o ocultam para fazer com que o sistema de relações sociais atualmente existente, de acordo com sua própria aparência, figure seja como uma ordem natural seja como uma ordem espontânea. Em se­gundo lugar porque o autor deste livro passou a considerar que o valor tra­balho é uma referência absolutamente essencial para compreender o capi­talismo contemporâneo, já que crê encontrar, em seu processo atual de desenvolvimento, uma tendência, ainda que não inexorável, para a destrui­ção da vida humana civilizada possível na face da Terra.

A menos de eventuais ilusões conciliatórias com o existente ou mesmo reformistas, no fundo do problema que se manifestou acima como um erro de compreensão está uma dificuldade teórica. A teoria do valor trabalho apresentada por Marx em O Capital não é um conhecimento de fácil apre­ensão para alguém que não tenha uma formação sólida em Filosofia. E bem árduo para um economista formado no estudo da economia positiva, mes-

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I OELEUTÉRIO PRADO - DESMEDIDA DO VALOR

mo se ele é crítico e quer resistir o tempo todo a esse modo de pensar, livrar- se dos preconceitos vulgares que se infiltram sorrateiros em seus neurônios, os quais de modo algum estão submetidos a um controle central. O pensa­mento econômico hegemônico, sempre concentrado nos nexos aparentes, censura qualquer conceito que lhe pareça uma essência objetiva e o trata, quando chega a tolerá-lo, como mero recurso do entendimento subjetivo. Nesse registro, a teoria do valor trabalho pode ser vista, por exemplo, como uma conjectura que engendra proposições que não podem ser verificadas, confirmadas ou falseadas1.

Sem dúvida é difícil galgar as escarpas abruptas dos caminhos da ciên­cia. Em seu atual estágio de compreensão, a teoria do valor trabalho é en­tendida como lei cega de regulação do modo de produção capitalista que pressupõe tanto os movimentos do capital - e, assim, do trabalho morto e do trabalho vivo, entre os diversos setores e empresas que compõem o sis­tema econômico - como os movimentos aleatórios dos preços de mercado das mercadorias sob os mandos contrários da oferta e da demanda. Os quanta de trabalho abstrato, sob a forma dos preços de produção, funcio­nam, então, como centros de gravitação dos preços de mercado que osci­lam continuamente para cima ou para baixo de modo compensatório. Es­tes, por sua vez, embutem determinadas taxas de lucros de mercado, as quais servem de sinalização para a alocação de capital nas diversas esferas da produção. O resultado conjunto vem a ser lei de tendência à igualação das taxas de lucro dos diversos capitais. Essa regulação, entretanto, só ope­ra de modo pleno, em sua forma pura, em condições de livre concorrência, quando há igualmente plena mobilidade de capital e de trabalho. Isto re­quer, com o acentua Marx, pleno desenvolvimento dos mercados, inexistência de monopólios e de anomalias estruturais que costumam pre­ceder as grandes crises.

Na trajetória pessoal de compreensão da teoria do valor e do capital de Marx, o livro de Isaak Rubin, A teoria marxista do valor (RUBIN, 1980), as-

1 Segundo Blaug, por exemplo, “os marxistas estão profundamente comprometidos com o essencialismo filosófico para passar no corredor polonês do teste empírico [...] havendo desenvolvido um bom estoque de estratagemas imunizadores que protegem o marxismo contra qualquer profecia que falha em se materializar” (BLAUG, 1980, p. 259). As suposições de que o marxismo faz profecias e de que a sociedade humana pode ler leis imperativas testáveis empiricamente - e não leis de tendência que se manifestam historicamente - são, evidentemente, produtos de uma interpretação preconceituosa e pouco esclarecida.

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1 1INTRODUÇÃO

sim como os trabalhos de Ruy Fausto, tiveram papéis marcantes. Ainda que a leitura de O Capital já levasse a pensar de algum modo que o trabalho abstrato vem a ser uma abstração real, só foi possível apreender esse con­ceito com certa clareza e precisão, distinguindo-o do trabalho em geral e de sua representação subjetiva, assim como a determinação do seu momento histórico, depois de ler o texto “Abstração real e contradição: sobre o traba­lho abstrato e o valor” (FAUSTO, 1983, p. 89-138). A esse respeito, era preci­so compreender também que a própria teoria do valor decorre, em Marx, da necessidade de fundar o valor e que, lógica e materialmente - pressu­posta a produção de mercadorias - isto só pode ser feito pelo trabalho. Caso contrário, os preços de mercado apareceriam como determinados exclusi­vamente pela interação entre oferta e demanda, o que se configuraria como aprovação de uma tautologia e não, verdadeiramente, como elaboração de uma teoria científica. Ademais, convinha compreender por que Marx afir­mara que o trabalho abstrato era a substância do valor, o que dera um sen­tido objetivo e metafísico ao conceito, já que este era o modo de apreender no discurso científico a própria metafísica do capitalismo real.

Apesar do grande esforço para entender tudo isso durante bons longos anos de estudo, ainda assim pareceu - e foi escrito não faz tanto tempo assim - que o valor trabalho deixara de ser plausível na compreensão do modo de produção capitalista. Para esclarecer o problema é preciso exami­nar a questão da existência histórica do valor. E, novamente aqui, o texto de Ruy Fausto acima referido foi decisivo, ainda que mais recentemente.

Em resumo, portanto, é preciso ficar com as considerações que se se­guem. Antes do capitalismo, o valor não existe como tal, porque ainda não existiam as próprias condições de formação do tempo trabalho socialmen­te necessário na esfera da produção. Não tinham surgido ainda as condi­ções históricas que põem como indiferentes entre si os tempos de traba­lhos individuais empregados na fabricação de produtos para o mercado, ou seja, a produção orientada pelo capital industrial e submetida às condições da livre concorrência. Assim, antes do capitalismo o “valor”2 apenas podia- se formar ao nível das trocas por meio de uma síntese objetiva dos tempos

! Introduzem-se, nesse momento, aspas no termo valor para indicar que não se trata de valor plenamente constituído.

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1 2, ELEUTÉRIO PRADO-DESMEDIDA DO VALOR

de trabalhos individuais empregados na produção. Dito de outro modo, os tempos de trabalho consumidos na produção eram considerados de algum modo diretamente nos preços de mercado. Ademais, como se sabe, antes do capitalismo a produção ainda não era plenamente mercantil - a força de trabalho, por exemplo, ainda não era mercadoria. De forma abreviada, pon­do explicitamente a contradição, “isso significa que antes do capitalismo, o valor não é, mas que ao mesmo tempo ele é ” (FAUSTO, 1983, p. 112), ou seja, antes do capitalismo o valor está apenas em potência. O valor, pois, só pode existir no capitalismo.

Entretanto, a lei do valor, segundo a qual os preços de mercado têm de refletir, em média, o conteúdo de valor das mercadorias, não pode valer no capitalismo. Pois, se capitais iguais têm de ter lucros iguais, como diferem as composições orgânicas dos capitais investidos na produção, os preços de mercado têm de oscilar em torno de atratores (os quais Marx, como se sabe, chamou de preços de produção) que se desviam dos valores. Donde se pode concluir, novamente pondo a contradição explicitamente, que “o valor só é quando ele não é” (FAUSTO, 1983, p. 120), ou seja, que ele é apenas por meio da sua própria transformação objetiva em preços de produção. Ora, isto signi­fica que o valor - essência do modo de produção capitalista - é negado ao nível dos preços que são, como se sabe, fenômenos emergentes nos merca­dos, mas que se distribuem em torno dos próprios preços de produção. Mas, nesse caso, são os próprios capitais que comandam os montantes de mais- valia por meio dos quais se valorizam, ainda que para os capitais em conjun­to o total de mais-valia lhes seja dado.

No capitalismo, pois, o valor só existe como “valor”3; em seu lugar é posto como efetividade o preço de produção. Porém, essa conclusão não dissipa todas as nuvens que cercam este conceito, assim como a questão concernente à sua validade efetiva no interior mesmo desse modo de pro­dução. É preciso perceber, também, que o evolver desse conceito dentro do próprio capitalismo apresenta certas complicações. Em primeiro lugar por-

Introduzem-se novamente, nesse momento do texto, as aspas no termo “valor” para indicar que se trata agora de valor pressuposto ou valor antecedente ao preço de produção, ou ainda valor transformado em preço de produção. Desse momento em diante, o termo valor será sempre tomado nesse sentido fraco, ainda que não se vá empregar mais o recurso das aspas para não sobrecarregar em demasia o próprio texto.

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13INTRODUÇÃO

<|ii<■ as condições objetivas adequadas de formação do valor na produção só ocorrem, na verdade, na grande indústria capitalista, pois só aí, quando passa a valer o que Marx denomina de “princípio objetivo”, é que o capital passar a controlar plenamente o tempo de trabalho. E o faz submetendo a força de trabalho ao regime de produção inerente à lógica dos sistemas de máquinas. Aquém e além da grande indústria, a atuação da subjetividade dos trabalhadores, assim como aquilo que põem enquanto trabalham, cria obstáculos para a homogeneização dos tempos de trabalho. Ademais, as condições objetivas plenas para a redução dos tempos de trabalho indivi­duais a tempo de trabalho socialmente necessário (o que evidentemente depende da concorrência de capitais e da existência de mercados de força de trabalho irrestritos) apenas existem em condições de capitalismo de li­vre concorrência. É, pois, apenas em condições de capitalismo concorrencial que a lei do preço de produção - tal como se encontra no terceiro volume de O Capital - não encontra barreiras poderosas para se efetivar.

Sob as condições de capitalismo monopolista, as quais vieram a existir progressivamente após a grande depressão do final do século XIX (1873-1896), a tendência à transgressão da lei da igualação da taxa de lucro pelos capitais produtivos tornou-se uma realidade permanente desse modo de produção. Ademais, a grande indústria monopolista, em razão da grande escala, de seu amplo escopo e da utilização dos métodos de gerência científica, passou a criar diferenciações nos mercados de força de trabalho, as quais deram ori­gem, por exemplo, à chamada aristocracia operária. De acordo com a análise clássica de Hilferding (1981) Lenin (2003) e Bukharin (1984), o capitalismo monopolista constitui-se por meio da fusão do capital monetário com o capi­tal industrial e do espalhamento em rizoma da atividade bancária na ativida­de produtiva, ou seja, daquilo que ficou sendo chamado, nessa literatura, de capital financeiro. Eis, entretanto, que essa fusão vem mostrar que, nessa etapa, o capital monetário subordina o capital produtivo, mas se subordina de certo modo à sua lógica, já que tem por objetivo a busca sistemática de superlucros4, seja no espaço nacional em que se originou seja por meio da

1 Já está evidentemente em Marx a duplicidade entre a igualação da taxa de lucro e o prolongamento do superlucro, ou seja, uma unidade contraditória de tendência e de contratendência inerente à concorrência entre os capitais particulares. O que Lenin e os autores mencionados enxergam em sua época é o agravamento das condições em que ocorre essa contradição com o advento do capitalismo monopolista,

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exportação de capitais para o exterior, ou ainda pela pilhagem das matérias- primas. Em síntese, no que se refere ao problema da constituição da relação de valor, o capitalismo monopolista consiste na própria desmedida dos pre­ços de produção, desmedida esta que provoca crises de regulação no modo de produção - a grande depressão dos anos 1930, por exemplo -, as quais passam a demandar uma progressiva intervenção do Estado no balancea­mento do sistema econômico.

Com o advento do que será chamado neste livro de pós-grande indús­tria, após a profunda crise dos anos 70 do século XX, o capitalismo entra numa nova etapa que será caracterizada pela desmedida do próprio valor ou, dizendo de outro modo, pela negação da possibilidade de cristalização do tempo de trabalho socialmente necessário na produção de mercadori­as. Antes de prosseguir nesse tema é preciso registrar que nessa nova etapa manifesta-se também, até com mais intensidade, a tendência inerente ao capitalismo para separar a propriedade capitalista do capital em funciona­mento, assim como para distinguir a subclasse rentista da subclasse dos gestores do capital. Nesse sentido, afigura-se, ainda, correto pensar que o predomínio do capital financeiro na esfera econômica implica o predomí­nio da oligarquia financeira no comando da sociedade (LENIN, 2002, p. 45). Com mais intensidade, então, manifesta-se aquilo que já se sabia, ou seja, que o capitalismo não pode ser pensado apenas com base em sua lógica sistêmica. A chamada globalização neoliberal, diante do acicate da crise, foi impulsionada de modo evidente por uma contra-reforma política e institucional engendrada pelas elites dirigentes do centro do capitalismo mundial, com base na força dos Estados nacionais dominantes (BENSAÍD, 2003b, p. 47-64).

Sob as condições de capitalismo baseado na grande indústria mono­polista, ainda é válido dizer, tal como Marx o afirmou por referência ao capi­talismo de livre concorrência, que, “abstraindo a dominação dos preços e do movimento dos preços pela lei do valor, é, pois, absolutamente adequa­do considerar os valores das mercadorias não só teórica, mas também his­toricamente, como o príus [ou seja, como o predecessor] dos preços de

o qual passa a reclamar o fortalecimento do Estado nacional, o apoio imperialista no exterior e a lielicosidade que leva às guerras.

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15INTRODUÇÃO

produção" (MARX, 1983d, p. 138). Os tempos de trabalho, pois, estão lá na consliluição dos preços de produção, ainda que estes últimos estejam sis- Icmaticamente distorcidos pelo poder de monopólio dos grandes trustes, das grandes corporações. Eis que o mesmo ainda pode ser dito para o capi- lalismo baseado na pós-grande indústria, mas é preciso acrescentar algo: em razão do crescente conteúdo intelectual do trabalho, o valor encontra- se desmedido. Ao invés de um tempo de trabalho socialmente necessário na produção de mercadorias, o qual se formava objetivamente segundo a lógica de valorização do capital produtivo, agora se tem uma medida de tempo de trabalho abstrato até certo ponto arbitrária, que se torna depen­dente da arbitragem do próprio capital financeiro.

Nessa etapa, pois, não é mais verdade que o capital financeiro se cons­titua pela fusão do capital monetário com o capital produtivo, ou seja, com o capital que funciona efetivamente na produção; ao contrário, este passa a se definir pela repulsão do capital produtivo, pelo afastamento em relação à produção propriamente dita. Ora, isto se mostra ao nível da realidade efeti­va por meio da chamada terceirização, que deixa de ser um expediente da exploração para se tornar uma norma geral na produção capitalista. Desse modo, continua havendo a subordinação do capital industrial ao capital fi­nanceiro, mas a lógica de valorização que passa a predominar não é mais a do capital industrial, mas sim a própria lógica de valorização do capital fi­nanceiro. Da busca do superlucro na esfera da produção passa-se, então, à caça da renda financeira como forma por excelência da valorização. Ao invés de procurar comandar a produção para capturar lucros excedentes, o capital financeiro instala-se preferencialmente fora da produção, imprime o selo da propriedade privada na inteligência coletiva, para assim melhor po­der puncionar a mais-valia aí gerada.

Em conseqüência, a conclusão que se segue desses últimos parágrafos é que o valor trabalho, ainda que ele mesmo tenha sido cada vez mais su­primido dialeticamente pelo próprio capital, continua sendo absolutamente necessário para a compreensão da fase mais recente do desabalado de­senvolvimento do capitalismo. Nesse processo histórico, o próprio capitalis­mo foi perdendo também, cada vez mais, a sua regulação interna sistêmica, o que exigiu o desenvolvimento de uma regulação institucional sempre mais complexa. Passou, então, a usar e abusar da regulação estatal como com­plemento da regulação mercantil - algo, aliás, que fez com que parecesse,

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16ELEUTÉRIO PRADO - DESMEDIDA DO VALOR

pelo menos durante os 30 anos gloriosos que se seguiram à Segunda Guer­ra Mundial, um modo de produção civilizador. Finalmente, entretanto, após esse período que ensejou ilusões a respeito de sua própria natureza, nas últimas duas décadas do século XX o capitalismo tornou-se desmedido eco­nômica, social e ecologicamente. É assim que o capital torna-se hoje um sujeito absoluto no modo de produção capitalista e passa a anunciar, de modo delirante, o fim da história.

Os capítulos que se seguem foram produzidos originalmente como arti­gos independentes, em momentos diferentes nos últimos dois anos, mas com uma preocupação central, qual seja a de compreender o capitalismo contemporâneo. Daí que o leitor observará alguma repetição de certas idéi­as, cuja eventual eliminação estaria além das forças do autor, já que isto exigiria a redação de um texto inteiramente novo. Como aquilo que se apre­senta repetido vem a ser, principalmente, a apresentação de certos desen­volvimentos teóricos do próprio Marx, cuja interpretação tem sido muito controvertida, julgou-se que era melhor procurar apenas compatibilizar as idéias expostas nesses textos, deixando que cada um deles continuasse a ser uma unidade.

No capítulo 1 encontra-se uma crítica da crítica de Jürgen Habermas à teoria do valor de Marx - crítica esta que aquele autor desenvolveu com base na suposição de que a pacificação do conflito de classe ocorrida após a Segunda Guerra Mundial não teria sido nem aparente nem efêmera. No capítulo 2 trabalha-se uma crítica à noção de trabalho imaterial avan­çada e divulgada principalmente por Antonio Negri, argumentando-se que ela vem a ser já uma espetacular queda no fetichismo. No capítulo 3 dis­cutem-se as teses de André Gorz sobre o “capital humano”, o “capital in­telectual” e o “capitalismo cognitivo” , para mostrar que esse autor não as fundamenta corretamente com base na crítica da economia política de Marx desenvolvida em O Capital e nos Grundrisse de 1857-1858.

Nesses três capítulos, argumenta-se de diferentes maneiras que o modo de produção capitalista saiu da fase de grande indústria para in­gressar na fase de pós-grande indústria. Na grande indústria, tal como foi caracterizada por Marx em O Capital, a matéria por excelência da relação de capital eram os ativos tangíveis (sistemas de máquinas); na pós-gran- de indústria, a forma de capital mais importante passa a ser impressa so­bre os ativos intangíveis (ciência e tecnologia). Em conseqüência, tal como

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1 7INTRODUÇÃO

l<>1 previsto por Marx nos Grundrisse, procura-se mostrar aí que o capilal n^oru precisa apropriar-se não só do tempo de trabalho vivo, mas também il.i inteligência coletiva, e que isto é crucial para a compreensão do capi lalismo contemporâneo.

No capítulo 4, procura-se entender a relação existente entre a desmecli < la do valor e o desregramento do mundo, o qual se configura de modo cada vez mais evidente como emergência possível e real de catástrofes eco­nômicas, sociais e ecológicas. Para fazê-lo, parte-se de uma avaliação críti­ca do modo de organização da empresa pós-grande industrial, estudando o chamado “sistema de medição balanceado” (balanced scorecard) desen­volvido por Robert Kaplan e David Norton. Nesse capítulo busca-se chegar ao entendimento da crise social que se configura no século XXI e que apa­rece por meio da separação dos mercados de força de trabalho entre um mercado de força de trabalho que opera com a inteligência coletiva e um inercado de força de trabalho precária que ainda opera nas malhas da pe­quena indústria marginal e da grande indústria, localizadas cada vez mais, principalmente, no Terceiro Mundo.

No capítulo 5, trata-se da governança e da política do capital monopolista na etapa neoliberal. Desse ponto de vista, o neoliberalismo e a mundialização do capital não são pensados imediatamente como resultados da domina­ção do capital financeiro, mas como expressão da contradição entre o capi­tal e o trabalho na pós-grande indústria. De uma perspectiva histórica, o liberalismo clássico representa o momento da forma e da aparência da re­lação de capital; o liberalismo social (e a social-democracia) representa o momento do conteúdo e da essência dessa relação. Nesses dois casos pre­téritos, a contradição entre o trabalho e o capital é pressuposta - e oculta. Já o neoliberalismo representa o momento da posição (ou do afloramento) dessa contradição. Agora, é a própria contradição entre o trabalho e o capi­tal que se manifesta como tal, ainda que de um modo distorcido, na super­fície da sociedade.

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P a c if ic a ç ã o d o c o n f u t o de c la s s e s?

Introdução

Como se sabe, a chamada Escola de Frankfurt buscou apresentar uma teoria crítica do capitalismo apropriando-se de temas da herança marxista tais como ideologia, reificação, alienação, dominação, sem se concentrar, tal como Marx, nas leis de movimento do modo de produção capitalista, deixando de enfocar as formas de subordinação do trabalho ao capital e sem analisar os desenvolvimentos e os limites históricos da relação social de capital. Situando suas investigações no plano do mundo da vida social e cultural, Horkheimer, Adorno e outros procuraram apresentar uma teoria da sociedade abrangente e interdisciplinar, materialista e dialética, que se nutria de temas teológicos das tradições cristã e judaica tais como os da redenção do homem e da natureza e da reconciliação dos homens entre si e com a natureza (W1GGERSHAUS, 2002, p. 13-29).

Esse afastamento da temática econômica torna-se ainda mais expres­sivo na teoria sociológica de Habermas, autor considerado como o princi­pal sucessor e herdeiro dos primeiros teóricos críticos. Se aqueles mestres desenvolveram suas pesquisas sob as premissas, aí largamente implícitas, do trabalho como categoria sociológica chave, este último, com o objetivo de dar continuidade à crítica da modernização capitalista, passa a atribuir centralidade à linguagem e à comunicação.

Tal como Marx, Habermas move-se com base em um princípio normativo interno ao objeto de estudo. Nesse sentido, o primeiro autor toma o trabalho sem coerção como norma, para mostrar que a subordina­ção do trabalho vivo ao trabalho morto é a lei do modo de produção capi­talista. Para tanto, faz uma apresentação crítica da relação social de capi­tal, em que este aparece como um sujeito automático que se nutre do trabalho enquanto trabalho abstrato medido pelo tempo. A valorização do valor rebaixa o valor de uso e, assim, as condições de vida dos trabalha­dores, gerando um potencial de conflito que se traduz, no plano político, como luta de classes.

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20ELEUTÉRIO PRADO - DESMEDIDA DO VALOR

Habermas, por sua vez, desacredita o conceito de “capital como sujei­to”1, resultado da aplicação da dialética hegeliana à compreensão do modo de produção capitalista, e passa a enxergar uma pacificação do conflito de classe no capitalismo desenvolvido. Sob o impacto da efetivação histórica do regime de acumulação fordista, do keynesianismo e do Estado de bem- estar social, o amortecimento das lutas sociais, então observado nos países centrais, afigura-se para ele como permanente. Substitui, então, a duplicidade dialética valor/valor de uso pela dualidade estrutural sistema/ mundo da vida. Adota a comunicação sem entrave como princípio normativo inerente ao uso comunicativo da linguagem e trata de compreender as pa­tologias do mundo da vida devidas aos efeitos de colonização gerados pe­los sistemas econômico e estatal, ou seja, a ampla monetização e a vasta burocratização das relações sociais, inerentes ao capitalismo tardio2.

Em sua obra mais importante, Teoria da ação comunicativa, Habermas elege a sociologia como ciência social privilegiada porque ela trata da crise de um modo amplo e se preocupa com a sociedade como um todo. Descar­ta, assim, a economia política porque esta se transformara, sob o nome de economia, em uma ciência especializada que passara a se ocupar da esfe­ra econômica meramente como um subsistema da sociedade (HABERMAS, 1987b, p. 15-23). Ora, assim ele se atém à restrição de escopo praticado pela própria teoria econômica desde o aparecimento, no terceiro terço do século XIX, da teoria neoclássica, sem se conformar, é certo, com a sua transformação em mero saber sistêmico por meio da ocultação das rela­ções sociais de produção e da completa reificação dos agentes econômi­cos na esfera da circulação. Entretanto, ao abandonar o campo da crítica da economia política ele se despreocupa com as conexões centrais que

10 autor deste trabalho apresentou anteriormente uma visão favorável às teses de Habermas em detrimento das teses de Marx (PRADO, 1996). No presente capítulo, reavalia-se e se reformula essa visão anterior em face da agudização dos paradoxos do neoliberalismo e do pós-modernismo. Como já indicou na introdução, o autor considera hoje que a crítica da teoria do valor trabalho então apresentada estava fundamentalmente errada.2A teoria de Habermas é inspirada no período fordista e keynesiano da história do capitalismo monopolista

(1945-1975). Este, entretanto, é sucedido pelo período neoliberal (a partir de 1980). Nesse último, há uma clara reversão do Estado de bem-estar social. Observa-se, então, que muitas atividades estatais são mercantilizadas e privatizadas, a democracia torna-se publicitária, a tecnocracia econômica passa a orientar ideologicamente os discursos políticos e as ações do Estado, etc. (THERBORN, 1999). Diante desse quadro, a teoria de Habermas empalidece e torna-se algo ilusória no plano político.

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21PACIFICAÇÃO DO CONFLITO DE CLASSES?

existem entre a subordinação da produção à autovalorização do capital, a doulinação da classe trabalhadora pela classe capitalista e as crises econô­micas que se transformam em crises de ruptura social, todas elas, segundo Marx, inerentes ao capitalismo.

Havendo compreendido a esfera econômica como sistema auto-orga- nizado, com o objetivo explícito de preparar o terreno para fazer uma crítica da razão funcionalista, Habermas apresenta uma crítica da teoria do valor trabalho de Marx, buscando sopesar aquilo que acredita serem seus pontos lortes e suas debilidades. Ao invés de discutir a teoria do valor de Marx em seu próprio terreno, qual seja o campo de um saber dialético e científico, ele a apresenta criticamente em termos de uma teoria que conecta lingua­gens - ou seja, conjuntos de noções características - por meio de “regras que permitem traduzir enunciados sistêmicos (sobre as relações anônimas de valor) em enunciados históricos (sobre relações de interação entre clas­ses sociais)” (HABERMAS, 1987a, p. 475).

A “teoria de Marx” segundo Habermas

Habermas apresenta a “teoria de Marx” como um sistema duplo de co­nexões entre duas linguagens teóricas (indicadas pelas letras Lt) e duas lin­guagens observacionais (indicadas pelas letras Lo). As conexões menciona­das têm direção e são de dois tipos: regras de correspondência (indicadas pela letra C) e regras de tradução (indicadas pela letra T). Essas linguagens dispõem-se em dois níveis, um deles referente ao sistema econômico (indi­cado pela letra E) e um outro referente ao mundo da vida (indicado pela letra

V). Tudo se explica me­lhor com base no dia­grama ao lado

São exemplos de noções teóricas própri­as do sistema econômi­co (LtE): trabalho abs­trato, valor, capital, etc. Já as noções observa­cionais do sistema eco­nômico (LoE) englo-

LtE LoECe

Linguagens do Sistema Econômico

To

LtV LoV

Cv

Linguagens do Mundo

da Vida

LinguagensTeóricas

LinguagensObservacionais

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22ELEUTÉRIO PRADO - DESMEDIDA DO VALOR

bam as formas: ouro (como dinheiro), preço, meio de produção, etc. As no­ções teóricas relativas ao mundo da vida (LtV) abrangem: trabalho concreto, valor de uso, riqueza apropriável, interesse de classe, etc. Finalmente, as no­ções observacionais do mundo da vida (LoV) incluem: disponibilidade de trabalho, necessidades sociais, consumo de bens, ações de contestação, etc. Enquanto as categorias do sistema econômico constituem-se por abstrações reais ou por referências anônimas (sem sujeito), as categorias do mundo da vida são preenchidas por abstrações subjetivas ou por designações associa­das às pessoas, em princípio. Estas duas últimas são categorias da esfera da ação humana e, por isso, pressupõem intencionalidade.

É evidente, pois, que Habermas transforma um discurso que une no­ções contraditórias entre si e que é constituído, por isso, por unidades de sentido antitéticas, em uma dualidade de discursos conectados externa­mente por meio do que denomina de “regras de tradução”. Ele passa, pois, de um discurso dialético para um discurso do entendimento. Desse modo, onde Marx diz haver uma unidade de contrários (por exemplo, quando se refere a trabalho concreto e trabalho abstrato) Habermas enxerga sempre noções duais, contrárias, mas disjuntas, que expressam experiências diver­sas, mas relacionadas (o trabalho enquanto algo vivido pelos trabalhadores e o trabalho enquanto norma interna reguladora do sistema). É por isso que diz que a primeira dessas linguagens pressupõe uma atitude intersubjetiva ou hermenêutica de quem a emprega, enquanto a segunda se origina de uma atitude objetivante, característica de quem analisa cientificamente uma dada realidade. A partir dessa mudança de terreno, Habermas (1987a, p. 476) infere que “a estrutura da teoria marxiana pode ser caracterizada pela conexão que estabelece entre categorias da teoria de sistemas e categorias da teoria da ação”.

Marx, como se sabe, começa pela mercadoria. Conforme essa leitura, Habermas logo a define por uma conexão Tt, ou seja, como valor de uso e valor. Em seqüência, estabelece uma correspondência Ce entre valor e va­lor de troca (forma do valor). Traduz, depois, por meio de uma conexão To, a coisa que se apresenta agora como valor de troca em coisa útil a ser consumida, por exemplo, por um trabalhador. Finalmente, a correspondên­cia Cv estabelece a relação da coisa útil a ser consumida com o valor de uso em geral. A partir daquele começo, tem-se um momento crucial quando Marx apresenta a força de trabalho também como mercadoria - uma mer-

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23PACIFICAÇÃO DO CONFLITO DE CLASSES?

eadoria especial cujo valor de uso consiste em gerar um valor maior do que o próprio valor, ou seja, seu custo de reprodução.

Assim, a teoria do valor - e, por extensão, a teoria do valor que se valo­riza - que se encontra em O Capital consiste na apresentação das regras de tradução Tt e nas regras de correspondência Ce. Essas regras são o modo pelo qual as relações concretas de trabalho, travadas enquanto tais no âm­bito do mundo da vida dos trabalhadores, resultam em coisas produzidas - mercadorias - e em relações entre essas mercadorias reguladas de um modo sistêmico. Como se sabe, a norma interna ao sistema econômico que regu­la as relações de troca nessa teoria é dada pelo tempo de trabalho social­mente necessário para produzir as mercadorias (regra Tt); já as proporções efetivas em que são trocadas dependem da transformação dos valores em preços de produção e em preços de mercado (regras Ce).

Segundo Habermas, não se tem aqui, porém, apenas uma teoria eco­nômica, mas principalmente uma teoria crítica: a formação do valor como regulador sistêmico é ao mesmo tempo um processo de alienação dos trabalhadores; a transformação do produto do trabalho na forma de mer­cadoria gera fetiches; a valorização do valor que puxa o crescimento da produção, mas provoca crises, é ao mesmo tempo “uma dinâmica de ex­ploração que a objetivação e a anonímia tornam irreconhecível” (HABERMAS, 1987a, p. 478).

Ademais, acoplada com a teoria do valor, Marx apresenta também uma teoria da luta de classe no que chama de modo de produção capitalista e que responde, de certo modo, por uma reversão dos movimentos Tt e Ce, antes mencionados. Se antes se ia do mundo da vida para o mundo do sistema econômico, agora se vem deste último para o primeiro. No esque­ma apresentado, essa teoria é constituída, primeiro, por regras To que per­mitem traduzir enunciados sistêmicos sobre a acumulação de riqueza ma­terial e monetária, assim como sobre a repartição do valor adicionado como renda, em enunciados sobre as condições de vida e de luta das pessoas, famílias e classes sociais. Essa teoria é formada também por regras de cor­respondência Cc que permitem estabelecer relações entre essas condições concretas de subsistência e atuação e os pressupostos abstratos, internos ao mundo da vida, dos funcionamentos sistêmicos.

Conforme Habermas, também aqui se manifesta o caráter crítico do marxismo. De modo similar ao que foi possível afirmar sobre teoria do valor,

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24ELEUTÉRIO PRADO - DESMEDIDA DO VALOR

aqui também não se tem apenas uma teoria sociológica, mas uma teoria de intervenção na prática de luta em favor da vida e contra os imperativos sistêmicos. Esta prática, em si mesma, constitui-se espontaneamente, até certo ponto, num movimento de reversão da alienação dos trabalhadores, de desobjetivação das relações sociais fetichizadas, de aclaramento da na­tureza da relação de capital. Essa teoria crítica pretende contribuir para esse movimento de um modo revolucionário.

Eis, pois, como Habermas resume o que considera forte na teoria críti­ca de Marx:

[Em O Capital] os “excursos históricos” guardam com as “passagens econômi­cas” um sentido preciso. (...] Como o que permite a Marx passar do mundo da vida do trabalho concreto ao processo de realização econômica do trabalho abstrato é a teoria do valor, mediante esta mesma teoria ele pode também retomar desse plano de análise sistêmica ao plano da exposição da práxis coti­diana, formulada em termos históricos e em termos da teoria das classes, para apresentar à modernização capitalista a fatura de seus custos. A dualidade da linguagem da exposição teórica é aquilo que dá a essa concepção dialética, em que Marx força todavia uma unidade da teoria dos sistemas e da teoria da ação, o seu aguilhão crítico. (HABERMAS, 1987a, p. 478)

A apresentação de Habermas da teoria de Marx é, em suas próprias pala­vras, excessivamente estilizada. Se Hegel - nota - buscara mostrar a “verda­de” do Espírito por meio da apresentação progressiva de seus predicados, Marx segue um caminho semelhante, procurando referir-se agora à verdade do homem que ainda não é homem (livre, emancipado, etc.). Assim, em O Capital “a crescente compreensão conceituai, em seu conjunto, representa um progresso no descobrimento da verdade sobre o capital: esta verdade consiste em que o capital, como um todo, vem a ser algo ‘negativo’ e histori­camente mutável” (HABERMAS, 1987a, p. 479). Ora, como se sabe, o capital aparece aí como sujeito automático, relação social que domina; o homem, por sua vez, comparece apenas como suporte de relações sociais travadas cegamente, ou seja, como operário e capitalista.

Crítica das “debilidades de Marx”

Para Habermas, se a teoria de Marx tem o mérito de se mover tanto no plano do sistema quanto no plano do mundo da vida, tem o demérito de

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25PACIFICAÇÃO DO CONFLITO DE CLASSES?

apresentar esses dois planos como momentos inseparáveis de uma unida­de cle contrários, mantendo-se na dependência da Lógica de Hegel. Em conseqüência, o autor de O Capital compreende o capitalismo como um momento transitório e invertido numa história que começa e termina em formas de vida comunitárias, ou seja, que principia no comunismo primiti­vo e acaba no comunismo do futuro. Por isso, caracteriza esse momento de passagem, ora vivido em estado de exasperação, sobretudo pela falsidade da aparência:

Com efeito, tal como o jovem Hegel, Marx entende a unidade do sistema com o mundo da vida segundo o modelo unitário de uma totalidade ética dilacerada, cujos momentos, abstratamente separados, estão condenados a sucumbir. Sob essa premissa, o processo de acumulação desprendido de qualquer orienta­ção por valores de uso tem de se apresentar como aparência - o sistema capi­talista não é outra coisa do que a forma fantasmagórica de relações de classe que se tornaram anônimas e que se converteram em fetiche. [Para ele], a autonomização sistêmica do processo de produção tem o caráter de um en­cantamento. (HABERMAS, 1987a, p. 479)

Habermas está convencido de que a conexão dialética entre sistema e mundo da vida vem a ser uma primeira debilidade do pensamento de Marx, pois tal conexão leva a pensar que o sistema econômico e o aparato estatal não são mais do que formas mistificadas de relações sociais que se torna­ram anônimas, cujas existências podem ser suprimidas por atos revolucio­nários que instauram formas de vida verdadeiras.

Marx [...] tem em mente um Estado futuro em que esteja dissolvida a aparência objetiva que é o capital e em que o mundo da vida, atualmente prisioneiro dos imperativos da lei do valor, possa readquirir a sua espontaneidade. Prevê, as­sim, que as forças do proletariado industrial, tão logo se disponham a se revol­tar com essa situação, formem, sob a liderança de uma vanguarda ilustrada pela teoria, um movimento que se apodera do poder político com a intenção de revolucionar a sociedade: junto com a propriedade privada dos meios de produção, esse movimento destruirá os fundamentos institucionais dos meios de controle por meio dos quais se diferenciou a economia capitalista, fazendo com que o processo de crescimento econômico autonomizado retorne ao ho­rizonte do mundo da vida. (HABERMAS, 1987a, p. 481)

Ao conceber a sociedade organizada com base no modo de produção capitalista como totalidade ética dilacerada, Marx criou óbices para uma adequada compreensão da época moderna. Ora, segundo Habermas esse

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26ELEUTÉRIO PRADO - DESMEDIDA DO VALOR

modo de entender o capitalismo impediu a percepção das esferas sistêmicas emergentes com o capitalismo também como formas de integração social superiores, mais adiantadas, de um ponto de vista evolutivo, do que as socie­dades organizadas centralmente por meio do Estado. Seus seguidores não foram capazes de compreender que os subsistemas constituídos pela eco­nomia mercantil descentralizada e pela administração estatal moderna, re­gidos, respectivamente, pelo dinheiro e pelas formas de poder, não podiam simplesmente ser suprimidos sem regressão. Frente às expectativas revolu­cionárias vigentes em grande parte do século XX, Habermas lembra, então, que o prognóstico de Max Weber segundo o qual “o desmonte do capitalis­mo privado não significaria, de modo algum, a ruptura da jaula de ferro do moderno trabalho fabril” mostrou-se correto diante das evidências históri­cas proporcionadas pelo chamado socialismo real.

