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    2012 por Marcelo Cezar Capa e Projeto Grfico: Jaqueline Kir Tratamento de Capa e Diagramao: Vitor Belicia Preparao: Mnica Gomes d'Almeida Reviso: Melina Marin e Cristina Peres 1a edio 1a impresso 20.000 exemplares abril 2012. Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Aurlio, Marco (Esprito). Ela s queria casar... / pelo esprito Marco Aurlio; [psicografado por] Marcelo Cezar. So Paulo - 2012 ELA S QUERIA CASAR,MARCELO CEZAR pelo esprito Marco Aurlio

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    Captulo Um Glucia contemplava o enxoval do casamento com olhos brilhantes de emoo. Finalmente iria realizar o antigo sonho: casar-se. Estava to feliz! No tinha medo de dizer o quanto desejava se casar e ter um lar. Ainda estava vivo em sua memria o dia em que tomara coragem para pressionar o namorado e acelerar os passos para chegarem ao altar. Namorava Luciano havia sete anos. Eles tinham intimidade, viviam praticamente como um casal, mas moravam em casas separadas. Essa histria de cada um na sua casa a incomodava sobremaneira. Glucia era uma mulher talhada nos costumes do sculo vinte e um. Estudara e conclura a faculdade, tinha um bom emprego, ganhava bom salrio, tinha carro prprio. Era independente, mas desde garota sonhava com o casamento e tudo que envolvia o ritual: vestido, damas de honra, igreja, madrinhas e padrinhos, festa, lua de mel. Era adepta do matrimnio e acreditava que toda mulher, mesmo independente e moderna, tinha que ter um marido. "Mulher que chegou perto ou passou dos trinta anos e no casou... hum, a tem algo errado", ela dizia sempre para si e para as colegas. Glucia dava muito valor sociedade e aos comentrios das pessoas. Namorava Luciano porque na cabea dela toda mulher sem namorado "tem problema". O tempo estava passando e ela comeava a acreditar que Luciano no quisesse lev-la ao altar, por isso, meses antes, dera o ultimato: - Ou nos casamos agora ou vamos romper. Estou cansada dessa enrolao. Temos praticamente uma vida de casados tornava Luciano, paciente. Para que casar agora? Ao menos no a importuno nos dias de futebol. Luciano, a gente precisa ter o nosso ninho, as nossas coisas juntos, pensar em constituir famlia... - Quero muito um filho, voc bem sabe. Na verdade, quero ter um monte de filhos. Tambm no exagera! - Como no? Quero uns trs, quatro filhos. Dois est de bom tamanho ela desconversou. Ento, vamos marcar a data. Agora no o momento. Como no? Eu s quero casar. Sei, querida. Quero guardar um pouco mais de dinheiro... Glucia levantou o sobrolho: Guardar dinheiro? Eu escutei bem? Eu fiz algumas aplicaes com prazo estendido e, se mexer nelas neste momento, vou perder dinheiro. Voc podre de rico! Como pode me dizer que est guardando dinheiro? Eu no sou podre de rico. Meu pai que . Ela bufou: D no mesmo, Luciano. O que do seu pai seu. - No penso assim. Trabalho com ele, ganho um bom salrio, tenho participao nos lucros, mas no sou dono da construtora. Sou empregado. Aposto que Lucas no pensa assim. Luciano franziu o cenho: O que Lucas tem a ver com isso? Seu irmo figura constante nas revistas de celebridades. Tem uma coleo de carros.

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    - Lucas gasta o que no deveria. Mas eu sou diferente. Tenho metas, planos, sou organizado e sinto-me feliz por poder juntar o meu prprio dinheiro. Glucia achou por bem parar por ali. Luciano era completamente diferente do irmo e tinha pontos de vista difceis de serem mudados. Por mais que tentasse persuadi-lo a usar o dinheiro do pai, ele ficava arredio e protelava o casamento. "Preciso fazer alguma coisa", pensou. Luciano continuou: - Quem sabe, ano que vem a gente comea a pensar melhor no assunto? Papai vai lanar um edifcio magnfico no Jardim Europa, no estilo francs, com cinco andares apenas. Penso em ficar com a cobertura. E quanto tempo vai levar para levantar esse chal francs? ela desdenhou. Luciano pousou o dedo no queixo e pensou. Em seguida respondeu: - Uns dois anos, dois anos e meio no mximo. Glucia engoliu a raiva. Trincou os dentes e suspirou para no dar um grito. "Dois anos e meio? Vamos nos casar com quase dez anos de namoro? Esse cara pensa o qu? Que eu sou menina do sculo dezoito? Nem a pau vou aceitar uma coisa dessas!" Ela pensou tudo isso e respondeu: Eu espero, amor. Por isso gosto de voc. to compreensiva! Vem c e me d um beijo... Glucia fechou os olhos e, quando os lbios se encostaram, ela teve vontade de arrancar a lngua de Luciano. "Assim no pode, assim no vou aguentar. Tantos anos grudada nesse homem e ele fica me enrolando? Eu quero ser dondoca, ter cartes de crdito sem limites de gasto. Cansei de ser executiva, de trabalhar, de pegar trnsito. Meu objetivo agora ser esposa de homem rico. E Luciano esse homem!" Certo dia, assistindo a um captulo da novela das oito, Glucia viu ali a maneira de forar Luciano a despos-la. Fingiu estar grvida, tal qual a personagem do folhetim, com direito a atestado e tudo o mais. E Luciano, moo puro de corao, acreditou. Marcaram a data para dali a trs meses. - Depois do casamento a barriga no vai crescer. O que pensa fazer? indagou a amiga Magali, que no compactuava com a armao. - Ora, eu finjo cair de uma escada, tropeo, sei l. Vou pagar por um atestado falso. Tem um monte de mdico que aceita uma boa grana e assina um atestado fajuto sem pestanejar. Isso no me cheira bem, Glucia. No gosto de mentiras. Vai comear o casamento em cima de conversa fiada, de armao? Glucia abriu e fechou os olhos, aturdida. Vem c, Magali. Voc minha amiga ou o qu? - Por ser sua amiga falo o que sinto. Simplesmente no acho essa atitude digna. Nada honesta. Falta de honestidade ou no, funcionou. Luciano vai se casar comigo e vou realizar meu sonho. Sabe que desde pequena quero me casar. E como! exclamou Magali. Quantos casamentos de mentirinha a gente protagonizou na nossa infncia? As duas riram. Glucia disse: - Pois . Quantas vezes assisti reprise do casamento da princesa Diana com o prncipe Charles? Magali levou a mo testa. Santo Deus! Voc me aporrinhava tanto para assistirmos juntas ao vdeo!

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    Pois . Sou uma mulher moderna, mas presa a valores antigos, sou moa de tradio. Quero vestido branco, vu, grinalda, buqu, dama de honra... Quero entrar na igreja e atravessar a nave, acenando para os convidados. No adianta, eu sonho com isso desde que nasci. E tambm tem outra coisa. O que ? Cansei de ralar e dar duro todos os dias. No suporto mais a vida de executiva. Voc tem o direito de fazer o que quiser e viver da maneira que quiser. No entanto, enganar seu namorado no pega bem, no justo. Seja sincera desde j, caso contrrio, poder provocar a ira de Luciano. Luciano no morde. Magali era uma mulher bastante prudente. Era ponderada e Glucia escutava seus conselhos. Mas escutar no queria dizer que seguiria risca o que a amiga lhe sugeria. Luciano no morde hoje, mas pode morder amanh. Que nada, Magali! Luciano um cachorrinho que venho adestrando h sete anos. - Sete anos! ela levantou as mos e fez os nmeros com os dedos. E sabe qual a novidade? - O que ? - Ele quer que eu espere o magnfico apartamento da construtora ficar pronto, daqui a dois anos e meio. O que ele pensa que eu sou? Tonta? - Ele est programando tudo direitinho. Se diz que vo morar no apartamento que a construtora do pai dele vai erguer, porque nutre bons sentimentos por voc. Caso contrrio poderia ter lhe dado uma resposta vaga. Pense bem, amiga. Mentir nunca d bons frutos. - Bobagem. Voc nunca mentiu na vida? - No gosto de mentiras revidou Magali. - Mas nunca mentiu? Seja honesta comigo, que sou sua melhor amiga. Todo mundo conta uma mentirinha de vez em quando. J no perdeu a hora de chegar ao trabalho e botou a culpa no trnsito catico? Nunca recusou um compromisso pretextando uma dor de cabea, um mal-estar, um trabalho de ltima hora? - No estou me referindo a isso. No vejo como mentira, mas como situaes que crio para no me prejudicar. Falo em mentira em sentido de prejudicar os outros. - E estou prejudicando quem nessa histria? Luciano est comigo h anos. S estou agilizando o nosso casamento. Ele nem vai notar. Depois eu engravidarei de verdade e pronto. Fica tudo certo. - Luciano honesto tornou Magali. - Ele rico, muito rico. - Voc~e independente, no precisa do dinheiro dele. Seu pai pode ajud-la. Glucia gargalhou: - Faz-me rir! Meu pai tem um escritoriozinho de contabilidade no centro da cidade. Acha que ele vai me dar mesada? Como? Esqueceu que ele tem que sustentar aquelas duas sanguessugas? Sua irm batalhadora, esforada. Estuda com afinco e logo vai trabalhar com seu pai. Voc no entendeu. Preste ateno: Dbora vai se encostar no meu pai. Alis, ela naturalmente um encosto. Magali respirou e sacudiu a cabea. Conhecia a amiga o suficiente para saber que a conversa no ia dar em nada. Glucia prosseguiu: O que meu pai pode me dar no me basta. Preciso de muito, entende?

