Eleições, dinheiro e democracia - Daniel Sarmento

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5/28/2018 Eleies,dinheiroedemocracia-DanielSarmento-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/eleicoes-dinheiro-e-democracia-daniel-sarmento 1/  1 ELEIÇÕES, DINHEIRO E DEMOCRACIA: A ADI 4.650 e o modelo brasileiro de financiamento de campanhas eleitorais 1   Daniel Sarmento 2   Aline Osorio 3  I  –  Introdução: Quanto vale o dinheiro em eleições? Um dos maiores desafios enfrentados atualmente por países democráticos é garantir a independência das instituições políticas com relação ao poder econômico. Em face desse desafio, o presente trabalho visa a analisar a constitucionalidade das regras previstas na legislação para a admissão de contribuições a campanhas eleitorais por parte de pessoas físicas e jurídicas, que foram impugnadas no STF através da ADI 4.650, proposta pelo Conselho Federal da OAB. A tese que será aqui desenvolvida é a de que as regras e critérios hoje vigentes possibilitam e potencializam a influência deletéria do poder econômico sobre o  processo político e, nesse sentido, violam os princípios constitucionais da igualdade, da democracia, da República e da proporcionalidade, subvertendo os fundamentos do nosso Estado Democrático de Direito. Com efeito, a aplicação destas regras tem comprometido a igualdade política entre cidadãos, possibilitando que os mais ricos exerçam influência desproporcional sobre a esfera  pública. Além disso, ela prejudica a paridade de armas entre candidatos e partidos, que é essencial para o funcionamento da democracia. Não bastasse, o modelo legal vigente alimenta a promiscuidade entre agentes econômicos e a política, contribuindo para a captura dos representantes do povo por interesses econômicos dos seus financiadores, e disseminando com isso a corrupção e o patrimonialismo, em detrimento dos valores republicanos. 1  Trabalho desenvolvido para dar subsídios adicionais aos argumentos e conclusões apresentados na petição inicial da Ação de Direta de Inconstitucionalidade 4650, Rel. Min. Luiz Fux, ajuizada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil em face de diversos dispositivos das Leis 9.504/97 e 9.096/95, que dispõem acerca do financiamento de campanhas eleitorais por pessoas naturais e jurídicas. 2  Daniel Sarmento é Professor Adjunto de Direito Constitucional da UERJ, mestre e doutor em Direito Público  pela UERJ, com pós-doutorado na Yale Law School e Procurador Regional da República. Em conjunto com Cláudio Pereira de Souza Neto, foi autor da representação encaminhada ao Conselho Federal da OAB visando à  propositura da ADI 4650, tendo participado da audiência pública sobre o tema realizada pelo STF 3  Aline Osorio é advogada e mestranda em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

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    ELEIES, DINHEIRO E DEMOCRACIA:

    A ADI 4.650 e o modelo brasileiro de financiamento de campanhas eleitorais1

    Daniel Sarmento2

    Aline Osorio3

    I Introduo: Quanto vale o dinheiro em eleies?

    Um dos maiores desafios enfrentados atualmente por pases democrticos

    garantir a independncia das instituies polticas com relao ao poder econmico. Em face

    desse desafio, o presente trabalho visa a analisar a constitucionalidade das regras previstas na

    legislao para a admisso de contribuies a campanhas eleitorais por parte de pessoas

    fsicas e jurdicas, que foram impugnadas no STF atravs da ADI 4.650, proposta pelo

    Conselho Federal da OAB. A tese que ser aqui desenvolvida a de que as regras e critrios

    hoje vigentes possibilitam e potencializam a influncia deletria do poder econmico sobre o

    processo poltico e, nesse sentido, violam os princpios constitucionais da igualdade, da

    democracia, da Repblica e da proporcionalidade, subvertendo os fundamentos do nosso

    Estado Democrtico de Direito.

    Com efeito, a aplicao destas regras tem comprometido a igualdade poltica entre

    cidados, possibilitando que os mais ricos exeram influncia desproporcional sobre a esfera

    pblica. Alm disso, ela prejudica a paridade de armas entre candidatos e partidos, que

    essencial para o funcionamento da democracia. No bastasse, o modelo legal vigente alimenta

    a promiscuidade entre agentes econmicos e a poltica, contribuindo para a captura dos

    representantes do povo por interesses econmicos dos seus financiadores, e disseminando

    com isso a corrupo e o patrimonialismo, em detrimento dos valores republicanos.

    1 Trabalho desenvolvido para dar subsdios adicionais aos argumentos e concluses apresentados na petio

    inicial da Ao de Direta de Inconstitucionalidade 4650, Rel. Min. Luiz Fux, ajuizada pelo Conselho Federal da

    Ordem dos Advogados do Brasil em face de diversos dispositivos das Leis 9.504/97 e 9.096/95, que dispem

    acerca do financiamento de campanhas eleitorais por pessoas naturais e jurdicas.

    2 Daniel Sarmento Professor Adjunto de Direito Constitucional da UERJ, mestre e doutor em Direito Pblico

    pela UERJ, com ps-doutorado na Yale Law School e Procurador Regional da Repblica. Em conjunto com

    Cludio Pereira de Souza Neto, foi autor da representao encaminhada ao Conselho Federal da OAB visando

    propositura da ADI 4650, tendo participado da audincia pblica sobre o tema realizada pelo STF

    3 Aline Osorio advogada e mestranda em Direito Pblico pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

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    Nesse sentido, eloquente o quadro emprico do financiamento privado de

    campanhas eleitorais no Brasil, ao evidenciar a crescente influncia do poder econmico

    sobre as eleies. Esta influncia faz-se sentir, em primeiro lugar, no custo estratosfrico das

    campanhas eleitorais brasileiras. Nas eleies gerais de 2010, para se eleger, um deputado

    federal precisou, em mdia, de R$ 1,1 milho, um senador, de R$ 4,5 milhes e um

    governador, de R$ 23,1 milhes. A campanha presidencial de Dilma Roussef, por sua vez,

    chegou a consumir mais de R$ 336 milhes. Estudos empricos revelam ainda que as

    campanhas polticas vm se tornando cada vez mais caras. Se, nas eleies de 2002, os

    candidatos gastaram, no total, cerca de R$ 800 milhes, em 2012, os valores gastos

    ultrapassaram R$ 4,5 bilhes, o que indica um aumento de quase 600% nos gastos eleitorais.

    No h inflao ou aumento demogrfico que justifique tamanho crescimento. 4

    O papel central do dinheiro nas eleies fica mais evidente ao analisarmos a

    relao entre as receitas obtidas e as votaes alcanadas por candidatos e partidos. Diversos

    estudos so convergentes ao afirmar que o montante de recursos arrecadados influencia

    diretamente o resultado das eleies.5 Para corroborar esta concluso, os grficos

    apresentados abaixo relacionam o total das receitas auferidas por partidos polticos e os votos

    por eles obtidos nas eleies de 2012 e 2010, respectivamente.

    Grfico 1 - Correlao entre receitas e votaes de partidos nas Eleies 2012

    4 Dados obtidos por meio das bases de dados do Tribunal Superior Eleitoral e do website s Claras.

    Disponvel em e

    . Acesso em 29 ago. 2013. Anlises semelhantes podem ser encontradas em

    SAMUELS, David. Money, elections and democracy in Brasil. In: Latin American Politics and Society. v. 43,

    2001; e PINTO, Marcos Barbosa. Constituio e Democracia. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. 371 p.

    5 Veja-se, a propsito: FILHO, Dalson Britto Figueiredo. Gastos eleitorais: os determinantes das eleies?

    Estimando a influncia dos gastos de campanha nas eleies de 2002. Revista Urutgua, v. 8, p. 1-10, 2005;

    SAMUELS, David. Financiamento de campanhas no Brasil e propostas de reforma. Suffragium, v. 3, n. 4, p. 11-

    28 jan./jun. 2007; SPECK, Bruno; WAGNER, Mancuso. O que faz a diferena? Gastos de campanha, capital,

    poltica, sexo e contexto municipal nas eleies para prefeito em 2012. Cadernos Adenauer XIV (2013) no 2.;

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    Grfico 2 - Correlao entre receitas e votaes de partidos nas Eleies 20106

    Tais grficos demonstram que h, efetivamente, uma significativa correlao entre

    o aumento dos recursos empregados em uma campanha e o nmero de votos obtidos.7 Ou

    seja, quanto mais elevadas as receitas obtidas por um candidato, maiores as suas chances de

    ser eleito.