O erro de Marx provém, em última instância, do travamento dialético entre aná­lise sistêmica e análise do mundo da vida, que não permite uma separação suficientemente clara entre o nível de diferenciação sistêmica requerido pela modernidade e as formas específicas de classe que se institucionalizam nesse nível. Marx sucumbiu às tentações da idéia de totalidade de Hegel e construiu de modo dialético a unidade “sistema e mundo da vida” como um “todo falso”. De outro modo, não poderia ter-se enganado sobre o fato de que toda socieda­de moderna, qualquer que seja sua estrutura de classe, tem de oferecer um alto grau de diferenciação estrutural. (HABERMAS, 1987a, p. 481)

Habermas enxerga uma segunda debilidade na teoria de Marx e esta decorre do conceito de “coisificação” aí encontrado. A partir de uma pers­pectiva centrada na comunicação, tal como surge nos Manuscritos econômi- co-filosóficos ou em O Capital, o conceito de “coisificação” de Marx não per­mite, segundo ele, fazer uma distinção entre a destruição das formas tradici­onais de vida e a coisificação dos mundos da vida pós-tradicionais.

O conceito de “alienação” é uma constante nos escritos de Marx, mas ele mesmo não se mantém aí constante. Nos Manuscritos econômico-filo- sóficos de 1844 - Habermas menciona -, Marx faz a crítica do trabalho alie­nado com base em um modelo estético de ação transformadora do mun­do, em que o ato de produzir vem a ser, também, um ato de expressão do ser social do produtor. O trabalhador é pensado segundo o conceito do ar­tista que dá vida à sua obra e desenvolve, ao mesmo tempo, o seu próprio ser. A coisificação do mundo da vida do trabalhador resulta, pois, de seu

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27PACIFICAÇÃO DO CONFLITO DE CLASSES?

estranhamento diante de uma coisa social naturalizada, porque ele não a reconhece como sua obra.

Esse modelo, que carrega o peso do romantismo, não é, porém, man- lido em O Capital. Agora a tarefa consiste em fazer um estudo cientifica­mente mais preciso e abrangente do modo de produção capitalista. O mo­delo estético, por isso, não se mostra mais adequado à compreensão dos processos de trabalho e de produção, que se tornam cada vez mais domi­nados pela ciência. Nessa obra, a alienação consiste em que os homens comparecem na esfera da produção apenas como suportes de relações sociais não-transparentes e automáticas. A vida dos trabalhadores é instrumentalizada em função de um processo produtivo que eles não con­trolam, de tal modo que suas forças vitais encontram-se subordinadas, for­mal e materialmente, ao automovimento do capital. Ao invés de atuarem como donos das próprias vidas, eles são obrigados a agir como funções - órgãos parciais, apêndices de máquinas ou guardiães - dos processos pro­dutivos, alienando necessariamente a própria força de trabalho para o ca­pital. Marx fala, aqui, de um processo social em que as coisas são personi­ficadas e as pessoas são coisificadas.

Na opinião de Habermas, Marx fia-se aqui “num conceito de vida que permanece mutilada em suas possibilidades como conseqüência da viola­ção de uma idéia de justiça inerente ao intercâmbio de equivalentes”3 (HABERMAS, 1987a, p. 482). Ademais, esse conceito de “vida mutilada” não está bem amparado na realidade histórica da época moderna, configurándo­se por demais abstrato para se referir às possibilidades vitais que emergem com o desenvolvimento do próprio capitalismo. Permanece inevitavelmente ambíguo, porque não está fundado em um conceito de racionalização que afeta o mundo da vida quando suas estruturas simbólicas se diferenciaram para constituir os sistemas. A teoria do valor não oferece base alguma para compreender as coisificações do mundo da vida submetido às pressões es-

3 Como se sabe, Marx rejeitou explicitamente que a crítica desenvolvida em O Capital pudesse depender de uma idéia externa de justiça. “Falar de justiça natural [...] é um contra-senso. [...] As formas jurídicas [...] não podem, como simples formas, determinar esse conteúdo [das transações]. Elas apenas o expressam. Esse conteúdo é justo contanto que corresponda ao modo de produção que lhe seja adequado. E injusto, assim que o contradisser. A escravatura, na base do modo de produção capitalista, é injusta; da mesma maneira, a fraude na qualidade da mercadoria.” (MARX, 1983d, p. 256)

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28ELEUTÉRIO PRADO - DESMEDIDA DO VALOR

pecíficas dos imperativos sistêmicos. Assim, quando aplicado ao presente e ao futuro, não pode deixar de carregar um ônus saudosista:

A separação entre cultura, sociedade e personalidade também inflige dor àque­les que crescem nas sociedades modernas e aí desenvolvem sua identidade. Quando predominam as formas de vida pós-tradicionais, essa dor tem de ser considerada como individualização e não como alienação. No mundo da vida amplamente racionalizado, a coisificação só pode ser medida utilizando como critério as condições de socialização comunicativa em geral e não uma evoca­ção nostálgica, muitas vezes romanticamente idealizada do passado a partir das formas de vida pré-modernas. (HABERMAS, 1987a, p. 483)

Habermas aponta, ainda, uma terceira debilidade da teoria de Marx a qual ele considera decisiva. O conceito de “coisificação” que origina não é suficientemente amplo para apreender todas as formas de coisificação ob­servadas nas sociedades pós-tradicionais. Entretanto, mesmo sendo o valor trabalho um caso especial de subsunção do mundo da vida aos imperati­vos sistêmicos, ele se afigura nos quadros do marxismo clássico como ge­ral. Ainda que a luta de classes seja um motor fundamental no desenvolvi­mento do capitalismo, “os processos de coisificação não têm por que se apresentarem necessariamente só na esfera em que se originam - no mun­do do trabalho” (HABERMAS, 1987a, p. 483). Dado que ao sistema econômi­co encontra-se funcionalmente conectado um sistema estatal de ação ad­ministrativa, este último também pode ser uma fonte de processos de coisificação. “Daí que os âmbitos de ação formalmente organizados pos­sam deglutir os plexos comunicativos do mundo da vida por meio de am­bos os meios de controle, seja por meio do dinheiro seja por meio do po­der” (HABERMAS, 1987a, p. 483).

Não só como trabalhador, pois, o homem é coisificado no capitalismo - tomado este como modelo de sociedade sistemicamente complexa -: isto também ocorre quando atua como consumidor, como cliente dos serviços do Estado e com o cidadão que é objeto de decisões políticas. Em contraposição à lupa de aumento da teoria do valor trabalho que estreita o campo de visão, Habermas sugere que é preciso usar um óculo multifocal que permita enxergar não só a esfera da vida privada, ou seja, as relações de trabalho e de consumo, mas também a esfera pública, ou seja, as rela­ções de clientela administrativa e política. Menciona, então, a necessidade de considerar dois meios de controle: o dinheiro, como forma por excelên-

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29PACIFICAÇÃO DO CONFLITO DE CLASSES?

ela (lo valor, e as formas do poder; e quatro canais pelos quais o sistema econômico e o sistema administrativo estatal submetem o mundo da vida aos seus imperativos. Sem contestar o primado da dinâmica econômica na determinação do vir a ser da sociedade atualmente existente, Habermas (lí)87b, p. 485) considera necessário assumir teoricamente que “tanto a burocratização quanto a monetização, seja na esfera pública seja na esfera privada, podem gerar efeitos de coisificação”.

Segundo o próprio Habermas, sua teoria social está construída sobre um deslocamento filosófico: a crítica da sociedade é transferida do paradigma do sujeito para o da comunicação, e este deslocamento está na raiz das polêmicas discursivas que enceta contra as outras teorias, sejam elas convergentes, concorrentes ou mesmo opostas. Isto se observa em sua crítica da teoria do valor de Marx: segundo ele, esta teoria está centrada num modelo de ação que privilegia a atividade teleológica.

Marx não pode entender a metamorfose do trabalho concreto em abstrato4 como um caso especial de coisificação de relações sociais que devém por indução sistêmica, porque ele parte do modelo do ator que atua teleologicamente e que, ao perder a posse de seus produtos [na produção capitalista], vê-se tam­bém privado da possibilidade de desenvolver as potencialidades de seu ser. A teoria do valor encontra-se desenvolvida por meio de categorias da teoria da ação, de tal modo que obrigam a situar a gênese da coisificação abaixo do nível da interação e a tratar a deformação das relações de interação [...] como se fosse fenômeno derivado [...] da atividade objetiva de produzir5. [Ora, essa de­formação advém] da perda de seu próprio mundo experimentada pela ação comunicativa que agora se transformou em [um processo anônimo regido por um] meio de controle devido à própria exigência técnica imposta ao mundo da vida. (HABERMAS, 1987a, p. 484)

Crítica da crítica de Habermas

Assim como Max Weber - e diferentemente de Marx -, Habermas privi­legia a ação na compreensão da realidade social. A sociedade, segundo

4 Rigorosamente, há em Marx redução do trabalho concreto em trabalho abstrato, e não metamorfose ou mudança de forma.

5 Seria, obviamente, necessário dizer aqui que não se trata de produção em geral, mas de produção de mercadorias.

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30ELEUTÉRIO PRADO - DESMEDIDA DO VALOR

ele, é um processo de desenvolvimento que se constitui por meio do entre­laçamento de ações de indivíduos e de grupos que ocorre sempre numa dualidade de contextos: por um lado, os agentes compartilham intersubjetivamente um mesmo acervo de conhecimentos e, por isso, en- contram-se integrados num mesmo mundo da vida e, por outro, participam de sistemas de ação, ou seja, conjuntos articulados de relações sociais que seguem regras anônimas, as quais orientam e estabilizam os comportamen­tos e que garantem, assim, a própria reprodução da sociedade. No interior do mundo da vida, os indivíduos e os grupos atuam de algum modo como sujeitos comunicativos que buscam entendimento e acordo sobre coisas, normas e expressões que existem, respectivamente, no mundo objetivo, no mundo social e no mundo subjetivo; dentro dos sistemas, entretanto, que são funcionamentos passíveis de interferência, mas amplamente autôno­mos, os agentes transformam-se em funções, ou seja, em portadores de ações com sentido e lógica que são transcendentes à sua própria vontade e consciência. Dito de outro modo, eles perfazem ações com sentidos laten­tes, que não se revelam apenas por meio das intenções manifestas dos agen­tes e que mantêm um caráter adaptativo e conservador. Eis que os sistemas subsistem porque são capazes de aproveitar funcionalmente as conseqü­ências não-intencionais das ações intencionais daqueles que nele figuram como parte ou átomo.

Diferentemente de Weber, entretanto, Habermas admite que o mundo social possui toda uma dimensão significativa que não pode ser simples­mente reduzida às ações dos indivíduos. À medida que se configura como sistema, supõe que ele é atravessado por lógicas inconscientes e estrutu­rais que atuam e moldam os comportamentos individuais. Entretanto, essa atribuição de independência a um certo “inconsciente social” é feita e justificada de um modo metodológico:

Entretanto, a reprodução material da vida social não se reduz, nem sequer nos casos-limite, a dimensões tão abarcáveis, que possam ser entendidas como resultado pretendido de uma cooperação coletiva. Normalmente se efetuam como cumprimento de funções latentes que estão além das orientações de ação dos implicados. [...] Estas considerações, que se movem ainda dentro do paradigma “mundo da vida”, sugerem uma mudança de método e de perspec­tiva conceituai, isto é, convidam a conceber o mundo da vida em termos objetivantes, isto é, como sistema. [...] Em relação a esses “processos metabó-

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31PACIFICAÇÃO DO CONFLITO DE CLASSES?

licos” (Marx), o mais adequado é objetivar e objetificar o mundo da vida, consi­derando-o como um sistema que conserva os seus limites [...]. (HABERMAS, 1987a, p. 332)

Habermas chega aos conceitos “mundo da vida” e “sistema” movido pela ambição de construir uma teoria suficientemente ampla para abarcar tanto a reprodução simbólica quanto a reprodução material da sociedade. De modo característico, justifica seu enfoque dual por meio da necessidade de adotar perspectivas metodológicas diversas na apreensão de cada uma dessas esferas contextuais. Assim, ele apresenta sua teoria sociológica como construção subjetiva, como elaboração que funciona como instrumento intelectual e científico para o bom entendimento do objeto social em seus múltiplos aspectos. Ora, é precisamente por isso que se pode compreender o modo como Habermas reconstrói a teoria do valor de Marx, ou seja, como uma teoria do entendimento.

É assim que ele privilegia o conceito de “reificação” que, como se sabe, designa o processo pelo qual o mundo do homem, em que ele próprio está incluído, afigura-se para ele mesmo como um mundo de objetos estranhos, que lhe causa um sentimento de perda, insatisfação e aridez. E certo que a reificação se manifesta tanto como um estiolamento da subjetividade quan­to como uma imagem naturalizada do social; mas em nenhum dos dois casos é abandonada a percepção de que o efeito se dá na subjetividade, no vivido dos agentes. Isto se mostra, também, no modo pelo qual Habermas identifica o conceito de “reificação” com o de falsa consciência: “A falsa consciência, manifeste-se ela em forma coletiva ou em forma intrapsíquica, em forma de ideologias ou de auto-enganos, vê-se acompanhada de sinto­mas, de restrições, que os participantes da interação atribuem não ao en­torno, mas sim ao plexo mesmo da vida social e que, em conseqüência, experimentam com o uma repressão, ainda que não declarada.” (HABERMAS, 1987a, p. 333)

Para ser justo com Marx, para compreendê-lo de modo adequado, é preciso situar-se no plano da objetividade social, de um processo social objetivo que se pensa a si mesmo e que fala e age por meio de seus agentes (ou seja, de seus suportes) sem que estes o saibam. É preciso admitir, em conseqüência, que a própria realidade social é fisicamente metafísica, ou, ainda melhor, sensível suprasensível. É preciso supor que ela se constitui

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32ELEUTÉRIO PRADO - DESMEDIDA DO VALOR

em dois níveis conectados por uma relação de oposição, ou seja, por uma relação entre essência e aparência.

Acompanham-se aqui as interpretações de Ruy Fausto6. Nessa perspec­tiva, o pensamento de Marx está centrado no conceito de uma relação subs- tância-sujeito social que tem automovimento, desenvolve-se independen­temente da consciência dos agentes e que se manifesta sempre à consci­ência vulgar por meio da linguagem das mercadorias, de um modo fetichis­ta. Pois é este o modo pelo qual a essência se reflete na aparência, configu­rando objetos sociais animados ou quase-vivos. O conceito central para compreender a opacidade característica do modo de produção capitalista não é, pois, o de “reificação”, mas o de “fetichismo”, ainda que o conceito de “reificação” esteja presente de modo subsidiário. O pensamento de Marx está, assim, centrado na apresentação de uma relação social que é uma relação-sujeito, mas que se apresenta, de modo invertido, como relação de coisas, de tal modo que as formas sociais se identificam naturalmente como as matérias que lhes servem de suporte (isto é o fetiche).

Assim, Marx não pode ser compreendido e criticado, de modo rigoroso pelo menos, ignorando a dialética ou reconstruindo esta última como outra coisa. Habermas apresenta o pensamento de Marx em O Capital como o desenvolvimento paralelo de duas linguagens diferentes, uma característi­ca do mundo do sistema e a outra característica do mundo da vida, as quais são relacionadas por meio de regras de tradução. Para ele, essas duas lin­guagens são meramente diferentes, como se elas fossem, por exemplo, um dialeto alemão metafísico e um inglês pragmático, respectivamente. Como mostra Ruy Fausto a partir de referências do próprio Marx, há na dialética marxiana uma duplicidade de linguagens, mas a relação entre elas é de negação por redução. Há a linguagem da aparência que concerne aos valo­res de uso; há a linguagem da ciência que descobre os valores e os explica como substância constituída socialmente pela redução objetiva do traba­lho concreto ao trabalho abstrato. Mas há, ainda, uma linguagem que en­globa essas duas e que é a linguagem das mercadorias. Esta última unifica as anteriores, pois apresenta os valores (produto do trabalho abstrato) refle-

Em especial o texto “Dialética, estruturalismo, pré(pós)-estruturalismo”, in Fausto (1997).

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33PACIFICAÇÃO DO CONFLITO DE CLASSES?

tidos nos valores de uso (produtos dos trabalhos concretos) e o faz de um modo obscuro.

Ora, na reconstrução habermasiana o conceito de capital como valor t|ue se valoriza, como sujeito automático, como substância que é sujeito, desaparece de maneira sub-reptícia. Se isto, por um lado, permite-lhe valo­rizar positivamente o sistema econômico como um processo homeostático que desonera o mundo da vida de tarefas que ele não pode realizar, por outro, isto o leva a subestimar o potencial destrutivo do modo de produção capitalista. Este modo de produção, como mostrou Marx, tem de ser enca­rado sempre de uma maneira dupla: por um lado, ele permite um extraordi­nário desenvolvimento das forças de produção e a libertação do homem das condições de escassez; por outro, ele se desenvolve multiplicando as forças de destruição, com um custo social cada vez maior em termos de vidas humanas e de vidas humanas dignas. O modo de produção capital, como se sabe, promove a produção, mas sabota a eticidade.

Em busca das fraquezas de Habermas7

É certo que Marx considera o trabalho como uma categoria antropoló­gica válida de modo ilimitado historicamente. Também é certo que lhe atribui centralidade, enquanto trabalho subordinado ao capital, na com­preensão do modo de produção capitalista. Pois este último, quanto ao próprio fim que lhe é imanente, é um modo de acumulação de valor, mais- valia, tempo de trabalho excedente, sendo um modo de produção de va­lores de uso apenas enquanto meio para aquele fim. É certo, ainda, que o concebe como ação teleológica. Num trecho bem conhecido de O Capi­tal, Marx (1983a, p. 153) diz: “O processo de trabalho, apresentado em seus elementos simples e abstratos, é atividade orientada a um fim para produzir valores de uso, apropriação natural para satisfazer a necessida­des humanas, condição universal do metabolismo entre o homem e a Natureza, condição natural eterna da vida humana e, portanto, indepen-

’ A partir da ontologia social de Lukács, Antunes (2002) desenvolveu um modo de contrapor as concepções de Habermas e de Marx. Justamente por ficar na contraposição, não produz uma crítica efetiva de Habermas.

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dente de qualquer forma dessa vida, sendo antes igualmente comum a todas as suas formas sociais.”

Entretanto, não é certo que Marx tenha dado em exclusivo - tal como o faz Lukács - à posição do trabalho o caráter de momento de fundação do homem como ser social. Este último atribuiu, como se sabe, apenas ao ato de trabalhar aquilo que permitiu a passagem do homem como animal para o homem como ser social em si - ser este que vai se realizar na história e que tende a se tornar para si (LUKÁCS, 1979, p. 14-18). É bem possível, pois, que Marx tenha considerado o trabalho e a comunicação como elementos conjuntos do processo inicial de emergência do homem social. Eis que essa é justamente a opinião de Habermas, que lê na dialética de forças produti­vas e relações de produção a conexão lógica originária entre trabalho e interação lingüística.

Habermas demonstra essa tese em dois movimentos. Primeiro, co­mentando as Lições sobre a filosofia do espírito, mostra que é precisa­mente a relação entre trabalho e interação que determina o conceito de “Espírito” em Hegel. Segundo, retomando os Manuscritos econômico- filo­sóficos, lembra que, para Marx, o homem aparece na Fenomenologia do Espírito na figura mistificadora do Espírito e que o trabalho é aí entendido como a sua essência. Como prova, cita o próprio Marx: “A grandeza da fenomenologia de Hegel e o seu resultado final [...] é que Hegel compre­ende a autogeração do homem como um processo, a objetivação como conversão em objeto, como alienação e como supressão desta alienação; que, portanto, capta a essência do trabalho e compreende o homem obje­tivo, verdadeiro, porque real enquanto resultado do seu próprio trabalho.” (apud HABERMAS, 1987c, p. 41)

Para Habermas, entretanto, Marx não torna explícita a conexão entre trabalho e interação, pois funde essas duas noções no conceito de “práxis social” e, assim, absorve a ação comunicativa na ação instrumental. Como foi visto antes, essa conexão aparece na própria mercadoria enquanto for­ma elementar do modo de produção capitalista, por meio da duplicidade valor e valor de uso e em todos os seus desdobramentos lógicos. Mais do que isto, ela se manifesta no fato de que Marx procurou reconstruir a histó­ria da formação do homem com base na investigação das condições da produção e reprodução da vida social ao longo dos tempos. Nessa recons­trução, o desenvolvimento das forças produtivas responde pelo grau de

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dominação dos processos naturais; as relações de produção, por sua vez, indicam as estruturas institucionais dentro das quais as interações podem acontecer de um modo natural (não-comunicativo). Diante de todo esse travamento dialético de contrários, Habermas conclui que, na teoria de Marx como um todo, a “ação instrumental transforma-se em paradigma para a obtenção de todas as categorias; tudo se dissolve no automovimento da produção” (HABERMAS, 1987c, p. 42).

Nesse momento, em favor de Marx pode-se lembrar que sob as condi­ções atuais, em que necessidades reais ou ilusórias comandam ainda a vida humana em detrimento do entendimento, da autonomia e da liberdade, a ação comunicativa como tal encontra-se de fato negada na práxis social. Mais do que isso, pode-se aduzir que a racionalidade comunicativa encontra-se ainda aprisionada de fato nas malhas da racionalidade estratégica. Eis que essa consideração, além de justificar até certo ponto a limitação da teoria crítica recebida - a limitação está inscrita na própria história -, autoriza a pró­pria dialética das forças produtivas e das relações de produção, ou seja, a centralidade do trabalho, da produção e da economia política. Contudo, essa não é a posição de Habermas, que teme as conseqüências políticas de um uso determinista e obtuso dessa dialética. Daí que passe a reivindicar a ne­cessidade de considerar explicitamente a ação comunicativa, numa perspec­tiva reformista: “Hoje, visto que se tenta reorganizar os contextos comunicati­vos da interação, [...] temos razões suficientes para manter estritamente se­parados os dois momentos.” (HABERMAS, 1987c, p. 42)

A disjunção entre trabalho e interação modifica evidentemente o modo de enxergar o capitalismo e, em conseqüência, também a maneira de con­ceber seu destino histórico. É preciso entender o porquê.

Como se sabe, o próprio Marx estabeleceu a conexão entre sua dialética e a posição da revolução no horizonte histórico do capitalismo. Segundo Habermas, isto ocorreu porque Marx permaneceu prisioneiro do pensamento totalizante de Hegel. A filosofia da práxis, ao conceber a realização do ho­mem como um processo de reprodução referido a si mesmo, ou seja, como auto-realização, exigiu, por um lado, a fusão conceituai entre trabalho e interação e, por outro, a concepção da sociedade como um macro-sujeito cindido em classes antagônicas. O capitalismo, em particular, foi caracteri­zado pelo trabalho alienado (não-comunicativo) e pelo antagonismo entre a burguesia e o proletariado. A supressão dessa sociedade passou, então, a

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requerer a práxis revolucionária. Esta era necessária para interromper o processo de autovalorização do capital e para absorver os processos pro­dutivos - anônimos, dominados pelo fetichismo, etc. - dentro do horizon­te discursivo do mundo da vida. Com um adequado desenvolvimento das forças produtivas, assim que vencesse a revolução proletária o reino da liberdade - na forma da sociedade planejada - poderia emergir do reino da necessidade.

Ora, Habermas julga que esse modo de pensar foi desmentido pelos experimentos socialistas do século XX. Abandona, então, o modelo dialético de Marx, assim como a perspectiva da revolução como necessidade históri­ca. Mantém separados trabalho e interação e se despede de um conceito de devir que está baseado num movimento de grandes proporções e que se realiza na história. Adota uma noção descentralizada e pluralista de evolver histórico e propõe um novo modelo de compreensão sociológica da modernidade.

Nesse modelo, o mundo da vida é reproduzido por meio das ações co­municativas. Contudo, como as formas de vida concretas e as interpreta­ções da vida social são múltiplas e não podem ser “englobadas numa supertotalidade”, a transformação social não se configura como um pro­cesso de auto-produção, mas se apresenta como constante tecedura de uma rede de intersubjetividade por meio da linguagem. Neste modelo de compreensão sociológica, que Habermas desenvolveu diligentemente, res­ta como perspectiva política a possibilidade de construir, de um modo tam­bém reflexivo, mas difuso, o “Estado de bem-estar social”, por meio da domesticação não só da economia capitalista, mas também do sistema es­tatal complementar. O que se apresenta às forças sociais de transformação, pois, é um horizonte de reformismo democrático: “a força de integração social deveria poder afirmar-se contra [... ] o dinheiro e o poder” (HABERMAS, 2002, p. 505). Entretanto, é bom saber como esse horizonte se define.

São muito claras as restrições quanto ao lugar em que se pode preten­der chegar rumando para o horizonte habermasiano. Não há, segundo ele, possibilidade de intervir diretamente nos funcionamentos sistêmicos para modificá-los, com a intenção de obter um mundo da vida, enfim, descolonizado. Pois “a coesão auto-referencial imuniza os sistemas funcio­nais político e econômico contra a tentativa de intervenção, no sentido de uma interferência direta”. Em conseqüência, apenas se pode contar com a

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necessidade de legitimação e a sensibilidade às demandas externas dos próprios sistemas. Frente às palpitações e reclamos de um mundo da vida sem voz unificada, “as esferas públicas auto-organizadas teriam de desen­volver uma combinação prudente de poder e autolimitação inteligente” (HABERMAS, 2002, p. 506). Os sistemas estatal e econômico, eles mesmos, deveriam desenvolver mecanismos de autocontrole, de tal modo a respei­tar uma “formação democrática e radical da vontade”. Nada de derrui- mentos, apenas conflitos de fronteira entre as esferas do dinheiro, do poder e da solidariedade. O horizonte habermasiano não é um amanhecer radi­ante que anuncia a emancipação do homem, mas um entardecer enevoa­do e tristonho que apenas entreabre a possibilidade, fugidia, da comunica­ção não-distorcida8.

Curiosamente, Habermas tem plena consciência de uma certa fragili­dade de sua compreensão do capitalismo diante daquela que vem de Marx. Ele a apresenta do seguinte modo para desqualificá-la com base no adven­to de uma nova sociabilidade capitalista:

É óbvio que com tais considerações sequer tocamos a questão da qual partiu a filosofia da práxis. Enquanto deixarmos de estimar a reprodução material do mundo da vida, como ocorreu até aqui, sequer alcançaremos o antigo nível do problema. Marx escolhera o “trabalho” como conceito fundamental porque pôde observar como as estruturas da sociedade burguesa eram cada vez mais forte­mente marcadas pelo trabalho abstrato, isto é, pelo tipo de um trabalho assala­riado regulado pelo mercado, explorado de modo capitalista e organizado em forma de empresas. Entretanto, essa tendência enfraqueceu-se nitidamente nesse meio tempo. (HABERMAS, 2002, p. 483)

Como pensa que o trabalho abstrato tornou-se evanescente no capita­lismo, Habermas julga-se confiante para sustentar a plausibilidade de sua teoria de fraca potência para pensar - e induzir - uma transformação sereníssima da sociedade. Em que se assenta essa percepção de Habermas?

” Balakrishnan (2003, p. 120) assim se expressa sobre isso: “Em oposição à crítica da economia política que se concentra na exploração e emancipação da força de trabalho reificada, a norma da comunicação não- distorcida vem a ser o único horizonte realista para a melhoria das sociedades avançadas. Uma política assim informada deve ficar nos limites postos pelas ordens burocrática e do dinheiro, pois qualquer tentativa de superá-las por meio de um movimento de autodeterminação possível não faria mais do que cancelar as conquistas da racionalização social. [...] O núcleo que se pode salvar da política de emancipação não é mais do que um balanceamento civilizado entre dinheiro, poder e solidariedade.”

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No plano da argumentação teórica, ele confia sobretudo na tese tornada explícita por Offe (1989), segundo a qual o trabalho deixou de ser uma cate­goria sociológica chave no capitalismo contemporáneo. Os argumentos de Offe são variados, mas sua tese depende crucialmente de concepções do próprio Marx sobre a natureza da pós-grande indústria9, as quais foram de­rivadas dialeticamente a partir da natureza da grande indústria. Com a pro­gressiva absorção da ciência no processo de produção capitalista, chega um momento - momento da posição do intelecto geral - em que o valor tende a ser negado, ou seja, em que o quantum de trabalho abstrato, medi­do pelo tempo socialmente necessário, deixa de ser uma medida adequa­da à riqueza.

Num plano mais geral, ele se apóia, como foi visto na introdução, numa visão de pacificação dos conflitos de classe que se difundiu amplamente na fase de ouro do capitalismo, no pós-guerra. Essa visão rósea então se generaliza devido ao próprio conformismo instado pelo relativo sucesso do fordismo, do keynesianismo, enfim, do Estado de bem-estar social. Eis que ela, obviamente, não havia ainda recebido o impacto da crise do capitalis­mo e da reação neoliberal a partir dos anos 1970. Ainda que o conceito de Habermas de ação comunicativa possa ter um elemento crítico, ainda que possa ter um papel construtivo numa eventual sociedade pós-capitalista, ao ser aplicado apressadamente no julgamento tolerante das mudanças civilizadoras até certo ponto do pós-guerra e ao representar um abandono do campo da crítica da economia política ele se apresenta como a afirma­ção da comunicação num mundo não-comunicativo.

Em busca da força de Marx

Segundo Offe, o conceito de trabalho manteve uma posição central no pensamento sociológico tanto burguês quanto socialista, surgidos ambos a partir de meados do século XVIII; a sociedade moderna foi pensada como “sociedade do trabalho” nas construções sociológicas de autores tão diver-

D( ) termo pos-grande indústna” não é encontrado em Marx. Foi proposto por Ruy Fausto (2002) a partir de

uma interpretação criativa de textos dos Grundrisse, escritos pelo próprio Marx entre 1857-1858, com o lnluilo de abarcar a forma contemporânea de subsunção do trabalho ao capital.

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sos quanto Marx, Weber e Durkheim. Entretanto, ele deixou de ocupar essa posição no pós-guerra, pois a partir dos anos 1950 o trabalho deixou de ser uma categoria sociológica chave na compreensão do capitalismo. Offe jus­tifica essa tese por meio de uma argumentação que se eleva de três pólos: a pesquisa sociológica, a orientação ética da vida pessoal e a própria consti­tuição do mundo do trabalho.

Em primeiro lugar, Offe procura mostrar que a própria pesquisa social deixou de estar centrada no conceito de trabalho, a posição hierárquica no mundo do trabalho deixou de ser considerada como determinante princi­pal das formas de comportamento social, a dinâmica social deixou de ser pensada predominantemente a partir do conflito de classe. De modo notá­vel, as investigações orientadas para a compreensão da vida cotidiana e do mundo da vida passaram a buscar seus elementos explicativos em inter­pretações adquiridas fora do trabalho. Por outro lado, em segundo lugar ele observa que a ética do trabalho foi sendo cada vez mais abandonada como orientação subjetiva dos comportamentos sociais: ao nível da integração social o trabalho deixou de ser encarado como um dever, e ao nível da integração sistêmica deixou de ser tratado como uma necessidade. Final­mente, a partir da observação trivial de que a inserção nos mercados de trabalho e a participação nas atividades assalariadas tornaram-se cada vez mais heterogêneas e diversificadas, Offe introduz a suspeita de que o traba­lho não possa mais ser pensado como a determinação unificadora de uma classe social, ou seja, da classe daqueles que não possuem meios de pro­dução: “sintomas de heterogeneidade crescente colocam em dúvida se o trabalho assalariado dependente enquanto tal pode ainda ter um significa­do preciso e compartilhado pela população trabalhadora e seus interesses e atitudes sociais e políticos” (OFFE, 1989, p. 176).

Sob o impacto desse argumento de base empírica que carrega em si o pressuposto de que trabalho é meramente um gênero, a categoria trabalho perde aquele caráter de fundamento teórico da relação social de capital e se torna mera categoria estatística descritiva - tal como ele mesmo asseve­ra. Assim, o trabalho não pode mais ser concebido como algo que constitui uma medida socialmente efetiva decorrente da redução objetiva de traba­lhos concretos e heterogêneos a trabalho simples, homogêneo e abstrato. A dissolução do conceito de trabalho de Marx - que nunca se torna inteira-

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mente explícita no texto de Offe - culmina numa argumentação inconsis­tente, cuja raiz, entretanto, encontra-se em um desenvolvimento teórico da própria teoria do valor de Marx, que precisa, pois, ser retomado.

O ataque final à centralidade do trabalho e, no fundo, à categoria “va­lor” é feito mediante um apelo à distinção entre “trabalho produtivo” e “tra­balho como serviço”10. Segundo Offe, na sociedade pós-industrial emergen­te predomina o setor terciário em relação ao secundário, a geração de servi­ços em relação à produção de coisas, o trabalho intelectual" em relação ao trabalho manual. Ademais, o trabalho intelectual, que sempre requer um empenho subjetivo do trabalhador, não pode ser medido adequadamente pelo tempo gasto na estrita operação de trabalhar. Nas palavras de Offe, “a maior parte do trabalho desempenhado no setor ‘secundário’ [pode ser ava­liado] sob um denominador comum abstrato - o da produtividade técnica organizacional e da lucratividade econômica - [mas] esses critérios per­dem sua clareza (relativa) quanto o trabalho torna-se ‘reflexivo’”. Por um lado, o resultado do trabalho não é e não pode ser padronizado e, por outro, “falta um critério de eficiência econômica claro e indiscutível” (OFFE, 1989, p. 178-179). Antes de reconstruir a argumentação de Marx, é preciso dar expressão à principal conclusão de Offe, a qual pressupõe uma relação não- explicitada entre a medição do trabalho pelo tempo e a racionalidade cal­culadora inerente ao modo de produção capitalista: “É esta diferenciação dentro do conceito de trabalho que me parece constituir o ponto de apoio mais importante do argumento segundo o qual não se pode mais falar de um tipo de racionalidade basicamente unificado que organize e governe toda a esfera do trabalho.” (OFFE, 1989, p. 180)

Ora, ninguém melhor do que Marx prefigurou - com mais de cem anos de antecedência e de um modo estritamente teórico - o advento de uma

10 Marx criticou essa distinção porque ela é fetichista. A produtividade do trabalho no modo de produção capitalista não pode ser pensada independentemente da relação de capital, tendo por referência o conteúdo material do trabalho. Em conseqüência, Marx (1978b, p. 78) mostrou que ela chama a atenção para algo pouco relevante para o entendimento desse modo de produção, ou seja, para a questão de saber se o resultado do trabalho é visto como atividade (ou serviço) ou como coisa (ou bem).

" O termo intelectual refere-se aqui ao emprego do intelecto, mesmo que seja de modo bem rudimentar. Offe chama esse trabalho de “reflexivo” e o caracteriza como aquele que “processa e mantém o próprio trabalho”, pois “no setor de serviços, a produção é fundamentada conceituai e organizacionalmente” (OFFE, 1989, p. 178-179).

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etapa no desenvolvimento do capitalismo em que a geração de riqueza não poderia mais ser adequadamente medida pelo tempo de trabalho, já que passaria a depender crucialmente dos conhecimentos tecnológicos e cien­tíficos mobilizados, objetiva e subjetivamente, durante o tempo de traba­lho. Nos Grundrisse de 1857-1858, essa etapa encontra-se caracterizada como uma maneira de produzir historicamente nova que surgiria com o desen­volvimento da grande indústria (a ser chamada, por isso, de pós-grande indústria). No período da grande indústria, o tempo de trabalho é decisivo para a produção da riqueza, mas a grande indústria contém o gérmen de sua própria transformação:

O intercâmbio de trabalho vivo por trabalho objetivado, ou seja, a posição do trabalho social na forma da antítese entre capital e trabalho assalariado, é o último desenvolvimento da relação de valor e da produção baseada no valor. O pressuposto desta produção é, e segue sendo, a magnitude de tempo de traba­lho imediato, a quantidade de trabalho usada como fator decisivo na produção de riqueza. Todavia, à medida que a grande indústria se desenvolve a criação da riqueza efetiva torna-se menos dependente do tempo de trabalho e da quan­tidade de trabalho utilizada, passando a depender mais da capacidade dos agen­tes que são postos em movimento durante o tempo de trabalho, capacidade cuja eficácia não mantém nenhuma relação com o tempo de trabalho que a sua produção exige, mas depende antes da situação geral da ciência e do pro­gresso técnico, ou da aplicação da ciência na produção, (apud ROSDOLSKY, 2001, p. 354)

Diante dessa evidência textual, e em primeiro lugar, não se afigura como correta a suposição de Offe segundo a qual, em face de constatações histó­ricas observáveis no final do século XX, já teria ocorrido o passamento da teoria de Marx. Ao contrário, sem essa teoria não se podem compreender tais constatações adequadamente. As transformações do modo de produ­ção capitalista previstas por Marx, especialmente nos Grundrisse, ocorre­ram de algum modo na segunda metade do século XX e se tornaram paten­tes a partir da década de 70 desse século, de tal modo que essas constatações podem ser encaradas como confirmação das teses de Marx, e não como prova de sua negação.

É, pois, essa teoria que vem permitir entender melhor o sentido históri­co das transformações que estão ocorrendo na sociedade baseada no modo de produção capitalista. Como os saberes científicos e tecnológicos - ou

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seja, aquilo que Marx denomina de “intelecto geral” - são gerados princi­palmente fora do tempo de trabalho produtor de mercadorias, exigindo a mobilização de atributos do homem como a capacidade de argumentação, de reflexão e de comunicação, como o próprio tempo de trabalho requer cada vez mais a intervenção da ciência e da tecnologia, tem-se um ponto de partida sólido para compreender o declínio da “ética do trabalho”, a im­portância renovada do mundo da vida na determinação das características da vida social e os reflexos disso tudo na pesquisa social.

Para o próprio autor de O Capital, pois, com base em um desenvolvi­mento lógico de sua própria teoria, num certo momento do desenvolvimen­to do capitalismo o próprio valor se tornaria inadequado como medida da riqueza. Eis que é isto, precisamente, em face das evidências apresentadas ao conhecimento empírico contemporâneo, o que parece ter-se tornado realidade. Eis, também, que isto suscita imediatamente a seguinte questão teórica: o valor trabalho, ou seja, o trabalho abstrato e socialmente necessá­rio, que é medido pelo tempo, teria sido negado historicamente? Para enca­minhar uma resposta a essa pergunta é preciso ter em mente que se está na presença de um processo histórico de superação da contradição entre o valor e o valor de uso.

