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    ELEMENTOS DA ESCRAVIDO NO RIO GRANDE DO SUL: A LIDACOM O GADO E O SEGURO CONTRA A FUGA NA FRONTEIRA

    COM O URUGUAI

    Luiz Paulo Ferreira Noguerl1Vincius Migwski

    Ezequiel GiacomolliMarcos Smith Dias

    Diego RodriguesMaurcio Silveira Pinto

    Resumo: neste artigo contesta-se, a partir de dados coletados em fontes primrias, asuposio de que a regio da fronteira com o Uruguai apresentava-se como local pordemais inseguro para a propriedade escrava. Alm disto, endossa-se a contestao dainviabilidade do uso de escravos na lida direta com o gado, feita recentemente pelahistoriografia.

    Palavras chave: Histria do Rio Grande do Sul, Escravido no Rio Grande do Sul.

    Abstract: this article puts in doubt, using notarial data, the assumption that the region ofthe frontier between Rio Grande do Sul and Uruguay was unsafe for the slave property.Besides, it supports the contestation about the impossibility of the slave work in cattleranching, a point recently made by the local historiography.

    Key Words: Slavery in Rio Grande do Sul, Rio Grande do Suls History in XIXth Century

    1 Os autores agradecem s seguintes instituies: Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo(FAPESP) pela bolsa de doutorado concedida a Luiz Paulo Ferreira Noguerl, professor adjunto doDepartamento de Economia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Ao Conselho Nacional dePesquisa (CNPq), Fundao de Apoio Pesquisa do Distrito Federal (FAP-DF), Fundao de Amparo Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS) e Pr-reitoria de Pesquisa da Universidade Federaldo Rio Grande do Sul (PROPESQ/UFRGS) pelas bolsas de iniciao cientfica concedidas nos anos de 2004,2005 e 2006 aos estudantes de graduao em economia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul(UFRGS) Ezequiel Giacomolli, Marcos Smith Dias, Diego Rodrigues, Vincius Migwski e Maurcio SilveiraPinto. Os autores lamentam a interrupo das pesquisas, ocorrida a partir de abril de 2006, em virtude dapoltica de conteno de gastos empreendida pelos governos do Estado do Rio Grande do Sul e pelo doDistrito Federal.

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    1. Introduo

    No Rio Grande do Sul, percebem-no os que visitam o estado ou nele residem, h umassunto de delicada abordagem resumido na seguinte pergunta: em que medida a sociedadegacha distinta da brasileira2? As respostas so mltiplas, conforme o enfoque adotado.A defesa e a exaltao das diferenas entre uma e outra cabe, muitas vezes, indstriacultural e ao Movimento Tradicionalista Gacho. Aquela, por meio do turismo, de filmes,de msicas, de romances, etc. faz da diferena a essncia de suas atividades e mesmo o seuprincipal atrativo para efeito de consumo. O Movimento Tradicionalista que, distintamenteda indstria cultural, no age por lucro, caracteriza-se pela defesa de certos aspectos dacultura gacha ligados s lides campeiras. Em ambos os campos pode-se constatar aanulao da presena da escravido como elemento constitutivo da identidade do RioGrande do Sul3.

    De fato, a compreenso dos gachos, e mesmo dos demais brasileiros, sobre ahistria do Rio Grande do Sul, no contempla a escravido como elemento de identidade doestado com o resto Brasil. O efeito do debate acadmico em torno da instituio faz poucadiferena, pois caracterstica local e de todos os outros estados brasileiros, a ausncia dohbito da leitura por motivos diversos, ainda que seja de bom nvel a argumentao dosacadmicos gachos em favor da singularidade do Rio Grande do Sul.

    Em um pas onde os heris nacionais no so levados srio pela populao e ondeo calendrio cvico pautado pelo Estado, causa espanto a comemorao do 20 desetembro no Rio Grande do Sul. Esta a data do incio da Revoluo Farroupilha, umafronda senhorial que, sob a tica do movimento tradicionalista, ops todo o Rio Grande doSul tirania imperial entre 1835 e 1845. Em Porto Alegre, a mui leal e valerosa4 cidadeinvadida por Bento Gonalves no dia acima mencionado, ocorre um desfile de carrosalegricos e de gachos pilchados5 a cavalo que nada deixa a dever ao carnaval, no querespeita grandiosidade e seriedade com que seus membros desempenham os papis queescolhem representar.

    Neste artigo, apresentaremos elementos que pem em dvida parte da argumentaoacadmica e do entendimento popular sobre a escravido no Rio Grande do Sul. Ele sededica a demonstrar que o trabalho escravo esteve presente em solo gacho, apesar daausncia de latifndios escravistas maneira das fazendas de caf de So Paulo e do Rio deJaneiro, ou dos engenhos de acar e fazendas de cana do litoral do Nordeste. Para afirm-lo, fizemos uso de uma amostra de 7677 cativos, a qual foi obtida por meio dos dadosregistrados nos inventrios post-mortem gachos guardados no Arquivo Pblico do Estadodo Rio Grande do Sul. As comarcas que produziram tais peas jurdicas foram as de Porto

    2 Em estudos feitos por gachos que comparam aspectos do Rio Grande do Sul ao restante do Brasil, muitocomum a omisso do termo restante. Assim, tais estudos comparam o Rio Grande do Sul ao Brasil. Alinguagem revela formas de pensamento nem sempre explcitas. A supresso do termo mencionado d aimpresso de que o Rio Grande do Sul no faz parte do pas.3 curioso que, no incio dos anos 60, quando Fernando Henrique Cardoso defendeu sua tese de doutorado,intitulada Capitalismo e Escravido no Brasil Meridional, o problema do ocultamento do papel do negro naHistria do Rio Grande do Sul j estivesse presente.4 Ttulo concedido pelo Imprio cidade pela resistncia a Bento Gonalves.5 Isto , vestidos com toda a indumentria tradicionalista.