    Isso porque, nas sociedades de massa, o dinheiro essencial para se ter acesso a

    recursos praticamente indispensveis para uma campanha vitoriosa: espao publicitrio nas

    mdias, elaborao de panfletos e demais materiais de campanha, contratao de cabos

    eleitorais, de prestadores de servio, de marqueteiros, dentre outras despesas. No

    ignorando tal cenrio, polticos gastam parte significativa da sua energia na arrecadao de

    fundos para suas campanhas.

    Entretanto, tais candidatos raramente vo bater s portas de seus eleitores em

    busca de recursos e apoio. Constata-se, em verdade, um absoluto predomnio entre os

    doadores das pessoas jurdicas, em detrimento das pessoas naturais. Em 2010, as doaes por

    parte de indivduos corresponderam a aproximadamente 8,7% das receitas totais das eleies,

    excludas as doaes realizadas pelos prprios candidatos. O mesmo padro se reproduziu nas

    eleies de 2012, ainda de forma mais aguda, quando as doaes de pessoas fsicas foram

    responsveis por menos de 5% das receitas eleitorais.8 Para a campanha de Dilma Roussef,

    6 Grficos extrados do website s Claras.

    7 A correlao positiva de que falamos no significa que haja uma relao de causa e efeito entre dinheiro

    injetado em campanhas e postos de poder conquistados, mas apenas que os candidatos que muito arrecadam tm

    grandes chances de se eleger, enquanto que aqueles que arrecadam pouco tm poucas chances de vitria.

    8 Dados obtidos por meio das bases de dados do Tribunal Superior Eleitoral e do website s Claras.

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    por exemplo, contriburam apenas cerca de 2.000 pessoas naturais, alcanando menos de 1%

    do total das doaes recebidas.9

    Os dados colhidos apontam tambm que as contribuies de campanha no

    provm de um grande nmero de doadores. Pelo contrrio, h uma absoluta concentrao de

    doadores, que contribuem, cada um, com quantias em geral bastante elevadas.10

    Para que se

    tenha uma ideia, nas eleies gerais de 2010, 1% dos doadores, correspondentes a 191

    empresas, concentraram 61% do valor total das doaes.11

    Desses doadores, os dez mais

    generosos foram sozinhos responsveis por cerca de 22% de todos os recursos arrecadados.12

    Percebe-se, assim, que o financiamento eleitoral pelo setor privado no Brasil se d

    atravs de um reduzido grupo de pessoas jurdicas, que no representa mais do que 0,5% do

    total de empresas brasileiras e, ainda, por um punhado de pessoas fsicas muitssimo

    abastadas.13

    Disso resulta que candidatos e partidos polticos so fortemente dependentes de

    poucas empresas para sua candidatura. E - no sejamos inocentes - no se deve esperar que o

    almoo seja grtis.

    Pelo contrrio, natural, neste quadro, que os interesses dos doadores influenciem

    decisivamente a atuao dos polticos eleitos com a sua ajuda. Desejosos de contar com tais

    fundos para uma futura reeleio, os representantes tendem a se empenhar na defesa dos

    interesses e projetos nem sempre legtimos dos seus principais doadores, valendo-se dos mais

    diversos expedientes, como o favorecimento em licitaes e contratos pblicos, a concesso

    de incentivos fiscais e a edio de regulaes favorveis. E dados empricos revelam que os

    grandes financiadores de campanhas eleitorais so, na esmagadora maioria dos casos,

    9 Nos Estados Unidos, o presidente Barack Obama, em sua campanha de 2007, arrecadou cerca de U$ 500

    milhes atravs da internet, em pequenas doaes de quase 3 milhes de doadores pessoas fsicas.

    10 A concentrao de recursos tambm se verifica quanto aos destinatrios das contribuies financeiras. De

    acordo com dados do Tribunal Superior Eleitoral, nas eleies de 2010, o PT, o PSDB e o PMDB receberam

    aproximadamente 60% do total dos recursos doados. Os dez maiores doadores, por sua vez, concentraram quase

    70% das suas doaes em tais partidos. Se incluirmos nessa lista o PSB, o DEM, o PP, o PDT, o PTB, o PR e o

    PSC, esse percentual chega a 89% do total das contribuies (Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade

    Social e Transparency International. A responsabilidade das empresas no processo eleitoral. Ed. 2012. p. 39).

    11 Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social e Transparency International. A responsabilidade das

    empresas no processo eleitoral. Ed. 2012. p. 34.

    12 Ibid. p. 34.

    13 Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia Estatstica IBGE, em 2010, havia 4,5 milhes de empresas

    ativas no Brasil, sendo que menos de 20 mil contriburam com recursos para campanhas eleitorais em 2010.

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    justamente empresas pertencentes a setores que mantm estreitas relaes com o Poder

    Pblico, como a construo civil, o setor financeiro e a indstria.14

    Por outro lado, h evidncias de que, com as contribuies, os big donors no

    objetivam apenas ser beneficiados por medidas e polticas pblicas especiais, mas tambm,

    por vezes, buscam evitar represlias polticas.15 De acordo com a pesquisa Corrupo no

    Brasil: A perspectiva do setor privado, mais de 25% das empresas entrevistadas alegaram

    terem sido coagidas a fazerem doaes a campanhas e, destas, a metade relatou terem sido

    prometidos favores em troca da contribuio.16

    O panorama traado acima exibe o impacto nefasto que o modelo de

    financiamento privado de campanhas tem sobre a poltica brasileira, concedendo ao poder

    econmico um papel central na vida poltica, antes e depois das eleies.

    Com efeito, tal quadro emprico d ensejo a graves distores produzidas pela

    excessiva infiltrao do poder econmico no meio poltico. Em primeiro lugar, do ponto de

    vista dos candidatos, o resultado mais direto o desestmulo a candidaturas de indivduos

    desprovidos de recursos prprios e de contatos com o mundo empresarial, atravs dos quais

    pudessem arrecadar os fundos necessrios para entrar na disputa. Por essa lgica, cidados

    comuns simplesmente no tm condies de se eleger. Alm disso, como, de um lado, as

    doaes de campanha provm em sua quase totalidade de grandes empresas e de indivduos

    muito ricos e, de outro, o volume de recursos arrecadados influi diretamente sobre as chances

    de eleio, os candidatos que representam os interesses do empresariado e das classes mais

    elevadas tm uma vantagem desproporcional na corrida eleitoral.

    14

    Cf. Tribunal Superior Eleitoral. Estatsticas de Prestao de Contas Doaes. Disponvel em Acesso em 29 ago. 2013.

    15 A ideia, desenvolvida no mbito da teoria da escolha pblica (public choice), a de que, no mercado poltico,

    no s empresas buscam se apropriar de rendas e privilgios por meio do processo poltico (rent seeking), mas

    tambm os polticos visam gerar benefcios para si (no caso, fundos para suas campanhas) mediante a ameaa de

    retirar, via regulao ou tributao, rendas e vantagens j concedidas a tais empresas. Descarta-se, assim, uma

    viso maniquesta que entende o Estado apenas como vtima da atuao interessada de empresas. A respeito, cf.

    MCCHESNEY, Fred S.; Money for nothing: Politicians, rent extraction and political extortion. Cambridge:

    Harvard University Press, 1997. 216p 16

    ABRAMO, Claudio Weber. Corrupo no Brasil: A perspectiva do setor privado, 2003. Transparncia Brasil,

    2004.

  • 6

    Em segundo lugar, o formato atual do financiamento privado de campanhas

    produz uma srie de deturpaes do ponto de vista dos eleitores. Se o voto j no mais a

    nica ficha de um cidado nas eleies, a possibilidade de contribuir com dinheiro para

    campanhas eleitorais permite que a desigualdade econmica presente na sociedade seja

    reproduzida na arena poltica. Como resultado, as pessoas ricas ganham um maior peso na

    definio dos resultados das eleies e, consequentemente, seus interesses so sobre-

    representados no Parlamento e no Executivo, em detrimento dos cidados mais pobres.