Enquanto o modo de produção for capitalista continuará sendo verda­de que é o trabalho vivo que acrescenta um novo valor ao valor dos meios de produção, e que é ele que transfere o valor destes meios de produção para o valor da mercadoria produzida, conservando-o. É importante notar e reforçar que, dada a natureza da relação de capital, esse valor continua na dependência do tempo de trabalho, mas que isto ocorre de um modo cada vez mais perturbado devido à transformação da produção em produção inteligente por meio da incorporação da tecnologia e da ciência. Na teoria de Marx, a relação de capital é subordinação do trabalho vivo ao trabalho morto, na forma de uma apropriação, como novo valor ou valor acrescido, do trabalho excedente em relação ao trabalho necessário. Aqui não se tra­ta de trabalho vivo em geral, mas do trabalho vivo enquanto efetivação da força de trabalho que, em razão da persistência histórica da propriedade privada dos meios de produção, é ela mesma obrigada a assumir a forma de capital variável. Enquanto persiste a produção capitalista, o tempo de trabalho atua na determinação do valor (ainda que seja como regra desre­grada ou como regra corrompida) e o valor transformado em preço de pro-

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PACIFICAÇÃO DO CONFLITO DE CLASSES?

dução continua subjacente à formação dos preços de mercado. Mas o valor não corresponde mais a um quantum de tempo de trabalho socialmente necessário, pois se torna qualitativo.

Como se sabe, uma das condições para que a concorrência possa ge­rar uma taxa geral de lucro é que os valores de uso sejam produzidos com base em tempos de trabalho socialmente necessários, nas diversas esferas produtivas. Eis, porém, que isto não mais ocorre na pós-grande indústria. Aí, a tendência ã equalização das taxas de lucro entre as esferas da produção e a repartição da massa global de mais-valia entre essas esferas não se dá em condições de livre concorrência entre os capitais. Os preços de produção tornam-se dependentes também da capacidade dos agentes que são pos­tos em movimento durante o tempo de trabalho. Eis que isto ocorre porque os capitais particulares se apropriam e têm de se apropriar privadamente do intelecto geral, com vistas à obtenção de poder e de rendas de monopó­lio. Nas condições do capitalismo da pós-grande indústria observa-se um afastamento persistente em relação às condições de concorrência. Nessas circunstâncias, a organização da produção afirma-se com o generalizadamente monopolista, as empresas buscam garantir seus gan­hos com base na diferenciação de produtos, no controle de mercados por meio de patentes, marcas, imagem, etc. de modo generalizado. A crescente importância dos direitos de propriedade intelectual no capitalismo contem­porâneo é um fato conhecido (PERELMAN, 2003).

A desproporção qualitativa entre o tempo de trabalho de produção e a riqueza produzida faz com que o valor de troca se torne inadequado como medida do valor de uso. Conforme o tempo de trabalho deixa de ser uma medida adequada da riqueza, o próprio capitalismo perde sua eficácia histórica no desenvolvimento das forças produtivas, principalmente de um modo extensivo. Eis que essa inadequação põe a necessidade histórica da negação do próprio valor e da produção baseada no valor, ou seja, a possibilidade do advento do socialismo. As palavras do próprio Marx são eloqüentes:

Nessa transformação, o que aparece como pilar fundamental da produção e da riqueza não é nem o trabalho imediato executado pelo homem nem o tempo em que este trabalha, mas sim sua força produtiva geral, sua compreensão da natureza e seu domínio sobre ela graças à sua existência como corpo social; em uma palavra, o desenvolvimento do indivíduo social. O roubo de tempo de

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trabalho alheio, sobre o qual se baseia a riqueza atual, torna-se uma base mise­rável, comparado com esse fundamento, recém-desenvolvido, criado pela pró­pria grande indústria. Tão logo o trabalho, em forma imediata, tenha deixado de ser a grande fonte da riqueza, o tempo de trabalho deixa de ser - tem de deixar de ser - sua medida; e o valor de troca [deixa de ser a medida] do valor de uso. O mais-trabalho da massa deixa de ser condição para o desenvolvi­mento da riqueza social, assim como o não-trabalho de uns poucos deixa de sê-lo para o desenvolvimento da potência geral do intelecto humano. Com isso desmorona a produção baseada no valor de troca, e o processo de produção material imediato despoja-se da forma de carecimento e antagonismo. Trata- se agora de desenvolver livremente as individualidades, e não de reduzir o tem­po de trabalho necessário, tendo em vista criar mais-trabalho; a redução do trabalho necessário da sociedade a um mínimo passa a corresponder à forma­ção artística, científica, etc., dos indivíduos, graças ao tempo que se tornou livre e aos meios criados por todos, (apud ROSDOLSKY, 2001, p. 354-355)

Ademais, não é certo que Marx - contra Lukács e Habermas - tenha considerado o trabalho como o meio por excelência de auto-realização hu­mana. Em O Capital, encontra-se um trecho em que a condição de emanci­pação do homem encontra-se no desenvolvimento da produtividade do tra­balho, mas a possibilidade de sua efetiva libertação situa-se apenas na vida fora e além do trabalho:

A riqueza real da sociedade e a possibilidade de constante expansão de seu pro­cesso de produção não dependem, portanto, da duração do mais-trabalho, mas de sua produtividade e das condições mais ou menos ricas de produção em que ela transcorre. O reino da liberdade só começa, de fato, onde cessa o trabalho determinado pela necessidade e pela adequação a finalidades externas; portan­to, pela própria natureza da questão, isso transcende a esfera da produção mate­rial propriamente dita. Assim como o selvagem tem de lutar com a Natureza para satisfazer suas necessidades, para manter e reproduzir sua vida, assim também o civilizado tem de fazê-lo, e tem de fazê-lo em todas as formas de sociedade e sob todos os modos de produção possíveis. Com seu desenvolvimento, amplia-se esse reino da necessidade natural, pois se ampliam as necessidades; mas, ao mesmo tempo, ampliam-se as forças produtivas que as satisfazem. Nesse ter­reno, a liberdade só pode consistir em que o homem social, os produtores as­sociados, regulem racionalmente esse seu metabolismo com a Natureza, tra­zendo-o para seu controle comunitário, em vez de serem dominados por ele como se fora por uma força cega; que o façam com o mínimo emprego de forças e sob as condições mais dignas e adequadas à sua natureza humana. Mas este sempre continua a ser um reino da necessidade. Além dele é que

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PACIFICAÇÃO DO CONFLITO DE CLASSES?

começa o desenvolvimento das forças humanas, considerado como um fim em si mesmo, o verdadeiro reino da liberdade, mas que só pode florescer so­bre aquele reino da necessidade como sua base. A redução da jornada de tra­balho é condição fundamental. (MARX, 1983e, p. 273)

Conclusão

Havendo apresentado a conexão oculta entre a teoria de Marx e a de Habermas (conexão referida no texto de Offe, mas não de um modo que faça justiça às contribuições de Marx), é o momento de discutir a afirmação deste último autor segundo a qual a dialética marxiana, prisioneira da no­ção de totalidade ética de Hegel, leva necessariamente à idéia da supres­são dos processos sistêmicos e da absorção das relações econômicas e de cidadania no mundo da vida. Antes de tudo, é preciso enfatizar que o mar­xismo de Marx não é um historicismo, não é uma teoria da história, mas uma apresentação da história que pressupõe logicamente uma crítica do capitalismo (FAUSTO, 1987). A dialética marxiana, com base nessa crítica, anuncia a ruptura possível do modo de produção capitalista, mas diz pou­co, como é bem sabido, tanto sobre o modo de transição do capitalismo para o socialismo quanto sobre as características do próprio socialismo de transição e do comunismo. Se há dúvidas e dificuldades sobre as configu­rações possíveis do novo modo de produção, a crítica não pode focar em primeiro lugar a dialética como tal, mas deve centrar-se nas pressuposições da crítica do capitalismo presentes na dialética marxiana.

Não se pode ir adiante nessas questões, pois, sem examinar os pressu­postos da crítica do modo de produção capitalista. O pressuposto central, como se sabe, é que as relações sociais de produção que caracterizam esse modo de produção, assim como suas expressões jurídicas, formam uma sociedade civil em que se descobre - não imediatamente - a exploração e, por isso, o antagonismo e a luta de classes. Na verdade, a sociedade civil capitalista está constituída, na aparência, por relações de contrato que ex­pressam a igualdade, a liberdade, a identidade dos contratantes e que re­querem a paz entre eles, apenas para que na sua essência prevaleça a desi­gualdade, a dominação, a contradição e a violência. Se esse modo de exis­tência social fosse apenas isto, ele não seria mais do que um estado bruto de natureza regulado apenas pela luta pela sobrevivência, não uma socie-

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dade. Os conflitos adquiririam aí, imediatamente, um caráter tão destrutivo que não permitiria qualquer nível de civilização. A sociedade civil capitalista, segundo Marx, está construída e se consolida sobre um fundo comunitário que se apresenta sob o nome de nação. Essa comunidade de cidadãos ex- pressa-se no Estado. Este último assume, por isso mesmo, a posição de guardião da aparência, fonte do direito, árbitro dos contratos, regulador do sistema, etc., quando contraditoriamente ele é, na essência, o defensor das conquistas do capital e dos capitalistas - ou seja, o capitalista coletivo.

As duas pressuposições fundamentais da crítica do modo de produção capitalista são, pois, a sociedade civil formada pelos proprietários privados e a comunidade dos cidadãos. A primeira delas está posta como tal na rea­lidade social, manifestando-se de forma invertida como igualdade de não- iguais, liberdade de não-livres, etc.; já a segunda é um implícito que só pode aparecer explicitamente de modo falso, como comunidade ilusória ou tota­lidade falsa (Estado). Da crítica do modo de produção feita sob esses pres­supostos originam-se a possibilidade e a necessidade de sua supressão, ao que não se chega e não se pode chegar por meio uma derivação puramen­te lógica. Eis que o capitalismo só pode cair por meio de ações políticas voluntárias que concebem metas, avaliam alternativas, escolhem caminhos e melhor delineiam os fins no processo de caminhar. Ora, ao pensar a pos­sibilidade e a necessidade da supressão do modo de produção capitalista Marx supôs que a comunidade implícita poderia vir a tornar-se explícita sem falsidade, ou seja, que ela poderia ser posta como tal. Para ele, o sistema de trabalho existente e que está construído sobre relações antagônicas de classe poderia ser suprimido e em seu lugar poderia vir a existir uma comunidade de trabalhadores livremente associados. É esta suposição que justifica a violência revolucionária - ou, mais do que isto, que faz dela um imperativo -, a qual tem por objetivo tomar o poder do Estado, abolir as relações anta­gônicas de classe, para que o próprio Estado possa desaparecer.

Para Marx, aquilo que viria após a revolução e após o socialismo de transição seria o comunismo, ou seja, um modo de organização da vida social transparente em que os antagonismos de classe estariam ausentes. Ora, isto se afigura inconsistente com a persistência dos mercados. Eis que esses sistemas homeostáticos, como hoje é preciso chamá-los, funci­onam com base em comportamentos atomísticos e auto-interessados que

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47PACIFICAÇÃO DO CONFLITO DE CLASSES?

(íStáo na origem da alienação e do fetiche12. Apesar disso, se não é certo (|ii<‘ Marx tenha previsto que as lógicas sistêmicas teriam necessariamen­te de ser suprimidas completamente na história, estabeleceu - e o fez de modo inequívoco - que a relação do homem social com a Natureza teria de ocorrer por meio de um processo cujos grandes rumos, ou seja, a lógi­ca de desenvolvimento e as grandes metas, estivessem sob seu controle consciente e planejado.

A questão que se apresenta hoje é, portanto, saber se a comunidade pres­suposta nas relações entre cidadãos pode tornar-se uma realidade no devir histórico da sociedade atualmente existente. Dizendo de outro modo: o co­munismo é atualmente uma possibilidade real? Ora, se o comunismo signifi­ca uma ampla supressão das relações sociais sistêmicas13, então ele não pa­rece mais possível. A experiência histórica de transformação pós-capitalista no século XX e o desenvolvimento do conhecimento científico a respeito dos sistemas complexos não permitem mais qualquer ilusão comunitária. Por outro lado, entretanto, uma inversão transformadora torna-se cada vez mais proe­minente: diante da situação atual, em que a dominação de classe limita e falseia a cidadania, é cada vez mais patente a possibilidade e a necessidade de limitar a propriedade privada, especialmente dos meios de produção, em função de uma verdadeira efetivação da cidadania. Na sociedade alternativa que se afigura como possível subsistiria, assim, uma pluralidade de posições e contrariedades de interesses, mas ela não poderia ser uma sociedade de classe baseada na exploração do homem pelo homem, uma sociedade fun­dada no antagonismo.

De algum modo, aquilo que pode vir a existir - é preciso chamá-lo de socialismo - tem de ser encarado atualmente numa perspectiva mais mo­desta quanto ao grau de transparência possível das relações sociais. O pro­blema central que pode ser enfrentado não é o da transformação da socieda-

12 Note-se, entretanto, que mercado é uma instituição genérica que pode ser consistente com uma diversidade bem grande de modos de produção. Tal como caracterizado neste texto, trata-se do mercado no interior do modo de produção capitalista. Historicamente, mercados existiram antes e existirão possivelmente depois do capitalismo.

13 Relações essas cujo travamento depende de meios, os quais na sociedade atual dão formas às relações sociais capitalistas, precisamente o dinheiro e as hierarquias de poder. Assim como os sistemas não precisam se basear nas relações sociais capitalistas, esses meios também podem diferir dos meios inerentes ao capitalismo.

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de moderna, com seus processos sistêmicos, em um mundo da vida unifica­do ou uma totalidade ética redimida, mas o da supressão (ou pelo menos neutralização) da relação de capital. Essa mudança estrutural é necessária para liberar as forças produtivas (que agora se configuram como “intelecto geral”) dos constrangimentos dessa relação social de dominação e, desse modo, possibilitar a realização do homem como sujeito da história. Liberá- las, porém, não para produzir mais e mais, mas para adequá-las às deman­das distributivas, ecológicas e éticas da sociedade (LÕWY, 1999).

Dado que dificilmente se pode argumentar hoje a favor da eliminação de todo o funcionamento sistêmico possível, dado que se sabe que sua complexidade não pode ser arbitrariamente reduzida sem regressão, o pro­blema que fica para o socialismo é saber como o movimento social orienta­do poderá construir um sistema econômico sem a relação de capital e um sistema de administração central que não esteja aí para recobrir relações de classe antagônicas. Apenas nessas condições - que ainda não existem - o discurso sobre a ação comunicativa, a ética do discurso, a democracia substantiva, etc., poderá ter um papel verdadeiramente positivo - por um lado, não apenas negativo ou crítico e, por outro, não apologético com rela­ção ao existente - na construção da sociedade.

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T r a b a lh o im a te r ia l e fe t ic h is m o1

Além ou aquém de Marx?

No livro Império, Michel Hardt e Antonio Negri definem trabalho imaterial como trabalho que produz, entre outras coisas, mas de uma maneira especial, serviços: “Como a produção de serviços não resulta em bem material e durável, definimos o trabalho envolvido nessa produção como trabalho imaterial - ou seja, trabalho que produz um bem imaterial, como serviço, produto cultural, conhecimento ou comunicação.” (HARDT; NEGRI, 2001, p. 311)

Em conseqüência, de modo preliminar, deve ficar claro que esses dois autores, ao empregarem o termo trabalho imaterial, estão se referindo ao trabalho que produz bens ou utilidades - e não ao trabalho abstrato, no sentido de Marx, que é a substância do valor. Obscuras permanecem ainda, porém, as razões e as conseqüências dessa opção teórica.

Em O Capital, Marx menciona uma certa preferência encontrada em textos econômicos por tratar da produtividade do trabalho no modo de pro­dução capitalista fazendo referência ao conteúdo material do trabalho. Hardt e Negri atribuem enorme importância ao que chamam de trabalho imaterial. Por isso, crêem importante fazer diferença entre trabalho que produz coisa útil e trabalho que gera imediatamente serviço útil. Pode ser surpreendente para alguns, mas Marx tratou do conceito de “serviço” com uma certa pre­cisão, pois ele, sem dúvida, é uma fonte de dificuldades e enigmas na pro­dução capitalista. Mesmo que, como se sabe, esta seja sobretudo produção de mercadoria, para esclarecer a questão é preciso começar pela produção enquanto produção em geral, de modo abstrato.

Segundo Marx, “serviço não é, em geral, senão uma expressão para o valor de uso particular [gerado] do trabalho, na medida em que este [valor de uso] não é útil como coisa, mas como atividade” (MARX, 1978b, p. 78).

' O presente capítulo foi publicado originalmente, como comentário, em Prado (2003). Em relação a essa versão, alguns poucos aperfeiçoamentos foram aqui introduzidos.

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Notando que o produto do trabalho é aqui entendido apenas como ri­queza material, um melhor esclarecimento dessa citação se faz necessário. Um consumidor que adquire uma calça compra uma coisa que lhe cobre certas partes do corpo ou paga o serviço particular de um alfaiate? A respos­ta encontra-se no próprio Marx: é indiferente para o consumidor comprar tecido e contratar um alfaiate para que este faça o serviço ou adquirir a calça pronta numa alfaiataria. Num caso, o serviço é visível para o consumi­dor, no outro ele está implícito na mercadoria pronta. Atividade e coisa pa­recem ser, pois, faces do mesmo processo.

Fazer a diferença entre atividade e coisa, porém, tem uma certa impor­tância. O doente que adquire os serviços de um médico não está compran­do também um corpo sadio, corpo este que o doutor consultado, de modo direto ou indireto, ajuda a produzir? É certo que o trabalho apresenta-se sempre, simultaneamente, como atividade e como resultado material. En­tretanto, uma calça é um valor de uso (ela é também mercadoria quando produzida para ser vendida), enquanto um corpo sadio não se configura como tal. Isto mostra que é preciso distinguir o caso em que o produto do trabalho é separável do próprio trabalho do caso em que isto não acontece. É por isso que os economistas designam por “serviço” o trabalho enquanto este é consumido como atividade e por “bem” o resultado do trabalho con­sumido indiretamente, por meio da mediação de coisas. Nesse segundo caso, a própria coisa é que é um valor de uso, mas no primeiro, o valor de uso é uma potencialidade da atividade que, aliás, desaparece assim que for efetivada, assim que for consumida.

Note-se, agora, que valor de uso pode ser material ou imaterial2. No primeiro caso, o caráter de útil advém de propriedades associadas à própria materialidade natural do resultado do trabalho e, no segundo, esse caráter depende do conteúdo informacional e cultural desse resultado. Tanto num caso como no outro, entretanto, o resultado do trabalho pode ser ou não algo que se separa do ato de produzir. Portanto, a diferença de materialidade não tem uma correspondência precisa com a diferença feita entre bem e serviço. Assim, por exemplo, corte de cabelo e música ao piano são servi-

2 *Fica-se aqui com os sentidos dados por Hardt e Negri a esses dois termos. E sabido, por outro lado, que

Marx engloba-os no conceito de “materialidade social” .

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ços (e não bens) e programa de computador e calça são bens (e não servi­ços). Entretanto, corte de cabelo é um produto material do trabalho, mas música não o é; programa de computador, por outro lado, é um produto imaterial do trabalho que existe, aliás, por meio de um suporte material (um disco de plástico ou metal), enquanto calça é claramente um produto material. Tudo isso torna já suspeito o uso da noção de trabalho imaterial feito por Hardt e Negri.

As noções de bem e serviço classificam os valores de uso, mas não contribuem para a compreensão do capitalismo como tal. Como se sabe, para tanto é preciso se ater à noção de mercadoria. Dito de outro modo, é preciso considerar o produto do trabalho enquanto forma da riqueza no modo de produção capitalista. Note-se, então, em primeiro lugar, que a na­tureza daquilo que é produzido, se vem a ser algo como calça e programa de computador ou se vem a ser algo como corte de cabelo e música, não convém à determinação da mercadoria como tal, pois mercadoria é ape­nas uma forma do produto do trabalho. Eis que, como forma, é até certo ponto independente do conteúdo; entretanto, quando o produto do traba­lho não é separável do próprio trabalho (ou seja, quando se trata de servi­ço), há uma inadequação da matéria do valor de uso à forma mercadoria, já que ela é atividade como tal e não existe, portanto, independentemente da compra e da venda, tal como ocorre no outro caso.

A distinção entre trabalho que produz valores de uso materiais ou imateriais pode ser importante para entender um problema que surge na expressão da contradição interna à mercadoria entre valor e valor de uso por meio da contradição externa a ela entre valor de uso e valor de troca. De início, na exposição de Marx, o valor é um quantum de tempo de trabalho abstrato; a forma do valor ou valor de troca estabelece uma relação de me­dida entre valores de uso distintos. Essa relação, pois, está fundada no tem­po de trabalho. Assim, toda riqueza no modo de produção capitalista, ou seja, toda mercadoria, tem de poder ser medida pelo tempo de trabalho socialmente necessário à sua produção. Entretanto, se uma parte importan­te do trabalho social torna-se trabalho espiritual, intelectual, moral ou artís­tico, do processo de trabalho e do processo de produção resultam valores de uso que não podem ser quantificados, para efeito de troca, apenas com base no tempo de trabalho. Em conseqüência, os valores de troca passarão

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a depender também dos diferenciais de qualidade postos pelo trabalho durante o tempo de trabalho.

Ora, isto não se constitui em boa razão nem para rejeitar o trabalho como categoria sociológica chave3 nem para modificar a teoria do valor de Marx, mesmo porque essa teoria prevê a própria vicissitude do valor numa fase avançada de desenvolvimento do capitalismo, quando o trabalho, de modo importante, passa a produzir valores de uso espirituais, quando os trabalhos concretos não podem mais ser reduzidos simplesmente a traba­lho abstrato e quando os serviços assumem amplamente a forma mercado­ria4. Isto requer, entretanto, uma aplicação de textos dos Grundrisse de 1857- 1858 à compreensão da história do capitalismo, questão esta que será reto­mada mais a frente.

Hardt e Negri consideram o trabalho não só como trabalho concreto, mas também como trabalho abstrato: “Da perspectiva de Marx no século XIX, as práticas concretas de diversas atividades laborais eram radical­mente heterogêneas: as artes da costura e da tecelagem envolviam ações concretas incomensuráveis. Só quando abstraídas de suas práticas con­cretas as atividades laborais poderiam ser reunidas e vistas de maneira homogênea, não mais como arte de costura e arte da tecelagem, mas como gasto de força humana de trabalho, como trabalho abstrato.” (HARDT; NEGRI, 2001, p. 313).

Note-se, entretanto, que o conceito de “trabalho abstrato” de Hardt e Negri não é o de Marx. Antes de tudo, porque trabalho abstrato em Marx não é trabalho em geral, ou seja, o gênero de muitos trabalhos concretos, mas trabalhos concretos reduzidos a trabalho abstrato. Hardt e Negri tratam

3 Trata-se de uma referência à conhecida proposição de Claus Offe contida no texto “Trabalho: a categoria sociológica chave?” (OFFE, 1989). A posição do trabalho como atividade central é inerente ao capitalismo. Ao se observar, principalmente nas sociedades capitalistas mais desenvolvidas, um deslocamento do foco das preocupações do tempo de trabalho para o tempo de não-trabalho (que pode ser tempo livre), isto anuncia, no nível das condições subjetivas, a necessidade e a possibilidade do socialismo.4 •*E verdade, entretanto, que Marx considerou a exploração capitalista dos serviços como algo insignificante

em sua época: “Em suma: os trabalhos que só se desfrutam como serviços não se transformam em produtos separáveis dos trabalhadores - e, portanto, existentes independentemente deles com o mercadorias autônomas. Ainda que se os possa explorar de maneira diretamente capitalista, constituem magnitudes insignificantes se comparados com o volume da produção capitalista. Por isso, deve-se fazer caso omisso desses trabalhos e tratá-los somente a propósito do trabalho assalariado, sobre a categoria de trabalho assalariado que não é ao mesmo tempo trabalho produtivo.” (MARX, 1978b, p. 76). Ora, é exatamente issoo que não se deve fazér ao se ter por referência o capitalismo contemporâneo.

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() trabalho abstrato no registro da abstração subjetiva, portanto, como gêne- i< >: “só quando abstraídas [...], as atividades laborais poderiam ser reunidas c vistas 1...]” . Mas, de um modo amplo, qual seria a qualidade comum que define tal gênero? Eles o dizem: o gasto de força humana. Ao passo que Marx o faz no registro da abstração objetiva: “um valor de uso ou bem pos­sui valor apenas porque nele está objetivado ou materializado trabalho hu­mano abstrato” (MARX, 1983a, p. 47).

Para Marx, como corolário, os diversos trabalhos humanos enquanto tra­balhos concretos mantêm-se incomensuráveis entre si na prática social; ade­mais, eles originam valores de uso diversos que também, enquanto tais, man­têm-se incomensuráveis entre si. Por outro lado, esses últimos são comen­surados pela mediação dos valores de troca ou dos preços. Ora, isto só é pos­sível porque os trabalhos humanos que produzem valores de uso como mer­cadorias encontram-se objetivamente comensurados no processo social. Pois são aí reduzidos, constantemente e de modo cego, “por trás das costas dos produtores”, a trabalho humano abstrato. É no universo das empresas capita­listas que os diferentes trabalhos são tratados como “gelatina de trabalho hu­mano”; aí quantidades heterogêneas de trabalho são somadas e subtraídas umas das outras como quantidades homogêneas. Em conseqüência, Marx tra­ta o trabalho no modo de produção capitalista como duplicidade coexistente e antitética: trabalho concreto e trabalho abstrato. É bem sabido, ademais, que o gasto de força humana é, para Marx, apenas a base natural do trabalho abstra­to e não o seu conteúdo, que é social.

É preciso registrar, agora, que Hardt e Negri caracterizam assim o traba­lho, de modo divergente com o de Marx, em razão de uma incompreensão teórica. A partir dela, trata-se então para eles de construir uma noção de trabalho adequada ao entendimento de uma mutação recente na história do capitalismo.

A característica fundamental do novo modo de produção parece consistir no fato de que a principal força produtiva vem a ser o trabalho técnico e científico, na medida mesmo em que é uma forma mais compreensiva e qualitativamen­te superior de trabalho social. Em outras palavras, o trabalho vivo manifesta-se acima de tudo como trabalho abstrato e imaterial (com relação à qualidade), como trabalho complexo e cooperativo (com relação à quantidade) e como trabalho continuamente mais científico e mais intelectual (com relação à for­ma). (HARDT; NEGRI, 1994, p. 279)

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Ora, o sentido da caracterização do trabalho nesse trecho depende da compreensão do trabalho abstrato como gênero, ou seja, como dispêndio de energia humana. O empenho de corpos, músculos, cérebros, etc., ga­nhou historicamente uma qualidade especial que o faz ter uma dimensão técnica e científica. É imaterial porque produz serviços e não bens. É abstra­to porque é bem genérico, aplicável em muitas situações. É complexo por­que requer muitas qualificações. É cooperativo porque exige sempre mui­tas interações. E intelectual porque depende especialmente da capacidade de raciocínio do cérebro humano.

Já foi visto que a noção de trabalho imaterial é equivocada. Mas não se examinou ainda a origem do problema, ou seja, por que, afinal, esses dois autores centram a caracterização do modo de produção capitalista recente no caráter concreto do trabalho? É evidente que assim podem falar de produ­tividade do trabalho de um modo que consideram conveniente para renovar a crítica do capitalismo. Mas por que esse modo vem a ser um problema? Ora, a resposta para essa questão é encontrada de forma explícita no velho Marx: “A mania de definir o trabalho produtivo e o improdutivo por seu con­teúdo material origina-se [...] da concepção fetichista, peculiar ao modo de produção capitalista e derivada de sua essência, que considera as determi­nações formais econômicas, tais como ser mercadoria, ser trabalho produti­vo, etc., como qualidade inerente em si mesma aos depositários materiais dessas determinações formais ou categorias.” (MARX, 1978b, p. 78)

Dito de outro modo, não se pode discutir a questão da produtividade do trabalho no capitalismo sem distinguir as formas que assumem as relações sociais que lhe são inerentes - relações estas que se dão por meio das coisas, das próprias coisas que, nas palavras de Marx, não são mais do que depositá­rios materiais das determinações formais. O fetichismo em que caem Hardt e Negri consiste em que raciocinam sobre o caráter da produtividade do traba­lho focando o resultado material do processo de produção. Como se sabe, segundo O Capital a condição necessária para que o trabalho seja produtivo no capitalismo é que ele produza valores de uso que tenham mercado, mas esta não é uma condição suficiente, pois é preciso também que ele produza mais-valia para o capital. Pouco importa aqui se o valor gerado está cristaliza­do em produtos materiais ou imateriais ou em produtos que têm existência separada ou não do ato de trabalhar. Não se deve esquecer, entretanto, de

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que a matéria adequada para o trabalho cristaliza-se numa coisa que têm i'xisténcia independente da própria laboração5.

Ora, tudo isto não faz mais sentido depois que o trabalho abstrato foi definido como gênero: “ [...] com efeito, trabalho produtivo não é mais ‘o que diretamente produz capital’, mas o que reproduz a sociedade - desse ponto de vista, a separação do trabalho improdutivo está completamente deslocada” (NEGRI, 1996, p. 157), ou seja, de algum modo toda e qualquer atividade que reproduz o mundo social existente é produtiva. Para eles, tra­ta-se de determinar o caráter especificamente criador e criativo do trabalho em geral, com base em uma renovação das análises de Marx que pretende ter superado suas limitações com o objetivo de compreender o capitalismo contemporâneo. Sua teoria do valor conteria “fraquezas, ambigüidades, fu­ros fenomenológicos e plasticidade limitada” por ter sido formulada no sé­culo XIX, tendo como referência o período manufatureiro, durante a primei­ra revolução industrial. Como base nesse diagnóstico, os autores então su­gerem que rigorosamente o valor não pode ser pensado como medida. De uma perspectiva pós-moderna, eles dizem, por isso, que há uma crise na lei do valor, já que “ [...] hoje o valor não pode ser reduzido a uma medida objetiva” (NEGRI, 1996, p. 151). A crítica procede como se o valor não fosse em Marx medida que tende constantemente à desmedida e que pode ser negado dialeticamente na história!6

Ora, o que importa acentuar aqui é que tais autores tratam o trabalho apenas como trabalho em geral (ou seja, trabalho concreto no mais amplo grau de generalidade), caindo, assim, em concepções fetichistas.

Aquém e além: história

Eis que esse modo de pensar o trabalho permite dividir a história do capitalismo em períodos a partir de uma classificação do próprio trabalho concreto e de seus produtos característicos:

5 Sobre essa questão, ver Ruy Fausto (1987, p. 247-257).

Em Hegel, a medida é unidade da qualidade e da quantidade; ao variar o quantum, muda a qualidade, altera-se a medida: “o desmesurado é primeiramente este andar de uma medida por meio de sua natureza quantitativa, mas além de sua determinação qualitativa. [...] [andar que] pode ser representado como progresso infinilo, como o suprimir e o restaurar da medida no desmesurado” (HEGEL, 1974, p. 91). A mudança

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Já se tomou comum ver a sucessão de paradigmas econômicos desde a Idade Média em três momentos distintos, cada qual definido pelo setor dominante da economia: um primeiro paradigma no qual a agricultura e a extração de maté- rias-primas dominaram a economia; um segundo no qual a indústria e a fabri­cação de bens duráveis ocuparam posição privilegiada; e um terceiro - e atual- paradigma, no qual a oferta de serviços e o manuseio de informações estão no coração da produção econômica. A posição dominante passou, portanto, da produção primária para a secundária e para a terciária. A modernização econô­mica envolve a passagem do primeiro paradigma para o segundo, da prepon­derância da agricultura para a da indústria. Modernização significa industrializa­ção. Podemos chamar a transição do segundo paradigma para o terceiro, da dominação da indústria para a dominação dos serviços e da informação, de processo de pós-modernização econômica, ou melhor, de informatização. (HARDT; NEGRI, 2001, p. 300-301)

O trecho citado é algo extenso, mas mostra de início duas coisas bem simples: primeiro, Hardt e Negri periodizam a história da produção capita­lista com base numa caracterização do trabalho produtor de valores de uso (trabalho que produz produtos naturais, trabalho que produz produtos in­dustriais e trabalho que produz serviços); segundo, o período recente é en­tendido como aquele em que domina a produção de serviços, ou seja, em que o trabalho é dito imaterial. O que não aparece de imediato aí, entretan­to, é que essa caracterização visa apresentar a predominância de distintas configurações de relações de poder na história da produção capitalista. E isto é central para Hardt e Negri.

Logo, mesmo se a noção de trabalho imaterial for enganosa, mesmo se a caracterização das épocas por meio do trabalho concreto for equívoca, ainda assim é preciso examinar as estruturas de poder cristalizadas na or­ganização do trabalho. Aqui, ao invés disso, tratar-se-á de formas distintas de subordinação do trabalho ao capital ao longo da história do capitalismo, quais sejam a manufatura, a grande indústria e a pós-grande indústria.

Hardt e Negri, a partir de Foucault, recobrem esses dois modos de pro­dução com os conceitos de “sociedade disciplinar” e “sociedade do contro­le”, respectivamente. Sociedade disciplinar é

da qualidade conforme se altera o quantum, entretanto, a partir de certo ponto pode gerar uma medida distorcida, imprópria e arbitrária, ou seja, uma regra desregrada. Assim, por exemplo, a área plana é uma medida adequada da superfície de um lago se não há quase vento, mas ela se tornará largamente inadequada em face de uma grande ventania.

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[...] aquela na qual o comando social é construído mediante uma rede difusa de dispositivos ou aparelhos que produzem e regulam os costumes, os hábitos e as práticas produtivas. Consegue-se pôr para funcionar essa sociedade e as­segurar obediência a suas regras e mecanismos de inclusão e/ou exclusão por meio de instituições disciplinares (a prisão, a fábrica, o asilo, o hospital, a uni­versidade, a escola e assim por diante) que estruturam o terreno social e forne­cem explicações lógicas adequadas para a “razão” da disciplina. (HARDT; NEGRI,2001, p. 42)

Sociedade de controle, por outro lado, é

[...] aquela (que se desenvolve nos limites da modernidade e se abre para a pós-modernidade) na qual mecanismos de comando tornam-se cada vez mais “democráticos”, cada vez mais imanentes ao campo social, distribuídos por corpos e cérebros dos cidadãos. Os comportamentos de integração social e de exclusão próprios do mando são, assim, cada vez mais interiorizados nos pró­prios súditos. O poder agora é exercido mediante máquinas que organizam diretamente o cérebro (em sistemas de comunicação, redes de informação, etc.) no objetivo de um estado de alienação independente do sentido da vida e do desejo de criatividade. (HARDT; NEGRI, 2001, p. 42)

Ora, por mais interessante que seja toda essa caracterização, da qual emergem duas formas sociais de estruturação do poder no capitalismo, ela permanece externa ã produção. Ademais, ela não consegue mostrar os pro­cessos de gênese de tais formas, primeiro, de uma forma anterior para a sociedade disciplinar e, depois, desta última para a sociedade do controle. Conseqüentemente, essa caracterização também não permite prefigurar a forma social que as substituirá historicamente. Hardt e Negri atribuem es­ses defeitos ao estruturalismo de Foucault, “um método que efetivamente sacrifica a dinâmica do sistema, a temporalidade criativa de seus movimen­tos e a substância ontológica de reprodução cultural e política” (HARDT; NEGRI, 2001, p. 47). Em conseqüência, para eles Foucault não consegue apreender o movimento histórico das relações sociais no capitalismo. É por isso que se atém à produção.

Antes disso, note-se que Foucault foi cobrado por fazer um tipo de críti­ca social, baseado na descoberta das injunções do poder, que não pode justificar seus fundamentos normativos (HABERMAS, 2002, p. 387). Nessa aporia não caem aparentemente Hardt e Negri, já que procuram permane­cer no horizonte da teoria do valor de Marx. O princípio normativo contido nessa última, como se sabe, é interno ao próprio modo de produção capita-

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lista, mas será possível perceber que o mesmo não ocorre com aquele im­plícito na reformulação de Hardt e Negri.

Para reenviar a análise de Foucault para a esfera da produção, esses dois autores recorrem a marxistas italianos, conhecidos pelo nome de operaístas, que pensaram o capitalismo atual a partir dos conceitos “intelectualidade de massa” e “intelecto geral”. Como esse último conceito se encontra nos Grundrisse de Marx, isto autoriza e requer uma volta ao próprio Marx, com o objetivo de verificar se toda essa nova teoria mantém- se intacta e se, assim, os mil platôs do Império permanecem sólidos, ou, contrariamente, se eles ficam abalados. Se este último for o caso, terão es­ses dois autores direito ao reconhecimento como renovadores do pensa­mento crítico contemporâneo?