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    No entendo voc, Glucia. Tem um padro de vida muito bom, troca de carro todo ano, no repete roupa... Isso muito classe mdia. Quero viajar trs vezes por ano para o exterior, e na primeira classe, bvio. Acha que vou ficar apertada na classe econmica como sardinha em lata e dividir banheiro com duzentos desconhecidos? No! Eu quero ter roupas caras, muitas joias, iate, jatinho... Luciano podre de rico e pode me dar tudo isso. - O pai dele que podre de rico. Parece Luciano falando. Ouvi a mesma frase da boca dele. Vocs so to parecidos. Pensam da mesma forma. Magali ruborizou e baixou os olhos. Meio sem jeito, perguntou: Voc o ama? Glucia desconversou e continuou a falar como se Magali no lhe tivesse feito aquela pergunta: C entre ns, depois de sete anos, imagine se Luciano resolver terminar comigo? Com que cara vou encarar o meu pai, os meus amigos e os colegas de trabalho? Pense em voc e no nos outros... A conversa terminou logo em seguida, pois quando Glauca botava uma ideia na cabea, no havia Cristo que tirasse. Ela era marrenta e queria que tudo na vida acontecesse de acordo com a sua vontade. Quando o assunto no a interessava, ela simplesmente ignorava o interlocutor, e a conversa se encerrava ali mesmo. A mentira deu certo. Luciano, boa ndole e tomado de susto com o atestado positivo que Glucia sacudia dramaticamente entre as mos, decidiu pedi-la oficialmente em casamento, embora esse tipo de formalidade no estivesse mais na moda nos idos de 2006. Na pressa, o rapaz optou por alugar um apartamento. Escolheu um bem espaoso, de trs quartos e sala de estar incorporada a uma grande varanda gourmet. Era tanta a quantidade de presentes que no paravam de chegar, que o apartamento, mesmo grande, dava a impresso de no comportar tantos pacotes.

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    Captulo Dois Sentada sobre a cama de sua futura sute, Glucia espantou as recordaes dos meses anteriores com as mos e, em seguida, passou-as delicadamente sobre a couxa confeccionada em fino tecido. Sentiu a maciez e suspirou: - No vejo a hora de me casar. J vislumbro a igreja decorada, os padrinhos, os convidados... Ela divagou um pouco e concluiu: - Na segunda-feira, sem falta, preciso fazer os ltimos ajustes no vestido. - Falando sozinha? indagou uma voz familiar, atrs dela. Glucia fez uma careta e moveu os olhos para cima. O que faz na minha casa? enfatizou. O porteiro devia ter barrado voc na entrada. Eu venho aqui quase todos os dias. Deu para notar que o sistema de segurana deste edifcio uma porcaria. Ainda bem que este pombal de luxo foi alugado. Quando for morar no meu chal francs, no Jardim Europa, farei questo de riscar seu nome da lista de pessoas autorizadas a entrar. Vim ajud-la. Mame pediu para eu sair da faculdade e vir direto para c. - No preciso da sua ajuda, Dbora. A moa deu de ombros. Claro que precisa respondeu, enquanto rodopiava no vestido florido de pregas. Voc deve voltar ao trabalho. O seu horrio de almoo terminou faz tempo. Pode deixar que eu me encarrego de receber as entregas. Agora quer controlar os meus horrios? Seu chefe gente boa, mas voc abusa. Eu?! indagou Glucia, aturdida. Sou funcionria exemplar. - Semana que vem voc se casa, vai tirar uns dias e emendar com as frias. Precisa deixar o trabalho em ordem, este apartamento arrumado... Sabe de uma coisa? No, no sei. - Tenho notado no curso de Cincias Contbeis que a organizao imprescindvel para a vida profissional do contador, assim como para a vida cotidiana de todos ns. Organizar a nossa vida, em todos os aspectos, cansa menos e permite mais tempo livre para fazer coisas prazerosas, que alegrem nosso corao. Glucia levantou os olhos e suspirou, contrariada. No sou contadora. Sou gerente financeira, quase diretora. Depois que me casar, vou pedir demisso. No quero bater ponto nunca mais na vida. A administrao do tempo cria um sentido de aproveitamento melhor para que as oportunidades floresam sua maneira. Agora que voc precisa se organizar, deixar tudo em ordem para seus funcionrios, passar o servio e... Glucia a cortou com secura: Bem, s uma criatura como voc, em pleno sculo vinte e um, para estudar isso desdenhou. Por que no foi estudar Moda ou Gastronomia? So cursos que conferem prestgio. Gosto do que fao ajuntou Dbora, num sorriso cativante. Depois de formada, vou trabalhar com papai. - Vai se encostar nele, isso sim. De forma alguma. Quero trabalhar com afinco, com vontade. Quero fazer o escritrio crescer, admitir mais pessoas e promover bem-estar aos funcionrios. Glucia meneou a cabea.

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    Por Deus! Como pode ser to sonsa? Vai tranformar aquele escritrio medocre numa instituio beneficente? No, mas um lugar prazeroso onde as pessoas podero dar o melhor de si e, em contrapartida, ter um bom ambiente de trabalho, bom salrio, participao nos lucros... - A mrtir da contabilidade! Santo Deus! Ainda bem que vou me ver livre de voc, estrupcio. Dbora sorriu. Fique vontade para falar mal de mim. Estou acostumada, maninha. Dbora, envolta por uma meiguice fora do comum, comeou a arrumar alguns pacotes. Um carregador aproximou-se com uma caixa grande e pesada. Ei, moa, onde boto essa caixa? Dbora apontou: Ali no canto. Por favor. O rapaz sorriu e, com grande esforo, colocou a enorme caixa prximo da cama. - Aqui no! protestou Glucia. Ora, no h mais lugar na sala. No quero saber. Aqui no fica. Deixe de ser turrona Dbora falou, e o carregador obedeceu. Num instante ele reapareceu no quarto, com um pacote menor e bem mais leve. Glucia disparou: - J disse. Aqui no. O carregador coou a cabea. (), dona, desculpa eu me intrometer, mas a mocinha apontou para Dbora tem razo. A sala est entupida de caixas e embrulhos. Esse pacote pequeno. Coloque em qualquer lugar. No posso. E se cair? A vo querer descontar o estrago no meu salrio. Glucia rangeu os dentes de raiva. Engoliu em seco. Levantou-se da cama e pegou o pacote. Dbora advertiu: No pode carregar peso. Est grvida. Glucia imediatamente fez uma cena e deixou a caixa ir ao cho. Houve um barulho de vidro quebrado. O carregador falou primeiro: No me responsabilizo. A senhorita pegou o pacote da minha mo e deixou cair no cho. No tem problema Glucia abaixou-se e abriu a caixa. Sorriu, irnica: Era mais um conjunto de potinhos de sobremesa, daqueles de vidro incolor, que pobre adora. Coisa cafona. S pode ter vindo do seu lado da famlia tornou, encarando Dbora. O rapaz saiu e ela fechou a porta. Fuzilou Dbora com os olhos: O que pensa que est fazendo, garota? Nada. Vim ajud-la. No preciso e no quero a sua ajuda. Voc est grvida, no pode carregar peso, tampouco pode passar nervoso. S de olhar para voc eu fico nervosa. No tem como enfiar essa cara num capuz para eu no me irritar? - Engraada, voc! Cad o respeito? Vai mandando assim na casa dos outros sem mais nem menos? Est se sentindo a dona do apartamento?