    Na verdade, a democracia repousa na afirmao da igualdade poltica entre os

    cidados. Tal princpio no se satisfaz com a mera atribuio de um voto a cada pessoa,

    exigindo, sobretudo, que cada um tenha igual possibilidade de influir na formao do corpo e

    da vontade polticos. No entanto, ao conceder aos mais ricos (e, pior, a empresas que sequer

    tm voto) uma importncia na poltica desproporcional sua representao na sociedade, o

    modelo de financiamento privado adotado induz plutocratizao da poltica brasileira,

    subvertendo os princpios da igualdade, da repblica e da prpria democracia.

    Isso tambm contribui para a crise de representao e para o afastamento do povo

    da poltica. Afinal, se os polticos renem os recursos necessrios para se eleger apenas junto

    a empresas (e um ou outro milionrio), sem precisar de cidados, o esquema de arrecadao

    de fundos diminui a capilaridade do sistema representativo e cidados comuns ficam com a

    impresso de que a poltica simplesmente no para eles. Como ressaltou Michael Walzer,

    the most common form of powerlessness () derives from the dominance of Money in the

    sphere of politics. The endless spectacle of property/power, the political success story of the

    rich, enacted and re-enacted on every social stage, has over time a deep and pervasive effect.

    Citizens without Money come to share a profound conviction that politics offers they no hope

    at all.17

    Por fim, a impregnao do capital na poltica demonstrada pelos dados acima cria

    incentivos a relaes promscuas e antirrepublicanas entre o sistema poltico e agentes

    econmicos privados. Se a competio principal passa a ser por recursos, e no por votos, o

    sistema de financiamento de campanhas determina a formao de fortes vnculos entre os

    candidatos eleitos e seus doadores.

    17

    WALZER, Michael. Spheres of justice A defense of Pluralism and Equality. New York: Basic Books, 1983. p. 310-311.

  • 7

    Mas essas mazelas no so incorrigveis. No julgamento da ADI 4650, o STF tem

    uma excepcional oportunidade de contribuir para a superao deste grave defeito do nosso

    regime democrtico.

    II O que a disciplina legal do financiamento de campanhas tem a ver com isso?

    As patologias do nosso sistema representativo explicitadas acima so, como

    veremos a seguir, viabilizadas e potencializadas pela legislao brasileira em vigor relativa ao

    financiamento privado de campanhas eleitorais.

    O financiamento das eleies est regulamentado pela Lei 9.504/97 (Lei das

    Eleies) e, ainda, pela Lei 9.096/96 (Lei Orgnica dos Partidos Polticos), na parte que trata

    da prestao de contas dos partidos e do Fundo Partidrio. As regras vigentes estabelecem um

    modelo de financiamento misto, com a possibilidade de uso, em campanhas eleitorais, de

    fundos pblicos, bem como de fundos privados, incluindo recursos prprios de candidatos e

    recursos provenientes de doaes de pessoas fsicas e jurdicas.

    Tais atos normativos no fixam, porm, um teto para os gastos eleitorais dos

    candidatos nos diversos cargos em disputa. Ainda que haja a previso de edio de lei, em

    cada eleio, que determine tais limites, como essa lei nunca editada, cada partido poltico

    fixa o seu prprio limite (tanto o limite total, quanto por cargo) de gastos (art. 17-A e 18 da

    Lei 9.504/97). Disso resulta a total inexistncia, na prtica, de limites aos dispndios em

    campanha. No a toa que os gastos eleitorais tm experimentado um crescimento

    exponencial na ltima dcada.

    H, contudo, previso de limites s contribuies efetivadas aos candidatos e

    partidos polticos por pessoas fsicas e jurdicas, bem como para o uso de recursos prprios

    por candidatos.

    Com relao s pessoas naturais, a legislao estabelece que elas podem fazer

    doaes em dinheiro at o limite de 10% dos rendimentos brutos auferidos no ano anterior

    eleio, ou fazer doaes estimveis em dinheiro relativas utilizao de bens mveis e

    imveis do doador cujo valor no ultrapasse R$ 50.000,00 (caput e 1o, I, e 7

    o do art. 23, da

  • 8

    Lei 9.504/97). A ttulo ilustrativo, a aplicao de referida regra s eleies de 2010 permitiu

    que um conhecido empresrio doasse exatos R$ 6,05 milhes a diversos candidatos e

    partidos.18

    No entanto, a mesma regra proibia que qualquer cidado que recebesse salrio

    mnimo (i.e., 32,7% da populao, segundo o IBGE) contribusse com mais do que R$ 604,50

    a qualquer campanha.19

    A consequncia absurda que uma tal regra faz com que, na prtica,

    o apoio de um bilionrio valha mais do que o de 10.000 cidados.

    No se defende aqui que as doaes de indivduos a campanhas eleitorais devam

    ser simplesmente proibidas. De modo diverso, entendemos que o financiamento de eleies

    atravs de pequenas doaes de uma multiplicidade de eleitores sinal de saudvel

    engajamento cvico dos cidados e de vitalidade da democracia e, logo, se encontra em

    perfeita consonncia com os princpios contidos na Carta Constitucional de 88. apenas o

    critrio empregado pelo legislador para limitar o montante das doaes (os rendimentos do

    eleitor) que, como se ver adiante, se afigura inconstitucional. Adotar os rendimentos do

    eleitor como baliza para as doaes uma aberrao, que, como demonstra o exemplo acima,

    institucionaliza a desigualdade poltica, ao invs de erradic-la. Prova disso que no h

    nenhuma outra democracia representativa no mundo que adote critrio semelhante.20

    No que concerne ao uso de recursos prprios por parte de candidatos, no se

    aplica a mesma restrio baseada em percentual da renda. Nesse caso, a contribuio dos

    candidatos a suas campanhas fica apenas limitada ao valor mximo de gastos estabelecido

    pelo seu partido, o que, como visto anteriormente, equivale a no ter qualquer limite (art. 23,

    1, II, Lei 9.504/97). Aqui tambm os limites previstos na legislao (ou melhor, a ausncia

    deles) atuam no sentido de possibilitar a converso de desigualdade econmica em

    desigualdade poltica, conferindo vantagem desproporcional a candidatos ricos em relao aos

    candidatos pobres.

    Finalmente, quanto s pessoas jurdicas, a legislao eleitoral autoriza que estas

    faam doaes a candidatos e a partidos polticos em valores que representem, no total, at

    18

    Dados extrados do banco de dados do Tribunal Superior Eleitoral. Disponvel em Acesso em 29 ago. 2013.

    19 Em 2009, o salrio mnimo vigente era de R$ 465,00, o que multiplicado por 13 (12 meses somado ao 13

    o

    salrio), equivale a R$ 6.045,00 de renda bruta anual.

    20 A respeito, cf. International Institute for Democracy and Electoral Assistance IDEA. Funding of Political

    Parties and Election Campaigns. 2003. p. 205-208.

  • 9

    2% do seu faturamento no ano anterior ao da respectiva eleio (art. 81 da Lei 9.504/97).

    Mas no so todas as pessoas jurdicas que podem doar. A Lei 9.504/97 veda expressamente

    que partidos e candidatos recebam doaes provenientes: (i) do estrangeiro; (ii) de rgos da

    Administrao Pblica; (iii) de concessionrios ou permissionrios de servio pblico; (iv) de

    praticamente todas as entidades sem fins lucrativos, como OSCIPs, entidades beneficentes,

    religiosas e esportivas; e (v) de entidades de classe ou sindical. Como resultado das vedaes

    citadas, apenas as empresas privadas que, por definio, perseguem o lucro so

    autorizadas a contribuir a campanhas polticas.

    Essa permisso legal para a arrecadao de fundos para campanhas eleitorais via

    pessoas jurdicas , em si, prejudicial democracia, pois concede a quem no tem voto uma

    rota alternativa e, como visto, mais eficaz para participar do processo poltico-eleitoral.

    Com isso, compromete-se a igualdade poltica entre eleitores e candidatos e cria-se espao

    para a formao de redes de favorecimento poltico e corrupo. Alm disso, os limites

    propostos para as doaes por parte de empresas aprofundam ainda mais a influncia do poder

    econmico sobre a poltica. Como visto, as pessoas jurdicas so capazes de doar somas

    extraordinrias de dinheiro a campanhas e partidos polticos, infinitamente maiores daquelas

    que cidados comuns seriam aptos a fazer, de modo que estes acabam sendo marginalizados

    na disputa eleitoral.