Antes disso, é preciso observar uma conseqüência importante dos de­senvolvimentos teóricos de Hardt e Negri:

[...] em cada forma de trabalho imaterial a cooperação é totalmente inerente ao trabalho. O trabalho imaterial envolve de imediato a interação e a coopera­ção sociais. Em outras palavras, o aspecto cooperativo do trabalho imaterial não é imposto e organizado de fora, como ocorria em formas anteriores de trabalho, mas a cooperação é totalmente imanente à própria atividade laborai. Esse fato põe em questão a velha noção (comum à economia clássica e à eco­nomia política marxista) segundo a qual a força de trabalho é concebida como “capital variável”, isto é, uma força ativada e tornada coerente apenas pelo ca­pital, porque os poderes cooperativos da força de trabalho (particularmente da força de trabalho imaterial) dão ao trabalho a possibilidade de se valorizarem. Cérebros e corpos ainda precisam de outros para produzir valor, mas os outros de que eles necessitam não são fornecidos obrigatoriamente pelo capital e por sua capacidade de orquestrar a produção. A produtividade, a riqueza e a cria­ção de superávits sociais hoje em dia tomam a forma de interatividade coope­rativa mediante redes lingüísticas, de comunicação e afetivas. Na expressão de suas próprias energias criativas, o trabalho imaterial parece, dessa forma, for­necer o potencial de um tipo de comunismo espontâneo e elementar. (HARDT; NEGRI, 2001, p. 315)

Eis, pois, aonde chegam esses autores a partir da noção de trabalho imaterial. Em primeiro lugar, concluem que a subsunção do trabalho ao capital tornou-se puramente externa ao processo de trabalho e, em conse­qüência, arbitrária. Inferem daí que não subsiste a distinção entre capital constante e capital variável na pós-grande indústria, mesmo se os trabalha-

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dores continuam vendendo sua força de trabalho para os capitalistas, o que, nos termos de Marx, caracteriza a subsunção formal do trabalho ao capital. Como o trabalho coletivo tornou-se para eles “comunicativo, afetivo e imaterial” e, assim, cooperativo em si e por si mesmo, deduzem também que a produção enquanto tal tornou-se potencialmente comunista, mesmo se o modo de produção ainda continua sendo capitalista. Tudo isso precisa ser examinado com cuidado.

Nem aquém nem além

Para tratar de modo rigoroso das questões que preocupam Hardt e Negri- e eles discutem efetivamente questões da maior importância para a com­preensão do capitalismo avançado - é preciso retornar aos conceitos de “subsunção formal” inerente à manufatura e de “subsunção real” caracte­rística da grande indústria, ambos apresentados por Marx em O Capital (MARX, 1983a). Em particular, é necessário dedicar maior atenção ao con­ceito de “intelecto geral” discutido nos Grundrisse (FAUSTO, 2002, p. 110- 151; ROSDOLSKY, 2001, p. 345-361). Finalmente, é requerido um esforço de compreensão da subsunção do trabalho ao capital na pós-grande indústria.

Em O Capital, como é sabido, Marx apresenta explicitamente dois mo­mentos lógicos do modo de produção capitalista: a manufatura e a grande indústria. No plano da história, a manufatura predomina, grosso modo, de meados do século XVI até o último terço do século XVIII. A partir de então, vai-se tornar dominante a grande indústria. Ainda que não tenha feito qual­quer previsão sobre o encerramento do período histórico da grande indús­tria, Marx anteviu aí - e de modo muito mais explícito nos Grundrisse - a possibilidade lógica de uma mutação do modo de produção, na qual o tra­balho deixaria de estar subordinado materialmente ao capital. Hoje, pode- se dizer que o período da grande indústria abrange, grosso modo, apenas os primeiros dois terços do século XX e que, a partir de então, o capitalismo entrou num período em que assoma a pós-grande indústria, ou seja, o modo de produção em que a principal força produtiva é a inteligência coletiva.

A partir de considerações de Ure sobre fábrica automatizada e auto­crática do século XIX, em O Capital Marx distinguiu uma caracterização correta da aplicação capitalista da maquinaria e uma incorreta, mas que poderia designar um mundo ainda inexistente, embora possível: “Numa, o

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trabalhador coletivo combinado ou corpo social de trabalho aparece como sujeito transcendental e o autômato mecânico como objeto; na outra, o pró­prio autômato é o sujeito e os operários são apenas [seus] órgãos conscien­tes coordenados e subordinados [...]” (MARX, 1983b, p. 40).

Em conseqüência, seguindo a interpretação de Ruy Fausto, faz-se aqui distinção explícita entre três formas de subsunção do trabalho ao capital, as quais mantêm entre si relações de gênese lógica, mas que também se fo­ram sucedendo na história do capitalismo. O motor desse processo é a luta constante entre o capital e o trabalho, numa polarização em que o primeiro busca constantemente aumentar a taxa de valia absoluta e relativa e o se­gundo, individual e coletivamente, procura resistir à exploração. Sob o im­pulso do movimento de autovalorização do capital, por intermédio da con­corrência entre capitais particulares, é pela via da penetração da ciência e da tecnologia nos processos de produção que se definem as transforma­ções e a trajetória histórica do modo de produção.

Na manufatura, a subsunção do trabalho ao capital é apenas formal. Ela ocorre, então, de um modo formalmente voluntário, já que o trabalha­dor, para poder subsistir, tem de optar por depender economicamente do capitalista. As formas de subsunção anteriores, como a escravidão e a ser­vidão, eram involuntárias, pois estavam baseadas em relações de estratificação social, diretamente políticas. Agora ela se torna, ademais, ba­sicamente econômica, porque o trabalhador cai nessa condição porque precisa vender sua força de trabalho ao dono das condições de trabalho, ou seja, ao capitalista.

Na manufatura, o processo de trabalho, ainda que semelhante às práti­cas produtivas preexistentes, torna-se subordinado ao processo de autovalorização. As atividades de laboração dos trabalhadores em conjun­to - ou seja, a cooperação entre eles - passam a ser coordenadas pelo capi­talista, que assume as funções de dirigente e condutor do processo de pro­dução. O próprio trabalho, ainda que cada vez mais parcelado pela divisão das tarefas nas oficinas manufatureiras, guarda uma característica funda­mental do trabalho artesanal, pois requer o empenho da subjetividade do trabalhador durante a atividade produtiva. “A execução continua artesanal e, portanto, dependente da força, habilidade, rapidez e segurança do traba­lhador individual no manejo de seu instrumento.” (MARX, 1983a, p. 269) Na

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manufatura, a divisão do trabalho encontra-se regida pelo princípio subjeti­vo segundo o qual o processo de trabalho tem de estar adaptado ao traba­lhador. É este, pois, que detém os saberes tecnológicos mobilizados na pro­dução, os quais pertencem ainda ao seu mundo da vida social e cultural. Enquanto este princípio vigora, ele dificulta ou impede a entrada dos co­nhecimentos científicos nos processos produtivos, que são gerados agora, cada vez mais, autonomamente.

Na grande indústria, a subsunção do trabalho ao capital torna-se, além de formal, material. Se no modo de produção anterior o processo de tra­balho era ainda artesanal, dependente do mundo da vida do trabalhador, agora ele é transformado em sua natureza para se conformar às necessi­dades objetivas do processo de valorização do capital. O aparecimento das máquinas-ferramenta rouba do trabalhador o controle do processo de trabalho. A divisão de trabalho deixa de estar governada pelo princípio subjetivo para passar a ser regida por uma lógica objetiva inerente ao pró­prio sistema de produção baseado em máquinas. Antes o trabalhador empregava os instrumentos de trabalho, agora ele é empregado pelos meios de trabalho. A produtividade cresce rapidamente. A produção pas­sa a se dar em grande escala; as forças produtivas atingem alto grau de socialização; a produção pela produção torna-se condição necessária do prosseguimento da produção.

Para Marx, a subsunção do trabalho ao capital, sendo formal e materi­al, é também real. Ela se reproduz por meio de um contínuo revolucio- namento dos processos de trabalho com base na adoção e difusão de ino­vações tecnológicas poupadoras de trabalho, principalmente. Essas inova­ções permitem a redução dos preços e a extração de mais-valia relativa. O próprio modo de produção torna-se adequado ao capital, configurando-se como especificamente capitalista. O processo produtivo fica cada vez mais moldado pela aplicação consciente dos conhecimentos científicos. Estes últimos são apropriados pelo capital e aplicados na construção de siste­mas automatizados, compostos por muitas máquinas coordenadas, que funcionam sob a administração do capitalista. Os trabalhadores são sepa­rados da tecnologia e rebaixados, tornando-se meros elementos conscien­tes de autômatos inconscientes, os quais têm vida própria porque estão animados pelo processo de autovalorização. Eles se transformam, nas pa­lavras de Marx, em apêndices das máquinas e dos sistemas de produção.

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62ELEUTÉRIO PRADO - DESMEDIDA DO VALOR

As máquinas e as fábricas, por sua vez, guardam em seus potentes corpos a alma vampírica do capital.

A caracterização da pós-grande indústria depende de uma interpreta­ção de parte dos Grundrísse, obra escrita mais de cem anos antes que sur­gisse plenamente a realidade histórica que lhe corresponde. Dados os obje­tivos deste capítulo, não se poderá fazer aqui uma leitura aderente ao texto original, condizente com seus passos e obediente a seus termos. Diferente­mente, é preciso combinar uma leitura conceituai, intencionalmente fiel aos escritos de Marx, com uma apresentação atualizada de seus conteú­dos, com base no material histórico mais recente. O que se segue mantém- se dentro desse espírito, observando-se, entretanto, que aqui se pensa a transição para o socialismo de um modo diferente daquele implicitamente adotado por Marx nos textos dos Grundrísse. Concorda-se com Ruy Fausto (2002) quando ele caracteriza a pós-grande indústria pela subsunção for­mal e intelectual do trabalho ao capital e não apenas pela subsunção for­mal, tal como Marx7.

Na pós-grande indústria, o grau de aplicação da ciência na produção e na organização da produção desenvolveu-se tanto que o trabalho posto a serviço das máquinas tende a desaparecer; agora, ele se transforma e se torna trabalho de supervisão. Conforme Marx, com o desenvolvimento das forças produtivas na grande indústria chega um momento em que a cria­ção da riqueza deixa de depender fortemente do tempo de trabalho para resultar principalmente da ação dos conhecimentos científicos que são mobilizados durante o tempo de trabalho. Isto muda o caráter do trabalho. Nas palavras dos Grundrísse, “o trabalho não aparece mais até o ponto de estar incluído no processo de produção, mas o homem se relaciona antes como guardião e regulador do próprio processo de produção” (apud FAUSTO,2002, p. 130).

Na grande indústria, como se viu, o trabalho perde sua matriz subjetiva e a máquina incorpora a ciência e a tecnologia em sua estrutura - no dizer

1 Diz Fausto: “se é verdade que Marx não afirma que com a pós-grande indústria (e antes da revolução) possa haver verdadeira libertação, ele supõe nesse estágio o fim da subordinação material do trabalho ao capital. Entretanto, poder-se-ia perfeitamente dizer que com as novas máquinas não desaparece a subordinação material [...] Diria que pode haver uma espécie de subordinação intelectual (ou espiritual) do trabalho ao capital.” (FAUSTO, 2002, p. 136)

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TRABALHO IMATERIAL E FETICHISMO

do Marx, o capital apropria-se da ciência e cria autômatos. Já na pós-grande industria, o dominio dos processos naturais e artificiais que a ciência possibi­lita estão agora incorporados em algoritmos ou programas de computador, que sao instalados dentro ou ao lado do corpo das máquinas. Assim, as má­quinas e os sistemas constituidos por máquinas tornam-se inteligentes. Em conseqüência da própria natureza do processo produtivo, que se vai livrando pouco a pouco dos trabalhadores, o trabalho que o vigia - sem com ele se imiscuir - volta a ganhar um momento subjetivo. Pois, passa a pôr em prática durante o tempo de trabalho aqueles conhecimentos que são adquiridos fora do tempo de trabalho. Esses conhecimentos que se encontram em parte den­tro das cabeças dos trabalhadores e em parte nas próprias máquinas são momentos de um todo altamente complexo de saberes científicos, tecnológicos e produtivos que Marx chama de intelecto geral.

Com a pós-grande indústria tende a desaparecer a subsunção materi­al característica da grande indústria, mas tem continuidade a subsunção formal do trabalho ao capital, pois o trabalhador ainda vende sua força de trabalho para o capitalista que dela retira trabalho (o valor de uso da força de trabalho). O tempo de trabalho é agora, entretanto, um tempo qualita­tivamente diferenciado que não pode ser controlado apenas pelo relógio. Em razão mesmo dessa mudança do modo de trabalhar, o capital tem de passar a comandar não apenas o tempo de trabalho, mas também o tem­po de não-trabalho, que se torna menos livre. Já na fase fordista da grande indústria, o capital passara a controlar o trabalhador também enquanto consumidor, desenvolvendo a chamada indústria cultural. Agora, ele tem de passar a controlar o trabalhador não apenas como trabalhador e con­sumidor, mas também como político, religioso, profissional, etc., de um modo que tende a ser total.8

8 Em particular, o capital tem de passar a dominar e a controlar a produção dos conhecimentos científicos e tecnológicos, seja por meio da criação de departamentos de pesquisa nas próprias empresas, seja criando empresas especializadas de pesquisa, seja subordinando de fora as universidades e centros de investigação, formalmente independentes, por meio do controle das verbas de pesquisa. Assim, também, as atividades criadoras de subjetividade e geradoras de cultura são incorporadas à produção capitalista. Essa mudança qualitativa é assim expressa por Bolaño: “ [...] agora, o que vive é um processo duplo de subsunção do trabalho intelectual, inclusive o cultural e o artístico, e de intelectualização generalizada dos processos de trabalho convencionais, de modo que as energias que o capital procura extrair do trabalhador são fundamentalmente mentais e não mais essencialmente físicas” (BOLAÑO, 2002, p. 66).

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64ELEUTÉRIO PICADO - DESMEDIDA DO VALOR

Aquém e além: confrontos

Hardt e Negri tratam o trabalho na pós-grande industria como comu­nicativo, afetivo e expressivo, determinações concretas que são enfeixadas na noção de trabalho imaterial. A essa noção encontra-se associada ain­da, como se viu, a idéia de que a cooperação tornou-se imanente ao pro­cesso de trabalho e que, portanto, a dominação capitalista tornou-se total­mente externa e arbitrária em relação à produção. Para eles, a coopera­ção no trabalho “não é mais imposta ou organizada de fora”, tal como ocorria na manufatura e na grande indústria. Ora, admitindo que a subsunção do trabalho ao capital na pós-grande indústria tenha-se torna­do apenas formal - o que está de acordo com as concepções de Marx nos Grundrisse -, a questão é saber se isto é consistente com as conclusões dos dois autores aqui discutidas.

Eis que a subsunção formal - ou seja, a forma de subordinação que nas­ce do fato de que os trabalhadores vendem sua força de trabalho para os representantes do capital por não deterem a propriedade dos meios de pro­dução - caracteriza o capitalismo como um todo. É, nas palavras de Marx, a forma geral de todo o processo capitalista de produção. Em conseqüência, o processo de trabalho é organizado, conduzido e dirigido pelos representan­tes do capital, com o objetivo de transformar o dinheiro aplicado no processo de produção em mais dinheiro. Logo, a idéia de que a cooperação no traba­lho “não é mais imposta ou organizada de fora” eqüivale, no quadro teórico do “marxismo” de Marx, à negação do próprio modo de produção capitalista. Por capitalismo, diferentemente do autor de O Capital, Hardt e Negri enten­dem uma forma de subordinação da classe dos trabalhadores à classe dos capitalistas que chamam de “biopolítica”. Essa subordinação - ou sociedade do controle - caracteriza-se por envolver todos os aspectos da produção e da reprodução da vida, para além das determinações econômicas.

O poder só pode adquirir comando efetivo sobre a vida total da população quan­do se torna função integral, vital, que todos os indivíduos abraçam e reativam por sua própria vontade. Como disse Foucault, “a vida agora se tornou objeto de poder”. A função mais elevada desse poder é envolver a vida totalmente, e sua tarefa primordial é administrá-la. O biopoder, portanto, refere-se a uma situ­ação na qual o que está diretamente em jogo no poder é a produção e a repro­dução da própria vida. (HARDT; NEGRI, 2001, p. 43)

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65TRABALHO IMATERIAL E FETICHISMO

O conceito de “biopolítico” pode ser visto como uma extensão do con­ceito de “intelecto geral” que se fez necessário para pensar a subordinação como um todo do corpo de trabalho social à organização do capital, a qual também chamam de capital social e de biopoder. Julgando que o conceito de “intelecto geral” acentua apenas os aspectos intelectuais e comunicati­vos da atividade produtiva, criativa e criadora, da sociedade como um todo (que denominam também de multidão), eles passam ao conceito de “biopolítico”, incluindo aí, além dos anteriores, os aspectos da “produtivida­de dos corpos e o valor dos afetos”.

Viu-se, anteriormente, que a ciência e a tecnologia na pós-grande in­dústria, enquanto potências dominadoras da natureza, tornam-se potênci­as objetivadas nas unidades de produção baseadas ainda, essencialmen­te, em máquinas. As considerações de Marx nos Grundrísse sobre esse aspecto são percucientes e devem ser comparadas com as de Hardt e Negri: “O desenvolvimento do capital fixo indica até que ponto o saber social uni­versal, knowledge, tornou-se força produtiva imediata e por isso as condi­ções do processo social de vida e ele próprio caíram sob o controle do general intellect e são criados conforme a ele. [Indica] em que grau as forças produtivas sociais são produzidas não só na forma da ciência, mas como órgãos imediatos da práxis social, do processo de vida real.” (MARX apud FAUSTO, 2002, p. 134)

A interpretação desse trecho é crucial para o desenvolvimento deste arti­go. O sistema de máquina na pós-grande indústria passa a ser dominado por uma compreensão científica da natureza, ou seja, pelo intelecto geral. O au­tômato produtivo deixa de ser propriamente um objeto artificial, matéria me­ramente transformada pelo homem, para se transformar em um objeto inte­lectual. Nas palavras de Fausto, “é o logos - mas logos da natureza assimilado pelo intelecto - que é posto no processo de produção” (FAUSTO, 2002, p. 134). Disso resulta uma conseqüência importante obtida pelo próprio Fausto: “Com isto, a ruptura entre trabalho vivo e trabalho morto é relativizada, a máquina passa a ser uma espécie de força de trabalho (intelectual), no sen­tido de que ela não necessita mais (quase) nenhum trabalho para ser vivificada. O autômato é agora autômato espiritual, não simplesmente autô­mato ‘vivo’. Passa-se do conceito de vida, ou da vida como conceito (cf. a Lógica de Hegel), ao conceito de espírito.” (FAUSTO, 2002, p. 134)

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66ELEUTÉRIO PRADO - DESMEDIDA DO VALOR

Nesse último texto diz-se que o trabalho morto e o trabalho vivo tor­nam-se até certo ponto indistintos no período da pós-grande indústria, por­que ambos são agora portadores do intelecto geral que se tornou uma força ativa no processo de produção. Ora, no trecho de Hardt e Negri anterior­mente citado, eles dizem algo bem diferente, ou seja, que não se pode mais fazer distinção entre capital variável e capital constante, porque a criação de valor seria obra exclusiva do poder cooperativo da força de trabalho, independentemente do capital. Ocorre que o termo capital variável designa a força de trabalho comprada pelo capitalista enquanto forma, ou seja, en­quanto uma das duas formas básicas do capital produtivo à disposição do processo de produção capitalista. Igualmente, o termo “capital constante” designa os meios de produção, não em si mesmos, mas somente também enquanto forma, ou seja, enquanto a outra forma do capital produtivo, antitética à primeira. A força de trabalho, ao contrário do que pensam Hardt e Negri, não gera valor enquanto força de trabalho, mas apenas enquanto forma do capital. Segundo Marx, o capitalista organiza a produção porque comprou o uso da força de trabalho e, assim, transformou-a em capital va­riável; segundo Hardt e Negri, ocorre o contrário, ou seja, o capital é variável porque o capitalista detém a “capacidade de orquestrar a produção”. Ora, independentemente da relação social de capital, aquém e além do capita­lismo, a força de trabalho só pode gerar valores de uso. Dito de outro modo, esses dois autores atribuem capacidade de produção de valor à força de trabalho independentemente de suas determinações formais. Isto mostra novamente o caráter fetichista das suas concepções.

É certo que nessas novas condições a produção da riqueza passa, para Marx, a depender da ciência e da tecnologia mobilizadas durante o tempo de trabalho:

[...] Mas à medida que a grande indústria se desenvolve, a criação da riqueza efetiva torna-se menos dependente do tempo de trabalho e do quantum de trabalho utilizado do que da força dos agentes que são postos em movimento durante o tempo de trabalho [...], os quais, eles próprios - sua poderosa efetividade (powerful effectiveness) por sua vez não tem mais nenhuma rela­ção com o tempo de trabalho imediato que custa a sua produção. [A criação de riqueza efetiva] depende antes da situação geral da ciência, do progresso da tecnologia ou da utilização da ciência e da técnica. [...] O roubo de tempo de trabalho alheio sobre o qual repousa a riqueza atual aparece como base mise­rável diante dessa base que se desenvolve pela primeira vez criada pela própria

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67TRABALHO IMATERIAL E FETICHISMO

grande indústria. Logo que o trabalho em forma imediata deixa de ser a grande fonte da riqueza, o tempo de trabalho deixa e deve deixar de ser a sua medida c por isso o valor de troca [deve deixar de ser a medida] do valor de uso. (MARX apud FAUSTO, 2002, p. 129)

E, pois, o próprio Marx quem diz que, com o desenvolvimento da maqui­naria, chegará um tempo em que o próprio valor se tornará socialmente ina­dequado como medida da riqueza. Entretanto, enquanto o modo de produ­ção for capitalista, continua sendo verdadeiro que o trabalho vivo é que acres­centa um novo valor - valor este que continua dependente, grosso modo, do tempo de trabalho9 - ao valor dos meios de produção, e que é ele que trans­fere o valor destes meios de produção para o valor da mercadoria produzida, ou seja, que o conserva. Mas não se trata aqui, mais uma vez, do trabalho vivo em geral, mas do trabalho vivo como efetivação da força de trabalho que, em razão da persistência histórica da propriedade privada dos meios de produção, é ela mesma obrigada a assumir a forma de capital variável.

Persiste a produção capitalista, mas o tempo de trabalho não determina mais integralmente o valor, pois este se torna qualitativo. Como regra desre­grada ou como regra corrompida, o valor subjacente à lei de formação dos preços de produção (agora, como lei de medida e lei de repartição que se baseiam numa medida desmedida) continua atuando na formação dos pre­ços de mercado. O capital, pois, ainda se alimenta de mais-valia.

Na pós-grande indústria, entretanto, há bloqueios adicionais à tendên­cia à equalização das taxas de lucro entre as esferas da produção. Já na fase monopolista da grande indústria, a repartição da massa global de mais- valia entre essas esferas deixou de se dar em condições de livre concorrên­cia entre os capitais10. Entretanto, os valores de uso produzidos pelos vários capitais eram ainda medidos pelo tempo de trabalho socialmente necessá­rio para produzi-los. Na pós-grande indústria, essa condição deixa de estar satisfeita, de tal modo que os preços de produção se tornam distorcidos não apenas devido às restrições monopolistas, mas também em virtude da própria corrupção da medida. Eis que isto ocorre porque os capitais particu-

9Mesmo porque uma parte importante da produção capitalista mundial ocorre ainda sob as condições

características da grande indústria.

10 Como se sabe, o capitalismo monopolista não suprime nem a concorrência nem a rivalidade entre os capitais.

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lares se apropriam privadamente do intelecto geral, de modo verdadeiro ou fictício, com vistas à obtenção de poder de monopólio, rendas monopolistas e rendas financeiras11. A desproporção qualitativa entre o tempo de traba­lho de produção e a riqueza produzida faz com que o valor de troca se torne inadequado como medida do valor de uso. Ora, essa inadequação põe a necessidade histórica da negação do próprio valor e da produção baseada no valor, ou seja, a possibilidade do advento do socialismo.

Este comentário crítico sobre o livro Império, pois, não ficaria completo sem um exame do conceito de “sociedade do controle”. Para tanto, é ne­cessário, ainda, fazer referência às formas do capital produtivo na manufa­tura, na grande indústria e na pós-grande indústria.

Na manufatura, o trabalhador coletivo ou órgão coletivo de trabalho é a forma privilegiada de existência do capital produtivo. Em conseqüência, o fetichismo manifesta-se seja quando esse órgão é tomado como capital seja quando a força produtiva do trabalho organizada pelo capitalista - por meio da cooperação e da divisão do trabalho - aparece como força produtiva do capital. Na grande indústria, a forma por excelência do capi­tal enquanto agente que domina é o sistema de máquinas, e o fetichismo consiste em tomá-los diretamente como capital ou em considerá-los pro­dutivos enquanto tais.

No que se refere à compreensão dessa questão, na pós-grande indús­tria surge uma dificuldade conceituai específica. Se na grande indústria a matéria privilegiada do capital - e o capital, note-se, só existe por meio de suas formas - apresenta-se principalmente como matéria natural transfor­mada pelo trabalho em meios de produção, na pós-grande indústria, aquilo que ocupa a mesma posição e que é a matéria por excelência do capital apresenta-se como algo que tem natureza intelectual. Dizendo de outro modo, a forma privilegiada do capital na pós-grande indústria é o intelecto

" Nas condições do capitalismo da pós-grande indústria pode ser dito, pois, que há um reforço da tendênciaI >ara a invalidação da norma ou lei interna que regula a formação dos preços de mercado, já que se observa um afastamento persistente em relação às condições de concorrência, não simplesmente porque a (irfianização da produção é monopolista, mas porque se trata da monopolização de recursos intelectuais, culturais, etc. Nessas circunstâncias, as empresas buscam garantir lucros, superlucros e rendas financeiras com base na detenção de propriedade intelectual (patentes, marcas, designs, direitos autorais, direitos de In lagem, etc.), informação privilegiada, propaganda e publicidade, etc. de modo generalizado (PERELMAN, 2003). Os chamados bens públicos tornam-se passíveis de privatização.

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69TRABALHO IMATERIAL E FETICHISMO

geral. O fetiche - ou sua reversão convencionalista - faz, então, sua apari­ção, por exemplo, na expressão “capital intelectual”, na atribuição de capa­cidade produtiva de valor ao próprio intelecto geral ou, ainda, na considera­ção do trabalho técnico e científico como produtivo, independentemente da forma social que assume a força de trabalho.

Mas é preciso notar, por isso, que o próprio capital enfrenta aqui uma dificuldade. O intelecto geral é espírito objetivo, desenvolve-se de modo re­lativamente autônomo fora do tempo de trabalho e não é perfeitamente apropriável de modo privado. Ademais, a atuação da força de trabalho, tal como na manufatura, passa a depender da própria subjetividade do traba­lhador, justamente por ser agora trabalho informado pelo conhecimento técnico e científico. Isto dá ao trabalhador uma condição de sujeito no pro­cesso de trabalho, ainda que não lhe garanta a mesma condição no proces­so de produção como um todo. Há, pois, uma inadequação entre o capital como forma e os seus conteúdos materiais, a saber, os conhecimentos ci­entíficos e tecnológicos que movem a produção de mercadorias na pós- grande indústria. A dominação do capital, justamente por ter perdido sua base material anterior, precisa agora se basear, como nunca, em adesão ideológica e compromisso político. As empresas capitalistas, por exemplo, precisam agora adotar formas de gerência que se afiguram como democrá­ticas12. Na verdade, sob essas formas aparentes - e nesse ponto há concor­dância com Hardt e Negri -, o capitalismo avançado estende sua domina­ção sistêmica de um modo que se torna cada vez mais total13. Ele se apre­senta como global e sem alternativas, mas por trás dessa aparência reificada há o fato de que a supervisão do capital está-se tornando supérflua14.

12Um outro exemplo é a própria democracia publicitária e mercadológica que domina na esfera política e

que se apresenta como a verdadeira democracia. Nesse sentido, também, o pós-modernismo cultural, com sua ênfase na diferença, na heterogeneidade, na dissolução das metanarrativas, nos jogos de linguagem, pode ser enxergado como a ideologia do capital, no plano da cultura, na atual fase do capitalismo.

13 É preciso não confundir o controle sistêmico total com o totalitarismo. A este último associam-se as seguintes características: fusão da sociedade civil no Estado, dissolução da esfera privada, terror como instrumento, iiso da mentira na formação da vontade, o Estado assume a violência. Por outro lado, são características do conl role sistêmico total: ampla mercantilização das relações sociais, privatização da esfera pública, compelir.'» i desenfreada, criação de desejos pela propaganda, o emprego da violência pelo Estado torna-se hipócrita.

14 É a percepção desse fato que leva um autor com o Melman a dizer que “o capitalismo está em processei de transformação, caminhando para uma economia baseada na democracia no local de trabalho" (MELMAN, 2001).

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70ELEUTÉRIO PRADO - DESMEDIDA DO VALOR

Ao aderir à concepção de sociedade de controle de Foucault, Hardt e Negri passam a considerar o capitalismo não mais como um modo de pro­dução caracterizado pelas formas de subsunção do trabalho ao capital, mas como um meio de dominação política e de exercício de poder que precisa controlar a produção e a reprodução da vida como um todo, exatamente porque quer controlar, em última análise, a produção, a produtividade da força de trabalho social e o trabalho técnico e científico, afetivo, comunica­tivo, etc. Por isso, de modo característico, eles redefinem a exploração como centralização, extração e expropriação política dos produtos da cooperação social. Em adição, redefinem também o conceito de “subsunção real” como subordinação da sociedade à organização do capital e ao Estado capitalis­ta. Para eles, o corpo de trabalho social produz valor e capital sem ser forma do capital. O intelecto geral presente nas máquinas inteligentes, nas redes de comunicação e nos sistemas de comunicação figura aí diretamente como modo de existência do capital - e não como forma por excelência do capi­tal. Donde se vê que a concepção de sociedade do controle está também enraizada em fetichismo.

Como “essas concepções de sociedade de controle e do biopoder des­crevem aspectos centrais do conceito de Império” (HARDT; NEGRI, 2001, p. 44), todos os mil platôs do livro Império ficam bem abalados, pelo menos frente ao espelho do “marxismo” de Marx em que Hardt e Negri querem ainda se enxergar15.

15Em particular, Hardt e Negri prevêem uma espécie de dissolução dos Estados nacionais no que chamam

de “ Império” e que definem como uma nova soberania global. Esta nova ordem, que viria para substituir o imperialismo, estaria em processo de emergência. Na verdade, o que se vê emergir atualmente é o império dos Estados Unidos, que hierarquiza os Estados nacionais e que põe o seu próprio Estado no topo, o que pode ser encarado, talvez, com o um estágio superior e final do imperialismo. Hardt e Negri cometem esse erro por verem o Estado capitalista primariamente como uma ordem jurídica e política de dominação, e não como algo que deve ser derivado das contradições entre a aparência e a essência do modo de produção capitalista (FAUSTO, 1987, p. 329). Na nova fase, o capitalismo afigura-se como globalização dos mercados, difusão da democracia, modernização reflexiva, pós-modernismo; na essência, ele é “ditadura” do capital financeiro, formação publicitária da vontade, produção de conhecimento e cultura como negócio, subsunção lormal e intelectual do trabalho ao capital (ou pós-grande indústria).

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C r ít ic a à econ om ia p o l í t ic a d o im a te r ia l1

Introdução

André Gorz publicou O imaterial - conhecimento, valore capital (GORZ, 2003), livro em que trata das transformações do capitalismo que se inicia­ram após o final da Segunda Guerra Mundial, mas que ocorreram, especial­mente, nas duas últimas décadas do século XX. Conforme diz, elas levaram o sistema econômico atualmente existente a um novo estágio de desenvol­vimento, que ele classifica de pós-moderno. O ponto central de toda a sua argumentação é que, em virtude de uma metamorfose do próprio trabalho, o capitalismo perdeu sua medida reguladora interna. Se o valor era a norma do modo de produção capitalista no século XIX, agora ele não tem mais qualquer norma. Se os preços no século XIX eram regulados pelo valor, agora os preços tornaram-se puramente relativos. E a causa dessa formidável mudança, segundo ele, deve ser encontrada no fato de que o trabalho tor­nou-se “imaterial” .

Como Gorz compreende a questão da redução do trabalho complexo a trabalho simples de um modo estranho ao de Marx, na seção que se segue é apresentada uma crítica desse ponto, o qual, sem dúvida, é responsável por algumas dificuldades de seu livro. Em seqüência, faz-se uma crítica do conceito de “trabalho imaterial” e, especialmente, do conceito de “capital humano” que Gorz emprega e endossa, pois eles retratam de um modo agudo as conseqüências ideológicas de sua falta de compromisso como o modo de pensar o capitalismo estabelecido por Marx. Essas duas seções representam os momentos negativos deste capítulo.

Entretanto, como o problema posto pelo livro de Gorz é real e significa­tivo, outros momentos, agora positivos, vêm completá-los. Na terceira se­ção, com o intuito de bem compreender a mutação do capitalismo discuti­da por esse autor contemporâneo, é feito um retorno aos textos dos Grundrisse. Procura-se, em primeiro lugar, recuperar as antecipações de Marx

' Originalmente publicado em Prado (2004).

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sobre as conseqüências do desenvolvimento da grande indústria; ademais, busca-se interpretá-las de um modo coerente com o conjunto da obra eco­nômica desse autor, com o propósito de estabelecer, na seção seguinte, a conexão entre essa mudança do modo de produção e a desmedida do pró­prio valor trabalho. Na última seção, tendo como perspectiva a passagem da grande indústria para a pós-grande indústria, procura-se examinar como esse desenvolvimento da lei do valor afeta a regulação do processo de for­mação dos preços - e da repartição da mais-valia entre os capitais particu­lares. Na conclusão, indica-se como essa mutação configura-se como um novo e final momento desse modo de produção, no qual está pressuposto como possibilidade a transição - que depende da ação social dos homens- do capitalismo para o socialismo.

Trabalho e medida

Gorz abre seu livro com um parágrafo que anuncia o problema enfrenta­do, qual seja, o da compreensão de uma mutação na produção capitalista ocorrida nas décadas finais do século XX. O trecho remete claramente à tra­dição de pensamento crítico que vem de Marx, já que caracteriza o capitalis­mo como um modo de produção heterogêneo e complexo. Aparecem, entre­tanto, em seu texto categorias econômicas usualmente empregadas em es­critos sobre o momento atual da economia e da empresa capitalista, os quais Marx classificaria como pertencendo à economia vulgar. Para discutir suas idéias, é preciso apresentar esta abertura, que é bem representativa:

Atravessamos um período no qual muitos modos de produção coexistem. O capitalismo moderno, centrado na valorização de grandes massas de capital fixo material, é substituído mais e mais rapidamente por um capitalismo pós- moderno centrado na valorização do capital dito imaterial, qualificado também como “capital humano”, “capital-conhecimento” ou “capital-inteligência”. Essa mutação é acompanhada de novas metamorfoses do trabalho. O trabalho abs­trato simples que, depois de Adam Smith, foi considerado como a fonte do valor, é substituído pelo trabalho complexo. O trabalho de produção material, mensurável em unidades de produto por unidade de tempo, é substituído pelo trabalho dito imaterial, ao qual os padrões de medida clássicos não são mais aplicáveis. (GORZ, 2003, p. 11)

Esse parágrafo introdutório de seu livro apresenta já muitos problemas conceituais. Antes de passar a comentá-lo em detalhes, é preciso lembrar

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que ludo o que se segue tem por referencia a mercadoria, ou seja, um pro- duto do trabalho que se torna social por meio da troca. Na verdade, a mer­cadoria é aqui a forma geral da relação social numa economia capitalista desenvolvida. Como ponto de partida, é preciso considerar o contexto soci­al do marxismo clássico. Nessas condições, a própria existência da merca­doria já pressupõe que o produto do trabalho possa ser reproduzido social­mente com certa regularidade. Trata-se, portanto, da produção de valores de uso reprodutíveis, manifestem-se eles como coisas independentes do trabalho (bens) ou apenas como atividades (serviços).

A mercadoria é uma unidade de contrários: valor de uso e valor. O traba­lho produtor de mercadoria também é uma duplicidade antitética: concreto e abstrato. O primeiro responde pelo valor de uso e o segundo é a substância do valor. O trabalho concreto é o trabalho como o conhecemos na vida cotidi­ana. É atividade com um conjunto determinado de qualidades capaz de ge­rar um objeto de uso característico. Já trabalho abstrato é puro dispêndio de força humana de trabalho e, como tal, é a substância do valor. Sua existência depende de um processo social de redução que abstrai o conjunto das qua­lidades constitutivas do trabalho concreto, para que uma delas seja posta como quantidade. O trabalho concreto é simples quanto tem poucas quali­dades diferenciais e é empregado em muitas atividades sem adaptações sig­nificativas. O trabalho simples é a manifestação concreta mais próxima do trabalho abstrato. O trabalho concreto é complexo quando envolve um gran­de número de qualidades diferenciais, as quais o tornam apropriado ou à produção de valores de uso bem característicos ou ao exercício de funções bem demarcadas na produção de valores de uso.

Dito isso, torna-se necessário notar, então, que Gorz confunde as duas dimensões inerentes ao trabalho no capitalismo: trabalho concreto e traba­lho abstrato. Para que isto apareça de um modo claro, entretanto, é preciso seguir uma rodada de argumentos.

Marx conceitua o trabalho concreto, em sua generalidade, como “dis­pêndio produtivo de cérebro, músculos, nervos, mãos, etc.” (MARX, 1983a, p. 51). Evidentemente, a partir disso é possível distinguir entre trabalho manual e trabalho intelectual: o primeiro é atividade que materializa valores de uso mediante o emprego, principalmente, das habilidades corporais do homem, em especial de suas mãos. O segundo é ação que materializa bens e servio >s que dependem principalmente das capacidades inerentes ao cérebro huma-

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no. Já o texto de Gorz fala em trabalho material e imaterial. Essa distinção, entretanto, apresenta uma primeira dificuldade, já que o trabalho enquanto tal é sempre atividade material e imaterial ao mesmo tempo.