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    - No. Estou s querendo ajudar. Poderia estar em casa almoando ou mesmo na companhia das minhas amigas da faculdade. Recusei at um convite para assistir ao novo filme do Almodvar, Volver. Quer ir comigo? Dizem que o filme fantstico! Deus me livre! Eu l tenho pacincia para esses filmes com fala enrolada? espanhol. Muito parecido com o nosso idioma. S uma tonta como voc para gastar dinheiro com esse tipo de coisa. Dbora ignorou e prosseguiu: - Escolhi estar aqui para ajudar voc, mana. - Pare de me chamar de mana. Voc no minha irm, Dbora. Fazemos parte da mesma famlia. Afinal, o seu pai se casou com a minha me. Que horror! Nem me lembre desse ato insano de meu pai. Tanta mulher no mundo e ele, talvez num momento de extrema carncia, pegou a primeira que apareceu no caminho. No caso, a sua me frisou. Viu? Temos o mesmo pai. Isso nos torna irms. Glucia deu um gritinho de espanto e incredulidade misturados. Deus me livre e guarde! bateu na mesinha do criado-mudo ao seu lado. Est certo. Meia-irm pode ser? politicamente correto? Glucia no percebeu a troa e continuou: - Meu pai s se casou com a Iara porque, infelizmente, Deus tirou a minha me de nossa vida disse, num tom sentido. Deus no tirou a sua me respondeu Dbora, voz delicada. Era chegado o momento dela. Seu esprito partiu para outro plano, outra dimenso. Em breve vamos todos ns... Glucia a interrompeu e deu novo grito, dessa vez num tom acima do normal: Pare! No continue a falar besteiras. Essa conversa idiota de espritos que voc e sua me tentam me impor difcil de engolir. Odeio quando voc toca nesse assunto. Tudo uma grande bobagem. Glucia caminhou de maneira abrupta. Bateu o salto agulha com fora sobre o assoalho e estugou o passo at a sala. Dbora sentou-se na cama e balanou a cabea para os lados. - Pobre Glucia. To presa aos conceitos do mundo! Que Deus abra seus olhos e seu corao para que ela veja e sinta alm do convencional. A vida to mais interessante quando no nos deixamos guiar pela opinio da sociedade. Como bom viver com alegria no corao! Dbora era uma garota encantadora. Aos dezenove anos, tinha uma cabea madura para a sua idade. Esprito ousado e dono de suas vontades, reencarnara na famlia para dar sustentao e equilbrio ao lar. Tivera conflitos com Glucia numa encarnao distante, mas, depois de novas experincias no mundo, refletiu sobre os problemas que a afligiam, mudou crenas e posturas. Aprendeu a ser impessoal e ofereceu-se a reencarnar como sua irm para vencer os ressentimentos passados. Em s conscincia, Dbora no se lembrava disso. Entretanto, estava sempre de bem com a vida, pronta para combater a negatividade do mundo. No se tratava de uma mocinha infantil e chata, agradecendo por todas as desgraas que porventura atravessassem seu caminho. No! Longe disso. Dbora era uma moa bem consciente dos valores espirituais e, por isso, sabia tirar proveito das situaes mais espinhosas. Era moa bonita, alta, esguia, cabelos alourados e sedosos, rosto arredondado, olhos verdes grandes e expressivos. Cursava o terceiro ano de Cincias Contbeis e pretendia

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    trabalhar no escritrio de contabilidade do pai. Mesmo sendo filhas de mes diferentes, ela e Glucia eram parecidas fisicamente. Para voc entender melhor o grau de parentesco entre elas, vamos voltar um pouquinho no tempo. Armando, pai das meninas, casara-se com Miriam no comecinho da dcada de 1980. Ele fazia curso tcnico em contabilidade, e ela cursava secretariado na mesma escola. Namoraram at o fim do curso. Em seguida noivaram, e Armando ingressou na faculdade. Suas famlias eram de classe mdia e ambos vislumbravam uma vida a dois repleta de sonhos e realizaes. Com o incentivo moral e financeiro do pai, Armando fez sociedade com seu amigo Rgis e montaram o escritrio de contabilidade no centro da capital paulista. Logo depois do casamento, Miriam engravidou e Glucia nasceu. Quando a garotinha tinha acabado de completar trs anos de idade, Miriam comeou a sentir fraqueza de um lado do corpo e passou a ter viso dupla. Armando insistiu para que ela consultasse um mdico, mas Miriam acreditou aquilo tudo ser fruto de uma vida estressante, em que ela tentava conciliar as prendas do lar e a maternidade com o trabalho de meio perodo como secretria numa empresa de importao e exportao. Infelizmente, num sbado de manh, Miriam acordou, levantou-se e teve uma dor terrvel a pressionar-lhe a cabea. Armando correu com ela at o hospital, contudo j era tarde. Miriam fora acometida de um aneurisma cerebral e chegara morta ao centro cirrgico. A vida de Armando foi tomada de uma tristeza sem igual. Sozinho e pai de uma garotinha de trs anos, foi difcil aceitar a morte da esposa e continuar a viver sem ter a chance de realizar os planos que ambos haviam idealizado para uma longa vida em comum. Tocado por sua tristeza e infelicidade, Rgis, o seu scio no escritrio, poca frequentador de um centro esprita, falou a Armando sobre o espiritismo e sobre a continuidade da vida aps a morte do corpo fsico. Desesperado e em grande dor, Armando aceitou a sugesto e passou a frequentar sesses no centro esprita no muito distante do escritrio. Recebendo tratamento adequado com passes e palestras edificantes, comeou a perceber que a vida tinha um significado bem diferente daquele que acreditara por anos. Ao perceber que a morte nada mais do que o fim de um ciclo reencarnatrio e o esprito vive eternamente, seu corao aquietou-se. A tristeza foi embora e ele passou a administrar de maneira menos sofrida a saudade que sentia da esposa. Interessou-se verdadeiramente pelos estudos espirituais e foi com muita emoo que recebeu uma carta ditada por Miriam e psicografada por uma mdium no centro. Ela dizia estar bem, muito lcida e pronta para estudar e viver em outros mundos espirituais. Disse, ainda, que no teria mais contato com ele por muitos anos e desejava, de corao, que Armando cuidasse da prpria vida. Ele era jovem, tinha uma filha pequena para criar e merecia uma nova chance de ser feliz ao lado de outra mulher. Nessa poca, Armando conheceu Jussara e tornaram-se amigos. Jussara era o tipo de moa que sempre metia os ps pelas mos em inmeros relacionamentos afetivos desastrosos. Maltratada e sentindo-se solitria, encontrara no centro esprita alvio para seu corao constantemente despedaado. Numa tarde em que foi ao centro para ajudar a separar brinquedos que seriam doados a crianas carentes no Natal, Jussara levou uma amiga, Iara, para conhecer o local. Esta, por

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    sua vez, estava se recuperando do fim de um relacionamento afetivo. Armando chegou em seguida e, quando seus olhos pousaram na moa, o rapaz sentiu um frmito de emoo. Foi amor primeira vista. Confuso, pois acreditava ser Miriam o seu grande amor, Armando tentou lutar contra o sentimento. Rgis o lembrou da carta psicografada, o corao falou mais alto e, quando Glucia completou cinco aninhos, ele e Iara casaram-se numa cerimnia simples somente para familiares e amigos. Os pais de Miriam, ainda abalados com a perda da filha, recusaram-se a comparecer. Um ano depois da unio, nasceu Dbora. A rejeio de Glucia nova irmzinha, assim como "nova me", era impressionante. A menina no chegava a falar, mas sentia certa averso madrasta e irmzinha recm-nascida. Dbora cresceu uma menina bonita, saudvel, educada e amorosa. Procurava transformar positivamente cada palavra ruim que Glucia lhe dirigia. Incentivada pela me, logo a menina se afeioou aos estudos espiritualistas. Por incrvel que pudesse parecer, no ligava para os improprios da irm mais velha, era imune a esses ataques e, todas as noites, colocava Glucia em suas preces.