    Ademais, a regulao de contribuies por pessoas jurdicas na Lei 9.504/97, alm

    de antidemocrtica, ideologicamente parcial. No faz o menor sentido, de um lado, permitir

    doaes a campanhas por parte de qualquer empresa, e de outro, proibir que a representao

    dos trabalhadores (sindicatos) possa contribuir para campanhas polticas. Tampouco

    razovel que organizaes no-governamentais que recebam recursos pblicos no possam

    doar (art. 24, X, da Lei 9.504/97), enquanto que as empresas privadas que contratam com o

    governo no somente so autorizadas a fazer doaes, como tambm figuram entre os maiores

    doadores de campanhas. Tal marco normativo confere, em verdade, privilgios injustificveis

    ao capital no processo eleitoral, em detrimento da representao da cidadania.

    Conclui-se, desse modo, que os limites ao financiamento privado de campanhas

    institudos pela legislao eleitoral so manifestamente inadequados para coibir a infestao

    da poltica pelo poder econmico e, de modo oposto, at estimulam tal disfuno.

  • 10

    No entanto, a Constituio no adota uma postura de neutralidade frente a tal

    quadro patolgico. Pelo contrrio, ao positivar os princpios da igualdade, da democracia e da

    Repblica, a Carta de 88 conclama o legislador a uma atitude proativa com vistas a afastar do

    processo poltico a indevida influncia do poder econmico. Alis, tal meta encontra-se at

    mesmo expressa em seu texto, no 9o do art. 14, quando, ao definir os princpios que

    deveriam guiar a legislao infraconstitucional eleitoral, destacou a necessidade de proteger

    a normalidade e a legitimidade das eleies contra a influncia do poder econmico.

    Diante disso, j no mais possvel a manuteno do atual arcabouo normativo

    relativo ao financiamento de campanhas. Modific-lo no apenas um imperativo moral, mas

    um verdadeiro dever constitucional.

    III A (in)constitucionalidade do atual modelo de financiamento de campanhas

    Os quadros emprico e normativo acima examinados constituem prova eloquente

    de que o atual regime legal relativo ao financiamento privado de campanhas no se presta

    para coibir a influncia indevida do poder econmico sobre a poltica e, nesse sentido, viola

    os princpios da democracia, da igualdade poltica e da repblica. Ofende, ainda, o princpio

    da proporcionalidade, na sua dimenso de vedao proteo deficiente. Vejamos.

    a) Violao aos princpios da democracia e da igualdade

    O princpio democrtico a viga mestra da Constituio de 1988 e encontra-se

    positivado em diversos de seus dispositivos, como no art. 1o, em seu caput, que define a

    Repblica Federativa do Brasil como Estado Democrtico de Direito, e Pargrafo nico, que

    reconhece a soberania popular como fundamento do poder poltico. A democracia, entendida

    como o governo do povo, pelo povo e para o povo21, se assenta na premissa fundamental da

    igualdade poltica entre os cidados, isto , na possibilidade de todo o povo, igualmente

    21

    A frase foi enunciada por Abraham Lincoln em seu famoso discurso de Gettysburg, em 1863, durante a Guerra

    Civil. Como observado por Jos Afonso da Silva, [g]overno do povo significa que este fonte e titular do poder (todo poder emana do povo), de conformidade com o princpio da soberania popular que pelo visto, o princpio

    fundamental de todo regime democrtico. Governo pelo povo quer dizer governo que se fundamenta na vontade

    popular, que se apoia no consentimento popular; governo democrtico o que se baseia na adeso livre e

    voluntria do povo autoridade, como base da legitimidade do exerccio do poder, que se efetiva pela tcnica da

    representao poltica (o poder exercido em nome do povo). Governo para o povo h de ser aquele que procure

    liberar o homem de toda imposio autoritria e garantir o mximo de segurana e bem estar social. (Curso de Direito Constitucional Positivo. 29

    a ed.. So Paulo: Malheiros Editores S.A., 2007. p. 135)

  • 11

    considerado, participar da formao do governo e da vontade poltica da comunidade, por

    intermdio da eleio de representantes. As ideias de democracia e de igualdade poltica so,

    assim, absolutamente indissociveis.

    O princpio da igualdade poltica, por sua vez, alm de estar previsto de forma

    genrica no caput do art. 5o da Carta de 1988, encontra-se consagrado em seu art. 14, que

    prev que o voto deve ter valor igual para todos. A igualdade poltica, expressa na frmula

    one person, one vote, mais do que atribuir um voto a cada cidado, significa que cada

    cidado deve ter igual capacidade de influir no processo eleitoral, independentemente de sua

    classe, cor, nvel de instruo ou qualquer outro fator.22

    Com isso, se quis impedir que s

    preferncias de alguns cidados fosse atribuda maior importncia que aos interesses dos

    demais e, assim, garantir uma real democracia. Afinal, como ressalta Robert A. Dahl:

    uma caracterstica-chave da democracia a contnua responsividade do

    governo s preferncias de seus cidados, considerados como politicamente

    iguais. (...) [P]ara um governo continuar sendo responsivo durante certo tempo,

    s preferncias de seus cidados, considerados politicamente iguais, todos os

    cidados plenos devem ter oportunidades plenas (...) De ter suas preferncias

    igualmente consideradas na conduta do governo, ou seja, consideradas sem

    discriminao decorrente do contedo ou da fonte da preferncia.23

    Ocorre, porm, que a disciplina legal referente ao financiamento de campanhas

    permite que o dinheiro compre eleies de forma totalmente incompatvel com os

    princpios da igualdade do voto e da democracia.

    No caso das contribuies por parte de pessoas naturais, que podem doar at 10%

    dos rendimentos brutos auferidos no ano anterior eleio, o limite estabelecido pelo

    legislador faz a igualdade do voto ceder lugar, na prtica, extrema desigualdade poltica

    entre os eleitores com relao possibilidade de influenciar o resultado eleitoral e, logo, a

    prpria atuao do Estado. A lei eleitoral permite que alguns cidados, dotados de

    considerveis recursos financeiros, possam fazer doaes expressivas a candidatos e, com

    22

    O princpio one person, one vote foi formulado pela primeira vez no julgamento do caso Gray v. Sanders, em 1963, no qual a Suprema Corte dos Estados Unidos julgou inconstitucional o sistema eleitoral adotado na

    Gergia, que conferia pesos desiguais aos votos de eleitores residentes em diferentes condados. No julgamento, a

    Corte acolheu o argumento do Ministro Willian Douglas, no sentido de que [t]he conception of political equality () can mean only one thing - one person, one vote. (Gray v. Sanders, 372 U.S. 368,1963).

    23 Dahl, Robert A. Poliarquia e Oposio 1 ed., 1 reimpresso. Editora USP. So Paulo. 2005. p 25

  • 12

    isso, aumentar em muito as chances de sua eleio. Entretanto, a mesma lei restringe

    injustificadamente a possibilidade de os eleitores mais pobres contriburem a campanhas,

    inclusive sob pena de cometer ilcito eleitoral sujeito a multa severa. Alm disso, uma vez

    proclamados os resultados das eleies, a desigualdade entre os eleitores ricos e pobres se

    mantm, na medida em que os eleitos tero maior interesse em beneficiar cidados cuja

    cooperao se demonstra essencial sua reeleio do que cidados cujo apoio pouco

    signifique.

    O critrio de discriminao adotado pelo legislador para definio dos limites de

    doao renda do doador se afigura ilgico e desarrazoado. O princpio da igualdade impe

    que as diferenas de tratamento guardem uma relao de pertinncia lgica com os objetivos a

    que visam a atingir. Naturalmente, no caso da imposio de limite a doaes de campanha, o

    fim perseguido a reduo da influncia do poder econmico sobre a poltica. A norma

    impugnada, porm, se mostra totalmente inadequada para realizar referida finalidade.

    absurdo tratar como ato ilcito uma doao de mil reais a um candidato, feita por um doador

    pobre, e considerar lcita a contribuio de milhes de reais promovida por outro, que seja

    muito rico. Trata-se de discriminao odiosa, que no apresenta qualquer relao racional

    com os objetivos perseguidos pelo legislador.