Eis que o trabalho imaterial para Gorz é simplesmente aquele que pro­duz valores de uso imateriais e que requer, por isso, comunicação, inteli­gência, etc. Daí se segue que o trabalho material é aquele que produz valo­res de uso materiais. Os primeiros são valores de uso em virtude das suas qualidades significativas e intangíveis enquanto tais, e os segundos o são em função de suas qualidades sensíveis ou tangíveis - em ambos os casos, entretanto, para que essas qualidades possam existir é preciso obviamente que sejam casados elementos naturais com elementos sociais. Ora, quan­do esse autor fala em trabalho material ou imaterial está-se referindo, obvi­amente, a modalidades de trabalho concreto, já que o trabalho abstrato enquanto trabalho reduzido de um modo anônimo pelo processo social é, nos termos de Marx, um conteúdo do inconsciente social. Sabe-se bem, ademais, que trabalhos concretos diversos, enquanto espécies de trabalho em geral, são incomensuráveis entre si. O que tem expressão como quanti­dade de tempo de trabalho socialmente necessário - e torna os valores de uso comensuráveis entre si na esfera do mercado - vem a ser o trabalho abstrato - e não, obviamente, o trabalho concreto.

Tendo por referência o trecho acima citado de Gorz, é preciso mencio­nar ainda que “o trabalho de produção” - não só “material”, mas em geral - nunca é “mensurável em unidades de produto por unidade de tempo”. Dito de outro modo, é um erro pensar que o trabalho possa ser medido pela produtividade do trabalho; ao contrário, o próprio conceito de produtivida­de do trabalho, em sua formulação usual, pressupõe que o trabalho possa ser medido de um modo que tenha sentido econômico. Isto está muito cla­ro em O capital, já que aí é dito que a quantidade de trabalho tem uma medida e esta só pode ser o tempo de trabalho.

Em seu sentido usual, a produtividade é simplesmente uma razão entre a quantidade de produto e o tempo de trabalho privado efetivamente gasto na produção desse produto. A produtividade mede a força produtiva do tra­balho e esta última depende das determinações qualitativas do trabalho con­creto - as quais mudam, aperfeiçoam-se historicamente -, não do trabalho abstrato, que é indiferente à passagem do tempo. É por isso que Marx pode afirmar que “ [...] uma mudança da força produtiva não afeta, em si e para si,

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CRÍTICA À ECONOMIA POLÍTICA DO IMATERIAL

(k* modo algum o trabalho representado no valor” (MARX, 1983a, p. 53). As sim, como a força produtiva depende da forma concreta do trabalho, a abstra­ção dessa forma concreta não pode afetar o trabalho enquanto criador do valor. Nessa perspectiva, vê-se logo que não tem sentido dizer, pelo menos sem cair em formulações mistificadoras, que “o valor tem atualmente sua fonte na inteligência e na imaginação” - uma frase citada por Gorz (2003, p. 13), proferida por um administrador de empresa, e que ele endossa -, já que “inteligência” e “imaginação” são determinações do trabalho concreto2.

Para Marx, o trabalho simples coexiste com o complexo na economia capitalista em toda a sua duração histórica. Para Gorz, diferentemente, ambos são categorias históricas: o trabalho simples prevaleceu, segundo ele, na época de Adam Smith e por um longo tempo depois dele, e o traba­lho concreto passou a predominar apenas na pós-modernidade! Tendo isso em mente, afigura-se bem confuso dizer que os padrões de medida clássi­cos não são mais aplicáveis quando o trabalho de produção material [...] é substituído pelo trabalho dito imaterial.

Vale notar, então, em primeiro lugar, que o trabalho complexo na for­mulação original de O Capital não representa problema algum para o de­senvolvimento dos primeiros passos da teoria do valor, pois, de acordo com esse autor, ele “vale apenas como trabalho simples potenciado ou, antes, multiplicado” (MARX, 1983a, p. 51-52). O trabalho complexo, se­gundo ele, é constantemente reduzido a trabalho simples pelo processo social, em proporções determinadas, e isto ocorre sem que os produtores se apercebam, parecendo-lhes que são dadas pela tradição. Nos primei­ros capítulos de O Capital, que são os mais abstratos de toda a obra, essa redução é pensada sob a suposição de que tanto o trabalho simples quan­to o trabalho complexo possam ser medidos apenas pelo tempo de um modo economicamente significativo.

O primeiro parágrafo do livro de Gorz menciona já uma mutação do capitalismo que está sendo acompanhada por uma metamorfose do pró-

2Na verdade, Gorz está transpondo para o interior da teoria crítica formulações vulgares de autores como

Rifkin: “Conceitos, idéias e imagens - e não as coisas - são os componentes verdadeiros do valor na nova economia. A riqueza não se origina mais do capital físico, mas sim da imaginação e da criatividade humana." (RIFKIN, 2000, p. 5)

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prio trabalho3. Ainda que essa transformação tenha sido apreendida como transformação do trabalho concreto, daí ele tira conseqüências para o de­senvolvimento do valor como medida. Isto fará com que ele caia - como será visto - na chamada ilusão convencionalista, que consiste em identificar o valor com o valor de troca. No mesmo parágrafo aparecem termos como “ca- pital-conhecimento” e “capital humano”, e isto mostra que Gorz identifica a forma da relação de capital com os conteúdos materiais que lhe dão suporte, o que indica que ele cai também na ilusão fetichista. Para que isto fique claro, o tema é discutido na próxima seção deste trabalho.

Nos parágrafos de seu livro que se seguem àquele aqui transcrito, Gorz vale-se do próprio Marx para compreender historicamente essa mutação do capitalismo. O esclarecimento da questão, pois, requer um retorno aos textos do próprio Marx. A partir daí será, então, possível voltar à questão do valor para reinterpretar aquilo que Gorz chama de “crise do valor” e para pôr em questão o caráter do atual momento do desenvolvimento do capitalismo.

Do “capita! humano”

Gorz acredita que o conceito de capital humano já se encontra presen­te no texto do próprio Marx. Ele escreve:

É interessante notar uma flutuação da terminologia de Marx. Trata-se tanto do “nível geral da ciência” {der allgemeine Stand der Wissenschaft), tanto dos “co­nhecimentos gerais da sociedade” (das allgemeine gessellschaftliche Wissen, knowledge), tanto de general intellect, tanto das “potências gerais do cérebro humano” (die allgemeinen Máchte des menschlichen Kopfes), tanto da “forma­ção artística”, científica, etc. que o indivíduo poderá adquirir graças “ao aumen­to do tempo livre”, e que “retroage sobre a força produtiva do trabalho”. Donde decorre que a liberação do tempo “para o pleno desenvolvimento do indiví­duo” possa ser considerada “do ponto de vista do processo de produção imedi­ato como produção de capital fixo: sendo este capital fixo o próprio homem”. A idéia de “capital humano” encontra-se já, pois, nos Manuscritos de 1857-1858. (GORZ, 2003, p. 12-13)

1 Entre os autores marxistas há uma enorme resistência à aceitação de que houve uma mudança estrutural no capitalismo nas décadas finais do século XX. Ver, por exemplo, Callinicos (1989), Wood (1998) e Brennan (2003). Talvez isso se dê porque o próprio capitalismo, assim compreendido, pareça escapar das análises contidas principalmente em O Capital.

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Ora, no texto de Marx referido por Gorz a consideração do “homem como capital fixo” é algo que surge do “ponto de vista imediato do processo de produção” . Logo, para entender corretamente esse fragmento dos Grundrisse é preciso começar pela distinção entre conhecimento vulgar e conhecimento científico. O primeiro atém-se aos fenómenos e aos nexos aparentes, socialmente válidos, do modo de produção capitalista; o segun­do busca encontrar os fundamentos internos desses fenômenos e nexos, apresentando-os como aparências inerentes de relações sociais estruturais e ocultas. A partir disto, pode-se conjecturar que para o autor de O Capital o homem não pode ser capital fixo, mas apenas pode aparecer como capital fixo “do ponto de vista imediato do processo de produção”. Isto sugere que o termo “capital humano” é um modo de expressão vulgar que, ao pôr o homem como capital fixo, põe em circulação no mundo das idéias uma aparência própria e fetichista do modo de produção capitalista.

Como se sabe, o fetichismo consiste em confundir a forma da relação social com aquilo que lhe dá suporte, tomando naturalmente esta última por aquela. Se, pois, o homem é apreendido como capital, pode-se falar do homem como conteúdo corporal e espiritual do capital (assim como Marx fala da máquina como conteúdo material do capital), mas não se pode di­zer que o capital é humano (assim como não se pode falar em capital-má- quina ou que a máquina é capital), pelo menos no interior de uma lingua­gem rigorosa. Assim, não se pode dizer também, nessa intensidade de co­nhecimento, que o homem é capital. Pois, nesse segundo caso, a matéria do capital, ou seja, a matéria humana, é identificada com o próprio capital, chegando inclusive a figurar, no texto de Gorz, como “pleno desenvolvimento do indivíduo”. Tal modo de dizer adotado sem crítica por esse autor confi- gura-se como superficial e misterioso, já que dá expressão a uma relação social coisificada, inconscientemente.

Ademais, como se sabe, homem, para Marx, é um termo filosófico que tem um significado carregado de fortes determinações tais como livre, eman­cipado, sujeito, etc. Na pré-história da sociedade humana e, portanto, no capitalismo, o homem como tal ainda não existe para esse autor. Nesse sentido, respeitando o todo de sua obra, seria mais correto dizer que no capitalismo avançado o “homem” transforma-se em conteúdo do capital colocando o termo “homem” entre aspas para indicar que se trata do lio

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mem negado (do homem suporte) e não do homem sujeito, o qual aind;i não foi posto historicamente.

Mas isto não é tudo. A própria expressão “homem-suporte como con­teúdo do capital” , sem outras qualificações, seria bem problemática. Sabe- se que Marx faz uma distinção entre o trabalhador e sua força de trabalho; o primeiro é o proprietário privado da capacidade de trabalho e esta última existe como potência inerente à corporeidade e à subjetividade do trabalha­dor. No modo de produção capitalista, o trabalhador vende o valor de uso de sua força de trabalho para o capitalista e este o emprega, como trabalho, na produção de mercadorias. Nesse caso, a força de trabalho enquanto virtualidade é trocada com o capital variável pertencente ao capitalista e, nessa condição, torna-se propriedade dele. Diz Marx: “na base da produção capitalista o próprio trabalhador, depois de seu ingresso no processo de pro­dução, constitui um ingrediente do capital produtivo posto em função e per­tencente ao capitalista” (MARX, 1983a, p. 24).

O conceito de capital humano adquire proeminência na prática e no imaginário social quando a força de trabalho tecno-científica aparece histo­ricamente como fonte importante da riqueza, quando o fetiche do sistema de máquinas como capital é gradativamente substituído pelo fetiche do tra­balhador produtor de valores de uso ditos imateriais como capital. E assim, ele encobre uma forma de subordinação, seja dos trabalhadores contrata­dos de forma permanente, seja dos trabalhadores temporários - cuja propor­ção na força de trabalho, aliás, tem aumentado com a desregulação desse mercado nas últimas duas décadas. Seja como for, de um modo ou outro a empresa capitalista hoje precisa subsumir intelectualmente - e de uma for­ma totalizadora - o trabalhador ao capital, exigindo dele, inclusive, uma disposição permanente para o automelhoramento profissional.

Em certas empresas, por exemplo, o capitalista dispõe-se a fazer inves­timentos na constituição da força de trabalho contratada e que permanece à disposição como mão-de-obra qualificada. A empresa - forma jurídica do capital particular - paga, por exemplo, o treinamento especializado, a parti­cipação em cursos, de uma parte maior ou menor da força de trabalho aí empregada. Eis que, assim, essa força de trabalho melhorada em sua com­petência produtiva por iniciativa do capitalista institucional parece perten­cer-lhe não apenas como algo que ele emprega por certo período e que usa

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CRÍ TICA À ECONOMIA POLÍTICA DO IMATERIAL

até certo ponto, mas como capital fixo da empresa4. O contrato de trabalho entre o capitalista e o trabalhador parece tornar-se, ainda que aberto e su­jeito a um rompimento unilateral, de longo prazo.

Esse investimento, entretanto, não é algo que faz parte do capital cons­tante do capitalista; diferentemente, constitui uma modalidade de capital variável. Ao invés do capitalista pagar um salário maior ao trabalhador, do qual uma parte poderia ser despendida, eventualmente, em treinamento especializado, é o próprio capitalista que se encarrega de gastá-la em seu próprio nome na força de trabalho do trabalhador - não em nome do traba­lhador. O capitalista, procedendo desse modo, além de comprometer o tra­balhador com a empresa no longo prazo, obtém uma dupla vantagem adi­cional: primeiro, faz com que esse gasto pareça uma concessão e um bene­fício voluntário que ele dá àqueles que emprega e, segundo, ele orienta o gasto destes últimos no seu próprio interesse de capitalista.

Nesse caso - e mesmo no caso em que a educação e o treinamento do trabalhador são inteiramente feitos com recursos postos à disposição do Es­tado a força de trabalho se afigura “do ponto de vista do processo de produ­ção imediato” e, assim, também do capitalista aparentemente benemerente, como capital fixo que pertence à empresa - não, entretanto, num sentido forte. Pois, mesmo nesse caso, esse “capital fixo” é encarado como virtual pelo empreendimento capitalista. Ele não é, e não pode ser, sua propriedade integral; ademais, ele não pode também ser depreciado tal como o capital fixo verdadeiro que pertence à empresa (como o capital investido em máqui­na, por exemplo). Apenas pode ser incorporado ao valor da mercadoria por meio da criação de valor novo, ou seja, passando da potência ao ato - de força de trabalho a trabalho - num processo que, como se sabe, reproduz o custo da força de trabalho e gera a mais-valia. Tem-se, assim, um “capital fixo” que nada mais é do que uma transfiguração do capital variável.

A distinção entre capital fixo e circulante diz respeito aos diferentes modos de rotação do capital adiantado. No contexto amplamente analisa­do pela Economia Clássica, o capitalista adianta capital para a compra de

4 A seguinte citação de Gorz é bem ilustrativa: “O saber do individuo conta mais [para o valor] do que o tempo de máquina. O homem, portando seu próprio capital, carreqa uma parte do capital da empresa.” (GORZ, 2003, p. 13)

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meios de trabalho (por exemplo, máquinas), matérias-primas e para os sa­lários. A análise rigorosa de Marx mostra que ele compra o valor de uso da força de trabalho e paga o custo de reprodução. Ele se vê, entretanto, como alguém que aplica seu capital em salários para comprar diretamente traba­lho. Assim, como o gasto em salários parece girar como o valor das matéri­as-primas, aparece para o capitalista como capital circulante.

No contexto atual do capitalismo, a empresa não se enxerga como com­pradora de trabalho ou de tempo de trabalho, mas se vê como compradora do serviço da força de trabalho, pelo qual paga uma remuneração fixada pelo mercado. A força de trabalho portadora de qualificações úteis para a empresa aparece, então, como capital fixo; o trabalhador surge como deten­tor de capital humano. Em ambos os casos uma mesma mistificação se apre­senta: o capital variável é identificado com o capital constante, fazendo com que o acréscimo de valor apareça como resultado do adiantamento de capi­tal - ou seja, retorno a maior, lucro - e não como mais-valia gerada pelo trabalho vivo. Como se sabe, o capital variável não circula como o capital constante: enquanto salário, é recebido e gasto pelo trabalhador e este, ao trabalhar, reproduz o valor do dispêndio do capitalista e produz a mais-valia para o capitalista.

A. força de trabalho comprada como tal pelo capitalista pelo seu preço de mercado aparece, agora, como propriedade virtual da empresa. De fato, ela é propriedade formal do trabalhador - ainda que, de fato, esteja permanente­mente à disposição dos capitalistas como um todo, ou seja, da classe capitalista. Por isso mesmo, a transação entre trabalhador e capitalista tem de aparecer como transação entre iguais capitalistas. Seja como contratado em tempo contínuo seja como contratado por certo período, a noção de capital humano permite tratar o trabalhador como um auto-empresário. Desse modo, o assa­lariado é investido do caráter de não-assalariado, tornando-se alguém que deve estar sempre disposto a se lançar no melhoramento de sua própria força de trabalho, correr todos os riscos inerentes à manutenção dessa força em boas condições de uso, como condição necessária para tornar-se explorável pela empresa capitalista. Tem-se aqui, no fundo, um modo de subordinação que ultrapassa aquele dos sistemas de máquinas porque estes sistemas, até certo ponto, foram ultrapassados historicamente. A produção está centrada hoje, de modo importante, em sistemas cibernéticos, informáticos e inteligentes.

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HlCRÍTICA À ECONOMIA POLÍTICA DO IMATERIAL

Assim, essa expressão, com toda a carga de engano que carrega, é con­siderada adequada do ponto de vista dos interesses capitalistas, antes de tudo porque ela transforma o trabalhador em figurante de capitalista. As­sim, como o capitalista verdadeiro tem meios de produção tangíveis e in­tangíveis que recebem a forma de capital, o ser vivo trabalhador aparece como alguém dotado de forças produtivas tangíveis (seu corpo) e intangí­veis (suas capacitações intelectuais), as quais, sob essa metástase expres­siva, podem aparecer agora, igualmente, como detentoras de capital. É cla­ro que a empresa capitalista típica, então, poderá ser encarada como um empreendimento coletivo no qual cooperam tipos diferentes de capitalis­tas: os trabalhadores, que são proprietários de capital humano, e os capita­listas, que são proprietários dos capitais materiais (ferramentas, máquinas, equipamentos, instalações, etc.) e dos capitais imateriais da empresa (fór­mulas de produtos, tecnologias de processos, etc.).

Note-se que as expressões “capital material” e “capital imaterial”, em­pregadas de um modo acrítico por Gorz, são também fetichistas. Elas são parentes próximos da expressão “capital físico”, largamente empregada pela teoria neoclássica. Como é valor e, mais precisamente, valor que se valoriza, não convém ao capital a distinção entre material e imaterial - na verdade, ele é sempre objetividade social semovente que se apropria de corpos para neles imprimir suas formas. Rigorosamente, pois, o capital não pode ser identificado seja com os objetos econômicos tangíveis seja como os intangíveis, pois uns e outros se constituem apenas em conteú­dos do capital. Para fazer sem confusão a distinção visada por Gorz é pre­ciso simplesmente falar em meios de produção tangíveis ou materiais e em meios de produção intangíveis ou imateriais. Lembrando que o capi­tal assume as formas básicas de capital produtivo, capital monetário e capital-mercadoria, pode-se usar, também, uma expressão mais fortemente dialética, em que não há reflexão do sujeito no predicado: o capita! produ­tivo, na forma de capital constante, pode ser (ou estar) meio de produção material ou tangível ou pode ser (ou estar) meio de produção imaterial ou intangível5.

5 Essas críticas, obviamente, também se aplicam aos conceitos de “capital-conhecimento”, “capital- inteligência” e assemelhados, os quais caem no fetiche porque o sujeito passa no predicado. Por outro lado,

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Mutação e produtividade

Nos Grundrisse de 1857-58, Marx distingue duas etapas da produção capitalista, uma delas representada pela própria realidade do século XIX e a outra que viria a existir num certo momento do futuro. Elas serão aqui doravante denominadas, tal como anteriormente, por grande indústria e pós-grande indústria. Nesse texto, Marx caracteriza o desenvolvimento da primeira delas do seguinte modo: “O desenvolvimento completo do capital, portanto, ocorre [...] somente quando os meios de produção não somente tomam a forma de capital fixo, mas também quando [...] o capital fixo apa­rece como máquina dentro do processo de produção, em oposição ao tra­balho; [então,] o processo inteiro de produção parece não estar subsumido à habilidade direta do trabalhador, mas [se afigura] como uma aplicação tecnológica da ciência.” (MARX, 1973, p. 699)

O grau desse desenvolvimento é também pensado como indicador do grau de subordinação do capital sobre o trabalho: “Além disso, a extensão quantitativa e a efetividade (intensidade) segundo a qual o capital encon­tra-se desenvolvido como capital fixo indicam o grau geral segundo o qual o capital está desenvolvido como capital, como um poder sobre o trabalho vivo [...].” (MARX, 1973, p. 699)

Entretanto, o capital, mediante seu próprio evolver, põe limites para a continuidade desse processo que tende ao infinito. Acompanhando Marx, pode-se dizer que o capital põe o tempo de trabalho como o único elemen­to determinante da produção, mas, ao fazê-lo, devido ao seu próprio desen­volvimento, faz com que esse tempo tenda a desaparecer como deter­minante exclusivo da produção.

[O tempo de trabalho] é reduzido tanto quantitativamente a menores propor­ções quanto qualitativamente [...] a um momento indispensável, mas subordi­nado, quando comparado com o trabalho científico geral, com a aplicação tecnológica das ciências naturais, de um lado, e com a força produtiva social que surge da combinação social na produção total, de outro. [...] 0 capital tra-

poder-se-ia, na linguagem de Marx, empregar os conceitos “conhecimento-capital” e “inteligência-capital” , nos quais não há passagem do sujeito ao predicado porque este último, segundo a forma, antecede o primeiro.

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hnlhn na direção de sua própria destruição como urna forma dominante de produção. (MARX, 1973, p. 700)

Segundo Marx, o desenvolvimento da grande indústria conduz o modo de produção capitalista para urna fase de transição (aqui denominada, como já se disse, pós-grande indústria). Nessa etapa, a geração de valor deixa de depender inteiramente do tempo de trabalho, passando a se sujeitar tam­bém ao emprego de recursos sociais de produção que o ato de trabalhar mobiliza durante o tempo de trabalho:

A troca de trabalho vivo por trabalho objetivado, ou seja, a posição do trabalho social na forma de contradição entre o capital e o trabalho assalariado, é o último desenvolvimento da relação de valor e da produção baseada no valor. O pressu­posto dessa produção é, e segue sendo, a massa de tempo de trabalho imediato, a quantidade de trabalho empregada como fator determinante na produção de riqueza. Todavia, à medida que a grande indústria se desenvolve, a criação de riqueza real torna-se menos dependente do tempo de trabalho e da quantidade de trabalho empregada, passando a depender mais da capacidade conjunta dos agentes postos em ação durante o tempo de trabalho, capacidade cuja eficácia (powerful effectiveness) não mantém nenhuma relação com o tempo de traba­lho imediato que sua produção exige; depende do estado geral da ciência e do progresso técnico, ou da aplicação da ciência à produção.[...] A riqueza efetiva manifesta-se mais - e isto a grande indústria revela - na enorme desproporção entre o tempo de trabalho empregado e seu produto, assim como na desproporção qualitativa entre o trabalho, reduzido a pura abs­tração, e o vigor do processo produtivo que ele vigia. [...] Nessa transformação, o que aparece como pilares fundamentais da produção e da riqueza não são nem o trabalho imediato executado pelo homem nem o tempo em que este trabalha, mas sim sua força produtiva geral, sua compreensão da natureza e seu domínio sobre ela graças à sua existência como corpo social; em uma pala­vra, o desenvolvimento do individuo social. (MARX, 1973, p. 704-705)

Essa mutação do capitalismo apresenta muitos aspectos importantes. Aqui se considera apenas a questão da produtividade. O tempo gasto na produção, assim como a produtividade do trabalho, interessou ao homem em todas as épocas históricas. Entretanto, somente a partir do momento em que o trabalho foi submetido à relação de capital é que a produtividade e o aumento incessante da produtividade tornaram-se uma preocupação central na atividade produtiva. A paixão pela economia de tempo na produ­ção de mercadoria, assim como a paixão pela acumulação de tempo de

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84ELEUTÉRIO PRADO - DESMEDIDA DO VALOR

mais-trabalho, são duas características importantes do modo de produção capitalista. Se o tempo de trabalho perde relevancia na geração de riqueza na passagem da grande indústria para a pós-grande industrial, o que muda no esforço incessante para o aumento da produtividade?

Note-se que no numerador da razão de produtividade costuma entrar sempre uma quantidade de um determinado valor de uso (ou de uma cesta de valores de uso) reprodutível. Se isto não ocorrer, a própria produ­tividade do trabalho deixa de ser, então, uma expressão quantitativa da força produtiva para se transformar em algo qualitativo. Assim, para consi­derar um caso limite, não se pode medir a produtividade de uma equipe de engenheiros de informática contando o número de programas de com­putador que ela faz e põe em operação num período, por exemplo, de um ano. A produtividade dessa equipe mostra-se como capacidade de produ­zir bons programas e não como capacidade de gerar muitos programas num certo período de tempo. Ademais, note-se que nesse caso o produto não é homogêneo e que o resultado alcançado depende pouco do tempo de trabalho - sua eficácia como produto depende da competência cientí­fica e tecnológica da equipe de engenheiros, assim como do desenvolvi­mento da ciência da computação.

Considerem-se, agora, produtos mais ou menos homogêneos, mas que sejam reprodutíveis. Nesse caso, à primeira vista a produtividade parece manter seu sentido quantitativo, sob quaisquer circunstâncias. Eis que no denominador da razão de produtividade entra, então, o tempo gasto na pro­dução da quantidade de produto inserida no numerador e isto parece ser tudo o que interessa do ponto de vista da produção capitalista. Ora, se na grande indústria observa-se um ardor para reduzir a magnitude do tempo de trabalho (dados certos níveis padronizados de qualidade), na pós-gran- de indústria esse ardor se arrefece e surge uma preocupação maior com o melhoramento da qualidade do tempo de trabalho (dadas certas disponibi­lidades de tempo). E, assim, o trabalho de produção aproxima-se do traba­lho artístico e do trabalho intelectual.

Deve ser notado nesse momento que, por força do próprio desenvolvi­mento da relação de capital, foi alcançado no capitalismo contemporâneo um altíssimo grau de produtividade do trabalho. Com pouco de tempo de trabalho passou-se a produzir uma quantidade enorme de produtos. Ora,

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CRÍTICA À ECONOMIA POLÍTICA DO IMATERIAL

este resultado histórico surgiu como resultado de um progressivo emprego de conhecimentos científicos e tecnológicos na produção, os quais foram sendo incorporados nos sistemas de máquinas, nos processos de fabrica­ção, na organização das empresas, nos próprios produtos, etc., com o pro­pósito central de economizar tempo de trabalho. Segundo Marx, tal desen­volvimento quantitativo de redução do tempo de trabalho tinha de acabar gerando uma mudança qualitativa.

Conforme se reduziu o tempo necessário para produzir uma determi­nada quantidade de produto, elevou-se o volume dos meios de produção utilizados e processados no processo produtivo; assim, mudaram também as características de complexidade dos sistemas de produção, que passa­ram a exigir um grau crescente de coordenação administrativa. A hierar­quia rígida e de comando centralizado, assim como o trabalho repetitivo, maçante e desqualificado, tornaram-se, então, incongruentes com essa complexidade. Em conseqüência, as diminuições do tempo de trabalho deixaram de ser um objetivo sempre dominante na produção de riqueza. O que, então, tornou-se importante para o crescimento da força produtiva do trabalho foram as determinações qualitativas que informam o próprio tra­balho e que advêm do progresso da ciência e da tecnologia. O próprio tem­po de trabalho perdeu relevância em relação ao tempo fora do trabalho porque é aí que o trabalhador ganha as determinações qualitativas que se tornam cruciais para o aumento da produtividade. Dito de outro modo, o trabalho complexo - que agora é tecno-científico -, enquanto gerador de valores de uso, não pode mais ser medido apenas pelo tempo de um modo economicamente significativo.

Pode parecer notável, mas tudo isto não pode ser encarado como novi­dade em relação à própria exposição teórica de Marx. Para este autor, rigo­rosamente, o ímpeto quase exclusivo para aumentar a produtividade do trabalho com base na redução do tempo de trabalho só aconteceu na gran­de indústria. Isto não poderia ocorrer na manufatura, que historicamente veio antes da grande indústria, porque aí há de fato processo de trabalho, de tal modo que o processo de produção coletivo é ainda regido pelo princí­pio subjetivo. É na grande indústria, quando o processo de trabalho trans­forma-se em processo de produção de massa governado de modo autocrá­tico pelo sistema de máquinas - e regido por um princípio objetivo que o trabalho pode tornar-se meramente repetitivo e o tempo de trabalho pode-

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se transformar num fator homogêneo e regular na produção de mercadori­as. Esta é uma das razões pelas quais Marx chama a grande indústria de modo de produção especificamente capitalista. Ora, a pós-grande indústria emerge quando a produção capitalista passa a ser mais e mais dependente de um princípio conceituai, ou seja, vem a ser caracterizada por crescente intervenção de conhecimentos durante o tempo de trabalho. Este, então, deixa novamente - ainda que por razão diferente daquela vigente na manu­fatura - de ser algo que pode ser reduzido pelo processo social cego a tem­po de trabalho socialmente necessário. Agora, aquilo que é socialmente necessário enquanto trabalho contém, também, elementos qualitativos.

Desmedida do valor

Segundo Gorz, o desenvolvimento da produção capitalista desqualifica cada vez mais a medida clássica de produtividade do trabalho, donde re­

sulta a impossibilidade de continuar concebendo o trabalho abstrato como substância do valor:

A crise da medida do trabalho acarreta inevitavelmente a crise da medida do valor. Quando o tempo socialmente necessário à produção de algo se torna incerto, esta incerteza não pode deixar de repercutir sobre o valor de troca da­quilo que é produzido. O caráter mais e mais qualitativo, menos e menos mensurável do trabalho, põe em crise a pertinência da noção de mais-trabalho e de mais-valia. A crise da medida do valor põe em crise a definição da essên­cia do valor. Ela põe em crise as regras das transações mercantis. No sentido econômico, o “valor” designa hoje o valor de troca de uma mercadoria contra outras mercadorias. (GORZ, 2003, p. 34-35)

Este modo de compreender o problema tem conseqüências: a primei­

ra, com o é óbvio, é a queda na ilusão convencionalista; a segunda é que o trabalho concreto não apenas tem de responder pelo valor de uso, mas tem também de dar conta do valor e do valor de troca, com o qual o pri­meiro coincide. É por isso que Gorz chega à conclusão que “o cerne da criação do valor é o trabalho imaterial” (GORZ, 2003, p. 17). É preciso exa­minar isto melhor.

Esse autor separa o conhecimento científico da inteligência e coloca junto desta última a imaginação, a criatividade e a sabedoria. O primeiro, segundo ele, é passível de formalização e tem existência objetiva, abstrata

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e social; já a inteligência existe para ele como disposição subjetiva, concre­ta e pessoal de cada indivíduo na sociedade, ainda que sua fonte última seja a cultura. Essa distinção parece duvidosa, já que existe uma inteligên­cia coletiva e esta é também capaz de criar, inventar e tomar decisões práti­cas de bom senso.

É claro que a mobilização do conhecimento científico na produção - a qual não pode ser feita pelo trabalhador isolado, mas apenas por um corpo de trabalho social - requer o empenho da subjetividade, a participação ati­va e a motivação de cada trabalhador. A fusão dessas duas dimensões cons­titui certamente o trabalho na atual fase do capitalismo: o conhecimento científico pertence à dimensão abstrata do trabalho - note-se que isto se infere dos textos mencionados de Marx - e a inteligência ou subjetividade atua em sua dimensão concreta. Gorz denomina o trabalho contemporâ­neo de imaterial afirmando que ele é constituído antes pela inteligência do que pelo conhecimento científico. Assim, ele anula a dimensão especifica­mente social do trabalho na pós-grande indústria - aquilo que Marx chama de intelecto geral - e se livra com muita pressa e ligeireza da noção de valor trabalho. Ora, é verdade que essa mutação do trabalho concreto, de predo­minantemente manual para predominantemente mental, torna-o especial­mente imensurável enquanto tal. Sobre isto não há dúvida. O problema, entretanto, que recebe uma resposta no conceito de “valor” como trabalho abstrato não é apenas o da mensurabilidade de cada trabalho concreto em si mesmo, mas o da comensurabilidade pelo processo social cego de dife­rentes trabalhos concretos - o que é requerido para resolver de uma forma logicamente consistente o problema da forma relativa e da forma equiva­lente, ou seja, do valor de troca e dos preços. Isto se perde no caminho seguido por Gorz.

É evidente, por um lado, que se o valor não é mais dado pelo tempo de trabalho socialmente necessário, isto tem conseqüência para a formação do valor de troca. Parece mais correta, porém, a interpretação de Ruy Fausto, que não prescinde da dialética: se a criação da riqueza “escapa do tempo como medida” - pondera -, então, “o ‘valor’ passa a ser qualitativo, e nesse sentido a ‘riqueza efetiva’ não é mais valor (trabalho abstrato cristalizado, medido pelo tempo), mas ‘valor negado”’ (FAUSTO, 2002, p. 130). O termo “valor negado”, entretanto, parece excessivo, já que a negação do valor é o

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valor de uso - pois valor e valor de uso, como se sabe, são contraditórios. O termo “valor desmedido” parece, por isso, melhor,

De qualquer modo, se o “valor” deixa de ser um quantum de tempo de trabalho abstrato, é porque sofreu um abalo significativo. Sua existência, en­tretanto, não pode ser contestada no interior da lógica de O Capital. Continua a existir, portanto, uma avaliação, e esta, mesmo sendo qualitativa, requer necessariamente expressão na forma quantitativa, a saber, na forma preço. A medida interna do modo de produção capitalista torna-se desmedida, sem que haja restauração da medida - possibilidade que está contemplada na Lógica de Hegel. Frente à lógica do próprio sistema econômico como um todo, então, as proporções que regulam as relações sociais de produção ca­pitalistas e que aparecem em sua superfície como proporções em que se trocam as mercadorias, tornam-se até certo ponto arbitrárias. Em conseqü­ência, os preços ganham um elemento convencional - possibilidade esta, aliás, que não pode ser considerada estranha à lógica de O Capital6.

Também não deve surpreender que uma avaliação qualitativa possa ser traduzida de modo quantitativo. Passando do plano do inconsciente so­cial para o plano da mediação consciente ou subconsciente, vê-se que isto ocorre freqüentemente. O sucesso de um corredor de maratona, por exem­plo, expressa-se precisamente no tempo que ele leva para percorrer os 42.195 metros dessa prova; já a habilidade e a beleza da exibição de uma ginasta olímpica é representada por meio de uma convenção adotada pelos jura­dos esportivos, numa escala cardinal de pontos. No primeiro caso, a medi­da se dá em termos estritamente quantitativos; no segundo, entretanto, a qualidade é transformada em quantidade por uma operação que envolve regras de conversão tacitamente aceitas - ou, eventualmente, impostas por quem tem mais poder.

6 E m O Capital, n o c o n te x to d o c a p ita l is m o c o m p e ti t iv o e m s u a f o r m a p u ra , M arx c o n s id e r a a p o s s ib i l id a d e d e q u e u m e l e m e n t o c o n v e n c io n a l a tu e n a e q u a l iz a ç ã o d a s ta x a s d e lu c ro : “tã o lo g o a p r o d u ç ã o c a p ita l is ta a t in ja c e r to g r a u d e d e s e n v o lv im e n to , a e q u a l iz a ç ã o d a s d iv e r s a s ta x a s d e lu c ro d a s e s f e r a s in d iv id u a is n u m a ta x a g e ra l d e lu c r o j á n ã o s e o p e r a m e d ia n t e o jo g o d e a t r a ç ã o e r e p u ls ã o , e m q u e o s p r e ç o s d e m e r c a d o a t r a e m o u r e p e l e m c a p ita l . D e p o is d e o s p r e ç o s m é d io s e d e o s p r e ç o s d e m e r c a d o q u e lh e s c o r r e s p o n d e m te r e m - s e f ix a d o p o r a lg u m te m p o , a p a r e c e n a c o n s c i ê n c ia d o s c a p i ta l i s ta s in d iv id u a is q u e n e s s a e q u a l iz a ç ã o d e t e r m i n a d a s d i f e r e n ç a s s ã o c o m p e n s a d a s , d e m o d o q u e e l e s a s in c lu e m lo g o e m s e u c á lc u lo r e c íp r o c o .” (M ARX, 1983d , p . 160) A c o n v e n ç ã o , e n t r e ta n to , a o c o n t r á r io d o q u e p e n s a G o rz , n ã o p o d e s e r v a z ia d e c o n t e ú d o - p o is c o n c e b e r a f o r m a s ó c o m o f o r m a é u r n a i lu s ã o c o m p le m e n ta r à d o fo t ic h is m o (FAUSTO, 1997 , p . 75-85).

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CRÍTICA À ECONOMIA POLÍTICA DO IMATERIAL

De acordo com Marx, o valor é uma norma reguladora das relações soci­ais no modo de produção capitalista porque, nesse sistema altamente com­plexo e que opera de modo descentralizado, elas se dão por meio das trocas, de modo independente da consciência dos agentes que se tomam, por isso mesmo, seus suportes. Nesse sistema, o produto do trabalho assume neces­sariamente a forma mercadoria e, sob essa forma, tem necessariamente de ser valorado, seja por meio do valor simplesmente ou do valor desmedido. Na grande indústria, o valor resolve-se em tempo de trabalho socialmente necessário. Entretanto, na pós-grande indústria, como já se disse, o tempo de trabalho direto empregado na produção perde importância na produção da riqueza. Por um lado, o tempo de trabalho concreto gasto na produção perde expressão como fonte da força produtiva. Por outro, em conseqüência, o tempo de trabalho em si mesmo deixa de ser a fonte exclusiva do valor, de tal modo que o valor deixa de ser estritamente um quantum de trabalho socialmente necessário medido pelo tempo.

Porém, não se trata de dizer que a ciência e a tecnologia em si mesmas, independentemente do trabalho, são agora as produtoras do valor. Quem produz valor é ainda o trabalho, mas este agora, enquanto trabalho concre­to, transformou-se em trabalho criativo, inteligente, cognoscitivo, etc., ou seja, atividade produtiva que exige a mobilização de conhecimentos, os quais, por sua vez, são partes da força produtiva social - do intelecto coleti­vo da sociedade. Em conseqüência, dada a relativa irrelevância do tempo de trabalho e a proeminência da qualidade desse tempo, a ciência e a tecnologia tornam-se produtoras de “valor” por meio de trabalho. Assim, mesmo se o tempo de trabalho socialmente necessário é suprimido como medida da riqueza capitalista, esta tem ainda de ser medida. O valor des­medido continua dependente de um processo social de redução - mas este não é mais uma operação puramente quantitativa.