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    Captulo Trs Passava das nove da noite quando Magali ligou. Amiga, est pronta? Glucia mordiscou os lbios, insegura: No sei o que fazer. O que aconteceu? Estou nervosa. Por qual motivo? perguntou Magali, preocupada. Que vestido eu ponho? Magali riu, refletiu por instantes e considerou: - Sabe que na festa ter de usar uma fantasia confeccionada por todas ns. Voc vai ficar igualzinha Madonna, como no clipe da msica Like a virgin. Esqueceu? Glucia falava de maneira rpida. Estava afobada: Sei. Claro que sei. - Ento no se preocupe. - Sempre falamos sobre usarmos o vestido igual ao do videoclipe. A Samira at separou os brincos e os colares em formato de crucifixo. Mas no posso chegar ao bar com a fantasia. Quero chegar linda, com um vestido de arrasar. Magali sorriu do outro lado da linha ao dizer: Coloque aquele vestido de cor cereja que compramos no shopping semana passada. - No posso us-lo, Magali. Comprei aquele vestido para a lua de mel. - Luciano no vai estar na festa. Esqueceu que despedida de solteira? Solteira com "S"? S mulheres vo comparecer. Esqueci... ela se atrapalhou toda e perguntou: Tem certeza de que est tudo certo? O bar, as bebidas, o DJ... - Sim. Eu sou a madrinha de honra dessa festa de despedida. Tudo foi feito conforme suas orientaes. Um conhecido meu amigo do dono do bar e at conseguiu para ns um espao maior na rea vip. Todas as nossas amigas estaro l, fique sossegada. Ai, Magali. No sei o que seria da minha vida sem voc. Estou confusa, o casamento semana que vem e depois vem a lua de mel... - E depois vem a "perda" do beb. No me lembre disso agora rebateu, fria. Ainda tem tempo de mudar de ideia. No tenho, no. Sei que no fui correta, mas hoje no quero me culpar por nada. Hoje a noite ser minha, s minha. No acha melhor contar a verdade logo para o Luciano? - Por que insiste? No sei. De repente ele descobre a farsa e pode ficar triste, decepcionado. Ou, pior, poder ficar com raiva. Poder ser difcil para ele aceitar e entender... Glucia, do outro lado da linha, balanava a cabea para os lados. - Pare de viajar! Ele nunca vai descobrir. Tomara! que, toda vez que voc fala sobre essa gravidez, sinto um aperto no peito. Bobagem. Voc est impressionada. No isso, no. Eu apresentei um atestado falso, fingi alguns enjoos. Est tudo sob controle. Luciano jamais vai saber da tramoia. - Voc quem sabe. Quem avisa amigo . Hoje quero ser, estar e me sentir feliz!

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    - Tem razo ponderou Magali. Deixemos esse assunto de lado por agora. Amanh, depois do porre e durante a recuperao da ressaca, a gente conversa melhor sobre isso. - O mais importante acertar o vestido para esta noite. - J disse, Glucia. O cereja. bonito e ousado na medida certa. Voc vai arrasar. Jura? - Confie em mim. Voc ser a mais bonita quando chegar festa. - Confio em voc. timo. Daqui a meia hora eu a pegarei em casa. Combinado, amiga. Beijos. Glucia desligou o celular mais tranquila. Apanhou o vestido cereja no guarda-roupa e sorriu ao coloc-lo em frente ao corpo, olhando-se no espelho. Vou ficar linda. Bateram na porta. - Quem ? ela gritou da porta do banheiro. Sou eu, querida. Iara. Glucia bufou. No gostava de Iara. Tinha colocado na cabea, com grande incentivo dos avs maternos, diga-se de passagem, que a madrasta havia roubado parte do corao de seu pai e tomado o lugar de sua me. Justina e Eriberto, pais de Miriam, eram contra a nova unio de Armando. Afirmavam que casar-se de novo era como matar Miriam novamente, pois Glucia seria criada por uma nova me e apagaria a me biolgica para sempre da memria. Por isso, nos poucos encontros que tinham, o casal dizia menina que Iara era uma oportunista, uma mulher aproveitadora, m e sem escrpulos. Glucia era ainda menina poca, por isso acreditou nos avs e passou a nutrir antipatia gratuita tanto por Iara como por Dbora. Para no arrumar briga com o pai, ela sorria na frente da madrasta e da meia-irm, mas, por trs, fazia bico e desdenhava das duas. Fingindo amabilidade, tornou: Pode entrar. Iara entrou e parou a alguns passos da porta do banheiro. No est atrasada? Um pouco respondeu, voz glida. Quer que eu passe seu vestido? Por qu? Est achando que ele est amassado? De maneira alguma, mas uma passadinha pode deix-lo ainda mais bonito. Posso fazer isso para voc. Glucia olhou atentamente para o vestido e percebeu aqui e ali uma dobrinha, um amassadinho no tecido. Deu de ombros. Acha mesmo necessrio? Sim. Hoje uma noite especial para voc. Est bem. Deixe-me peg-lo, por favor insistiu Iara. - Pode fazer o que quiser, desde que o passe em cinco minutos. Vou me banhar e Magali vai chegar daqui a meia hora. - coisa rpida. Iara pegou o vestido e foi para a rea de servio. Deitou-o sobre a mesa de passar roupa e ligou o ferro.

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    O telefone tocou. Armando no estava em casa, e Dbora tambm estava no banho, por isso Iara correu at a cozinha e atendeu. Era a amiga Jussara reclamando do companheiro. As palavras saam aos borbotes: - Cirilo pensa que sou idiota, Iara. Ouvi uma conversa dele ao telefone. Assim que pude, fui dar uma checada no celular, procurei pela ltima chamada e descobri se tratar de "Amiga 3". O que isso? No fique nervosa, Jussara. - Como no? O patife sai com um monte de mulher. - Voc j desconfiava dele, no? . Mas, para piorar, sabia que ontem sumiu dinheiro do caixa? De novo? - De novo, Iara. Estou passando um vestido para a Glucia. Por que no vem aqui mais tarde? Hoje sexta-feira e teremos muitos pedidos para atender. Alm do mais, Cirilo me disse que tem uns "assuntos" para resolver. Na sexta-feira noite? Acha que eu sou tonta? No. Sabe o que fiz? No. Falei que ele podia sair para resolver o que quisesse, mas que teria de ir de nibus. Estou um pouco atarefada, amiga tornou Iara. Podemos nos falar amanh, no salo sugeriu Jussara. Voc vai fazer p e mo? Vou. - Tambm marquei hora. Eu pego voc na portaria do prdio e colocamos os assuntos em dia. - Perfeito. Agora preciso desligar. Um beijo. - Outro. Iara estava desligando o telefone quando Dbora apareceu na soleira da cozinha. Havia acabado de sair do banho. Enrolada numa toalha branca, enquanto enxugava os cabelos com uma toalha menor, ela perguntou: - Cad o Bolinha? referindo-se ao cachorrinho que ela ganhara do pai, um poodle caramelo, alegre e saltitante. O cachorrinho, ao ouvir seu nome, saiu em disparada da rea de servio e correu. Passou pela mesa de passar roupas e esta balanou. O ferro inclinou e a chapa quente deitou sobre o vestido. Dbora abaixou-se para brincar com o cachorrinho. Iara sorriu. Bendito seja esse cozinho em nossa vida. Bolinha to doce e gentil. Um amor. - , me. Ele muito nosso amigo. Parece at gente! Pm, no gosta da Glucia. No gosta mesmo. - Viu como ele rosna quando ela se aproxima? Porque ela no gosta de bicho. De nenhuma espcie. Pensa que o Bolinha no sente a rejeio dela? Pode ser. Foi ento que sentiram um cheiro forte de queimado, e Iara lembrou-se do ferro e do vestido. Ai, meu Deus! Ela correu para a rea de servio e Dbora a seguiu. - O que isso, me?

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    Iara balanava a cabea para os lados, inconsolvel. Eu me ofereci para passar o vestido de Glucia... enquanto falava, Iara tentava ver o estrago. No tinha como no ver a marca do ferro, bem escura, no tecido Era grande e provocara um estrago significativo no vestido, para no dizer perda total. Iara levou a mo boca: Sua irm vai me trucidar. Meu Deus! Aconteceu, me. Fazer o qu? Liguei o ferro e fui atender Jussara ao telefone. Foi uma conversa rpida e... Vai ver o Bolinha passou pela mesinha de passar, o ferro balanou e caiu. Pacincia. No foi por mal. Claro que no foi por mal! Mas sabe o que Glucia vai dizer, no? Eu mesma levo o vestido. Pode deixar. Dbora pegou o vestido queimado e foi at o quarto. Entrou no momento em que Glucia saa do banheiro. Bolinha veio logo atrs, abanando o rabinho. Dbora entrou e o cachorro estacou na soleira. No gostava de entrar no quarto de Glucia. - E a, a sua me j passou meu vestido? Passou, mas ocorreu um pequeno problema; Como assim? Glucia perguntou enquanto se enxugava. Queimou. H? No entendi. O vestido queimou. Glucia parou de se enxugar e pregou os olhos no vestido. Ao ver a marca triangular sobre o tecido, deu um grito de horror. Dbora esperava por isso e fechou os olhos. Respirou fundo. - Voc e sua me querem me matar! vociferou Glucia. Imagine. Foi um acidente domstico. Acidente domstico? Acidente domstico o que vai acontecer agora com voc. Vou esgan-la. Ah, se vou! Glucia avanou sobre Dbora e tentou lhe puxar os cabelos, mas ela se afastou e safou-se a tempo. - Calma! Como posso ter calma? Hoje uma noite especial e voc me pede calma, sua imbecil? - Sei que chato, mas no o nico vestido que voc tem. O seu armrio est abarrotado de vestidos. Glucia fez uma careta. - No tenho outro vestido cereja. - Mame pediu para me dar o nome da loja onde voc comprou este aqui apontou pois vamos lhe dar um novinho antes de partir em viagem de lua de mel. - Suas incompetentes! Nem para fazer um servio to simples as duas prestam. - Mame teve a melhor das intenes. - Claro! A melhor inteno foi queimar meu vestido. No sei onde estava com a cabea quando resolvi dar o vestido para a sua me passar. Quanta incompetncia! - Falar assim no vai mudar nada. O vestido queimou e logo a Magali vai chegar. Quer que eu a ajude a escolher outro? - Ajudar como? Voc no sabe nem a diferena entre xale e echarpe. Veste-se de maneira tosca. Eu me visto da maneira que gosto. Cafona. Brega. Usa vestido do vero passado.