    Tampouco se compatibiliza com os princpios da igualdade e da democracia a

    norma eleitoral relativa ao emprego de recursos prprios por parte de candidatos. Como visto,

    se o nico limite para o uso de fundos prprios por um dado poltico o teto de gastos de

    campanha que estabelecido pelo seu prprio partido, na prtica, tal regra equivale

    inexistncia de limites, o que prejudica a livre concorrncia entre candidatos, em favor

    daqueles mais ricos.

    Com relao s pessoas jurdicas, o quadro ainda mais grave. As pessoas

    jurdicas so entidades artificiais s quais o direito empresta personalidade jurdica,

    reconhecendo-as como sujeito de direito para o desempenho de fins especficos. No entanto,

    elas no so titulares dos mesmos direitos atribudos a pessoas naturais: a elas no se aplicam,

    por bvio, os direitos polticos, que somente so assegurados cidadania como corolrio da

    soberania popular.24

    24

    Nesse sentido, Gustavo Tepedino defende que as pessoas jurdicas so sujeitos de direitos (...) dotadas de capacidade de direito e de capacidade postulatria, no plano processual (...) Todavia, a fundamentao

  • 13

    No entanto, o legislador, ao admitir que empresas faam doaes a campanhas e

    partidos polticos, acaba por garantir representatividade poltica a quem no tem direito de

    voto. Considerando que suas contribuies correspondem quase totalidade dos valores

    arrecadados, a forte dependncia dos candidatos com relao a tais recursos garante que os

    interesses das empresas doadoras e dos seus titulares sejam privilegiados na tomada de

    decises polticas. Assim, os dispositivos legais que autorizam a realizao de doaes por

    pessoas jurdicas tambm padecem de grave vcio de inconstitucionalidade, por violarem a

    igualdade poltica e a democracia.

    No bastasse isso, a legislao eleitoral, ao definir as fontes de doaes vedadas,

    promove uma discriminao odiosa aos interesses dos trabalhadores e da sociedade civil

    organizada, violando, mais uma vez, o princpio da igualdade. No h qualquer justificativa

    razovel que explique por que sindicatos e organizaes sem fins lucrativos so proibidos de

    efetuar contribuies a campanhas, enquanto que as grandes corporaes, que visam

    essencialmente ao lucro, so autorizadas a doar livremente.

    Portanto, os atos normativos que instituem um limite relativo s doaes por

    pessoas naturais baseado na sua renda, que (no) definem limites para o uso de recursos

    prprios por candidatos e que admitem doaes por parte de pessoas jurdicas so

    inconstitucionais.

    b) Violao ao princpio republicano

    Ao lado da democracia, o princpio republicano, consagrado logo no art. 1o da

    Constituio de 1988, ocupa uma posio de destaque em nosso sistema constitucional,

    compondo o chamado ncleo essencial da Constituio. Na ordem constitucional vigente, o

    princpio republicano no se restringe forma representativa de governo, na qual os

    constitucional dos direitos da personalidade, no mbito dos direitos humanos, e a elevao da pessoa humana ao

    valor mximo do ordenamento no deixam dvidas sobre a preponderncia do interesse que a ela se refere, e

    sobre a distinta natureza dos direitos que tm por objeto bens que se irradiam da personalidade humana em

    relao aos direitos (em regra patrimoniais) da pessoa jurdica, no mbito da atividade econmica privada. (TEPEDINO, Gustavo. A Crise de fontes normativas e tcnica legislativa na parte geral do Cdigo Civil de

    2002. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). A parte geral no Novo Cdigo Civil: Estudos na perspectiva civil-

    constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, 2a ed, pp. XXVII-XXVIII.)

  • 14

    representantes do povo so selecionados atravs de eleies e exercem mandatos renovveis

    periodicamente. Dele se extrai, ainda, a ideia fundamental de que a coisa pblica,

    pertencendo a todos, deve ser gerida, de forma impessoal, no interesse de toda a coletividade,

    sem admitir discriminaes ou capturas de qualquer sorte. 25

    Com efeito, o princpio republicano deve ser associado ao respeito moralidade

    pblica na ao dos agentes estatais, ao combate ao patrimonialismo e apropriao da res

    publica por interesses particulares. A Repblica no tolera privilgios e no compactua com a

    captura dos agentes pblicos por interesses privados de agentes econmicos. No entanto, o

    modelo de financiamento privado de campanhas adotado pela legislao eleitoral favorece a

    colonizao do espao pblico por interesses privados e o estabelecimento de relaes

    antirrepublicanas entre candidatos e seus doadores.

    Tal modelo cria um ambiente frtil para trocas de favores e corrupo, alm de

    alimentar vcios histricos brasileiros, como o clientelismo e o patrimonialismo, totalmente

    incoerentes com os valores republicanos.26

    Como notou o Ministro Lus Roberto Barroso, em

    lcido comentrio no mbito do julgamento dos embargos de declarao na Ao Penal 470, a

    extrema dependncia da poltica eleitoral de recursos financeiros tende a gerar uma perversa

    criminalizao da atividade poltica:

    Uma campanha para Deputado Federal em alguns Estados custa, em avaliao

    modesta, 4 milhes de reais. O limite mximo de remunerao no servio pblico

    um pouco inferior a 20 mil reais lquidos. De modo que em quatro anos de

    mandato (48 meses), o mximo que um Deputado pode ganhar inferior a 1

    milho de reais. Basta fazer a conta para descobrir onde est o problema. Com

    esses nmeros, no h como a poltica viver, estritamente, sob o signo do

    interesse pblico. Ela se transforma em um negcio, uma busca voraz por

    recursos pblicos e privados. Nesse ambiente, proliferam as mazelas do

    financiamento eleitoral no contabilizado, as emendas oramentrias para fins

    25

    Cf. LEWANDOWSKI, Enrique Ricardo. Reflexes em torno do Princpio Republicano. In: VELLOSO,

    Carlos Mrio da Silva; ROSAS, Roberto; AMARAL, Antonio Carlos Rodrigues do. (Org.). Princpios

    Constitucionais Fundamentais: estudos em homenagem ao Professor Ives Gandra da Silva Martins. So Paulo:

    Lex, 2005. pp. 375 e sgs.

    26 A respeito dos vcios histrico-culturais brasileiros, cf. FAORO, Raymundo. Os donos do poder - Formao

    do patronato poltico brasileiro. Porto Alegre: Globo, 1975 (vol. I e II); FREYRE, Gilberto. Casa grande &

    senzala. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1961; HOLANDA, Srgio Buarque de. Razes do Brasil. Rio de Janeiro: J.

    Olympio, 1979.

  • 15

    privados, a venda de facilidades legislativas. Vale dizer: o modelo poltico

    brasileiro produz uma ampla e quase inexorvel criminalizao da poltica.27

    Como visto, as campanhas, cada vez mais caras, so custeadas, na sua quase

    totalidade, por um nmero muito pequeno de empresas e um punhado de indivduos com os

    quais os candidatos estabelecem estreitos vnculos, por serem dependentes dos recursos

    financeiros injetados para sua eleio e reeleio. De tais vnculos resulta que os candidatos

    tendem a ser mais responsivos s demandas especficas de seus doadores do que aos

    interesses do restante da populao.

    No bastasse, o campo emprico fornece exemplos eloquentes de que os

    frequentes e lastimveis casos de corrupo no pas e, mesmo, no mundo tm origem, em

    grande parte, no contexto do financiamento privado de campanhas.28

    Na maioria dos casos, a

    corrupo encontra-se diretamente relacionada dependncia financeira dos eleitos em

    relao a um pequeno nmero de doadores, que d origem a acordos quid pro quo29

    entre os

    candidatos e seus financiadores. As relaes promscuas nascidas neste ambiente tm sido

    fonte abundante de graves desvios ticos e de corrupo, como revela, por exemplo, o

    julgamento da Ao Penal 470 pelo Supremo Tribunal Federal30

    . E tambm o diagnstico

    de Eduardo Garca de Enterra, para quem la financiacin de los partidos polticos y de sus

    campaas electorales est, frecuentemente, en los orgenes del surgimiento de prcticas

    corruptas (...).31

    27

    Trecho extrado do voto do Min. Lus Roberto Barroso, proferido em sesso do dia 14/08/2013, no julgamento

    de embargos de declarao na Ao Penal 470.