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    Alegre, Rio Grande, So Leopoldo, Rio Pardo, Pelotas e Bag, sendo que os escravosforam divididos entre elas segundo dois perodos6 conforme a tabela abaixo:

    Tabela 1: Quantidades de escravos segundo diferentes perodos e as comarcas em queforam inventariadosPerodos 1797 a 1849 1850 a 1887Comarcas Masc Fem Ignorado Masc FemIgnoradoPelotas 1141 447 22 719 328 0Bag 98 57 0 195 178 0Porto Alegre 573 357 2 474 340 2Rio Grande 274 150 0 328 215 1Rio Pardo 829 507 0 189 174 0So Leopoldo 0 0 0 44 33 0Totais 2915 1518 24 1949 1268 3Fonte: Inventrios post-mortem guardados no Arquivo Pblico do Estado do Rio Grande do Sul.

    A parte seguinte a esta introduo apresentar criticamente a elaborao acadmicade maior relevncia na defesa da singularidade da sociedade gacha, enfatizando o que dizsobre a Histria do estado no sculo XIX. A terceira parte apresentar um modelo querefuta parte do que tal produo acadmica afirmou, fazendo uso, para tanto, de tcnicaseconomtricas. Apresentaremos, em seguida, nossas concluses.

    2. A singularidade do Rio Grande do Sul na tica de Dcio Freitas e dos economistasda FEE7.

    Na tica de Dcio Freitas, Luiz Roberto Targa e Ronaldo Herrlein Jnior, dentreoutros, o Rio Grande do Sul diferencia-se do Brasil por sua Histria remota e recente. Osdois primeiros entendem que nos sculos XVIII e XIX no houve, na capitania e provncia,a sobreposio de latifndio e escravido tal como nas reas de plantation, ainda queisoladamente ambas as instituies tenham existido. O segundo e o terceiro, assim comoPedro Csar Dutra Fonseca, por outro lado, identificam na ditadura positivista do (PRR)Partido Republicano Rio-Grandense, as razes de algumas das instituies introduzidas porVargas na federao quando presidente da repblica entre 1930 e 1945, a exemplo daJustia do Trabalho e dos Decretos-Lei.

    Concordamos com os autores no que tange originalidade do Rio Grande do Sul naRepblica Velha. Afinal, como exposto por Targa, que outros estados da federaosuprimiram do parlamento local, formalmente e de fato, a faculdade de propor, aprovar erejeitar leis? Alm disto, quantos viveram duas guerras civis no perodo, sendo que aprimeira, a Revoluo Federalista, ceifou uma quantidade nada desprezvel de vidas? Porfim, quantos estados, na transio do Imprio para a Repblica, viram a derrota de suas 6 Adotamos esta periodizao pela importncia que a abolio definitiva da escravido no Uruguai, em 1846,tem para nossos argumentos. Embora abolida na Independncia daquele pas, continuou existindo sobdiferentes formas at o ano mencionado, e mesmo depois, gerando processos judiciais com os mais diferentesargumentos de parte dos escravizados e de seus senhores. Cf. Borucki, Stalla e Chagas, 2004.7 FEE Fundao de Economia e Estatstica do Estado do Rio Grande do Sul. Optamos por assim denominaresta sesso em virtude do peso que os economistas da FEE tiveram na elaborao e publicao de duas dasprincipais obras acadmicas de referncia na defesa da idia da singularidade da cultura e da sociedade do RioGrande do Sul, ainda que nem todos os que contriburam com artigos para elas sejam filiados instituio.

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    antigas elites hegemnicas no plano poltico, militar e econmico? Discordamos, todavia,da extenso, para o perodo do regime servil, de tal originalidade, pois entendemos quevrios dos traos da escravido no Rio Grande do Sul so universais, isto , extrapolam asfronteiras regionais e mesmo nacionais, sendo encontrados nos Estados Unidos e em Cuba,por exemplo.

    Quanto a este ponto, os argumentos mais fortes que refutaremos so apresentadospor Luiz Roberto Targa e por Dcio Freitas, sendo tambm encontrados em Caio PradoJnior e Celso Furtado. Os dois ltimos afirmam que, dado o carter da pecuria extensiva,o emprego da mo-de-obra escrava era impossvel8. De fato, Celso Furtado, quando oafirma, est se referindo pecuria desenvolvida no Vale do rio So Francisco. Caio PradoJnior, por seu turno, admite que, em Minas Gerais, encontravam-se exemplos deassociao da pecuria com a escravido, mencionando no entanto que isto era possveldado o carter intensivo da produo leiteira em determinadas regies daquela provncia.Dizia, todavia, que tanto no Nordeste quanto no Sul, onde a criao de gado era extensiva,o u