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    No vamos agora discutir meu gosto. Estou aqui para tentar resolver o seu problema Dbora sugeriu, com amabilidade na voz: Que tal voc pr aquele verde-piscina que o Luciano lhe deu de aniversrio. O que me diz? - Saia daqui! - Mas, Glucia, entenda. Mame no fez por mal. - Fora do meu quarto! E leve esse co imundo com voc. Ela gritou e apanhou, com muita raiva, o vestido das mos de Dbora. Voc se deixa desequilibrar muito facilmente a meia-irm rebateu. Claro! Voc e sua me tm o dom de me desequilibrar. Foi sempre assim. No foi. Voc que nunca gostou de ns. No mesmo. - Sem motivo. Quer dizer, sem motivo nesta vida. O motivo real que vocs so intragveis. O que posso fazer? No faa nada, querida. Ter uma noite especial e voc precisa estar alegre, feliz. - Vocs duas me tiram do srio. isso. Para que ficar irritada? Pode atrapalhar a gestao. Vamos, eu a ajudo na escolha de outro vestido. - Ainda bem que voc no vai a essa festa. Graas a Deus. Agora, sai. Mas... No quero a sua ajuda e no quero mais olhar para essa sua cara de santinha. Saia daqui imediatamente. Glucia falou e deu novo grito. Pegou um porta-retratos e atirou-o com fora. Dbora foi mais rpida e fechou a porta antes que o objeto a atingisse. Escutou o som de alguma coisa se espatifando no cho e seguiu com o cozinho para seu quarto. Glucia pegou o vestido e rasgou-o em vrios pedaos. Juro! Eu vou me casar e, depois da festa, nunca mais vamos nos ver. Eu juro que nunca mais vou me relacionar com elas. Nunca mais. Soltou um grito de raiva e, nervosa, correu at o guarda-roupa. O vestido sugerido por Dbora era lindo e perfeito para a ocasio. Para no dar o brao a torcer, apanhou outro vestido, um tubinho preto estilo tomara que caia. Em seguida, colocou os brincos, um colar de ouro que seu pai lhe dera quando completou quinze anos e calou os sapatos de salto alto. Passou um perfume delicado sobre o colo e os pulsos. Apanhou uma bolsa grande de grife e comeou a ajeitar carteira, documentos e tantos outros pertences vrios que costumam habitar a bolsa de uma mulher.

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    CaptuLo Quatro Luciano estava com os olhos fixos na tela do computador. Sorriu ao ver no extrato bancrio a compensao do ltimo cheque referente s compras dos mveis e eletrodomsticos para o apartamento. Depois clicou para ver seus investimentos. O que est vendo a? indagou Lucas. Entrou em algum site ertico? Luciano parecia no estar prestando ateno, e Lucas alteou a voz: Ei! bateu na mesa com a mo espalmada. Estou falando com voc, criatura. Afiss me Luciano no tirava os olhos da tela e riu. 1 Deixe-me, em grego. Estava contente. E, quando estava feliz da vida, costumava soltar frases em grego. Luciano trabalhava com o pai e era competente, realizava-se no trabalho, estava de casamento marcado com uma moa bonita e de boa famlia. Mas, curiosamente, sentia um vazio no peito. No sabia explicar. Pagara algumas sesses de terapia e, quando o terapeuta lhe disse que ele no amava Glucia, parou de ir s consultas. "Eu e Glucia nos damos bem e vamos ter uma famlia. Isso o que importa. O amor vem com o tempo", pensava. Lucas estava sentado numa cadeira defronte mesa do irmo. Curioso, levantou-se e deu meia-volta. Nossa! Voc tem tudo isso guardado no banco? Luciano virou os olhos. O que tem isso? fruto do meu trabalho, da minha disciplina, da minha vida mais comedida. - Ganho o mesmo que voc e no tenho essa grana preta na conta bancria. Luciano riu e, enquanto desligava o computador, tornou: Pois claro. Voc perdulrio. Gasta sem limites. Por que no? Torro meu salrio e satisfao meus desejos. E o futuro? Que futuro, Luciano? Ora, no pensa em ter sua prpria casa, casar-se, ter filhos, fazer seu p de meia? Penso.

    Ento precisa juntar dinheiro e guardar, investir. Lucas jogou a cabea para trs e deu uma gargalhada. Voltou a se sentar e rodopiava o corpo sobre a cadeira giratria quando disse: S voc mesmo para me dizer uma coisa dessas. Somos ricos. No. Papai rico. Vamos herdar muito dinheiro. Nesse momento, a secretria parou na porta e fez sinal com os dedos, chamando Lucas. Ele se levantou e foi ao encontro dela. Ao sair, encostou a porta. O que foi, Sarajane? Escutei a conversa de seu pai com o advogado. No acredito! Como conseguiu? O velho sempre se tranca com esse advogado. No deixa nem mosca entrar na sala. Sarajane passou a lngua nos lbios, uma caracterstica que a acompanhava desde sempre. Inventei que a filha do advogado estava passando mal. Enfim, menti, entrei na sala e descobri. E?

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    - O doutor Andrei vai passar a casa da praia para o nome do Luciano como presente de casamento. No pode ser! Meu pai no me trairia pelas costas. E tem mais. Pelo amor de Deus, Sarajane. Vem mais bomba? Ah. Diga. Ela baixou o tom de voz e considerou: Doutor Andrei tambm vai dar de presente para Luciano a cobertura daquele prdio que vo construir no Jardim Europa. Lucas deu um murro na parede e mordeu os lbios com tanta fora que engoliu saliva misturada com sangue. Desgraado! Velho maldito! Est destruindo o nosso patrimnio. Sarajane tinha um traquejo natural para aproveitar os momentos tensos e conseguir levar alguma vantagem. Emendou: Uma casa como aquela em Maresias vale coisa de milho. Milhes corrigiu Lucas. - Acho isso um absurdo. como se o doutor Andrei estivesse tirando milhes da sua herana! Tem razo, Sarajane. Tem toda a razo. Eu tomaria providncias. O que poderia fazer? - Se voc quiser, amanh posso conversar melhor com o doutor Elias disse, num tom sensual. De que vai adiantar voc dar em cima dele? O doutor Elias casado e fiel, pai de quatro filhos, um homem de princpios. Fiel, sei... disse ela, de maneira irnica. Deixe comigo. Eu farei esse sacrifcio por voc. Ainda bem que tenho voc como aliada, Sarajane. Ele mexeu no bolso da cala, sacou a carteira e tirou algumas cdulas de cem reais. - Pegue. Isto por ter escutado a conversa do velho com o advogado. Os olhos dela brilharam de prazer. - Obrigada. - No tem que agradecer. Fao isso porque acho um absurdo seu pai dividir os bens de maneira errada, desproporcional. S porque o Luciano vai se casar, doutor Andrei no pode se empolgar e comear a dilapidar o seu patrimnio enfatizou. Imagine quando vier esse neto? Doutor Andrei poder cometer maiores desatinos. - No, isso nunca. Precisamos ficar atentos, Lucas. Por isso preciso sair com o doutor Elias, virar amante dele por um tempo, sei l, a fim de arrancar dele esses segredinhos que tem com seu pai. Faria mesmo isso por mim? Elias homem feio, transpira muito. por isso que a gente toma banho, n, Lucas? Ele riu. Est certo. Voc me convenceu. Se conseguir dobrar o Elias, eu juro que lhe depositarei um bom dinheiro na conta. Sabe que sempre cumpro o que prometo! - Sem dvida. - Vai at poder ajudar seu tio.