    28 Nesse sentido, elucidativa a afirmao do diretor de Combate ao Crime Organizado da Polcia Federal,

    Oslain Santana, em entrevista ao jornal O Globo, em 19.10.13, de que cinquenta por cento das operaes da Polcia Federal contra corrupo tm como pano de fundo o financiamento de campanha. Disponvel em: Acesso em 20 out, 2013.

    29 A expresso foi usada no famoso caso Buckley v. Valeo, julgado em 1976, no qual a Suprema Corte dos

    Estados Unidos admitiu a imposio de limites s doaes privadas com fundamento na necessidade de o

    governo proteger a higidez das eleies contra a corrupo ocasionada pelos arranjos quid pro quo entre

    candidatos e seus financiadores. No julgamento, afirmou-se que: To the extent that large contributions are given to secure a political quid pro quo from current and potential office holders, the integrity of our system of

    representative democracy is undermined. e que [o]f almost equal concern as the danger of actual quid pro quo arrangements is the impact of the appearance of corruption stemming from public awareness of the

    opportunities for abuse inherent in a regime of large financial contributions. (424 U.S. p. 26-27).

    30 AP 470, Rel. Min. Joaquim Barbosa, Tribunal Pleno, julgado em 17/12/2012, DJ 22.04.2013

    31 GARCA DE ENTERRA, Eduardo. Democracia, jueces y control de la administracin. Madrid: Editorial

    Civitas, 1995. p. 83.

  • 16

    Nesse ponto, haver quem argumente que a soluo aventada a proibio de

    doaes por pessoas jurdicas e a imposio de limite uniforme s doaes por pessoas

    fsicas incapaz de resolver o problema da infiltrao do poder econmico na poltica, uma

    vez que os recursos continuaro ingressando atravs do chamado caixa 2.

    No se ignora que, com o fim das doaes a campanhas e partidos por parte de

    empresas, no se extinguir a possibilidade de as mesmas efetuarem contribuies no

    contabilizadas, que, de resto, so realizadas mesmo no modelo atual. Isso, contudo, no

    constitui um motivo aceitvel para deixar tudo como est, para ver como fica. As leis,

    como se sabe, no operam milagres, extinguindo, a toque de caixa, traos culturais e

    histricos de um povo, como, no Brasil, a cultura do jeitinho, da corrupo e da captura do

    pblico pelo privado. Ainda assim, a alterao do arcabouo normativo vigente um

    importante passo no sentido de reduzir os efeitos perniciosos decorrentes da promiscuidade

    entre o capital e a poltica e de tornar o sistema de financiamento de campanhas mais

    igualitrio, democrtico e republicano.

    Nada impede que, no futuro, outras medidas sejam adotadas pelo Poder Pblico

    para evitar o financiamento eleitoral pelo caixa 2, tais como o aperfeioamento dos

    mecanismos existentes para fiscalizao de gastos de campanha por parte da Justia e do

    Ministrio Pblico Eleitoral. Trata-se, portanto, de solues complementares e sinrgicas, mas

    nunca excludentes. O que no se pode admitir, porm, que a prpria lei eleitoral fomente

    tais vcios antirrepublicanos, como ora ocorre. Da a inconstitucionalidade das regras acima

    mencionadas.

    c) Violao ao princpio da proporcionalidade como vedao proteo deficiente

    Hoje, compreende-se que o princpio da proporcionalidade, alm de instrumento

    de conteno de excessos e arbtrios do poder estatal, possui uma dimenso positiva, que

    consiste na vedao proteo deficiente de direitos fundamentais e princpios tutelados

    constitucionalmente. Como assinalou o Ministro Gilmar Mendes,[p]ode-se dizer que os

    direitos fundamentais expressam, no apenas uma proibio do excesso (bermassverbote),

    como tambm podem ser traduzidos em proibies de proteo insuficiente ou imperativos de

    tutela (Untermassverbote).32

    32

    HC 104410, Rel. Min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, julgado em 06/03/2012, DJ 27-03-2012

  • 17

    Tal vertente do princpio da proporcionalidade desenvolveu-se a partir da

    concepo de que o Estado tem o dever no s de se abster de violar direitos e princpios

    fundamentais, como tambm o de defend-los e promov-los ativamente, ofendendo a

    Constituio quando no atua de forma suficiente garantia dos bens jurdicos protegidos. A

    leso ao princpio da proibio da proteo deficiente legitima a interveno do Poder

    Judicirio no sentido de promover a adequada tutela dos princpios e direitos fundamentais

    negligenciados pelos demais poderes estatais. Tal entendimento vem sendo aplicado

    sistematicamente pelo Supremo Tribunal Federal, que, em diversos casos, emprega a vertente

    positiva do princpio da proporcionalidade para afastar a incidncia de normas que impliquem

    a tutela insatisfatria de preceitos da Constituio.33

    Para que se reconhea leso proporcionalidade como vedao proteo

    deficiente, necessrio aferir se a insuficincia da atuao estatal em favor de bens jurdicos

    constitucionalmente tutelados ou no justificada pela promoo de interesses contrapostos,

    tambm juridicamente protegidos.

    Os dados empricos citados acima comprovam que a disciplina jurdica do

    financiamento privado de campanha francamente insuficiente para proteger os princpios da

    democracia, da igualdade poltica e da repblica to fundamentais em nosso sistema

    constitucional contra a influncia do poder econmico nas eleies. Cumpre ento analisar

    se esta deficincia na atuao estatal compensada pela promoo de algum objetivo legtimo

    do ponto de vista constitucional.34

    No caso em questo, trs objetivos poderiam ser suscitados

    pelos defensores do atual status quo para justificar a manuteno das normas impugnadas: (i)

    que elas seriam benficas s campanhas eleitorais, por permitir que sejam irrigadas por mais

    recursos privados; (ii) que elas seriam mais protetivas da liberdades econmicas dos

    33

    A ttulo exemplificativo, cf: RE 418376. Rel. p/ acrdo Min. Joaquim Barbosa. DJ, 23 mar. 2007; ADI 3112,

    Rel. Min. Enrique Lewandowski. DJe, 26 out. 2007; HC 16212, Rel. Min. Marco Aurlio, DJe, 13 jun. 2011.

    34 A proteo insuficiente de determinado direito ou princpio constitucional apurada atravs da aplicao dos

    subprincpios da princpio da proporcionalidade, devendo-se verificar, no caso concreto, (a) se a sua omisso ou atuao deficiente contribuiu para a promoo de algum objetivo legtimo (subprincpio da adequao); (b)

    se no existia outro meio menos prejudicial quele direito que favorecesse, em igual intensidade o citado

    objetivo (subprincpio da necessidade); e (c) se a promoo do referido objetivo compensa, sob o ngulo

    constitucional, a deficincia na proteo ou promoo do direito em discusso (subprincpio da

    proporcionalidade em sentido estrito). (SOUZA NETO, Cludio Pereira de; SARMENTO, Daniel. Direito Constitucional - Teoria, Histria e Mtodos de Trabalho. Belo Horizonte: Frum, 2012, p. 481)

  • 18

    doadores; e (iii) que o presente regime legal estaria a servio da liberdade de expresso destes

    financiadores.

    O argumento de que a lenincia do legislador seria benfica ao prprio processo

    eleitoral democrtico, por permitir um maior aporte de recursos para as campanhas polticas

    no convincente. O encarecimento das campanhas no as tem tornado mais democrticas ou

    esclarecedoras para os eleitores, mas sim excessivamente dependentes de marketing e de

    pirotecnias, em detrimento do debate de ideias e de projetos, bem como da possibilidade de

    competio igualitria entre candidatos. E os vultuosos recursos pblicos vertidos para as

    campanhas eleitorais em nosso sistema misto de financiamento, bem como o horrio eleitoral

    gratuito nos veculos de telecomunicao (direito de antena), j proporcionam razovel acesso

    da cidadania s ideias e plataformas de partidos e candidatos. Estes instrumentos pblicos,

    secundados pela possibilidade de doaes privadas por eleitores, submetidas a limite baixo e

    uniforme, seriam mais que suficientes para assegurar a ampla possibilidade de conhecimento

    pelo eleitorado das plataformas dos candidatos e partidos.