Valore regulação

Se o valor transforma-se em “medida desmedida”, a mais-valia tem de se transformar em “mais-valia desmedida”. Se o valor transformado em preço de produção, segundo Marx, domina o movimento dos preços de mercado, se ele é o centro de gravidade em torno do qual oscilam esses preços, como ficam, então, as leis de regulação do capitalismo? Essa é uma questão-cha-

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ve que demanda um amplo esforço de investigação. Aqui não será possível adiantar mais do que os delineamentos de uma possível resposta.

Em O Capital, Marx analisa o capitalismo competitivo em sua forma pura. Nessa perspectiva, a equalização das taxas de lucro entre as diversas esferas de produção no interior de uma nação pressupõe tanto a plena mobilidade do capital quanto a plena mobilidade da força de trabalho, a qual já está totalmente submetida ao modo de produção capitalista. A pri­meira, por sua vez, pressupõe a completa liberdade de comércio no espaço nacional e a inexistência de monopólios (exceto a propriedade fundiária) - assim como o desenvolvimento do sistema de crédito. A plena mobilidade do trabalho pressupõe não só a inexistência de impedimentos à migração, mas também mobilidade ocupacional. Marx menciona, nesse sentido, que deve haver “indiferença do trabalhador em relação ao conteúdo do traba­lho; redução máxima possível do trabalho [...] a trabalho simples; elimina­ção de todos os preconceitos profissionais entre os trabalhadores” (MARX, 1983a, p. 150). Eis que é fácil perceber que essas condições nunca existi­ram plenamente na prática, de tal modo que a lei da equalização das taxas de lucro sempre enfrentou, mesmo nos países em que mais se desenvolveu a grande indústria e o capitalismo competitivo, fricções e obstáculos. Essa lei também enfrenta contra-tendências.

Ademais, é difícil não dar razão a Mandei quando opõe, como tendên­cias opostas, a concorrência e o crescimento desigual dos capitais no pro­cesso de acumulação por meio da reprodução ampliada. Se a primeira tende de modo constante a limitar o segundo, este último tende perma­nentemente a contrariá-la. Como resultado, “o processo de crescimento real do modo de produção capitalista não é acompanhado por um nivelamento efetivo das taxas de lucro” (MANDEL, 1982, p 51-52). Decor­rente da lógica do capital global e de sua inerente multiplicidade, a con­corrência dita que cada capital deve absorver da massa global de mais- valia uma parte proporcional ao seu tamanho. Se isto ocorre, os preços de mercado estão nivelados aos preços de produção competitivos. Essa ten­dência, entretanto, é contraditada pela lógica dos capitais particulares que almejam e não podem deixar de almejar obter superlucros. E o fazem de vários modos, mas aqui é preciso enfatizar aquele que advém da explora­ção de uma vantagem tecnológica que, nas condições da grande indús­tria, resulta sempre numa diferença de produtividade. Nesse caso, a taxa

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de lucro obtida pelo capital que avança na acumulação é temporariamen­te superior à taxa de lucro média.

De qualquer modo, em condições de concorrência prevalece uma forte tendência para a igualação das taxas de lucro entre as diversas esferas da produção, de tal modo que os preços de produção concorrenciais podem funcionar normalmente como centros de gravidade em torno dos quais gi­ram os preços de mercado. Esse processo de nivelamento que ocorre entre as esferas da produção tem como pressuposto que dentro de cada esfera se estabeleça, como tendência, que o preço de mercado coincida, em mé­dia, com um valor social - que nada mais é do que a expressão, nesse nível de agregação, do tempo de trabalho socialmente necessário. E, ademais, que a quantidade de produto oferecida em cada ramo seja capaz de aten­der ao montante da necessidade social solvente, àquele valor social. Essas duas condições são desenvolvimentos das duas condições das transações mercantis em geral, ou seja, M - D e D - M: primeiro, que cada uma das mercadorias transacionadas tenha valor de uso, ou seja, que atenda a uma necessidade social; segundo, que o quantum de trabalho contido em cada uma delas represente tempo de trabalho socialmente necessário. Ora, es­sas duas condições prevalecem aproximadamente na grande indústria com­petitiva, mas são modificadas na grande indústria monopolista e ultrapas­sadas na pós-grande indústria.

Para Marx, no contexto abstrato dos primeiros capítulos de O Capital, os valores de uso são especialmente coisas que atendem a necessidades humanas dadas, as quais se formam e se transformam socialmente, de um modo exógeno ao processo econômico enquanto tal. Ao tratar do fetichismo das mercadorias, menciona que as relações sociais não se dão diretamente no modo de produção capitalista, mas “senão como relações reificadas entre pessoas e relações sociais entre coisas” (MARX, 1983a, p. 71). Porém, o que ocorre se essas relações envolvem serviços? Quando os valores de uso existem como atividades diretamente úteis, constituem-se por meio de relações diretas entre produtores e consumidores e no pró­prio ato dessa relação - ou seja, como relações de prestação de serviços - , isto de algum modo abala a aparência mistificadora objetivamente ine­rente às relações sociais nesse modo de produção? Note-se, em primeiro lugar, que nesse caso os produtos do trabalho não são perfeitamente ade-

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quados à forma mercadoria, tal como ocorre quando eles vêm a ser coi­sas - pois coisas são objetos cuja existência material é apartada do pró­prio trabalho. Eis que o fetiche da mercadoria consiste precisamente no fato de que o caráter social do trabalho figura como característica natural nos produtos do trabalho.

Note-se, entretanto, em segundo lugar, que em toda a fase da grande indústria, seja ela competitiva ou monopolista, o modo de produção capita­lista dedicou-se principalmente à produção de coisas, ou melhor, de coisas- mercadorias. Já no período monopolista, as empresas que se transforma­vam em corporações gigantes descobriram que a ampliação em grande escala da produção requeria não apenas uma certa homogeneização dos produtos, a produção em massa, mas também a recriação constante das necessidades por meio da propaganda, do marketing e da indústria cultu­ral. Assim, criou-se historicamente, como uma necessidade imperiosa, todo um modo de produzir que foi denominado, de modo mais descritivo do que teórico, “de massa” ou “fordista”. Neste, as necessidades, as quais anterior­mente vinham-se originando num mundo da vida social e cultural reprodu­zido de modo autônomo, e que eram premissas não-econômicas da produ­ção capitalista, passaram elas mesmas a serem criadas em função do cres­cimento da própria produção capitalista. As necessidades de consumo fo­ram, então, funcionalizadas pela acumulação de capital.

Tudo isso sofre uma nova mudança na pós-grande indústria. Não ape­nas amplia-se notavelmente a produção de serviços sob o mando da repro­dução de capital, mas também a própria fabricação de coisas é transforma­da gradativamente em algo próximo da prestação de serviços. E isto ocorre justamente porque a produção de massa é substituída mais e mais pela produção aparentemente personalizada, que apela aos gostos e desejos de indivíduos postos objetivamente como pessoas despersonalizadas, mera­mente contemplativas e manipuláveis. Por criação e recriação geram-se cada vez mais necessidades imaginárias de indivíduos cada vez mais narcisistas, de tal modo que as próprias coisas se transfiguram em imagens e represen­tações de que as próprias coisas enquanto tais são apenas suportes. É as­sim que a produção capitalista em estágio avançado repõe o fetiche da mercadoria, fazendo com que o caráter social do trabalho deixe de se apre­sentar como naturalidade de coisas para passar a figurar como artificialidade

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de uin inundo de criações “intelectuais” e “artísticas” da própria industria cultural7. Chega-se, assim, àquilo que Debord (1997, p. 14) chamou de soci­edade do espetáculo, que “não é um conjunto de imagens, mas uma rela­ção social entre pessoas, mediada por imagens”. Agora, o fetiche passa a ser posto consciente e compulsivamente.

Por outro lado, o segundo pressuposto de base acima referido também foi abalado no curso do desenvolvimento do capitalismo. A passagem do capitalismo competitivo para o capitalismo monopolista contraria o proces­so cego por meio do qual se impõe socialmente, nas transações de merca­do, o tempo de trabalho necessário. Sob condições competitivas, no plano do processo global da produção capitalista, o preço de venda da mercado­ria tende a coincidir com seu valor social na forma do preço de produção. Ora, isto não pode ocorrer em geral no capitalismo monopolista, pois a exis­tência de monopólios significa que certas empresas vão poder obter uma taxa de lucro acima da média de modo prolongado. Ademais, em certos ramos é possível que os próprios preços de produção se tornem distorcidos. O capitalismo monopolista contraria e distorce, pois, a medição da riqueza pelo tempo de trabalho, mas não a suprime. Isto só vai ocorrer quando sur­ge, tal como já foi visto anteriormente, a pós-grande indústria. É então que o próprio valor antecedente se torna desmedido.

Em síntese, pode-se dizer que o modo de produção capitalista põe o valor e as suas leis como normas objetivas e inconscientes da formação dos preços de mercado, de remuneração da força de trabalho e de geração de mais-valia, de regulação da apropriação de mais-valia pelos capitais par­ticulares, mas em seu desenvolvimento vem depô-las seja, primeiro, por transgressão, seja, depois, por meio de sua supressão dialética. Assim, o capitalismo cria sua própria regulação, mas não tem outro caminho históri­co senão tornar-se um capitalismo desregulado, cada vez mais anárquico, sempre mais irracional, até que deixa de ser um modo de produção pro­gressivo para se tornar um modo de produção regressivo. Nessas condi­ções, as taxas de lucro efetivas dependerão do poder de mercado que varia

7 O que constitui o fetiche é a aparente autonomia das coisas e dos eventos frente à consciência alienada d< > “agente” econômico. Essa autonomia decorre do processo social cego, mas ela aparece porque rcl.K/irn sociais assumem seja uma forma natural seja uma forma naturalizada.

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no tempo e segundo a circunstância em função do custo de produção, pe­netração da marca, grau de novidade, vantagem tecnológica, etc. Elas se tornam, por isso, casuais e arbitrárias até certo ponto. Seria errôneo pensar, entretanto, que elas se tornam puramente arbitrárias, pois ainda estão limi­tadas, dada a massa total de lucros, pela concorrência dos capitais.

Conclusão

Ainda que por um caminho que se afasta do legado de Marx, certas conclusões de Gorz mostram-se bem corretas. Seu ponto principal é que “o capitalismo chamado de cognitivo” - e por isso deve-se entender que este modo de produção já entrou numa fase em que o conhecimento se torna mais e mais o principal conteúdo do capital - “é já a crise do capitalismo” (GORZ, 2003, p. 53). A economia baseada no trabalho conceituai e no co­nhecimento científico e tecnológico avançado é incongruente com a rela­ção de capital.

Como se sabe, a justificação histórica do modo de produção capitalis­ta, ou seja, do sistema baseado na coerção do trabalho vivo pelo trabalho morto, é o aumento da produtividade e a acumulação de riqueza. Suas con­dições básicas são a propriedade privada dos meios de produção e o traba­lho assalariado. Ora, isto atinge seu apogeu na grande indústria. Pois - em­pregando o termo que Marx não empregou -, na pós-grande indústria, “o mais-trabalho da massa deixa de ser condição para o desenvolvimento da riqueza social, assim como o não-trabalho de uns poucos [deixa de sê-lo] para o desenvolvimento da potência geral do intelecto humano” (MARX, 1973, p. 705). O que se torna, então, uma necessidade histórica é a abolição da relação de capital e do trabalho assalariado, ou seja, o advento de um novo modo de produção no qual possa ocorrer o pleno desenvolvimento das capacidades científicas e artísticas de todos os homens. Isto requer a eliminação da penúria em que vive grande parte da massa de trabalhado­res e o fim do antagonismo de classe, de tal modo que a produção da rique­za possa estar baseada na cooperação voluntária e espontânea de traba­lhadores livremente associados.

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V a l o r d esm ed id o e

DESREGRAMENTO DO MUNDO

Dois pontos de partida

Este artigo tem dois pontos de partida que parecem tão distintos o distantes quanto o planeta Mercúrio (que é quente) e o planeta Plutão (que é gélido).

O primeiro deles encontra-se num livro de uso muito difundido em es­cala mundial no ensino de administração de empresas, A estratégia em ação, de Robert Kaplan e David Norton (1997). Trata-se de um circunspeto manu al que busca ensinar como se deve organizar e gerenciar uma empresa ca­pitalista num mundo caracterizado pelo predomínio das tecnologias da in­formação e da comunicação. Segundo eles: “O ambiente da era da infor­mação, tanto para as organizações do setor de produção quanto para as do setor de serviços, exige novas capacidades para assegurar o sucesso com­petitivo. A capacidade de mobilização e exploração dos ativos intangíveis ou invisíveis tornou-se muito mais decisiva do que investir e gerenciar ati­vos físicos tangíveis.” (KAPLAN; NORTON, 1997, p. 3)

Dito de outro modo, nas novas empresas avançadas tecnologicamente os meios de produção cruciais deixam de ser principalmente as máquinas e os sistemas de máquinas que operam mediante coerência mecânica para passar a consistir de sistemas ativos de organização do conhecimento que funcionam segundo a lógica cibernética. Eis que isto exige, segundo cons­tatam os autores, uma mudança substantiva no modo de avaliar o desem­penho da empresa:

[...] os métodos existentes para a avaliação do desempenho empresarial, cm geral apoiados nos indicadores contábeis e financeiros, estavam-se tornando obsoletos. [...] os participantes [de um grupo de estudo criado para examinai o problema] logo se voltaram para um sistema de medição multidimensioii.il como a ferramenta mais promissora. [...] As discussões em grupo levaram I... | ao sistema de medição balanceado (balanced scorecard), organizado cm loi no de quatro perspectivas distintas: financeira, de atendimento ao cliente, dos

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ELEUTÉRIO PRADO - DESMEDIDA DO VALOR

processos internos operacionais e inovadores e do processo de aprendizado e crescimento da empresa. (KAPLAN; NORTON, 1997, p. viii)

Ainda segundo eles, essa mudança no sistema de medição, base de um novo sistema gerencial, imprime uma mudança substantiva nas relações so­ciais inerentes às organizações capitalistas que entram no século XXI:

As empresas da era industrial criavam fortes distinções entre dois grupos de funcionários: a elite intelectual - gerentes e engenheiros -, que utilizava as suas habilidades analíticas [...] e as pessoas que, de fato, fabricavam os produtos e prestavam os serviços. Essa força de trabalho direta era o principal fator de produção nas empresas da era industrial [... ] Agora, os funcionários devem agre­gar valor pelo que sabem e pelas informações que podem fornecer. Investir, gerenciar e explorar o conhecimento de cada funcionário passou a ser o fator crítico de sucesso para as empresas da era da informação. (KAPLAN; NORTON, 1997, p. 5-6)

O segundo ponto de partida encontra-se no livro em que Daniel Bensáíd (1999) relata “as grandezas e misérias de uma aventura crítica”, a saber, em Marx, o intempestivo. Referindo-se ao capitalismo em estágio avançado de desenvolvimento que ora ingressa no século XXI, com base no próprio Marx, que anuncia nos Grundrisse de 1857-58 a desmedida possível do valor, diz:

A exploração mercantil da força de trabalho e a redução das relações sociais à medida comum de tempo de trabalho social revelam a perda de funcionali­dade profetizada nos Grundrisse por meio de um desemprego de massa endêmico, de novas precariedades e marginalidades, das crises de superpro­dução, mas também por meio da incomensurabilidade crescente de ativida­des sociais não-redutíveis ao trabalho abstrato. Já acontecia isso com a obra de arte, cujo valor mercantil é determinado especulativamente, sem relação concebível com o tempo de trabalho socialmente necessário à sua produção. E assim vem acontecendo cada vez mais com os trabalhos intelectuais e cien­tíficos. “À medida que a ciência é diretamente aplicada à produção [...] o trabalho já não aparece tanto como incluído no processo de produção, mas o homem se comporta antes como supervisor e regulador desse processo [...]” [MARX, 1973, p. 705]. “O produto do trabalho intelectual - a ciência - está sempre abaixo de seu valor. É que o tempo de trabalho necessário à sua re­produção não tem nenhuma relação como o tempo de trabalho necessário à sua produção original” [MARX, 1980, p. 339]. A economia política tropeça exa­tamente aqui com a incomensurabilidade entre temporalidades heterogêne­as [...] e com o caráter miserável de suas próprias formas de medida [...]. (BENSAÍD, 1999, p. 494-495)

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9 7VALOR DESMEDIDO E DESREGRAMENTO DO MUNDO

Por ineio dessas citações, são apresentadas duas visões sobre a que.s- tão da medida das atividades econômicas num certo estágio de desenvolvi mento do capitalismo e da empresa capitalista. De início, é. preciso exai i iii iá- las em separado.

Análise do primeiro ponto

Do que trata A estratégia em ação?1 Esse livro dirige-se aos “executivos” das empresas tecnologicamente atualizadas que já entraram na “era da in­formação” e que competem em “ambientes complexos”. Ele não visa a( > grande público com a finalidade de anunciar em que consiste o maravilho so mundo da nova economia! Trata-se de ensinar como construir um siste­ma balanceado de medidas de desempenho com o propósito de estabele­cer um modo de gestão estratégica da empresa que tem por finalidade, como sempre no capitalismo, obter o máximo lucro possível num certo pe­ríodo de tempo. Esse modo de gerência, também como sempre, é franca­mente hierárquico, mas está regido por um princípio de autoridade quo demanda cooperação: “como é desenvolvido por um grupo de altos execu­tivos, o resultado é um modelo consensual da empresa inteira para o qual todos prestaram sua contribuição” (KAPLAN; NORTON, 1997, p. 13).

O receituário gerencial aí apresentado aponta claramente para uma mudança da lógica da empresa capitalista que ocorre nas duas últimas dé­cadas do século XX, mudança esta que surge em decorrência do desenvol­vimento da ciência aplicada à produção, e que assoma e se torna imperati­va como parte do processo de superação dos entraves à acumulação de capital que se manifestaram na crise dos anos 70 do século XX, especial mente nos países capitalistas avançados. Desde então, foi ficando cada ve/ mais claro que as organizações produtivas estavam-se tornando cada vez mais baseadas em conhecimento coletivo, o qual vem a ser mantido e re­produzido pelas pessoas que as compõem e pelos sistemas lógicos de ar­mazenamento e tratamento das informações, assim como pelas interações das pessoas entre si e delas mesmas com esses sistemas objetivos. Como

1 O tí tu lo , e m in g lê s , d a o b r a e m e s tu d o é The balanced scorecard, q u e p o d e r i a te r s id o tr a d u z id o p<ir;i p o r tu g u ê s c o m o “s i s t e m a d e m e d iç ã o b a l a n c e a d o ”.

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esse conhecimento coletivo está assentado na estrutura organizacional e, assim, na divisão do trabalho interna à empresa, esta última deve ser orien­tada para mantê-lo e renová-lo permanentemente, de modo a garantir a obtenção do máximo lucro possível.

Mas, por que surge a necessidade de um sistema balanceado de medi­ção de desempenho que busca objetivar a eficiência e a eficácia da atua­ção da empresa em muitas dimensões? Segundo esses autores, no período da indústria moderna “uma medida financeira sintética como o retorno so­bre o capital empregado” era suficiente para orientar as operações internas e externas da empresa no ambiente competitivo. Entretanto, ainda segun­do eles, com “o advento da era da informação” nas últimas décadas do século XX, as empresas não conseguem mais sustentar as vantagens com­petitivas apenas investindo em “ativos físicos” e gerindo “ativos e passivos financeiros”. Como se indicou nas citações pertinentes da seção introdutória deste capítulo, elas têm de se capacitar para gerir os “ativos intangíveis ou invisíveis”, que são agora mais importantes do que os “ativos físicos tangí­veis” ; ademais, agora elas têm de aprender a “gerenciar e explorar o conhe­cimento de cada funcionário” cuja “função é pensar, solucionar problemas, garantir a qualidade”, já que “as pessoas são vistas como solucionadoras de problemas” e não como meros “executores de tarefas” (KAPLAN; NORTON, 1997, p. 3-6).

Logo, a razão para a necessidade de um sistema de medição complexo para sintetizar as atividades da empresa tem de ser apreendida no contexto dos motivos pelos quais tal sistema é adotado, já que as medidas financei­ras tradicionais não são abolidas, mas são complementadas com outras medidas. O que é preciso compreender de antemão é que as avaliações de retorno, tradicionalmente usadas pela alta gerência das empresas capitalis­tas, tinham sempre de ser imediatamente traduzidas pelos gerentes operacionais em medidas que visavam maximizar a produtividade do tra­balho, reduzir o tempo do ciclo das atividades produtivas, diminuir os cus­tos das matérias-primas, garantidos certos níveis de qualidade. Ora, tudo isso encontra uma síntese na paixão para reduzir o tempo de trabalho dire­ta e indiretamente em toda a cadeia produtiva, dos insumos primários ao produto final. Em conseqüência, é essa medida, em última análise, que está em questão nas empresas contemporâneas.

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No contexto atual, tornou-se necessário preocupar-se não apenas com o tempo de trabalho (com a chamada eficiência operacional), mas também com as qualidades das atividades que se desenvolvem nesse tempo. Eis que é precisamente isto o que está dito na sentença “agora os trabalhadores de­vem agregar valor pelo que sabem e pelas informações que podem forne­cer”, anteriormente citada. E, se este é o caso, é preciso considerar as interfaces da empresa em sua complexidade qualitativa, ou seja, suas relações com os acionistas, com os fornecedores, com os consumidores, assim como as rela­ções que seus funcionários travam entre si mesmos. Nesse sentido, “o siste­ma de medição balanceado precisa conter um conjunto complexo de rela­ções de causa e efeito entre as varáveis críticas, incluindo indicadores de fatos, tendências, ciclos de realimentação, que descrevem [...] o plano de vôo estratégico da empresa” (KAPLAN; NORTON, 1997, p. 30).

No que se refere às relações internas dentro da empresa, para que o objetivo superior do lucro seja atingido esse sistema tem de buscar contro­lar a motivação, a fidelidade e a competência dos trabalhadores, assim como a capacidade do sistema de informação que eles alimentam e que rege suas atividades. Kaplan e Norton mostram, entretanto, que o estilo militar de comando e controle empregado na indústria moderna tradicional dei­xou de funcionar na empresa “pós-moderna”. Agora é requerido um novo estilo de administração que pode ser caracterizado pelo termo “coopera­ção centralizada”. No primeiro deles, as palavras de comando são ditadas de cima para baixo, seguem um caminho linear descendente e são moni­toradas no que se refere ao efetivo cumprimento das determinações pres­critas e aos resultados. Já no segundo, que é caracterizado por esses auto­res pelo par de termos “direção comum” e “visão compartilhada”, as or­dens de direção emanam de um processo circular participativo de forma­ção de uma estratégia empresarial, que é orientado e controlado como um todo pela alta gerência. Dentro desse estilo, o sistema de medição balance­ado é o núcleo do modo de organização da competência coletiva abrigada na empresa que busca tanto implementar um “alinhamento de cima para baixo” quanto obter uma “contribuição de todos os funcionários” (KAPLAN; NORTON, 1997, p. 207-208).

Ainda que toda essa teoria gerencial não tenha uma visão crítica do existente, ela não esconde que o sistema de medição considerado sustenta um modo de dominação. Esses autores consideram superado o modo de

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organização do trabalho da grande indústria capitalista (seja ele clássico, taylorista ou for dista), baseado na separação do trabalho manual e do tra­balho intelectual e no investimento da ciência em sistemas de máquinas e na organização científica do trabalho. Ora, nesse novo modo de organiza­ção do trabalho, os trabalhadores em geral, sejam eles altamente qualifica­dos, qualificados ou pouco qualificados, são considerados como fontes de trabalho tanto operacional como intelectual. Eles têm por obrigação cola­borar ativamente para o sucesso das operações e para o bom funciona­mento do sistema de informação da empresa, mas - claro - em estrita con­formidade com as linhas estratégicas estabelecidas pela alta gerência. O sistema de medição balanceado, dizem esses autores, faz com que “todos na empresa, do nível hierárquico mais elevado ao mais baixo”, estejam ali­nhados “de cima para baixo” com as demandas do sistema de medição balanceado e, assim, supostamente, com as melhores perspectivas de lucratividade (KAPLAN; NORTON, 1997, p. 208).

Do ponto de vista deste trabalho, eles apresentam em seu livro, em de­talhes, o que é e como se processa a subordinação do trabalho aos objeti­vos da organização capitalista. E a vinculação ao lucro afigura-se óbvia. Pois, “qualquer medida selecionada [para compor o sistema] deve fazer parte de uma cadeia de relações de causa e efeito que culminam com a melhoria do desempenho financeiro” (KAPLAN; NORTON, 1997, p. 49). Essa forma de subordinação processa-se sobretudo na esfera comunicativa, já que abar­ca, dentro da empresa, tanto a realização de “campanhas internas de marketing" como de “programas de educação e de comunicação que vi­sam conquistar o coração e a mente” de todos os trabalhadores (KAPLAN; NORTON, 1997, p. 210).

Análise do segundo ponto

O trecho antes citado de Bensáfd menciona que a valorização do valor torna-se uma base miserável para a criação de riqueza quando a própria ciência - e não mais o trabalho operante medido pelo tempo - torna-se o suporte principal da produção social. Desse modo, faz referência ao frag­mento dos Grundrisse em que Marx diz:

Mas à medida que a grande indústria se desenvolve, a criação de riqueza efeti­va torna-se menos dependente do tempo de trabalho e do quantum de traba-

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Í O I ___VALOR DESMEDIDO E DESREGRAMENTO DO MUNDO

lho utilizado do que daforça dos agentes que são postos em movimento duran te o tempo de trabalho, cuja poderosa efetividade (powerful effectiveness) , ix >i sua vez, não tem mais nenhuma relação como o tempo de trabalho imediato que custa a sua produção, mas depende antes da situação geral da ciência, do progresso da tecnologia ou da utilização da ciência na produção. [...] [Então,] o roubo de tempo de tempo de trabalho alheio sobre o qual repousa a riqueza atual aparece como base miserável diante dessa base que se desenvolve pela primeira vez criada pela própria grande indústria. (MARX, 1973, p. 705)

Nesse fragmento, Marx distingue dois momentos, um deles claramenle do capitalismo e o outro de uma fase de transição para o socialismo. () primeiro deles sucede a manufatura - momento lógico e histórico do mod< > de produção capitalista em que o processo da produção como um todo estava ainda subordinado à competência técnica do trabalhador. Este an damento pretérito é aquele da subsunção formal do trabalho ao capital, o qual terá de ser superado justamente por ser apenas formal e, assim, limi­tado do ponto de vista capitalista. O trabalhador tem ainda muito poder porque ainda domina o processo de trabalho; em conseqüência, o capita lista só consegue aumentar a mais-valia grosso modo aumentando a jor­nada de trabalho.

A manufatura, pois, vai ser superada pela grande indústria. Nesta, dife­rentemente, o processo de produção apresenta-se como aplicação tecnológica da ciência, ou seja, como resultado da tecnologia incorporada em sistemas de máquinas, de tal modo que o trabalho direto torna-se mera função orgâni ca auxiliar desse processo que assume um caráter de mecanismo autocráti­co. Em conseqüência do que se configura, agora, como subordinação real do trabalho ao capital, este último põe o tempo de trabalho como único determinante do valor ou, o que é o mesmo, como princípio exclusivo da produção de valores de uso. O capital destituiu já o trabalhador de seu anligo poder tecnológico, fazendo dele um “apêndice do sistema de máquinas”. () poder da ciência separada do trabalho imediato e de suas aplicações lhe pertence, de tal modo que ele pode agora aumentar a mais-valia, sua fon Ir vital, reduzindo o tempo de trabalho necessário à reprodução da força de trabalho. Mas o capital, segundo Marx, porque evolve interminavelmente, lei i de a corroer as bases de sua própria dominação.

Em seqüência à grande indústria vem o outro momento decorrente de seu próprio desenvolvimento. À medida que prossegue a ampliaçíio e m

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tensificação do emprego da ciência nos processos produtivos, materializa­da principalmente no capital fixo em geral, a importancia do tempo de tra­balho como principio vai ser reduzida tanto quantitativa quanto qualitativa­mente. Na primeira dimensão, porque aumenta a produtividade do traba­lho e, assim, pouco tempo de trabalho passa a originar uma grande quanti­dade de valores de uso. Na segunda dimensão, porque o tempo de trabalho torna-se menos importante em relação à própria ciência na criação de ri­queza. Nas palavras do próprio Marx, ele se torna “um momento, indispen­sável obviamente, mas subordinado, comparado ao trabalho científico ge­ral, à aplicação tecnológica das ciências naturais, de um lado, e da força produtiva geral que advém da combinação social2 na produção total, de outro lado - uma combinação que aparece como um fruto natural do traba­lho social (embora seja seu produto histórico)” (MARX, 1973, p. 700).

Como conseqüência desse desenvolvimento, segundo Marx, a medida da riqueza tem de deixar - e deixa - de se basear exclusivamente no mero tempo de trabalho reduzido à abstração dos tempos de trabalho particulares aplicados na produção de mercadorias. “Nessa transformação, não é nem o trabalho imediato que o homem executa, nem o tempo que ele trabalha, mas a apropriação da sua própria força produtiva universal, sua compreensão da natureza e sua dominação dela através da sua existência como corpo social - em uma palavra, é o desenvolvimento do indivíduo social que aparece como o grande pilar da produção e da riqueza.” (MARX, 1973, p. 705)3 Dito de outro modo, o tempo de trabalho socialmente necessário - que se configurava como valor - não fornece mais uma base de regulação (por meio do preço de pro­dução) do funcionamento anárquico do modo de produção capitalista, ou seja, para a alocação de recursos e para a formação dos preços de mercado. Mesmo abstraindo as diferenças de composição orgânica dos capitais, a rela­ção entre duas mercadorias quaisquer não pode mais ser pensada como uma troca de equivalentes, tal como aparece no começo de O Capital. A anarquia mercantil, conseqüentemente - isto Marx não disse, mas é uma inferência

2 Ou seja, aquilo que resulta da combinação de muitos trabalhos particulares e que é superior à mera soma desses trabalhos particulares.

' Como já foi dito em outro lugar, isto não significa que a ciência cria valor, mas sim que a criação de valor pelo trabalho é qualitativa, pois passa a depender das qualidades desse trabalho, as quais não podem mais ser reduzidas para constituir a medida “ tempo de trabalho abstrato” .

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possível tende a se transformar em esfera aberta ao uso e ao abuso do poder econômico e, assim, da corrupção e do caos social.

Marx, entretanto, disse outra coisa, disse que o roubo de tempo de tra­balho torna-se uma base miserável. Se a apropriação da mais-valia (tempo de trabalho excedente) é a base do modo de produção capitalista, por que esta base torna-se miserável quando o próprio tempo de trabalho deixa de ser a medida da riqueza? Aqui é preciso ver que a tarefa histórica do modo de produção capitalista é, sobretudo, o desenvolvimento da grande indús­tria. Eis que esse desenvolvimento depende essencialmente do valor, pois ele regula - transformado em preços de produção - a alocação e a remune­ração do capital constante, assim como, em particular, de modo crucial, do capital fixo que é a expressão por excelência do poder do capital sobre o trabalho vivo. Nesse sentido, é preciso lembrar que, segundo Marx, “a ex­tensão quantitativa e a eficácia (intensidade) do desenvolvimento do capi­tal como capital fixo indica o grau geral segundo o qual o capital se desen­volve como capital, como um poder sobre o trabalho vivo, que conquistou o processo de produção enquanto tal” (MARX, 1973, p. 699).

Em conseqüência, se durante todo um período histórico o tempo de trabalho socialmente necessário constitui, sem grandes empecilhos, o va­lor como antecedente do preço de produção, isto indica que nesse período há adequação entre as relações de produção e as forças produtivas, pois o tempo de trabalho mantém-se aí como uma boa medida da riqueza efetiva. Ora, essa regularidade confere uma certa racionalidade ao capitalismo, ape­sar de suas crises periódicas irracionais. O modo de produção continua cumprindo sua tarefa histórica de desenvolver as forças produtivas sociais. Entretanto, se sobrevêm uma transgressão histórica dessa regularidade, ou seja, se passa a haver uma desmedida do valor antecedente, então isto mostra que o momento racional do capitalismo foi deixado para trás. É isto o que Marx indica pela expressão “base miserável”.

É, pois, justamente isso que o autor do Grundrisse indica: o próprio desenvolvimento da grande indústria vai transgredir a lei do valor transfor­mado em preços de produção como lei de regulação4, ou seja, vai fazer

4 Isto não significa, entretanto, que “a lógica da contradição toma o valor trabalho uma categoria evaneso-ui«-o que abre apenas o espaço para dizer que “na investigação dos preços, a inspiração deve partir de Koyi i<"

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com que a adequação entre as relações de produção e as forças produti­vas deixe de existir historicamente. Quando ela sobrevêm, as relações sociais capitalistas baseadas na propriedade dos meios de produção e na apropriação da mais-valia entram em contradição explosiva com as for­ças produtivas quantitativa e qualitativamente transformadas. Estas for­ças produtivas imensamente poderosas não dependem mais, crucialmen­te, do tempo de trabalho, mas sim de uma compreensão científica e tec­nológica da natureza que Marx designou pelo nome de inteligência coleti­va (general intellect).

A contradição mencionada torna-se explosiva porque as forças produti­vas tornaram-se sociais em sentido universal, estando constituídas pela quinta-essência do desenvolvimento da sociabilidade humana, mas as re­lações sociais continuam sendo de apropriação privada e, portanto, estrei­tas e mesquinhas. É, pois, por isso que Bensáíd conclui que “a exacerbação dessa contradição constitutiva do processo de acumulação capitalista está na raiz do desregramento do mundo, de sua irracionalidade crescente, dos estragos sociais e ecológicos” (BENSAJD, 2003a, p. 33).

Juntando os dois pontos

Aquilo que parecia, de início, serem dois pontos de partida, agora se afigura como uma unidade de contrários: a aparência e a essência da pós- grande indústria. Não se tratava, pois, nem do planeta Mercúrio (que é quen­te) nem do planeta Plutão (que é gélido), mas da própria Terra (que é quen­te e gélida ao mesmo tempo).

Diante da mudança histórica acima referida, e para compreendê-la melhor, tem sentido adotar a distinção proposta por Ruy Fausto entre subsunção material da grande indústria e subsunção intelectual da pós- grande indústria (FAUSTO, 2002, p. 128-140). Eis que, se essas duas formas de subsunção são consideradas por esse autor como formais e reais, elas se distinguem pelo modo sob o qual ocorre a subordinação inerente à rela­ção de capital. No primeiro caso, a subordinação centra-se na atividade

cuja forma de pensar a economia monetária da produção permitiu-lhe teorizá-los a partir do salário nominal, dos contratos [...] e do custo de reposição do capital (preço de oferta), todos referidos ao dinheiro” (BRAGA, 1996, p. 97-99).

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corporal e manual e, no segundo caso, na atividade intelectual dos traba lhadores. Essas duas formas, entretanto, à medida que abrangem a pessoa do trabalhador como um todo e concorrem para o mesmo objetivo de gera ção de lucro para o capital, não se excluem uma à outra completamente. Na verdade, elas se complementam, pois, diante do desenvolvimento desigual do capitalismo - diga-se logo para evitar mal-entendidos que bloqueiam a compreensão continua a existir e tende a continuar existindo, na econo­mia mundial e nas economias nacionais, um grande contingente de traba­lhadores que permanecem submetidos ã velha forma de subsunção.

Essa alteração na forma da subsunção é encaminhada e requerida pela decisiva mudança no suporte material do capital fixo. Na grande indústria, a ciência - “produto do desenvolvimento histórico geral em sua quinta-es- sência abstrata” (MARX, 1980, p. 387) - incorporava-se ao sistema autocrá­tico da fábrica, com grande importância nas máquinas e nos sistemas de máquinas, e assim confrontava os trabalhadores como força apartada e pró­pria do capital. Agora, na pós-grande indústria, é a própria ciência embutida nos sistemas de informação e de controle que se apresenta diretamenk' sob a forma de capital - mais propriamente como forma privilegiada do capital fixo. Assim, as máquinas, enquanto sistemas mecânicos, que agora trabalham automaticamente, tornam-se meros instrumentos operacionais da ciência objetivada nos sistemas informacionais que não funcionam se­gundo a lógica mecânica, mas, como se indicou anteriormente, operam conforme a lógica cibernética5. Nessa mudança, os próprios trabalhadores transformam-se em participantes sujeitos desses sistemas que se constitu­em numa forma de organização da matéria mais próxima da organização dos seres vivos possuidores de mente e cérebro.

Em conseqüência, o próprio trabalhador, por exigência do desenvolvi­mento do modo de produção, transforma-se em trabalhador intelectual. Torna-se, então, necessário que o desenvolvimento do indivíduo fora do tempo de trabalho, adquirindo cultura científica e tecnológica, retroaja so-

5 Alógica mecânica raciocina sempre com a relação de causa e efeito, pressupondo um mundo formai le i por regularidades regidas por forças deterministas e que se expressam em leis simples e uniformes. A lógica cibernética raciocina com base na relação de recursão, pressupondo um mundo formado pm interações heterogêneas de elementos heterogêneos das quais resultam propriedades emergentes, complexas e incertas.