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    Sarajane forou um sorriso. - Com certeza. Posso ir embora? Est dispensada por hoje. Tenho de pegar metr e nibus. - Se continuar me passando essas informaes preciosas, logo ter um carro. Sarajane abriu e fechou os olhos em xtase. Imaginou-se dirigindo um carro ltimo tipo, buzinando, avanando o sinal, gritando e ameaando pedestres e motoristas. No se esquea de que no sou uma simples secretria. Serei sempre sua amiga, Lucas. Conte sempre comigo. Boa noite. Boa noite. Sarajane saiu e tomou o elevador, e Lucas rosnou de dio. - O desgraado do meu pai vai colocar mais um imvel no nome do Luciano. Que absurdo! Preciso estudar uma maneira de acabar com isso. Agora tenho necessidade urgente de sair, descontar em alguma vadia a minha ira. Estou muito nervoso. Se no colocar a raiva para fora, morro. Passou a mo pelo rosto e mudou de fisionomia. De repente, parecia estar bem. Entrou na sala sustentando um enorme sorriso. Luciano havia terminado de desligar o computador e apanhou a bolsa de couro. Prosseguiu: Se a herana vier, timo, mas eu no conto com ela. Esse dinheiro todo pertence ao nosso pai. - Se do pai, tambm nosso. No vejo dessa maneira. Papai construiu todo esse imprio com o prprio esforo. - Depois que a me morreu, a nossa parte na herana cresceu sobremaneira. - Como pode dizer assim? perguntou Luciano, indignado. - Chegou a hora da me e ela morreu. Agora temos muito mais o que herdar. de tora 2, Lucas. Se papai quiser torrar o dinheiro dele, no podemos fazer nada. 2 Francamente, em grego. Claro que podemos. Como? Eu o interdito, entro com uma ao na Justia e declaro o velho incapaz. Luciano meneou a cabea. Voc no muda, no mesmo, Lucas? S pensa em dinheiro. tambm em mulheres e bebidas completou, rindo alto, procurando manter oculta a contrariedade. Nunca pensou na possibilidade de papai se casar de novo? No. Nem quero pensar. Ele tem cinquenta e cinco anos, pratica esportes, um tipo que atrai muito a mulherada. Sua cabeleira vasta e prateada o charme dele, o que as seduz. Papai no foi comparado ao ator Richard Gere? Pois ento... Lucas deu um pulo e disse entre dentes: O pai pode ser o Richard Gere brasileiro, mas nunca ele enfatizou nunca, jamais, em nenhum tempo e de forma alguma vou permitir que ele se case de novo. Voc no tem esse direito. Como no? Tambm sou filho. Papai vivo, livre, desimpedido. E da? Pode se casar a hora que bem lhe aprouver.

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    Eu j disse que isso no vai acontecer gritou Lucas. Luciano se assustou com a irritabilidade do irmo. s vezes sentia medo de Lucas. Eles tinham uma diferena pequena de idade, algo perto de um ano e meio e, desde pequenino, Lucas tinha essas exploses, assim, do nada. Brigava em casa com os empregados, arrumava encrenca na rua, no colgio, nas festinhas. Sempre fora considerado nervosinho. Aonde ia, arrumava briga. Luciano sabia que algumas ex-namoradas reclamavam do jeito bruto de Lucas. Sugerira ao pai que pagasse terapia para ele, mas Andrei achava que era coisa da idade. "Logo seu irmo vira homem de fato e muda." Mas Lucas no mudou. Os anos passaram e ele parecia ficar cada vez mais irritadio com qualquer assunto. Gritava com funcionrios, com Luciano, com o pai, com quem quer que fosse. Sempre tratava a todos no grito. A exceo era Sarajane. Lucas adorava a secretria. Tambm, pudera. Sarajane e ele eram muito parecidos. Eram apegados s iluses do mundo e adoravam maltratar as pessoas, de forma geral. Outro fator importante: Lucas tinha pavor de ficar pobre e sem um tosto. Era um comportamento estranho, visto que ambos eram nascidos, digamos, em bero de ouro. Luciano fitou Lucas pensativo e lembranas da infncia lhe vieram mente... Andrei, o pai deles, era descendente de gregos. Yos Panopoulos, av deles, viera para o Brasil quando ainda era um beb, no incio da dcada de 1920, no auge da guerra (3) e, j adulto, abriu um restaurante no bairro do Bom Retiro. Yos casou-se tarde, com quase quarenta anos, e teve dois filhos com Katina: Andrei e Xenos. 3 A Guerra Greco-Turca de 1919-1922, tambm chamada de Guerra da sia Menor ou guerra de independncia turca, o nome dado a uma srie de confrontos militares ocorridos entre 1919 e 1922 durante a partilha do Imprio Otomano, em seguida ao trmino da Primeira Guerra Mundial. A guerra foi travada entre a Grcia e os revolucionrios turcos do Movimento Nacional Turco, que posteriormente fundariam a Tudo corria muito bem, o restaurante ganhou fama e era frequentado pela elite paulistana. Yos fez muito dinheiro e pde proporcionar uma vida bem confortvel famlia. Como nem tudo so rosas, certa vez Katina viajou com os filhos, na poca adolescentes, para uma estao de esqui em Bariloche, na Argentina. Os garotos adoravam neve, e ir a Bariloche era mais conveniente porque eles aproveitavam as frias escolares para praticar o esqui. Certo dia, Katina e Xenos saram para esquiar, e Andrei preferiu ficar no hotel. Estava muito frio naquele dia, e o garoto quis ficar prximo da lareira, lendo. Ento, houve uma avalanche que tirou a vida de Katina e Xenos, soterrando-os enquanto esquiavam. Yos entrou em choque, vendeu o restaurante e, com Andrei ao seu lado, mudou-se para o bairro de Perdizes. Yos nunca mais se casou, e Andrei entrou na faculdade de engenharia civil. Depois de graduar-se, o pai lhe deu recursos suficientes para montar uma pequena construtora, que o rapaz batizou em sua homenagem. O jovem conhecera Judite no ginsio e engataram namoro. Casaram-se logo depois da formatura e tiveram dois filhos: Luciano e Lucas. Andrei queria dar nomes gregos aos filhos, contudo, Judite bateu p para que os rebentos fossem batizados com os nomes do pai e do av dela, respectivamente. Logo depois que Lucas nasceu, Yos faleceu. Repblica da Turquia. A construtora cresceu e prosperou, apesar das oscilaes da economia. No entanto, com habilidade natural para lidar com os negcios, Andrei fez a Construtora Yos se tornar uma das maiores, mais slidas e mais respeitadas do pas.

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    Dez anos antes, assim como ocorrera com Miriam, primeira esposa de Armando, Judite comeou a sentir fraqueza de um lado do corpo e passou a ter viso dupla. Andrei tambm insistiu para que a esposa consultasse um mdico, mas Judite acreditou que aquilo fosse fruto de uma vida estressante, em que ela tentava conciliar as prendas do lar com a criao dos filhos, garotos arteiros e agitados. Luciano at era mais comportado, mas Lucas lhe dava muito trabalho. Infelizmente, tambm num sbado de manh, Judite acordou, levantou-se e sentiu uma dor terrvel a pressignar-lhe a cabea. Andrei correu com ela at o hospital, contudo j era tarde. Judite fora acometida de um aneurisma cerebral e chegara morta ao hospital. Igualzinho ao que acontecera a Miriam, me de Glucia. Andrei fechara-se em copas para o amor. Bonito, honesto e rico, era muito assediado pelas mulheres, porm nunca quis saber de relacionar-se de maneira sria. S saa, de vez em quando, para dar vazo ao instinto masculino. Procurou dar uma boa criao aos filhos e, embora sentisse a rejeio de Lucas, era muito apegado aos dois. Luciano voltou a si e encarou novamente o irmo, dessa vez com ar piedoso. Sabia que Lucas tinha um gnio difcil, beirando o intratvel, e procurou acalm-lo. No estamos atrasados? Lucas deu uma risadinha e consultou o relgio. - Vamos para casa nos arrumar. Eu selecionei um monte assim de gatinhas fez um gesto com as mos para animar nossa noite. Voc vai se esbaldar na sua festa de despedida de solteiro. Luciano levantou o brao e moveu a cabea para os lados: - Quero me divertir com meus amigos. No careo de intimidades. Eu e Glucia nos relacionamos intimamente. Isso eu sei. Voc a engravidou. - Estranho. - Estranho o qu, homem? Vocs transaram sem proteo. nisso que d. - Esse o ponto. Eu sempre usei preservativo. Lucas riu de maneira vulgar e irnica. - Vai ver a camisinha furou. Essas coisas acontecem. Luciano coou a cabea, pensativo, e o irmo continuou: - Vai sempre se deitar com uma nica mulher? Sim. - O mundo est cheio de mulheres deslumbrantes que dariam tudo para deitar-se com a gente. No me diga que depois do casamento pretende ser fiel... - Pois claro! De que adianta eu me casar e trair a minha esposa? Se fossem outros tempos e o casamento fosse por convenincia, haveria com certeza brecha para a traio, contudo eu e Glucia nos damos muito bem em tudo. Quer dizer, quase tudo. - Ela bem marrenta. Isso . - No sei como voc a suporta. Desculpe-me falar assim, sei que voc est prestes a se casar e ela ser minha cunhada, mas no acho que voc seja louco por ela. Eu gosto muito dela. Glucia uma moa bonita, elegante, culta. E chatinha. Eu no vou me deixar levar assim como voc. - Quero ver o dia em que encontrar uma mulher que o deixe de quatro. Da voc vai me dizer.