    O argumento da liberdade econmica contratual dos doadores tambm no se

    sustenta. Afinal, as restries s doaes eleitorais postuladas na ADI 4650 em nada

    interferem nas atividades econmicas destes doadores, que no ficam impedidos de exerc-las

    com plena liberdade. Ademais, em nosso sistema constitucional, a liberdade econmica no

    um fim em si, estando a servio de valores superiores, como a dignidade humana, a justia

    social e a democracia (art. 170, CF), que so ameaados pelo atual modelo regulatrio de

    financiamento privado de eleies.

    Por fim, pode-se aduzir que as doaes de campanha estariam protegidas pela

    liberdade de expresso. O argumento, que foi acolhido pela Suprema Corte norte-americana,35

    no deve prevalecer, sobretudo diante da nossa realidade emprica. A interpretao

    constitucional no um mero exerccio de especulao intelectual, mas atividade prtica,

    voltada ao equacionamento de questes socialmente relevantes num dado contexto scio-

    35

    Em 2010, por 5 votos a 4, a Suprema Corte norte-americana decidiu, no julgamento do caso Citizens United v.

    Federal Election Comission, que a possibilidade de doaes por empresas a campanhas eleitorais se insere no

    direito liberdade de expresso, previsto na Primeira Emenda (558 U.S. 310). No entanto, entendemos ser mais

    acertada a posio adotada pelo juiz White, que, em voto dissidente, defendeu que a possibilidade de restrio a

    tais contribuies por parte de corporaes deriva, em verdade, da prpria Primeira Emenda, pois visa a garantir

    a liberdade de expresso dos indivduos, sem que a discusso poltica seja dominada por grandes empresas.

  • 19

    poltico. Por isso, o intrprete no pode ignorar a realidade social subjacente ao texto

    constitucional, sob pena de frustrar a efetividade da Constituio.

    No Brasil, os principais doadores de campanha contribuem para partidos e

    candidatos rivais, que no guardam nenhuma identidade programtica ou ideolgica entre si.

    Assim, essas doaes no constituem instrumento para expresso de posies ideolgicas ou

    polticas, mas se voltam antes obteno de vantagens futuras ou neutralizao de possveis

    perseguies. A anlise dos destinatrios das contribuies dos maiores financiadores de

    campanha nas eleies de 2010 aponta que, em regra, os maiores doadores distribuem

    recursos para candidatos e partidos rivais, com programas e ideologias diversos e at mesmo

    opostos. Tal exame tambm evidencia que, no caso de eleies para o Executivo, as empresas

    investem normalmente em todos os candidatos com maior chance de vitria, segundo

    pesquisas de inteno de votos.

    Grfico 3 Destinatrios das maiores contribuies nas Eleies 201036

    Se a maior parte das doaes efetuadas no expressa preferncias polticas dos

    doadores, elas no podem ser concebidas como exerccio da liberdade de expresso, mas

    como aes pragmticas, voltadas obteno de possveis favores dos eleitos. Como salientou

    David Samuels,a elite econmica brasileira, altamente concentrada e politicamente esperta,

    tenta modelar aes do governo por meio dos custeios de campanha. No Brasil, o grosso das

    36

    Dados obtidos por meio das bases de dados do Tribunal Superior Eleitoral e do website s Claras.

  • 20

    contribuies voltado para servios, isto , o dinheiro dado em troca de servios

    esperados do governo.37

    De resto, as restries e proibies as doaes de campanha em nada afetariam a

    liberdade das pessoas fsicas e jurdicas de expressarem seus posicionamentos polticos pelas

    mais diferentes formas, pois no se concebe que as doaes possam constituir um meio

    adequado para o exerccio desse direito.

    No h, assim, qualquer interesse constitucional em jogo que compense a

    insuficiente promoo dos princpios da igualdade, da democracia e republicano pelos

    dispositivos citados das Leis 9.504/97 e 9.096/96, que, por tal razo, no resistem ao teste da

    proporcionalidade, na sua vertente da proibio proteo deficiente.

    IV Uma alternativa possvel: o financiamento democrtico de campanhas

    Por todos os motivos expostos acima, o Conselho Federal da Ordem dos

    Advogados do Brasil ajuizou Ao de Direta de Inconstitucionalidade em face de diversos

    preceitos da Lei 9.504/97 e da Lei 9.096/95, que permitem doaes por parte de pessoas

    jurdicas, limitam de forma ineficaz o uso de recursos prprios por candidatos e, por fim,

    instituem limite relativo para as doaes por pessoas naturais. Os pedidos formulados no

    mbito de referida ADI so no sentido de obter: (i) a proibio de doaes por pessoas

    jurdicas a campanhas eleitorais; (ii) a adoo de um limite per capita uniforme para doaes

    por pessoas fsicas, a ser fixado pelo Congresso Nacional em patamar baixo o suficiente para

    no violar a igualdade entre os eleitores; bem como (iii) a adoo de um teto para o uso de

    recursos prprios por candidatos em suas campanhas, tambm fixado pelo Congresso

    Nacional em patamar baixo o suficiente para que no seja violada a paridade de armas entre

    os candidatos.

    Uma deciso do Supremo Tribunal Federal nos moldes propostos na ADI 4.650

    instauraria o financiamento democrtico de campanhas eleitorais no Brasil. De acordo com tal

    modelo, adotado em diversos pases como a Frana, a Blgica e Portugal, o financiamento de

    37

    Financiamento de campanhas no Brasil e propostas de reforma. In: SOARES, Glucio Ary Dillon e RENN,

    Lucio R. (org.). Reforma poltica. Lies da histria recente. Rio de Janeiro: FGV, 2006

  • 21

    campanhas misto, abrangendo recursos pblicos e privados, mas somente so aceitas

    contribuies provenientes de pessoas naturais.

    Cabe destacar que o acolhimento da referida ADI no seria incompatvel com a

    eventual adoo, no futuro, do modelo de financiamento pblico exclusivo de campanhas, que

    vem sendo aventado em alguns projetos de reforma eleitoral em trmite no Congresso

    Nacional. No entanto, somos da opinio de que o financiamento democrtico de campanhas

    normativamente superior ao sistema de financiamento exclusivamente pblico.38

    Em primeiro lugar, praticamente todas as vantagens atribudas ao modelo de

    financiamento pblico tambm seriam alcanadas atravs da instituio do financiamento

    democrtico de campanhas, nos termos propostos. Ambos os modelos produzem os efeitos de

    diminuir a dependncia dos candidatos eleitos de seus financiadores, criar condies mais

    equitativas de competio entre candidatos e partidos, independentemente de seus recursos e

    capacidade de arrecadao e proporcionar maior igualdade poltica para o cidado.39

    Com

    relao ao ltimo benefcio citado, cabe, entretanto uma ressalva.

    No modelo de financiamento democrtico de campanhas, para que a igualdade

    seja efetiva, fundamental que o teto para as doaes por pessoas fsicas e para o uso de

    recursos prprios por candidatos corresponda a um valor efetivamente pequeno. No direito

    comparado, um exemplo a ser seguido o da lei eleitoral belga, a qual prev limite de 500 a

    contribuies a um determinado partido ou candidato, sendo que, no total, o valor doado a

    diferentes partidos e/ou candidatos no pode ultrapassar 2 mil por perodo eleitoral.40

    38

    No se ignora que os critrios em vigor para a partilha das dotaes oramentrias da Unio entre os partidos

    so problemticos, na medida em que se baseiam quase inteiramente na quantidade de cadeiras conquistadas na

    Cmara dos Deputados pelos partidos em eleies anteriores. Nos termos do art. 41-A da Lei 9.096/95, apenas

    5% do total do fundo partidrio distribudo partes iguais a todos os partidos registrados no TSE, enquanto que

    os restantes 95% so distribudos aos partidos na proporo dos votos obtidos na ltima eleio para a Cmara

    dos Deputados. Tal regra privilegia excessivamente os partidos da situao, limita a competio eleitoral e

    contribui para a manuteno do status quo do sistema partidrio. No entanto, acredita-se que, ao menos enquanto

    o Congresso Nacional no editar nova regra, a possibilidade de obteno de recursos junto a eleitores permitir

    que a desigualdade na distribuio dos fundos seja vencida por aqueles partidos que conseguirem um maior

    enraizamento na sociedade.