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bre a força produtiva do trabalho para aumentar sua própria potência. Com inspiração no próprio Marx pode-se dizer que essa retroação “pode ser vista como produção de capital fixo, sendo este capital fixo o próprio homem” (MARX, 1973, p. 712). Em conseqüência, a aplicação da ciência na produ­ção não pode aparecer mais, de modo bem distinto, como força produtiva do capital separada da força produtiva do trabalho. Ao contrário, à medida que o trabalhador deixa de ser um apêndice orgânico do sistema fabril e passa a atuar como “criador de sistemas” e “solucionador de problemas”, tem de ocorrer um reconhecimento explícito de que a força produtiva do capital tende a depender crucialmente da força produtiva do trabalho. A primeira, constituída de modo genérico como ciência-capital (ciência que se tornou forma de capital e que recebeu a forma jurídica do direito de propriedade intelectual), aparece na literatura vulgar de administração de empresa e de economia política, de modo fetichista, como “capital intelec­tual da empresa”. Já a força produtiva do trabalhador, em cuja cabeça acu- mulam-se partes do conhecimento social, é chamada nessa literatura, tam­bém de modo mistificado, de “capital humano”.

Na sociedade atual, aquilo que compõe o conhecimento científico e tecnológico pode existir socialmente como puro saber livremente disponível ou como propriedade privada. Nesse segundo caso, ele se transforma em saber objetivado em meios de produção ou em meios de consumo, ou pode ainda subsistir como conhecimento diretamente fixado como propriedade intelectual. No modo de produção capitalista, o conhecimento científico e tecnológico tem necessariamente de se acumular no capital fixo, já que o capital fixo é o instrumento por excelência da subordinação dos trabalhado­res e, assim, meio imprescindível de redução do trabalho necessário e de expansão do trabalho excedente. É como capital fixo, diz Marx, que o capital produtivo assume o caráter de fim em si mesmo. Na fase da grande indústria, a geração e a disponibilidade de conhecimentos científicos e tecnológicos na forma livre, prontos para serem empregados na construção de sistemas de máquinas cada vez mais poderosos e na organização planejada dos colossos fabris, é, pois, instrumental para a criação de tempo de trabalho excedente, ou seja, para o progresso da própria subordinação da força de trabalho ou progressiva redução do trabalho necessário em favor do aumento da mais- valia. Ora, na pós-grande indústria, como foi visto, ao mesmo tempo em que () tempo de trabalho perde centralidade na produção da riqueza, a ciência e a

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tecnologia enquanto tais tendem a assumir, diretamente, a forma de capital. Uma coisa convém à outra, pois agora o capital quer apropriar-se do trabalhe > social enquanto potência que transcende o mero trabalho individual ou mos mo o trabalho coletivo que possui força de massa, na apropriação das forças da natureza. Para fazê-lo, precisa apropriar-se diretamente do conhecimenh > científico e tecnológico enquanto tal, retirando-o da forma livre para colocá- lo na forma da propriedade privada.

Na grande indústria, os principais meios de produção que se conslilu em na matéria do capital fixo podem, em geral, ser transacionados como mercadorias. São, assim, produzidos em certas empresas para serem ven didos para outras, passando assim, de modo usual, pela primeira metamor fose da mercadoria, M - D; uma vez adquiridos, transformam-se então em capital constante necessário à produção de outras mercadorias, ou seja, em capital cujo valor é simplesmente transferido, pouco a pouco, para o valor das mercadorias produzidas, durante um certo período de tempo. Máquinas operatrizes, veículos, instalações, etc. são meios de produção cuja propriedade pode ser comprada e vendida, já que seus custos de produção mantêm uma relação de proporção comparável (mesmo se usualmente declinante) com seus custos de reprodução. Assim, se o comprador de máquina quiser uma máquina adicional terá de fazer uma nova compra do fabricante original, pois não poderá duplicá-la com facilidade, ao seu talai i- te, incorrendo num custo desprezível.

Mas o mesmo não ocorre com os conhecimentos científicos e tec­nológicos tornados capital fixo, já que, se eles têm um alto custo de produ­ção, possuem, ao mesmo tempo, um custo de reprodução muito baixo, que se aproxima freqüentemente de valores nulos. Ao serem gerados por meio de aplicação capitalista para que se tornem capitais fixos, para que o capital investido possa ser recuperado com juros, isto requer necessariamente que haja uma mudança na forma da comercialização. O capitalista não pode vei i der o conhecimento como mercadoria, mas terá de transferir o direito de usá- lo por meio de um contrato que resguarda o seu próprio direito de proprieda de por meio de certas garantias jurídicas. Dito de outro modo, tem necessai i amente de considerá-lo como capital de empréstimo. Em conseqüência, para fazer do conhecimento matéria da relação de capital é absolutamente neces sária a restrição da propriedade privada à propriedade monopolista.

VAI .1 >l< I HiSMEDlDO E DESREGRAMENTO DO MUNDO

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Essa forma de relação de propriedade, então, tende a se difundir pelo sistema econômico, moldando sejam as interações das empresas entre si sejam as relações destas com os consumidores. Devido à própria natureza dos valores de uso que produzem (tais como programas de computador, jo­gos eletrônicos, músicas, etc.), muitas empresas tornam-se necessariamente fornecedoras monopolistas de direitos de uso restritos, seja para outras em­presas seja para os consumidores finais. Outras empresas que produzem bens custosamente reprodutíveis (tais como tornos, automóveis, copiadoras, etc.) optam também pela mesma forma de comercialização, com o propósito evi­dente de aumentar o retorno sobre o capital empregado.

Para compreender que transformação tudo isso representa, é crucial perceber que as mercadorias assim negociadas deixam de participar das metamorfoses que caracterizam a circulação mercantil para se tornarem mercadorias emprestadas como capital, e que isto faz muita diferença, já que “todo o capital emprestado, qualquer que seja sua forma e como quer que o reembolso seja modificado pela natureza de seu valor de uso, é sem­pre uma forma particular do capital monetário” (MARX, 1983d, p. 259). Dito de outro modo, aquele que empresta as mercadorias como capital empres­ta o montante de dinheiro que elas valem e é, para todos os efeitos, um capitalista financeiro; aquele, por sua vez, que as recebe emprestado é, por exemplo, um capitalista industrial que, como tal, cuida efetivamente da re­produção do capital. Nas mãos deste último, as mercadorias tornam-se por suposição capital produtivo que vai contribuir para a geração, em princípio, dos recursos necessários para prover o retorno do capital com juros ao pri­meiro capitalista e os lucros residuais ao segundo capitalista. É no processo de produção que se dá, como é bem sabido, a reposição do capital cons­tante, a reprodução dos valores adiantados para a aquisição de força de trabalho e a geração de valor excedente.

A pós-grande indústria projeta um modelo limite de empreendimento capitalista: empresas sem fábricas, ou seja, empresas que concentram ape­nas as atividades financeiras e as atividades de pesquisa e de criação de bens culturais, científicos e tecnológicos, ou seja, daqueles valores de uso que, sob a forma de mercadorias, podem receber a forma de capital de empréstimo. Os ativos desse tipo de empresa consistem, então, apenas em dinheiro, títulos públicos e privados, ações, assim como direitos de propriedade intelectual. Rigorosamente, essa empresa não produz e não

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vende diretamente mercadorias do modo ordinário; ela comercializa o direito de acesso às suas patentes, direitos autorais, marcas, projetos <• processos de produtos, etc., que não são mais do que mercadorias que funcionam como capital6.

Ao invés de uma fusão do capital financeiro com o capital industrial, há aqui uma outra forma de subordinação do capital produtivo - enquanto momento intransponível do processo de valorização - à lógica do capital financeiro, cumprindo assim um destino imanente do próprio evolver do capital7. É assim que na “era da informação” surge a empresa totalmente rentista capaz de obter juros, dividendos, rendas de monopólios, assim como rendimentos especulativos, de seus ativos financeiros, entre os quais sc encontram também os ativos potencialmente produtivos. Ainda que nessa espécie de empresa possa haver geração de valor (e de mais-valia) - des­medido enquanto tal devido à negação do tempo de trabalho como determinante exclusivo do valor-, ela é por excelência um empreendimen­to de captação de renda, ou seja, uma firma rent seeker.

Considere-se, agora, a empresa pós-grande industrial que ainda tem por objetivo produzir e vender mercadorias, fazendo também a abstração de que possa ter ativos financeiros e obter alguma renda a partir deles. Essa espécie de empresa, à medida que se baseia numa inteligência coletiva própria, tende a conservar internamente todas as atividades típicas pós-in- dustriais, procurando transferir para terceiros, ou seja, empresas menores com pouco ou menor poder de barganha, todas as operações tipicamente'

VALOR DESMEDIDO E DESREGRAMENTO DO MUNDO

6 Sobre isso Rifkin diz: “na nova era, os mercados estão cedendo lugar para as redes de empresas e n propriedade está sendo firmemente substituída pelo acesso” (RIFKIN, 2001, p. 4). Tal como Proudhonanlcv. de Marx, ele não compreende, depois de Marx, que na troca mercantil se transaciona apenas a propriedade do valor de uso, pois se mantém a propriedade do valor, e que no empréstimo de mercadoria como capil.il transfere-se o valor de uso, mas igualmente mantém-se a propriedade do valor da mercadoria. Quem troca 10 reais de banana por 10 reais de laranja, continua sempre com 10 reais; quem empresta 10 reais cm banana, seja para o comércio seja para o consumo, continua possuidor dos mesmos 10 reais, os quais, aliás, quer transformar, após um certo período de tempo, em 12 reais, por exemplo. O mesmo erro é cometido p< >i Oliveira quando diz: “agora [...] o consumidor não pode fazer o uso que lhe aprouver com aquilo que compre >u. Há, de fato, uma modificação na propriedade capitalista” (OLIVEIRA, 2004, p. 74-75).

7 Pode-se falar, como Chesnais (2003), em regime de acumulação com dominância financeira, mas é precisi > ter em mente que o modo de expansão do capital aqui referido é intrínseco à própria fase histórica < l< > advento da pós-grande indústria, mesmo que ela não possa existir sem a ação política e institucional da classe dominante.

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l i oELEUTÉRIO PRADO - DESMEDIDA DO VALOR

industriais, de tal modo a deslocar para uma posição subalterna todas as atividades que ainda se baseiam no roubo de tempo de trabalho8.

A organização produtiva pós-grande industrial, em função de seus mo­nopolios tecnológicos, vai então procurar extrair ganhos extras a partir de suas transações com as empresas e consumidores que figuram como seus clientes. Ademais, vai buscar consolidar seus próprios retornos comprimin­do os lucros das empresas subcontratadas, as quais, por isso mesmo, têm de explorar mais brutalmente seus próprios trabalhadores. O montante de lucro que consegue obter, o qual inclui implicitamente rendas tecnológicas, não tende a remunerar o capital investido segundo uma taxa média de re­torno formada socialmente de modo independente, mas este montante depende amplamente do poder de monopólio que detém. Como esse po­der está associado à propriedade intelectual, pode-se dizer dele o que Marx disse do monopólio ligado à propriedade fundiária, que ele funda o ganho do empreendimento capitalista porque “constitui exatamente uma barreira para o investimento de capital e para a arbitrária valorização do mesmo” (MARX, 1983d, p. 221).

Com mais razão pode-se dizer que nas atividades desenvolvidas nesse segundo tipo de empresa, seja diretamente em suas próprias operações seja nas operações das empresas subcontratadas - as quais contribuem direta ou indiretamente para a produção que ela comanda -, há geração de valor e de mais-valia. À medida que esse valor em seu todo resulta, pelo menos em parte, de trabalho intelectual, ele permanece qualitativo e desmedido. Em conseqüência, essa espécie de empreendimento não segue mais a lógica da eficiência competitiva da grande indústria, que consiste em buscar obter lu­cros e superlucros produzindo uma dada quantidade de produto minimizando o tempo de trabalho, o período de rotação do capital fixo e os custos das matérias-primas. A lógica desse tipo de empresa manifesta-se no fato de que ela organiza todas as suas atividades em função de uma falsa “agregação de valor” , ou seja, da contribuição possível que ações qualitativamente diferen­ciadas levadas a efeito em seu âmbito engendram na produção, no trato com os clientes e fornecedores, na imagem da empresa junto aos consumidores,

Chesnais fala aqui de “ ‘queima’ das fronteiras entre ‘lucro’ e ‘renda’ na formação do lucro de exploração (lucro operacional) dos grupos” (CHESNAIS, 1997, p. 30).

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as quais supostamente contribuem para uma melhor rentabilidade do capi lal investido. E isto mostra, portanto, que esse segundo tipo abstrato de em presa também segue uma lógica de captação de renda, de punção de mais valia gerada por outrem, tal com o primeiro apresentado.

Desregramento do mundo

Em resumo, a força produtiva decisiva na pós-grande indústria é a inte­ligência coletiva mantida e reproduzida pelos gerentes, técnicos e trabalha dores em suas próprias cabeças, em suas interações, em suas ações como homens práticos, assim como ativando os sistemas de informação empre sariais. As máquinas em sentido amplo continuam evidentemente existiu do, mas se tornam instrumentos de atuação no mundo social e natural des­se saber científico e tecnológico geral e coletivo. Como o modo de produ ção é ainda capitalista e está, por isso, baseado na propriedade privada dos meios de produção e no trabalho assalariado, sobrevêm a exigência de que partes importantes desse conhecimento coletivo sejam monopolizados con i< > meio de produção, na forma da propriedade intelectual, por meio de paten­tes, direitos autorais, etc. (TEBECHRANI NETO, 2004). Em conseqüência, por meio de verdadeiros cercamentos, porções estratégicas do conhecimen­to científico e tecnológico são impedidas de se reproduzirem livremente, assumindo então a forma de capital fixo da empresa. Os trabalhadores dos empreendimentos capitalistas que se podem classificar como pós-grande industriais, guardadas as diferenças que não podem deixar de existir na hierarquia inerente ao corpo de trabalho sob o modo de produção capitalis ta, ganham invariavelmente - uns mais, outros menos - a dimensão de trabalhadores intelectuais.

Mas as empresas pós-grande industriais são encontradas especialmen­te no núcleo tecnologicamente avançado do modo de produção capitalista que hoje, como se sabe, estende seus tentáculos em escala global, mas está instalado principalmente nos países do Primeiro Mundo. Para exami nar as conseqüências dessa transformação assimétrica das forças produli vas é preciso, num primeiro passo, começar pelas mais gerais, que afetam a sociedade como um todo. Em seqüência, é necessário verificar como elas incidem sobre os próprios trabalhadores desse núcleo. Finalmente, é preei so averiguar como recaem sobre os trabalhadores em geral, especialmente

VALOR DESMEDIDO E DESREGRAMENTO DO MUNDO

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sobre aqueles que estão sendo abandonados no atual estágio do modo de produção capitalista.

Apesar de dominarem apenas uma parte da produção, essas empresas modificam a lógica de funcionamento do sistema. Eis que a transformação do trabalho em trabalho que incorpora a dimensão intelectual significa já que o valor antecedente ao preço de produção se torna qualitativo, que ele perdeu completamente sua capacidade de regular a produção capitalista, e que a subsunção do trabalho ao capital tem necessariamente de se tornar abrangente, ainda que não de modo homogêneo. No plano mais geral, vê- se que ocorre uma grande ampliação do domínio do capital, a qual ultra­passa todas as barreiras tradicionais para avançar sobre a vida social como um todo. Como este ê o modo pelo qual o capital subordina, emerge a ten­dência de transformar tudo em mercadoria, assim como a ciência e a tecnologia, a educação, a arte, a cultura, etc. tornam-se domínio das aplica­ções de capital, subordinando-se à lógica da valorização.

Um dos fatos mais notáveis é a transformação, no fim do século XX, da religião em prática mercantil explícita: pastores, padres, bispos, etc. inves­tem em templos, equipamentos de som e técnicas de marketing para pro­duzir orações, homilias, sermões e aconselhamentos, os quais vendem ci­nicamente como mercadorias abençoadas, distribuindo a palavra divina em troca das contribuições em dinheiro que os fiéis seguidores lhes oferecem ou mesmo depositam em suas contas bancárias. Outro fato também notá­vel é a transformação das eleições para os cargos executivos e legislativos em mercados políticos, assim como dos políticos em investidores que acu­mulam “capital político”, o que permite ampliar na forma a democracia, ao mesmo tempo em que se subtrai quase todo seu possível conteúdo demo­crático. Assim, esferas não-mercantis são submetidas à lógica mercantil da captação de renda.

A teoria econômica neoclássica define como públicos os bens cujo uso não é passível de disputa, ou seja, cujo uso por uns não impede o uso por outros e que, simultaneamente, não podem ser privatizados devido às ca­racterísticas que lhe são inerentes. Têm a primeira característica os valores de uso cujo custo de reprodução é zero ou desprezível. Possuem suposta­mente o segundo predicado os bens que podem ser obtidos sem a necessi­dade de direto pagamento pelo uso. Mas esse último não é, a rigor, um atri­buto apenas do bem em si mesmo, mas depende também das instituições

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que regulam o modo de seu emprego, o que faz dele um atributo de carálei político. Mesmo a defesa nacional, por exemplo, caso clássico de bem <le uso não-exclusivo, sob certas circunstâncias pode favorecer a uns e não .1

outros dentro do território de uma nação. Decorre daí que quase não li/t bens inerentemente públicos ou, dito de outro modo, bens que não poss;mi ser privatizados por meio de legislação que provém de decisões políticas. Ora, a pós-grande indústria exige de modo inerente, tal como já se viu, <> cercamento de uma espécie de valor de uso claramente não-disputável, o conhecimento, para fazer dele mercadoria que atua como capital. A trai is formação, em mercadoria, de saberes científicos e tecnológicos impõe uma lógica de privatização na sociedade que se torna abrangente e devastado ra: o genoma, o próprio do corpo humano, os produtos da alma, tudo tem de se tornar objeto de propriedade privada. Privatizar sempre que possível, não é o primeiro mandamento do neoliberalismo?

A pós-grande indústria requer, pois, o monopólio de recursos essenci ais para a reprodução da sociedade contemporânea, tais como, por exem pio, os programas de computador, as fórmulas para a fabricação de rciué dios, as tecnologias para a produção de sementes, etc. É evidente que esses recursos tendem a se concentrar no controle de algumas poucas corporações gigantes e multinacionais, cujo poder tende a ultrapassai, então, o da grande maioria dos Estados nacionais. Em conseqüência, esse poder privado desmedido não pode ser mantido sem o apoio dos Estados nacionais das potências imperialistas. Note-se que o recrudescimento do imperialismo no final do século XX e no princípio do século XXI tem como uma de suas motivações principais garantir os direitos de propriedade iu telectual9 por todo o planeta.

Focando estritamente o mundo da “era da informação”, é evidente que ele carrega em si muitas contradições. Para começar, é possível lembrai que ele, rigorosamente, tem poucos beneficiários inequívocos: os proprie

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5 Diz Shiva, sem se afastar, aliás, da linguagem econômica padrão: “Os direitos de propriedade intclcctii.il são essencialmente distorções de mercado, monopólios e subsídios sancionados por governos. 1’ociii barreiras territoriais em tecnologias e em invenções de tal modo que as firmas possam capturar lucros nuilx altos. No longo prazo, um sistema rígido de propriedade intelectual pode resultar em discriminações ilr preço e práticas de distorção de mercado tais como pooling, vendas casadas, licenças cruzadas e reslilçom de licenciamento.” (SHIVA, 2001, p. 5)

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tários do capital e os altos gerentes. Se estes últimos, que formam de fato uma classe social transnacional, trabalham em geral muito e ganham muito, não são em grande número. Já a grande maioria dos trabalhadores dessas empresas enfrenta uma situação paradoxal: são em geral razoavelmente bem- remunerados, mas têm de encarar uma realidade extremamente competiti­va no mercado de força de trabalho. Encontram-se invariavelmente submeti­dos a uma competição desenfreada. Pode-se dizer, por isso, que estão obri­gados permanentemente a participar de uma “corrida de ratos”. Ainda que possuam uma ampla competência técnica e científica e que tenham de as­sumir grandes responsabilidades na manutenção das atividades da empre­sa, não são de modo algum insubstituíveis, já que detém um conhecimento padrão que pode ser adquirido por um grande número de pessoas na socie­dade. A própria pós-grande indústria não lhes garante, então, um emprego estável, mas, ao contrário, mantém-nos sob risco permanente, classificando- os no plano ideológico como detentores de “capital humano” e de “donos do próprio futuro” que têm de se aperfeiçoar incessantemente.

A própria necessidade de instituir um “sistema de medida balanceado” como base do sistema administrativo dessas empresas já indica que existe uma dificuldade crescente para dominar a complexidade das interações do corpo de funcionários, assim como de suas relações com o ambiente eco­nômico e social. Por isso mesmo, ele próprio consiste numa forma de explo­ração intensificada do trabalho que exige cooperação e mesmo devoção à empresa por parte dos trabalhadores que pertencem aos seus quadros. O paradoxo é notório: mesmo se o tempo de trabalho enquanto tal deixou de ser crucial para o aumento da produtividade, cresce a jornada de trabalho para que os trabalhadores possam, assim, dedicar-se de corpo e alma à em­presa, “agregando valor”, ou mesmo porque agora eles são obrigados a si­nalizar para a gerência a própria fidelidade aos propósitos da empresa. Por outro lado, com a finalidade de subsumir ao máximo os trabalhadores aos procedimentos e às estratégias da empresa, cria-se um ambiente interno em que o trabalho se configura como “uma nova ideologia, uma nova reli­gião” (WARDE, 2002). Desse modo, a empresa “pós-moderna” - comunica­tiva! - submete seus empregados à máxima tensão e à exaustão psicológi­ca, de tal maneira que doenças como o vício de trabalhar, o cansaço crônico e a depressão tornam-se cada vez mais difundidas nos ambientes de traba­lho em que aí se criam.

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1 I 5 ___VAI,(>K IIIÍSMKI)II)U K I )IÍ.SKi;< ;H AMENTO DO MUNDO

De lodo modo, essa mudança das relações de produção capitalistas em face das novas forças produtivas tem tornado o capitalismo especial­mente esquizofrênico. Se as empresas pós-grande industriais buscam hoje se apresentar no plano ideológico como participativas, cooperativas, éticas, no fundo, como empresas, nunca foram tão centralizadoras, competitivas <• irrestritas na busca de lucro, não hesitando em submeter os trabalhadores aos seus propósitos durante as 24 horas do dia, de modo totalizador. Como núcleo da sociabilidade capitalista, a empresa é já uma instituição total. Se a fábrica da grande indústria dominava e continua dominando integralmente o indivíduo durante o tempo de trabalho, a empresa da pós-grande indús­tria vem submeter o trabalhador de um modo total, envolvente, hipócrita ou mesmo cínico, inclusive fora do tempo de trabalho.

Se o advento da pós-grande indústria significa a intensificação absurda do trabalho para um conjunto de trabalhadores intelectuais, ele cria, ao mes­mo tempo, uma situação de falta de trabalho para um grande número de outros trabalhadores não tão qualificados. A evolução do capitalismo, como se sabe, destruiu gradativamente as formas de vida tradicionais para estabe­lecer a universalidade da relação de assalariamento, mas, ao mesmo tempo, com a pós-grande indústria, tem-se tornado crescentemente incapaz de ofe­recer emprego de longo período e em tempo integral para muitos, talvez mes­mo para a grande maioria da força de trabalho mundial. É certo, em primeiro lugar, que a lógica da pós-grande indústria leva à concentração, em seu pró­prio âmbito, das atividades mais criativas e ao deslocamento do trabalho in­dustrial tradicional para empresas dependentes, muitas das quais situadas em países do Terceiro Mundo; mas, mesmo nos países do Primeiro Mundo, desenvolve-se um conjunto de setores industriais, comerciais e de serviços em que as ocupações exigem pouca ou quase nenhuma qualificação e as relações de emprego costumam ser informais e precárias10.

10 Depois de estimar que por volta do ano 2000 cerca de metade da população econômica ativa da Europa estaria já nessa condição de ocupação, Ulrich Beck, reconhecendo que o mundo está diante de uma “economia política da insegurança” , pergunta-se “se a democracia será possível depois da sociedade d< > pleno emprego” . Sem mencionar a necessidade de qualquer mudança nas relações de propriedade, sugere então que “aquilo que parece o colapso final deve, na verdade, ser convertido num período fundador de novas idéias e modelos, um período que abrirá o caminho para a sociedade, o Estado e a economia do século XXI” (BECK, 2000, p. 5). Ele apresenta, assim, diante de uma devastação, uma ideologia-utopia eliela de esperanças vazias para os próximos anos.

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Além disso, é notório que se avoluma no mundo um contingente cada vez mais expressivo de força de trabalho que não pode mais ser aproveita­do para a valorização do capital. Aqui se reflete de modo dramático a ten­dência concentradora de riqueza inerente ao processo de acumulação ba­seado na inteligência coletiva, na exploração rentista das formas subalter­nas de organização empresarial e na hegemonia do mundo da finança so­bre o mundo da produção. Este último baseia-se, por um lado, no uso superintensivo de parte da força de trabalho e, de outro, ao modo de uma contrapartida demoníaca, na exclusão completa daquela parte da popula­ção que não está minimamente qualificada em seus próprios termos. À medida que a ciência penetra na produção agrícola e reduz o contingente de força de trabalho necessário nas áreas rurais, mais também o mundo se torna urbanizado. As cidades, especialmente as do Terceiro Mundo, tornam- se então depósitos de população excedente para o capital, desenvolvendo- se aí não apenas uma cultura da insegurança, mas uma cultura da barbárie" (mas também, talvez, de revolução).

Para finalizar, é preciso lembrar que o capital nunca esteve tão livre na história: ele pode atravessar continentes e oceanos em frações de segun­dos. Os Estados nacionais, assim como as forças políticas tais como gover­nos, parlamentos, sindicatos, etc., prisioneiros de suas limitações territoriais e institucionais, passam a enfrentar dilemas shakespearianos: continuar ou não continuar aceitando as reformas que desregulam e flexibilizam o mer­cado de trabalho, reduzem os benefícios do sistema de seguro social, abrem os mercados de capitais para os fluxos de capital de curto e longo prazo, etc. Se a acumulação entra em estagnação, aprofunda-se a degradação da sociedade; se a acumulação prossegue, cresce o desregramento do mun­do. Como as alternativas existentes dentro dos limites da propriedade priva­da dos meios de produção não representam mais do que o aprofundamento da insegurança e do caos social, impõe-se como necessidade a renovação do projeto socialista. Ela tem necessariamente de se fundar na organização da produção como base na inteligência coletiva, no planejamento descen­tralizado, mas coerente, e na abolição da relação de capital.

" Davis (2004) descreve, nesse sentido, o mundo atual e futuro como um “planeta de favelas”,

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P ó s -g ra n d e in d ú s tr ia e n e o lib e ra lis m o1

Introdução

Faz-se normalmente nos dias de hoje uma conexão estreita entre neoliberalismo e mundialização do capitalismo (a qual é também chama­da, de modo superficial, de globalização). Por mundialização, entende-se comumente a reconstrução, a unificação do mercado mundial sob a égide do capital internacional e financeiro; por neoliberalismo, compreende-se o pensamento político, assim como a prática de governança e de rees­truturação do Estado, originado do predomínio do capital financeiro em rela­ção ao capital produtivo, em nível global. Essa visão será aqui criticada até certo ponto. Para apresentá-la de modo sintético, será feito uso aqui de uma condensação de idéias que se encontra no livro Economia marxista do ca­pitalismo, de Gerard Duménil e Dominique Lévy (2003). Por mundialização, tais autores entendem uma continuidade e uma ruptura no processo histó­rico de desenvolvimento capitalista:

A mundialização é um processo muito antigo que Marx havia identificado como uma grande tendência do capitalismo (a construção do mercado mundial). A progressão das trocas, o fluxo dos capitais e a exploração global (do mundo) não são invenções do neoliberalismo. A etapa atual caracteriza-se pelo cresci­mento das operações de troca e dos fluxos internacionais de capitais, a expan­são das sociedades multinacionais e um novo papel das instituições financeiras internacionais (Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial, etc.). (DUMÉNIL; LÉVY, 2003, p. 28-29)

Já para caracterizar o neoliberalismo, Duménil e Lévy referem-se a novos modos de funcionamento do capitalismo que decorrem dessa mundialização:

O neoliberalismo remete aos novos modos de funcionamento do capitalismo, tanto no centro como na periferia: uma nova disciplina do trabalho e da gestão

1 Uma versão deste capítulo foi publicada no número 25 da Revista de Economia Política (PRADO, 2005, p. 11 - 27) .[favor informar título da versão, cidade de publicação, paginação do artigo e mês/ano da publicai,aci, para inclusão na lista de referências][pendência permanece] Pós-grande indústria e Neoliberalismo, SAo Paulo, janeiro-março de 2005, p. 11-27.

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dos ganhos dos credores e dos acionistas; o recuo das intervenções estatais em matéria de desenvolvimento ou proteção social; o crescimento espetacu­lar das instituições financeiras; a criação de novas relações entre os setores não-financeiros e financeiros com vantagens para estes últimos; uma nova atitude favorável às fusões e aquisições; uma grande desregulamentação fi­nanceira; um reforço do poder e da autonomia dos bancos centrais cuja ação se concentra na estabilidade dos preços; a determinação de drenar para o centro os recursos da periferia. O neoliberalismo dá novas formas à mundialização, notadamente aquelas da dívida do Terceiro Mundo e estragos causados pela livre mobilidade dos capitais. A característica principal da fase atual é sua extensão gradual ao conjunto do planeta, sua própria mundialização. (DUMÉNIL; LÉVY, 2003, p. 29)

É preciso notar que toda essa caracterização, a qual não deixa de ter seu interesse para o entendimento da questão, concentra-se em apontar rupturas nas formas fenomenais do capitalismo contemporâneo. Ora, assu- me-se aqui que as indagações sobre a natureza da mundialização e do neoliberalismo só podem ser esclarecidas investigando as mudanças que estão ocorrendo na base do modo de produção capitalista, ou seja, na for­ma de subsunção do trabalho ao capital, ou ainda, dizendo de outro modo, na disciplina do capital. Não se procura pensar os fenômenos contemporâ­neos a partir de uma análise da repartição da renda e da riqueza, o que, em última análise, remete às lutas de classes, de modo imediato. Diferente­mente, procura-se pensá-los a partir de seus fundamentos econômicos es­truturais. A questão do modo histórico pelo qual o neoliberalismo se impõe e se espalha no mundo deve ser enfrentada apenas num segundo momen­to - o que, aliás, não é feito neste texto.

O capitalismo, como já foi dito, está saindo da etapa de grande indús­tria para passar para a fase da pós-grande indústria e a matéria privilegiada da relação de capital - este, lembrando, só existe por meio de suas formas - está se modificando. Se antes a matéria por excelência do capital era o sistema de máquinas, agora é o que Marx denominava de inteligência cole­tiva (general intellect), ou seja, uma força produtiva social inerentemente desterritorializada que pode estar, em princípio, em todos os lugares ao mesmo tempo. Se antes o capital produtivo aparecia, sobretudo, como ati­vo físico (máquina, fábrica, etc.), agora ele se configura de modo especial como ativo intangível (informação, conhecimento, etc.). São diversas as conseqüências dessa transformação do modo de produção: dentre essas,

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1 1 9PÓS-GRANDE INDÚSTRIA E NEOLIBERALISMO

cumpre destacar aqui que o capitalismo se vê, finalmente, como capitalis­mo2. Em particular, essa transformação põe a descoberto o capital como sugador da força de trabalho social, ficando, assim, comprovadas no nível da aparência, ao se considerar o mundo como um todo, as teses de Marx acerca da exploração impiedosa e do pauperismo.

A argumentação aqui desenvolvida é uma apropriação crítica da tese de Wallerstein segundo a qual, entre 1968 e 1989, ocorreu o colapso do liberalismo (WALLERSTEIN, 2002). Considera-se que essa tese é impor­tante porque aponta para mudança histórica fundamental. Ela será apro­priada e absorvida neste texto, mas não propriamente como morte do pen­samento liberal, e sim como sua transformação dialética. O advento do neoliberalismo não será entendido aqui apenas como o que vem depois do fim do liberalismo, mas como interversão do próprio liberalismo. Após derivar o liberalismo, seguindo Marx, das contradições do próprio capita­lismo, procura-se mostrar que é o fundo do liberalismo que aparece no neoliberalismo.

Assim, será necessário mostrar que as raízes do liberalismo encontram- se na contradição entre a aparência e a essência do modo de produção capi­talista. Para mostrar a especificidade do neoliberalismo, será preciso distin­gui-lo de dois momentos anteriores do liberalismo, o liberalismo clássico e o liberalismo social - o qual vem a ser uma mudança do liberalismo que aca­bou confluindo historicamente com a social-democracia, originada esta do socialismo. O liberalismo social será entendido como uma primeira negação do pensamento liberal originário3. O neoliberalismo será, então, considerado

2 Perry Anderson nota que os defensores da propriedade privada, no passado, evitaram “propor uma ideologia expressamente capitalista”, mas que, diferentemente, com a chegada do neoliberalismo, “pela primeira v< •/. na história, o capitalismo se proclama como tal, numa ideologia que anuncia a chegada de um ponto final no desenvolvimento social, uma construção de uma ordem ideal baseada em mercados livres, além da qual qualquer aperfeiçoamento substancia! seria inimaginável” (ANDERSON, 2003, p. 84 e p. 87). Ele nada diz, entretanto, sobre as condições materiais históricas que tornaram essa ideologia possível.

3 Wallerstein identifica também essa primeira mudança, mas não como negação; em conseqüência, ele apenas poderá enxergar o neoliberalismo, erroneamente, como um retorno: “O que é importante perc< ■! >< i é que esse ‘contra-ataque’ é uma reversão de estratégia pelas classes privilegiadas, ou ainda um retorno à estratégia do pré-1848, na qual se administrava o descontentamento dos trabalhadores conjugando indiferença e repressão. Após 1848, até 1968, as classes privilegiadas tentaram apaziguar a classe trabalhadora alravcS da instituição do Estado liberal em combinação com doses de concessões econômicas. A estratégia 1« >1 politicamente vitoriosa. Elas apenas reverteram essa estratégia quando aconta tornou-se muito alia, o que apenas ocorreu recentemente." (apud BEYNON, 2003)

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ELEUTÉRIO PRADO - DESMEDIDA DO VALOR

como um terceiro momento, constituído por uma segunda negação, ou seja, como aquele em que o liberalismo é negado como liberalismo.

Para desenvolver essa tese será necessário, primeiro, fazer distinção en­tre três momentos do desenvolvimento do próprio modo de produção: gran­de indústria competitiva, grande indústria monopolista e pós-grande indús­tria4. Ainda que os períodos históricos característicos dessas formas de disci­plina do capital não coincidam exatamente com os períodos históricos carac­terísticos das formas indicadas de liberalismo5, será estabelecida uma rela­ção lógica entre elas. Procura-se mostrar que a sucessão das formas de libe­ralismo, assim como das formas de Estado capitalista (clássico, intervencionista e neoliberal), guardam relação - estão aí inscritas como pos­sibilidades - com as formas de subsunção do trabalho ao capital. São possi­bilidades, aliás, que apenas conseguem se impor, com idas e vindas, por meio de lutas políticas, no curso da história. Não se pretende aqui, pois, explicar a superestrutura a partir da estrutura econômica da sociedade.

Relaciona-se o liberalismo clássico à subsunção real (formal e material) da grande indústria competitiva, o liberalismo social à subsunção real (for­mal, material e organizacional) da grande indústria monopolista e, finalmen­te, o neoliberalismo à subsunção real (formal, intelectual e societária) da pós- grande indústria. O primeiro momento será tratado como o momento da apa­rência, o segundo como o momento da essência, e o terceiro será encarado como o momento da interversão em que a contradição aparece.

Três momentos do capitalismo

É bem sabido que Marx distingue a subsunção meramente formal e a subsunção real do trabalho ao capital. Ora, para esse autor, trabalho é

' Conforme Dobb (1983, p. 15), o período histórico da manufatura vai de meados do século XVI ao último quartel do século XVIII, quando então se inicia o período histórico da grande indústria. O período da grande indústria, como já se argumentou, termina na década de 70 do século XX, quando então se inicia o período da pós-grande indústria.

J O período de formação do liberalismo clássico vai de meados do século XVIII a meados do século XIX (fisiocracia e economia clássica; Quesnay e Adam Smith são os grandes nomes). O período do liberalismo social vai do final do século XIX até os 30 anos posteriores à Segunda Guerra Mundial (marcado por nomes como John Stuart Mill, Alfred Marshall e John M. Keynes). A partir de então tem-se o período do neoliberalismo (em que avultam os nomes de F. A. Hayek e L. Von Mises). A predominância dessas ideologias tem, entretanto, uma história muito complicada. Ver, por exemplo, Polanyi (1980) e Yergin e Stanislaw (2002).

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atividade orientada para a realização de um fim particular; já capital é trabalho morto que suga o trabalho vivo, valor que se valoriza e que, por­tanto, tem a si mesmo como um fim geral, único e absoluto. Subsunção, pois, significa subsunção do particular ao geral, do plural ao unitário e do relativo ao absoluto.

Para compreender toda essa questão, pois, é preciso começar pelo con­ceito de “processo de trabalho”, cujos elementos são o próprio trabalho, seu objeto e seus meios. O objeto de trabalho é simplesmente a matéria natural (terra), seja na forma bruta seja numa forma já modificada pela mediação do próprio trabalho. Os meios de trabalho são objetos especiais que conduzem a atividade, potenciam a força produtiva do trabalho e que os trabalhadores interpõem entre si mesmos e os objetos de trabalho. Ao processo de trabalho enquanto tal, pois, é inerente a determinação subjeti­va posta pelo trabalhador, já que o objeto moldado por sua atividade preci­sa ter existido antes em sua imaginação, de um modo ideal. Não pode ha­ver, em conseqüência, subordinação do trabalho a uma potência alienante enquanto este permanecer privado, individual e isolado. Eis que a subsunção do trabalho ao capital apenas pode ocorrer num processo coletivo de traba­lho em que a independência, a individualidade e privacidade do trabalha­dor lhe são subtraídas. Dizendo de outro modo, a subsunção do trabalho ao capital está em contradição com o próprio processo de trabalho.