    39 RUBIO, Delia Ferreira. Financiamento de partidos e campanhas: Fundos pblicos versus fundos privados.

    Novos estudos CEBRAP, n 73, So Paulo: Nov. 2005. pp. 6-16; e SPECK, Bruno Wilhelm. O financiamento de campanhas eleitorais. In: ANASTASIA, Ftima. AVRITZER, Leonardo (org.). Reforma Poltica no Brasil.

    Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007. p. 154-155.

    40Tambm interessante o modelo adotado pela Frana, que autoriza doaes por pessoas naturais at o limite de

    4,6 mil a candidatos e at 7,5 mil a partidos. Para que se tenha uma ideia, tais valores equivalem possibilidade de doar at cerca de 3 salrios mnimos a candidatos e 5 salrios mnimos a partidos. Na Espanha,

  • 22

    Ademais, o financiamento democrtico apresenta, ao nosso juzo, vantagens

    considerveis em relao ao financiamento pblico exclusivo de campanhas eleitorais. A

    principal delas o estmulo participao poltica da cidadania.41

    Estima-se que a adoo do financiamento pblico exclusivo de campanhas

    produziria maior alienao dos candidatos e partidos com relao aos cidados, pois aqueles

    conseguiriam extrair da mquina pblica todos os recursos de que necessitam para a

    competio eleitoral sem a ajuda destes. Diferentemente, no modelo democrtico, em que

    cada doador somente pode contribuir com uma pequena quantia, o financiamento das

    campanhas polticas passa a depender de intensa mobilizao da sociedade civil. Nesse

    processo, os candidatos e partidos polticos so obrigados a se reaproximar dos eleitores e a

    melhor formular suas ideias e programas para convenc-los a efetuar pequenas contribuies.

    Com isso, o indivduo, antes relegado a segundo plano pela relevncia das grandes doaes de

    empresas, retoma seu papel central no processo eleitoral Ao encorajar a participao cvica do

    cidado nas eleies por meio de diminutas doaes, o modelo oferece, portanto, uma

    possibilidade de revitalizao da representao poltica e da democracia.

    V Concluses

    Diante dos argumentos apresentados acima, conclumos que a disciplina jurdica

    atual do financiamento de campanhas polticas viola gravemente os princpios da democracia,

    da igualdade, da Repblica e da proporcionalidade, gerando uma perniciosa plutocratizao

    da nossa vida poltica.

    pessoas fsicas e jurdicas so autorizadas a fazer contribuies a campanhas eleitorais, mas para ambos os casos

    as doaes so limitadas a 6 mil, em perodos eleitorais. J no caso de Portugal, a lei autoriza determina que cada pessoa pode doar at 25 salrios mnimos a cada partido e at 60 salrios mnimos a candidatos

    presidncia da repblica e a candidatos s eleies municipais que concorram sem filiao partidria.

    Entendemos, porm, que o legislador portugus foi excessivamente generoso na definio de limites para as

    doaes, falhando na promoo da igualdade poltica. (GRANT, Thomas D. Lobbying, Government Relations,

    And Campaign Finance Worldwide: Navigating the Laws, Regulations & Practices of National Regimes. Oceana

    Publications, 2005. pp. 42-43, 114, 427-428 e 451-454) 41

    Tal estmulo pode vir a ser potencializado por diversas formas. Uma delas seria a edio, pelo Congresso

    Nacional, de lei que conceda o benefcio da dedutibilidade do valor das doaes efetivadas por pessoas fsicas,

    de preferncia, de forma regressiva (i.e., quanto menor a contribuio, maior a dedutibilidade). Esse sistema foi

    adotado, por exemplo, na Frana. Outra alternativa seria estabelecer um modelo de financiamento pblico

    vinculado aos aportes privados obtidos pelos partidos, nos moldes da lei alem de 1994. Nesse caso, o montante

    de fundos pblicos a ser distribudo ficaria limitado pelo montante de recursos privados efetivamente

    arrecadados (sistema de matching funds), criando, assim, incentivos para que os partidos e candidatos se

    aproximem de seus eleitores (RUBIO, Delia Ferreira. Op cit. p. 10)

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    Nada obstante, no realista esperar que o Congresso Nacional, integrado pelos

    atores que se beneficiam em larga escala do modelo de financiamento adotado, venha a tomar

    alguma atitude concreta para corrigir tal patologia. Em contrapartida, o Poder Judicirio est

    em excelente posio para atuar. Sua independncia com relao aos grupos polticos e

    econmicos que ocupam ou pretendem ocupar o poder sugere a presena de uma maior

    capacidade institucional para produzir uma boa deciso nesta questo.

    Ademais, muito embora juzes no sejam eleitos, o Supremo Tribunal Federal no

    padece da chamada dificuldade contra-majoritria para equacionar este problema. que a

    sua interveno se dar justamente no sentido de proteger os pressupostos de funcionamento

    do jogo democrtico e das instituies republicanas42

    , no podendo, por isso mesmo, ser

    tachada de antidemocrtica.

    A atuao do Supremo Tribunal Federal na hiptese adquire, ainda, um carter

    verdadeiramente representativo43

    dos anseios da sociedade brasileira manifestados nos

    recentes levantes populares. As demandas veiculadas nesta ao direta esto em profunda

    sintonia com as reivindicaes da cidadania pela reduo da influncia do poder econmico e

    da corrupo. Tal afirmao corroborada por recente pesquisa realizada pelo IBOPE

    Inteligncia, na qual 78% dos entrevistados se manifestaram contrariamente possibilidade

    de doaes por empresas.44

    Desse modo, uma interveno da Corte Constitucional se

    legitimaria pela necessidade de preservar os interesses do povo, em uma situao em que tais

    interesses so manifestamente opostos aos de seus representantes.

    Por fim, no se pretende que o STF resolva, sozinho, as graves patologias

    identificadas no modelo de financiamento de campanhas em vigor, editando as regras que

    passaro a reger o sistema a partir de sua deciso. Ao contrrio, defende-se que a Corte

    Suprema, caso venha a se pronunciar pela inconstitucionalidade dos limites prescritos para

    contribuies e para uso de recursos prprios em campanhas, no se invista no papel de

    42

    Cf. ELY, John Hart. Democracy and Distrust. A Theory of Judicial Review. Cambridge: Harvard University

    Press, 1980.

    43 Sobre o papel representativo da jurisdio constitucional, veja-se: LAIN, Corinna Barret Lain, Upside-down

    Judicial Review In: The Georgetown Law Journal v.113, 2012

    44 Pesquisa realizada pelo IBOPE Inteligncia a pedido do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.

    Disponvel em < http://www.oab.org.br/arquivos/pesquisa-462900550.pdf> Acesso em 29 ago. 2013

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    legislador solitrio, mas inicie um dilogo institucional com o Congresso Nacional, instando-

    o a fixar novos critrios, desde que obedecidos alguns princpios pr-estabelecidos, tal como

    foi postulado na ADI 4650. Essa soluo, alm de privilegiar o equilbrio e a cooperao entre

    os Poderes, permitir que o sentido da Constituio seja construdo dialogicamente pelas

    instituies pblicas e pela sociedade.45

    Enfim, a excessiva infiltrao do poder econmico nas eleies brasileiras macula

    a legitimidade democrtica das nossas instituies e vida poltica. O STF dar uma

    contribuio fundamental ao regime democrtico e republicano instaurado pela Carta de 88,

    se acolher os pedidos formulados na ADI 4650, de modo a tornar mais igualitrias e

    republicanas as eleies, o que fortalecer a representatividade do sistema poltico brasileiro.

    45

    Sobre a teoria dos dilogos institucionais, cf. BRANDO, Rodrigo. Supremacia judicial versus dilogos

    institucionais: a quem cabe a ltima palavra sobre o sentido da constituio? Rio de Janeiro: Lumen Juris,

    2012. 370p; e FRIEDMAN, Barry. Dialogue and Judicial Review. In: Michigan Law Review, v. 91, 1993