Se há, então, subordinação, o processo de trabalho tem de ocorrer no interior de um processo de produção que transcende o interesse, a vontade e a imaginação do trabalhador e que é, sobretudo e ao mesmo tempo, um processo de valorização. O trabalho agora produz não apenas um produto que tem “valor de uso, mas uma mercadoria, não só valor de uso, mas valor e não só valor, mas também mais-valia” (MARX, 1983a, p. 155). O processo de produção capitalista configura-se como tal quando o trabalhador passa a trabalhar sob o controle do capitalista por meio da venda temporária de sua força de trabalho. Este último detém quase todas as condições neces­sárias para que a produção se realize: possui os meios de produção, as matérias-primas e os instrumentos de trabalho, assim como o dinheiro que pode comprar a força de trabalho, dinheiro este que o trabalhador recebe como salário com o qual compra a própria sobrevivência em sociedade. O trabalho agora pertence ao movimento de um processo de produção admi­nistrado pelo capitalista. Este o controla como um todo, assim como o des-

PÓS-GRANDE INDÚSTRIA E NEOLIBERALISMO

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tino do produto, o qual lhe pertence como mercadoria. Entretanto, ele só não pode possuir o próprio trabalhador que, em potência ou efetivamente, continua sempre tendo fins que lhe são adversos.

Na origem do novo modo de produção, no entanto, o agente de sua constituição histórica - o capitalista - apenas podia contratar a força de trabalho existente, tal como esta se havia desenvolvido anteriormente. Aqueles que se tornavam inicialmente disponíveis para vender sua força de trabalho no mercado haviam-se instruído como trabalhadores em prá­ticas de trabalho artesanais e campesinas, as quais se caracterizavam por serem processos de trabalho autênticos. Nesse primeiro momento, por­tanto, não poderia haver subsunção real do trabalho ao capital, já que isto só vai ocorrer quando os fins postos pelo trabalhador deixarem de preva­lecer na prática de trabalho, no processo de geração do produto. Dito de outro modo, a subsunção real requer uma restrição progressiva da subje­tividade do trabalhador, a subordinação de seus fins aos fins da produção capitalista. De início, pois, apenas poderia haver a subsunção formal do trabalho ao capital, cuja expressão legal é o contrato de trabalho individu­al. Nos conceitos de Marx, subsunção formal significa que o processo de trabalho enquanto ainda processo de trabalho converte-se em instrumen­to do processo de valorização.

Daí que, de um ponto de vista lógico, a subsunção formal seja compa­tível apenas com a extração da mais-valia absoluta, ou seja, do mais tra­balho que é arrancado do trabalhador pelo prolongamento da jornada de trabalho. A extração da mais-valia relativa só pode vir a ocorrer quando o capital passa a revolucionar não apenas as relações entre os diversos tra­balhadores, mas também a natureza do trabalho e os modos de trabalhar, por meio da transformação do processo produtivo pela aplicação consci­ente da ciência e da tecnologia. Agora, os trabalhadores tornam-se mate­rialmente subordinados ao capital, ou seja, tornam-se apêndices de um processo de produção cujo cerne é um sistema de máquinas. Quando isto ocorre, não é mais o trabalhador que interpõe os meios de trabalho entre si mesmo e o objeto de trabalho, mas ele próprio é interposto entre este último e o corpo do capital (o sistema de máquinas). Se antes os modos dc trabalhar eram determinados pelo princípio subjetivo, ou seja, pela habilidade c* criatividade dos próprios trabalhadores, agora eles estão de­

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terminados por um princípio objetivo, ou seja, por uma lógica sistêmica de produção orientada pela acumulação que determina os fins parlicula res perseguidos pelos trabalhadores. Tem-se, assim, uma primeira nei|a ção do processo de trabalho.

De um ponto de vista histórico, a subsunção formal do trabalho ao ca| >i tal está associada ao período da cooperação manufatureira, quando enta< > predomina a extração de mais-valia absoluta. Nessas condições de produ ção, a possibilidade de obtenção de mais-valia relativa é limitada. Somenle com o advento da grande indústria, quando a subsunção real do trabalho ao capital torna-se efetiva e se generaliza, é que passa a predominar o mo< l< > relativo de extração de mais-valia em relação ao absoluto, o qual, aliás, nunca desaparece. Quando o capital passa a controlar o modo de trabalhar, cc >i i segue obter aumentos da produtividade do trabalho que reduzem o cuslo de reprodução da força de trabalho, diminuindo conseqüentemente a ne­cessidade de capital variável para gerar um determinado montante de val< >i adicionado, o que se traduz, ao final, em aumento da mais-valia.

É preciso distinguir, como se sabe, dois períodos nos dois séculos <!<• duração da grande indústria: o concorrencial e o monopolista. A gcrèn cia científica, o controle dos tempos e dos movimentos (taylorismo), a produção em série e a massificação do produto (fordismo), tudo isso | >ei tence ao modo de produção da grande indústria, mas marca o advenlo de um novo período caracterizado pela predominância das grandes em presas monopolistas na dinâmica de acumulação capitalista. Sob esses

termos não se devem entender apenas novas técnicas de organização da produção, mas procedimentos que moldam e controlam os trabalhado res. Eles estendem, aperfeiçoam e efetivam os sistemas de produção nu cleados pelos sistemas de máquinas, os quais levam a um grau mais alio a supressão dos processos de trabalho enquanto tais, com a concomilanle constituição de gigantescos macrossujeitos objetivos capazes de produ zir grandes volumes de mercadorias. Trata-se, portanto, da plena efetivação de lógicas de produção objetivas que aparecem como realiza ções próprias do capital, mas que estão de fato a serviço de sua acumula ção acelerada. Os autômatos fabris criados pela primeira revolução in dustrial transformaram-se, agora, em grandes empresas com muitos ni veis hierárquicos e ampla complexidade organizacional. A subsunção real

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torna-se mais perfeita no chão de fábrica e é, ao mesmo tempo, estendida também para os escritórios, tornando-se inclusive organizacional6.

É importante notar que, com o advento do capitalismo monopolista, a geração de superlucro assume uma importância especial na dinâmica da acumulação capitalista. E certo que ela é inerente ao processo da reprodu­ção ampliada. Entretanto, como ressalta Mandei, a busca para manter as taxas de lucro acima da média de modo durável por parte dos capitais mais poderosos apenas se torna uma norma quando o capitalismo concorrencial é substituído pelo capitalismo monopolista7. Eis que o monopólio *seja ele da terra, da reserva de força de trabalho ou da tecnologia *é que permite a obtenção de superlucros. Estes surgem de diversas maneiras: da proprieda­de privada do solo, da vantagem de produtividade detida por certos capi­tais, do rebaixamento do preço pago pela força de trabalho, da compra de matérias-primas baratas, etc. Nas relações entre centro e periferia capitalis­ta, as taxas de lucro acima da média ocorrem por causa das diferenças entre as taxas de lucro na metrópole e nas colônias, por meio da troca desi­gual e por meio da cobrança de rendas tecnológicas e financeiras.

Ora, essas duas últimas formas de extração de mais-valia por parte dos grandes capitais assumem um caráter decisivo quando a grande indústria é gradativamente substituída pela pós-grande indústria. Sem que as formas anteriores, relativa e absoluta, deixem de existir, a mais-valia extraordinária, sob a forma de renda tecnológica e financeira (oriunda de direitos de repro­dução, marca e propriedade intelectual), torna-se agora um meio privilegia­do de obtenção de ganhos monopolistas.

Segundo Marx, do próprio desenvolvimento da grande indústria deve surgir um terceiro momento do modo de produção capitalista, modo este que aqui está sendo denominado de pós-grande indústria (FAUSTO, 2002, 128-140). O autor de O Capital escreveu nos Grundrisse de 1857-1858 que, “à medida que a grande indústria se desenvolve, a criação da riqueza efeti­va torna-se menos dependente do tempo de trabalho e do quantum de tra­balho utilizado do que da força dos agentes [isto é, da ciência e da tecno­logia] que são postos em movimento durante o tempo de trabalho” (apud

6 Ver, sobre isto, Braverman (1974, p. 293-358)

' Ver, sobre isto, Mandei (1982, p. 51-54).

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FAUSTO, 2002, p. 129). Dito de outro modo, o valor transformado em preço de produção já não é mais apenas um quantum de tempo de trabalho, mas se torna influenciado, de modo qualitativo, pelos conhecimentos ci­entíficos e tecnológicos mobilizados no processo de produção com o con­curso necessário dos trabalhadores, durante o tempo de trabalho. A força produtiva social agora se encontra plenamente objetivada, não apenas em máquinas, sistemas de máquinas e empresas sistêmicas, mas também no que Marx denomina de “compreensão da natureza” ou “intelecto ge­ral”. Quando isto ocorre, quando os sistemas de produção tornam-se mais e mais automatizados por meio do emprego da microinformática que ob­jetiva essa compreensão, muda a função do trabalhador. Para empregar os termos de Marx, pode-se dizer que, então, “o trabalho não aparece mais até o ponto de estar incluído no processo de produção, mas o homem se relaciona antes como guardião e regulador do processo de produção” (apud FAUSTO, 2002, p. 130).

O trabalhador da pós-grande indústria - cujo período histórico se inicia, aproximadamente, no último quartel do século XX - torna-se, pois, guardião e regulador do processo de produção. Ora, isto é crucial, pois marca, segun­do Fausto, uma segunda negação do processo de trabalho. Nos limites do capitalismo, o trabalhador continua não determinando os fins de sua ativida­de, não se torna sujeito de sua própria atividade produtiva, mas deixa de estar inserido como peça no processo de produção. Nessa condição, entretanto, é ainda mantido subordinado de forma real ao capital. Ele é agora chamado a exercer um papel ativo e co-responsável no processo produtivo; em conseqü­ência, sua compreensão maior ou menor do processo tem de estar a serviço desse processo. Assim, se ele deixa de estar intercalado, mesmo se é liberto materialmente do processo de produção8, o sistema de produção, no qual se encontram objetivados conhecimentos científicos e tecnológicos extrema­mente avançados, passa a exigir dele um comprometimento subjetivo, de

8 Coriat distingue, nesse aspecto, as indústrias de processo contínuo em que os trabalhadores, agora polivantos, atuam de fato como supervisores e controladores externos do processo de produção, das indústrias de produção em série, utilizadoras intensivas de robôs, em que os trabalhadores continuam submetidos ao ritmo de produção. Nesse caso, ele diz que os trabalhadores atuam como acompanhantes próximos do processo de produção. Isto mostra que as novas forças produtivas, pelo menos dentro da disciplina do capital, apresentam pouco potencial de liberação. Ver Coriat (1988, p. 111-116).

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atenção permanente, um envolvimento intelectual com seu adequado funci­onamento. A pós-grande indústria é caracterizada, por isso, pela subsunção formal, intelectual e societária do trabalho ao capital.

Na pós-grande indústria, a matéria por excelência do capital - ou seja, a matéria principal que dá suporte às suas formas - não é mais a máquina, o sistema de máquina, a fábrica ou a fazenda em sua materialidade corpórea. A matéria privilegiada do capital, aquela em que recai o grande investimen­to porque aí está a fronteira da acumulação e a fonte dinâmica da geração de lucros, é agora o próprio conhecimento científico e tecnológico. Assim o capital não se associa, sobretudo, aos ativos tangíveis, mas aos ativos intan­gíveis ou imateriais - objetos de um novo qüiproquó fetichista. É por isso que o emprego de expressões como “capital conhecimento”, “capital hu­mano” e “capital intelectual”, que confunde a forma e a matéria do capital, generaliza-se. É por isso que os chamados direitos de propriedade intelec­tual, assim como as rendas tecnológicas, assumem importância crescente no capitalismo contemporâneo (PERELMAN, 2003). É por isso, ainda, que os sistemas de patentes alargam sua função na produção, seja integrando novas áreas, estabelecendo direitos sobre as idéias em si mesmas ou au­mentando o período de proteção (ANDERSEN, 2003, p. 36). Defende-se, in­clusive, que qualquer “new idea o f doing business” poderia ser agora pa­tenteada, desde que “útil e concreta”!

Ciência e tecnologia são bens sociais e públicos, mas se tornam objetos de investimento capitalista, transformando-se em fonte de renda de mono­pólio. Por outro lado, a produção de tecnologias torna-se uma atividade econô­mica mais e mais separada da produção propriamente dita de mercadorias. Assim, uma parte importante do capital produtivo confunde-se com o capital financeiro - o qual foi desregulado nas últimas três décadas do século XX - adquirindo, inclusive, a sua lógica de valorização. Como a desregulamenta- ção financeira após 1980 mostrou-se condição para a reestruturação da do­minação do capital, na forma da pós-grande indústria, surge a percepção de que o neoliberalismo seja o domínio do capital financeiro.

Raízes das formas de liberalismo

Wallerstein (2002, p. 167) observa que o pensamento liberal sempre foi contraditório: afirmava que todos os indivíduos e todos os povos têm direi-

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los iguais, mas dava suporte a um sistema caracterizado, seja no nível naci( >- nal seja no nível internacional, por uma desigualdade gritante. O liberalis­mo, entretanto, não enxergava aí contradição alguma: ele via apenas dife­renças entre indivíduos que espelhavam e estimulavam a livre competição. Tais diferenças são, pois, o resultado necessário de um processo social pro­gressivo baseado na livre iniciativa das pessoas. Daí - como também apon ta Wallerstein - que tenha sempre posto ênfase no processo. A economia de mercado origina uma sociedade dinâmica, que no curto prazo premia uns - ou seja, aqueles que trabalham mais, poupam mais, têm mais com­petência, etc. - em relação a outros e no longo prazo premia a todos porqi ie a grande maioria melhora. Por isso o liberalismo costuma afirmar o aperfei çoamento racional do sistema por meio da engenharia social, que opera aos poucos, corrige as distorções e abre novas oportunidades, gerando, pelo menos como tendência, uma sociedade justa.

Porém, isto não está mais no horizonte; ademais, a negação dessa pre­missa assinala a negação do próprio liberalismo enquanto tal. Para compre­ender essa e outras antinomias tão características do capitalismo é preciso começar por compreender o liberalismo em geral e, em particular, em sua forma clássica.

A contradição do pensamento liberal está enraizada no próprio capitalis mo. Assim como o Estado9, esse pensamento político deve ser derivado da contradição entre a aparência e a essência desse modo de produção. Dito de outro modo, ele decorre da contradição entre a circulação mercantil, superfí­cie em que os homens aparecem como indivíduos, iguais possuidores de propriedade, livres e racionais, e a sua essência, em que esses homens são membros de classes sociais, inerentemente desiguais e que atuam como suportes de relações sociais que se reproduzem cega e infinitamente. Na apa­rência da circulação, trabalhadores e capitalistas trocam equivalentes, mas abaixo dessa superfície encontra-se o contrário; a reprodução reiterada da relação social de produção mostra o fundo do sistema, ou seja, que o traba lho morto se nutre do trabalho vivo e que aquela relação era verdadeiramei i te uma relação entre desiguais, uma relação por meio da qual a classe dos

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5 Sobre a derivação do Estado a partir de O Capital, consultar Fausto (1987, p. 287-329).

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capitalistas apropria-se da riqueza produzida pela classe dos trabalhadores. Num trecho bem conhecido, Marx diz:

A esfera da circulação ou do intercâmbio de mercadorias, dentro de cujos limi­tes se movimentam compra e venda de força de trabalho, era de fato um verda­deiro éden dos direitos naturais do homem. O que aqui reina é unicamente Liberdade, Igualdade, Propriedade e Bentham. [...] Ao sair dessa esfera da cir­culação simples ou da troca de mercadorias, da qual o livre-cambista vulgaris extrai concepções, conceitos e critérios para seu juízo sobre a sociedade do capital e do trabalho assalariado, já se transforma, assim parece, em algo a fisionomia de nosso dramatis personae. O antigo possuidor de dinheiro mar­cha adiante como capitalista, segue-o o possuidor de força de trabalho como seu trabalhador [...]. (MARX, 1983a, p. 145)

É apenas fiando-se nessa compreensão superficial do capitalismo, em que este é tomado como um sistema constituído essencialmente por merca­dos, que um autor como Adam Smith pode estabelecer um dos argumentos mais fundamentais do liberalismo econômico, a saber, o argumento da mão invisível. Eis que não se tem aqui apenas uma concepção que se refere ao caráter homeostático de um funcionamento descentralizado, baseado em decisões individuais localmente informadas, mas também uma afirmação sobre o caráter espontaneamente beneficente do sistema econômico capita­lista. A mão invisível afiança que há uma coincidência do interesse individual com o interesse geral e se constitui, por isso, numa justificativa para restringir ao máximo a ação do Estado (este deve prover apenas infra-estrutura, defe­sa, segurança e justiça), deixando plena liberdade de ação aos interesses privados. É claro que o liberalismo clássico atém-se ao momento formal de relação entre o trabalho assalariado e o capital.

O liberalismo clássico caracteriza-se pela defesa da liberdade de co­mércio, do mercado livre - especialmente da compra e venda de força de trabalho - e da estabilidade do padrão monetário. É, pois, ideologia que afirma e acentua o aspecto positivo e superficial do modo de produção ca­pitalista (seu primeiro momento) para bloquear uma compreensão profun­da de sua natureza (ou de seu segundo momento). “Ele nega o segundo momento no nível das idéias, exatamente para que ele seja posto no nível da base ‘material’” . Dito de outro modo, como ideologia, ele “guarda ape­nas o momento da igualdade dos contratantes negando a desigualdade das classes, para que, contraditoriamente, a igualdade dos contratantes seja

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negada e a desigualdade das classes seja posta” (FAUSTO, 1987, p. 2!)!) 300). Assim como o Estado, o pensamento político ideológico é imprescin dível para a conservação do capitalismo; ambos, o primeiro no plano da ação coletiva concentrada e da violência preventiva e repressiva e o segui i do no plano do bloqueio da formação da consciência crítica, têm como função conservar a identidade de uma totalidade social contraditória.

Justamente porque são forças de conservação, o Estado capitalisla c a ideologia liberal têm de acompanhar o próprio desenvolvimento contradi tório do modo de produção capitalista, adaptando-se às mudanças mais profundas que ocorrem nas forças produtivas e, assim, nas relações de pro dução e na correlação de força entre as classes. Fausto argumenta que as leis de desenvolvimento do capitalismo (tendência à queda da taxa de lu cro, por exemplo) e as lutas sociais e históricas da classe trabalhadora ¡m puseram novas prioridades ao Estado capitalista, impondo mudanças que se refletiram também no pensamento liberal. Diante dos desafios do capita lismo monopolista e das perturbações e ameaças representadas pelo agra vamento do conflito social, o Estado teve de começar a atuar, especialmcn te no século XX, como uma força compensatória e de balanceamento do sistema. Foi assim que o liberalismo clássico veio a ser modificado prlo liberalismo social, que se caracterizou, sobretudo, pela defesa prudente da regulação estatal na atividade econômica.

É certo que a intervenção do Estado é uma constante na história do capitalismo10. A intervenção defendida pelo liberalismo social e praticada pelo Estado regulador, porém, destaca-se por ser equilibradora, ou melhor, reequilibradora. Ela concerne à regulamentação da concorrência (para dill cultar a permanência no tempo dos lucros extraordinários), ao balaii ceamento das forças entre capitalistas e trabalhadores (para moderar os conflitos de classe e redistribuir os benefícios do crescimento), à suplc* mentação das funções econômicas exercidas pelos capitais privados (o Estado transforma-se num agente econômico empreendedor). O princípio

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10 Ninguém melhor do que Polanyi criticou a idéia de que o capitalismo prescinde da intervenção estalai. "A história econômica mostra que a emergência de mercados nacionais não foi, de forma alguma, o resullac l< m la emancipação gradual e espontânea da esfera econômica do controle governamental. Pelo contrário, o merr, n l< > foi a conseqüência de uma intervenção consciente, e às vezes violenta, por parte do governo que impA* à sociedade a organização do mercado, por finalidades não-econômicas.” (POLANYI, 1980, p. 244)

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norteador do liberalismo social é que o mercado auto-regulável, deixado a si mesmo, é autodestrutivo e que, por isso, ele requer a regulação do Esta­do. O resultado histórico dessa forma de intervenção foi a constituição do que acabou sendo chamado de Estado de bem-estar social. Nos países da periferia, em que faltavam as condições materiais de desenvolvimento para chegar rapidamente ao amortecimento das lutas de classes, o Estado tor­nou-se desenvolvimentista.

O liberalismo social surge historicamente quando a aparência do modo de produção é desmentida na prática social, quando se torna perigoso para os capitalistas aferrarem-se à mera forma da relação social de produção, quando a conservação do sistema torna-se ameaçada pela radicalidade das lutas sociais e pelas crises econômicas que as tornam ainda mais profun­das. Então, a ideologia não pode mais se sustentar apenas na aparência da relação social; ela precisa agora, de um certo modo, ter em conta a própria essência dessa relação. A fórmula que emerge consiste em apresentar a essência, não como essência, mas como diferença: há duas forças sociais em confronto e elas são distintas; uma delas é mais fraca do que a outra; uma delas consome insuficientemente e a outra poupa demais; uma delas não encontra ocupação e a outra não está criando ocupações em número suficiente para que seja mantida a paz social. Nessa perspectiva, afigura-se que cabe ao Estado atuar como força equilibradora; a política econômica keynesiana e a política social-democrática, a partir dos anos 30 do século XX, podem então passar a ocupar o centro do cenário. Não é mais, pois, a identidade, a diferença que oculta a contradição.

O liberalismo social foi a ideologia apropriada ao período da grande indústria, quando sobrevieram as crises do final do século XIX e quando o capitalismo tornou-se monopolista. Na história do pensamento econômico, entretanto, ele aparece já nas teses de John Stuart Mill. Segundo esse autor, os fenômenos da produção estão subordinados às leis naturais, caracteri­zadas por um determinismo que não pode ser modificado pelo homem. A repartição, entretanto, pode ser objeto de legislação humana e esta pode promover uma melhor conciliação do interesse geral com os interesses pri­vados. A essência do capitalismo não aparece nessa visão política como exploração, mas como má-repartição da renda e da riqueza, como diferen­ça e desigualdade que o reformismo pode modificar. “A sociedade pode

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submeter a distribuição da riqueza a quaisquer normas que lhe pareçam melhores.” (MILL, 1983, p. 182)

De um ponto de vista lógico, o liberalismo social corresponde a um re­conhecimento mistificado da subordinação real do trabalho ao capital. Com a grande indústria - note-se, de início -, as forças produtivas sociais do tra­balho aparecem como força do capital, de tal modo que a contribuição dos trabalhadores passa a figurar apenas como força coletiva suplementar. Marx mesmo enfatizou que, por isso, o modo de produção torna-se especifica­mente capitalista. Não só porque a subordinação torna-se material - a má­quina é matéria adequada à forma capital e a força de trabalho massificada torna-se cada vez mais adequada à exploração do capital mas também por causa da figura real do modo de produção.

As forças produtivas sociais do trabalho [...] esse desenvolvimento da força pro­dutiva do trabalho objetivado, por oposição ao trabalho mais ou menos isolado dos indivíduos dispersos, etc., e com ele a aplicação da ciência - esse produto geral do desenvolvimento social - ao processo imediato de produção; tudo isso se apresenta como força produtiva do capital, não como força produtiva do trabalho; [...] A mistificação implícita na relação capitalista em geral desenvol­ve-se agora muito mais do que podia ou teria podido se desenvolver no caso da subsunção puramente formal do trabalho ao capital. Ademais, é aqui que o significado histórico da produção capitalista surge pela primeira vez de manei­ra cabal (de maneira específica), precisamente por força da transformação do processo imediato de produção e do desenvolvimento das forças produtivas sociais do trabalho. (MARX, 1978b, p. 55-56)

É a realidade da grande indústria monopolista, entretanto, que mina a aparência isonômica da sociedade. De um lado, os capitais, investidos em corpos mecânicos colossais, ou seja, em fábricas que produzem em grande escala, figuram como grandes potências produtivas; de outro, os trabalhado­res, os verdadeiros produtores, aparecem como massas que vivem na pobre­za e na insegurança. As lutas sociais tornam-se mais ameaçadoras. Isto sus­cita mudanças. A forma do contrato de trabalho deixa de ser individual para se transformar em contrato coletivo, intermediado de algum modo pelo Esta­do. Essa mudança reflete, no plano jurídico, a negação da igualdade das par­tes assumida na relação meramente formal entre capitalistas e trabalhadores assalariados. Devido, pois, às próprias características da subsunção material, a essência do modo de produção aparece até certo ponto e, por isso mesmo,

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deve aparecer de um modo atenuado, não como contradição, mas como relação de uma parte forte, o capital, com uma parte fraca, o trabalho, que requer inclusive a intervenção compensatória do Estado.

O otimismo liberal clássico transforma-se no precavido liberalismo so­cial: a mão invisível do mercado - reconhece-se - precisa até certo ponto do braço poderoso do Estado. Entretanto, já nos anos 1930 e principalmen­te no pós-guerra alguns economistas liberais (ditos também libertários!) começaram a temer as conseqüências dos arranjos econômicos, sociais e políticos, os quais legitimamente podem ser chamados também de social- democratas; segundo eles, estes arranjos estavam minando o capitalismo. A essência do argumento de Hayek, por exemplo, não incide em identificar a produção capitalista com uma ordem natural que se impõe por determi­nação de leis férreas, mas consiste em dizer que essa ordem é moral, que foi constituída de modo espontâneo, mas é politicamente frágil, e, por isso, deve ser preservada intencionalmente, já que só ela é consistente com a liberdade do empreendimento privado. Ora, com a crise dos anos 1970 - queda da taxa de lucro, estagflação, etc. - o neoliberalismo sai dos peque­nos círculos de intelectuais de direita para ganhar o comando da política mundial11. Assim, acaba aos poucos a política de conciliação relativa ofere­cida pelo capital ao trabalho assalariado.

Enfim, o neoliberalismo

O Estado, para o liberalismo clássico, deve ser economicamente passi­vo; para o liberalismo social, ele deve regular ativamente a atividade econô­mica; já para o neoliberalismo, ele deve ser um agente econômico ativa­mente passivo. No dizer de Louis Baudin, um autor dessa corrente de pen­samento, “o Estado deve ser um soberano que prepara sua própria abdica­ção” (apud HUGON, 1972, p. 152). Deve ser, pois, um Estado que cria ativa­mente as condições para a acumulação de capital, que protege os monopó­lios das crises econômicas, que enfraquece o poder dos sindicatos de tra­balhadores assalariados, que despoja os trabalhadores da seguridade soci­

" Essa historia é contada como urna grande conquista, do ponto de vista neoliberal, por Yergin e Stanislaw (YERGIN; STANISLAW, 2002).

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al, que privatiza as empresas públicas, que transforma a oferta de bens pu blicos (como as estradas, os portos, etc.) em serviços mercantis, que não só levanta, enfim, os obstáculos ao funcionamento dos mercados e das 0111

presas, mas é capaz de criar as condições para que estas últimas operem de modo lucrativo.

Não se entende o neoliberalismo se este é compreendido como uma reversão ao liberalismo clássico - ou como renascimento deste último. 1’ois, nessa última doutrina, o Estado nunca pode comparecer como agente eco nômico. Ora, sob a cobertura ideológica do liberalismo social e dianle de necessidades históricas concretas postas pelo desenvolvimento do modo de produção capitalista, o Estado acabou assumindo diretamente funções econômicas complementares às das empresas privadas. Ele mesmo, poi exemplo, instituiu bancos de investimento e se associou, por esse meio, ao capital privado. Ele mesmo passou a atuar como proprietário de empresas, encarregando-se da produção em setores de base ou estratégicos, com o fim de completar a estrutura industrial das nações. Ele passou a regular o fluxo de dinheiro e do crédito por meio de bancos centrais.

O neoliberalismo não é a doutrina do Estado mínimo12. Ele não isen ta o Estado das atividades de complementação econômica. Ao contrá­rio, para ele o Estado deve preencher ativamente os vazios da malha produtiva e financeira, mas deve fazê-lo, não por meio de empresas pró­prias, mas preferencialmente adjudicando as atividades econômicas complementares, por meio de contratos de gestão, às empresas priva das. Entretanto, quando isto não é possível, como no caso da gestão mo­netária, o neoliberalismo propugna pela privatização funcional (ou seja, por uma gestão que é colocada nas mãos de uma elite tecnocrática que atua na esfera pública, de fato, como preposto do setor privado). Com o neoliberalismo, o Estado torna-se diretamente comprometido com a recu peração e manutenção da taxa de lucro num nível adequado para a con tinuidade do capitalismo.

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12 Uma citação do presidente do Banco Mundial, James D. Wolfensohn, é bem ilustrativa. Segundo rl<\ “longe de fornecer evidência para a defesa de um Estado mínimo, as experiências bem-sucedidas de desenvolvimento mostraram que este requer um Estado efetivo, que possa ter um papel facililadoi, catalítico, encorajador e complementador das atividades dos indivíduos e dos negócios privados” (apud HILDYARD, 1997, p. 5).

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O neoliberalismo - foi dito na introdução deste trabalho - é a segunda negação do liberalismo. Se o liberalismo social representa, de certo modo, uma consciência neutralizada da subsunção do trabalho sob o capital, por­tanto, da essência oculta do capitalismo - e, nesse sentido, vem a ser urna primeira negação -, o neoliberalismo expressa o reconhecimento da con­tradição entre trabalho e capital, ainda que também de um modo mistifica­do. A contradição é assumida como disposição social cujo desenvolvimen­to conflituoso deve ser necessariamente bloqueado e cuja natureza deve ser contrariada por meio de uma unificação de classe. Agora, é a própria contradição que tem de ser objetivamente neutralizada.

Nas condições da pós-grande industria, o capital tem de manter a domi­nação do trabalho de novas maneiras. Então, por um lado o neoliberalismo promove um regime de social darwinismo em todas as esferas da sociedade; por outro, requer um comportamento cooperativo de todas as pessoas da população. Em síntese: ele busca urna corrida de ratos cooperativa! Na presen­ça de crescente anomia, corrupção e violência, quando muitas dificuldades emergem na superfície da sociedade, ele propugna sempre pelo reforço do caráter policial e punitivo do poder da propriedade privada e do Estado.

De certo modo, pois, pode-se dizer que, com o advento da pós-grande indústria, o capitalismo tem de aparecer como capitalismo, quase franca­mente como um sistema baseado em dominação de classe. Ele surge como um sistema de relações sociais assimétricas e polarizadas e que gera ine­rentemente exclusão, mas com o qual é preciso se conformar, já que ele é o único que permite a liberdade empresarial e a democracia representativa. Para os atuais defensores da propriedade privada dos meios de produção esse sistema está constantemente ameaçado pela usurpação dos rendimen­tos dos proprietários privados pelos sindicatos, pelos governos corruptos, pela política tributária criada por legisladores demagogos, pela revolta dos derrotados, etc. A contradição entre trabalho e capital não é, pois, ocultada; ela aparece de certo modo, mas é apresentada como uma espécie de moto- perpétuo concorrencial necessário à boa sociedade, para o qual não há - diz o neoliberalismo - alternativa.

É preciso ver que, diferentemente do que ocorria na grande indústria, na pós-grande indústria a força produtiva social do trabalho não aparece mais como força produtiva do capital, mas sim como atributo da atividade humana coletiva e social. Porém, essa força produtiva não se apresenta como

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resultado que decorre de modo imediato da atividade do trabalhador, mas como algo que é mediado por ele e que advém do intelecto geral: Nessa transformação, não é nem o trabalho imediato que o homem execu­ta, nem o tempo que ele trabalha, mas a apropriação da sua própria força produtiva universal, sua compreensão da natureza e sua dominação dela por meio de sua existência como corpo social - em uma palavra, [é] o de­senvolvimento do indivíduo social que aparece como o grande pilar da pro­dução e da riqueza” (apud FAUSTO, 1987, p. 131).

O velho fetiche do capital, ou seja, a identificação da forma da relação de capital com a máquina, o sistema de máquina e a materialidade da fábrica, perde força na sociedade. É certo que o capital pode apossar-se de conheci­mentos aplicáveis à produção, por exemplo, por meio de patentes, mas as patentes, sem engano, mostram-se como forma do capital cuja existência depende de uma proteção jurídica direta, sendo consideradas, justamente por isso, direitos de propriedade intelectual. Por outro lado, a totalidade com­plexa constituída pela informação, pelo conhecimento científico e tecnológico ganha expressão como força produtiva. Eis que essa inteligência coletiva é uma força que não pode ser apropriada com um todo, existe necessariamen­te de modo descentralizado, forma uma rede extremamente complicada e está em permanente processo de reconstrução.

Vale lembrar que Marx chama essa capacidade produtiva de “compreen­são da natureza”, distinguindo-a como fonte por excelência da produtividade do homem social no estágio avançado da produção desenvolvida pelo capi­talismo. Ora, essa força produtiva é tanto fonte da riqueza material e imaterial quanto, junto com o trabalho social, do valor e da mais-valia. Sendo algo que tem uma existência espiritual e que existe de modo espalhado na sociedade, aparece, entretanto, junto do trabalho como realização histórica do homem em geral, não mais como atribuição inerente ao capital. Isto não impede, porém, que a economia vulgar venha chamá-lo de “capital humano” e “capi­tal intelectual”. E o faz porque os capitalistas, como classe e como indivíduos, continuam proprietários dos meios de produção em geral e, portanto, das condições do trabalho, mesmo quando elas se encontram na cabeça dos trabalhadores. O enigma dessas duas expressões revela-se quando se perce­be que a forma da relação de capital aparece do lado da classe proprietária, mas que a matéria sobre a qual essa forma incide surge como propriedade * inerente à força produtiva da classe não-possuidora.

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Note-se, em adição, por um lado, que agora não há mais adequação entre a matéria que dá suporte à forma do capital, ou seja, o conhecimento, e esta mesma forma, e que, por outro lado, a força de trabalho que mobiliza o conhe­cimento e que faz com que a produção não pare, que empenha para tanto a própria subjetividade no processo de produção, não é mais perfeitamente apro­priada à exploração do capital. É por isso mesmo que a dominação do capital, longe de se abrandar, tem de se tornar intransigente e totalizadora, estenden­do-se não apenas sobre o tempo de trabalho, mas também para fora desse tempo, para a vida do trabalhador como um todo. Este último tem, então, de se tomar um trabalhador de corpo e alma da empresa capitalista. Mas, desse modo, o capital, que agora perdeu grande parte de sua aparência como força produti­va material, revela sua essência, pois se afigura como uma forma de sugar a riqueza gerada pela atividade social - uma atividade que une indissoluvelmen­te o trabalho social com o saber sobre os processos de produção, saber este que se transforma mais e mais de instrumento de apropriação da natureza em capacidade de reorganização compreensiva da natureza.

O neoliberalismo é uma forma política em que a unidade social é im­posta por uma ideologia abrangente (educação, alinhamento “voluntário”, propaganda, espetáculo, etc.) sempre que possível, mas pela força (admi­nistração do medo, vigilância do grande irmão, ações militares, terror de Estado, etc.) sempre que necessário.

Conforme o neoliberalismo, o Estado dever atuar, sem qualquer vergo­nha, como agente que promove os interesses capitalistas. Representa a op­ção conservadora diante do esgotamento histórico tanto do liberalismo so­cial quanto dos socialismos centrados na ação do Estado. É a ideologia que defende o sistema capitalista quando a relação de capital se tornou poten­cialmente supérflua e quando a autogestão dos processos de produção pelos próprios trabalhadores começa a se mostrar uma opção efetiva, mais pro­dutiva inclusive do que a opção gerencial, e que permite um maior grau de auto-realização. A pós-grande indústria, diz Fausto (2002), pode ser caracte­rizada como “negação” do capitalismo no interior do capitalismo13. Já um

13 Um livro que apreende com argúcia a mudança recente do capitalismo, ainda que com as limitações do entendimento (no sentido de Hegel), é Império, de Hardt e Negri (2000). Em conseqüência, a crítica deles não vai suficientemente longe porque, no fundo, apreendem a mercadoria só como valor de uso e o trabalho só como trabalho concreto, conforme se discutiu no capítulo “Trabalho imaterial e fetichismo’’, deste livro.

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autor como Melman pode escrever, com otimismo exagerado quando se tem em mente o momento histórico atual, mas também com uma certa sabedoria, que “o capitalismo está em processo de transformação, cami­nhando para uma economia baseada na democracia no local de trabalho” (MELMAN, 2001, p. 585).

Enquanto isso não ocorre, acentua-se cada vez mais a irracionalidade social e ecológica do capitalismo. Tem razão, pois, Bensáíd quando afirma, com base no mesmo texto dos Grundrisse antes mencionado, que a huma­nidade está diante de uma encruzilhada:

Tal como Marx previu em seus Manuscritos de 1857-1858, “o roubo do tempo de trabalho de outrem sobre o qual repousa a riqueza atual” aparece então como “uma base miserável”, porque “o trabalho deixa de ser a grande fonte da riqueza sob a forma imediata, o tempo de trabalho deixa de ser necessari­amente a sua medida e, por conseguinte, o valor de troca deixa de ser a me­dida do valor de uso”. A exacerbação dessa contradição constitutiva do pro­cesso de acumulação capitalista está na raiz do desregramento do mundo, dc sua irracionalidade crescente, dos danos sociais e ecológicos. (BENSAÍD, 2003a, p. 33)

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