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    - No vou dizer. - O mundo d voltas, meu irmo. Pode girar vontade. Jamais terei uma mulher grudada no meu p. Voc quem diz... No vou deixar acontecer. No sou homem de me amarrar. Luciano passou o brao pelo ombro do irmo e saram do escritrio. Deixaram a sede da construtora, localizada num moderno edifcio prximo avenida Faria Lima, e seguiram para casa. Lucas estava mais animado do que Luciano. J vislumbrava as garotas sua frente e mentalmente escolhi com qual ou quais se deitaria naquela noite. Luciano estava mais quieto. Sentia um desconforto que no sabia explicar. Era como se houvesse um peso sobre sua cabea e ombros. Fez um gesto com as mos e empurrou a sensao. "Preciso aproveitar e me distrair", pensou. "Semana que vem serei um homem casado e logo, logo, um pai de famlia." Em seguida a esse pensamento, quis ligar para Glucia. - Ligar para qu? protestou Lucas enquanto lhe tirava o celular das mos. Ela tambm vai se divertir com as amiguinhas. Largue um pouco do p da sua amada. Queria s desejar boa noite, mais nada. Envie um torpedo. Tem razo. E desligue esse celular. Hoje a noite nossa!

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    CaptuLo CINCO O motorista freou o nibus bruscamente. Todos os passageiros que estavam em p perderam o equilbrio. Sarajane aproveitou para se deixar encostar por um passageiro alto, encorpado, com os braos tatuados. Sorriu maliciosa, e o rapaz sussurrou em seu ouvido: Noite de sexta-feira disse, enquanto mordiscava sua orelha. Pois ela respondeu, com um gemidinho de prazer. - A gatinha tem compromisso? Sarajane se esfregava no rapaz enquanto respondia: Depende. Se algum quiser me convidar para sair... Se eu estivesse com a minha moto, juro que levaria voc para um passeio bem longe daqui. Quem sabe um dia? Gosta de pagode? perguntou ele. Sarajane suspirou emocionada: Amo de paixo. Tenho um amigo que vai formar uma roda de pagode com churrasco. Coisa fina. A laje dele grande e espaosa. Eu topo. Vai descer onde, gata? Daqui a dois pontos. Eu sigo at o ponto final. No quer me acompanhar? - Ah,at queria, mas preciso tomar um banho, me arrumar. Estou com roupa muito comportada para ir a uma roda de pagode. Que pena! No! s voc me passar o endereo do seu amigo. Eu vou. Jura? Hum, hum ela mexeu o corpo para a frente e para trs. Sarajane abriu a bolsa, apanhou caneta e um bloquinho. Qual o endereo? O rapaz passou, ela anotou e depois guardou a caneta e o bloquinho. Em seguida, pegou o celular e pediu: - Agora me d o seu telefone e seu nome. Eu anoto e guardo aqui no meu aparelho. Meu nome Cirilo. Anota meu nmero. Sarajane teclou nome e nmero e armazenou-os no celular. O nibus dobrou a rua e ela apertou o boto. Vou descer. - Jura que vai mesmo me encontrar? - Pode acreditar. Vou s dar comida para o meu tio doente, depois me arrumo e apanho um txi para no demorar muito. Gostei da atitude. Eu vou esperar voc, hein, gata? Pode contar comigo. O nibus parou e Sarajane desceu. Uma senhora tambm foi descer e desequilibrou-se. Tentou se desculpar: Perdi o equilbrio... Sarajane falou com amabilidade: Imagine, minha senhora. Por favor, me d a sua mo e eu a ajudo a descer os degraus. - Oh, que garota mais encantadora!

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    A senhora sorriu e agradeceu. Sarajane desceu primeiro, estendeu a mo para a mulher e a puxou com fora, de propsito, fazendo-a perder o equilbrio, escorregar e cair. Sarajane deu um sorriso abafado e fez voz infantil: Ah, desculpe-me, querida. Eu me desequilibrei tambm. Machucou? Um pouco. Logo passa. Ela deixou a pobre mulher falando sozinha e deu tchauzinho para Cirilo. Dobrou a rua e foi cantarolando. Entre um assobio e outro, murmurou: Como bom machucar as pessoas! Por que gosto tanto de provocar dor? Porque me excita! ela perguntava e respondia ao mesmo tempo. Depois emendou: Agora preciso alimentar titio e me preparar para a roda de pagode. Ai, esse Cirilo de enlouquecer! Atravessou a rua de um bairro classe mdia, onde havia casas espaosas e bonitas. A rua era arborizada e Sarajane adorava arrancar as flores dos jardins. Chegou a sua casa e empurrou o portozinho de ferro entalhado. O cachorro da vizinha apareceu na frente, comeou a latir e ela disse, com a maior calma do mundo: - Pare de latir, gracinha. Porque, se continuar, sou capaz de fazer uma bola de carne moda com pedaos de vidro para voc parar de me amolar. - Experimente fazer isso ajuntou a dona do cachorrinho, que apareceu para apanh-lo. Eu a processo, vou televiso, fao escndalo. J no chega a maneira ordinria como trata seu tio? Pois tome sua linha. No se meta na minha vida, velhinha abusada. O que voc faz desumano. Sarajane deu de ombros. Titio tem um teto. Poderia estar pior, vivendo na rua da amargura. - Imagine. Voc que no tem onde cair morta. Vive a de favor. Sua me... No fale de minha me Sarajane disse, sria. Seno sou capaz de sumir com seu cachorrinho. Au, au! - Ainda vou botar voc na cadeia. Sarajane no respondeu. Encarou a vizinha, sorriu e entrou. Bateu o porto. Caminhou pela garagem, passou por um corredor extenso na lateral at chegar a um grande quintal com jardim. Encontrou o tio preso na cadeira de rodas, fazendo esforo para no chorar. O que faz fora do seu quartinho, titio? Desculpe, Sarajane. Eu precisava tomar um ar. Por qu? O quarto fica fechado o dia todo. As paredes esto com infiltrao e mofadas. O cheiro me sufoca e eu... eu... ele tragou o cigarro. Calma. No fique nervoso. Quando fica nervoso, fuma demais. Fumar no bom. Faz mal sua circulao. J disse para me levar ao posto mdico. Essa ferida no est cicatrizando apontou para uma das pernas. Eu cuido da ferida, tio. Tenho que passar pelo mdico. Vou pensar. Mas por que essa cara? Coriolano respirou fundo e disse: - A fralda vazou e eu me urinei todo. - Jra? Sim. Se ficasse no quarto, o cheiro seria insuportvel.

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    Ela o olhou com ar de comiserao. - Pobrezinho colocou a bolsa sobre a base que protege o registro de gs, e balanou a cabea para os lados: Oh, pobre tio. Por que no segurou? No deu. Juro que no deu. Ser que vou ter de dar um banho no senhor? Por caridade, menina. Eu s quero uma gua no corpo. Estou cheirando mal. Estou at com nsia disse ele, enquanto apagava o cigarro. No tem de qu ela se abaixou e pegou a mangueira. Abriu o registro e mirou o bico na direo de Coriolano. Uma cascata de gua fria jorrou sobre ele. Agora est se sentindo mais limpo, tio? Pare! Ela continuou: Esse banho de torneira timo para noites quentes como esta. Voc agora vai ficar limpinho. A noite no estava nada quente. Coriolano, preso cadeira de rodas, tentava se proteger do jato forte com as mos. Estava to cansado que, sem foras, deixou-se cair. Pare de me maltratar... Estou dando banho no senhor, titio. Falta o xampu. No precisa. Precisa, sim. Queria entender por que pessoas idosas no gostam de banho. Interessante, no? Por favor, Sarajane. D-me uma toalha. Ela parecia no escutar. Era como se estivesse num transe. - Ih - ela mordiscou o lbio o seu xampu acabou. Acabei conhecendo um rapaz no nibus e esqueci de comprar. - J disse que no tem problema. Estou limpo e... - Pode ser sabo em p? O efeito de limpeza o mesmo. Sarajane aproximou-se de Coriolano e despejou sobre a cabea dele um punhado de sabo em p. Jogou mais gua sobre o corpo velho e cansado, desligou o registro e jogou uma toalha velha, fedida e encardida na direo dele. - Enxugue-se direitinho. Caso contrrio, no vai jantar. Menino levado! Coriolano no conseguia falar. A gua fria o fazia tremer dos ps cabea. A dentadura at saiu do lugar. Uma lgrima escapou pelo canto do olho. Apanhou a toalha e, com muito esforo, tentou se enxugar. Vai, se enxuga logo, porque daqui a pouco vou ter de levar essa cadeira at seu quarto. Olha o sereno. Prefiro ficar mais um pouco no quintal. - Depois pega uma gripe e puf! Pode morrer. Coriolano tinha pavor de pensar na morte. A palavra o deixava transtornado. J vou terminar de me enxugar. Ela ficou observando, e ele passou rapidamente a toalha pelo corpo. Depois, Sarajane lhe cobriu com uma espcie de camisola, daquelas utilizadas pelos pacientes em hospitais. Ela havia conseguido com um enfermeiro que conhecera na semana anterior, tambm no nibus. - Vista-se, tio. Coriolano colocou o pano sobre o corpo. Sarajane emendou:

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    Vai dormir cedo esta noite. Estou sem sono. - Vou sair. Conheci um moo no nibus. - Outra vez? . Vou encontr-lo em uma roda de pagode. Vai ser uma noite inesquecvel. Ela gargalhou e entrou na casa. Coriolano nada disse, nada pensou. S chorou. A vizinha escutou a conversa do outro lado do muro e retrucou, enquanto fechava a porta e entrava na cozinha: Ainda vou entregar essa mulher para a polcia. Isso que ela faz com o tio desumano. D cadeia. Mais uma dessas e eu ligo para a polcia. Juro que ligo. O que anda resmungando, Justina? - Nada, Eriberto. Nada. essa doida da casa ao lado. Melhor no nos metermos com ela, minha velha. Sarajane sempre foi esquisita. Lembra-se dos gritos nas madrugadas? - Como me lembro! Depois da morte da me e do acidente, tudo ficou mais calmo. E Coriolano mudou muito nos ltimos anos. No sai, no atende ningum. Coitado, Eriberto. Olha o estado desse homem. A gente escuta cada barbaridade do quintal! Eu no me conformo. - Eu tambm no. E olha que sempre foi assim. Faz anos que essa moa trata o tio feito um animal. Isso no justo. O que podemos fazer? Chamar a polcia, Eriberto. E dizer o qu? Que Sarajane tem cara de louca. Tem cara de louca, mas no , Justina. A menina trabalha, sai cedo e chega tarde, parece que tem responsabilidade. Ela normal. - No sei. Ainda me recordo dos gritos que essa menina dava nas madrugadas. Eram iguaizinhos queles do menino da novela. Que novela, Justina? O Grito'', oras! No lembra? (4) 4 Novela de Jorge Andrade que retratava o dia a dia dos moradores de um prdio que se desvaloriza com a construo do elevado Costa e Silva o famoso Minhoco no centro de So Paulo. Em especial, uma ex-freira (Glria Menezes) cria o filho doente, que grita nas madrugadas atrapalhando o sono e a tranquilidade dos vizinhos. Exibida pela Rede Globo s 10 da noite, entre 1975/1976. - Como no me lembrar? Nossa Miriam tinha medo de assistir. Justina sorriu enquanto fitava um ponto qualquer da cozinha. Nossa Miriam... - Isso tem coisa de trinta anos, no? Sim, Eriberto. E os gritos de Sarajane so muito parecidos ao da criana da novela. Tambm, a me dela era doidinha de pedra, usava txico. E o acidente deixou o pobre Coriolano assim, preso a uma cadeira de rodas e dependente. Justina deu de ombros. - Cada um com seus problemas. Est certo, minha velha. - O jantar hoje especial.

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    Estou com fome. O que voc fez? - Surpresa emendou Justina. - Por que colocou trs pratos mesa? Porque nossa filha vai jantar conosco hoje, Eriberto. Esqueceu? - O qu? perguntou, sem entender. Hoje aniversrio da Miriam. Eriberto no gostava da maneira como Justina se referia filha. Tratava Miriam como se ainda estivesse viva. Colocava o seu prato mesa todos os dias, comprava-lhe roupas, falava naturalmente como se ela estivesse no morta, mas viajando de frias. Ele nem desconfiava, mas essa atitude de Justina atraa espritos perdidos, vagando pelo planeta sem conscincia de que morreram. Alguns outros, mais espertos e conscientes de estarem desencarnados. aproveitavam para se passarem por Miriam e alimentavam-se da energia vital do casal. Era sempre assim. Justina ia para a cama, fazia uma orao, dormia e, quando seu esprito ficava livre do corpo, sempre havia um esprito que se passava pela filha e conversava com ela. Claro que, se Justina tivesse um pouco de conhecimento espiritual, saberia que o esprito estava fingindo, que Miriam no estava ali, assim como uma pessoa lcida sabe que no existe nota de trs reais. Eriberto, mais contido, choramingava pela casa. Nessa noite, recordando que seria aniversrio da filha, fechou os olhos e segurou o pranto. "Nunca pensei que eu e Justina ficaramos sozinhos no mundo? Por qu?" Passava das nove e meia quando Magali encostou o carro na guia. Pegou o celular da bolsa e ligou. Oi Glucia atendeu de maneira fria. O que foi? Nada. - Como nada? Conheo essa voz. A va... Glucia controlou-se para no falar um palavro. Recomeou: A infeliz da Iara foi passar o meu vestido cereja e o queimou. Tenho certeza de que fez isso s para me prejudicar. De propsito. Imagine, a Iara um amor de pessoa. Olha, eu vou fingir que a gente perdeu o sinal do celular. Voc no disse o que escutei! Magali, voc a minha melhor amiga, quase uma irm, e me di o corao ver voc defendendo aquela usurpadora. Est certo. Hoje a noite sua. Vamos deixar os ressentimentos de lado e festejar? - , vamos sim. Vou apanhar a minha bolsa e num minutinho eu deso. Por que bolsa? Como por qu? Voc no vai gastar um tosto sequer. S precisa da carteira de identidade. Imagine! Sem bolsa eu no saio. como se eu estivesse meio nua, faltando uma pea de roupa. Glucia desligou o telefone, apanhou a bolsa e, antes de sair, deu uma ltima olhada no espelho. Gostou do que viu. Ela era muito bonita. Os cabelos castanhos, naturalmente lisos, tocavam delicadamente os ombros. Seus olhos eram esverdeados e brilhantes. A boca era carnuda, e o corpo, benfeito. Alm disso, era uma mulher alta e esguia. Chamava naturalmente a ateno dos homens.

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    Passou pelo corredor e pela sala feito um tufo. Boa festa desejou Iara. - Como pode me desejar boa festa depois do que me fez? Peo-lhe desculpas, mais uma vez. - Seu pedido de desculpas no vai trazer meu vestido de volta. Amanh vou loja e pego outro. Sei... Dbora interveio: No fique brava, Glucia. s no me dirigir palavra. Gostaria que voc tivesse uma noite agradvel. - Mas claro que vou ter. Voc no vai festa, e isso j meio caminho para uma noite feliz. Por que cutuca tanto a sua irm? Iara questionou, tristonha. - Porque Dbora no minha irm - enfatizou Glucia. Armando pai das duas. - Por uma infelicidade, acidente, sei l que nome dar ao triste encontro entre vocs dois. - Seu pai fica triste quando briga com Dbora ou comigo. Ah, eu estava esperando Glucia colocou uma mo na cintura e alteou a voz: Voc faz intriga e diz ao meu pai que sou encrenqueira. No sou de briga. Sou da paz. - Bem que meus avs disseram que voc, de boba, no tem nada. Seus avs no me conhecem de verdade. Claro que conhecem. No. Nunca quiseram falar comigo. Quando iniciamos o namoro, bem que Armando tentou marcar um encontro. Dona Justina e o marido no quiseram me receber. Nunca me deram a chance de me apresentar, conversar... Porque voc roubou o lugar da minha me. Que discusso mais tola! interveio Dbora. Por que vamos agora remexer no passado? Deixemos esses assuntos para outro momento. - Falou a mediadora, a falsa. No, Glucia. Estou falando de corao. Hoje a noite muito especial. E voc no pode ficar nesse estado ponderou Iara. Est grvida e, se ficar nervosa, poder afetar o beb. Glucia iria responder, mas o celular tocou. Oi, Magali. , desculpe. Acabei entrando numa discusso com voc-sabe-quem aqui. Sei. Sim. J estou descendo. Boa festa disse Iara. Divirta-se tornou Dbora. Glucia no respondeu e grunhiu. Saiu e bateu a porta da sala com fora. Iara baixou os olhos, pesarosa. - Ela nos odeia. Deixe, me. Ela no faz por mal. - Como pode nos tratar com tanto desrespeito? - Ela nasceu assim, com esse sentimento ruim por ns duas. No sei. Quando a vi pela primeira vez e tentei peg-la no colo, ela me chutou e abriu o berreiro. Nunca me aceitou. E, quando voc nasceu, o relacionamento azedou de vez.

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    Vai ver ela nos trata assim por conta de ressentimentos ocorridos em vidas passadas. - Acha mesmo? - Sim. Pode ser. Faz sentido. Sempre a tratamos muito bem. Essa implicncia com ns duas no de agora. - Muitos anos atrs, uma senhora que trabalhava no centro me disse que eu precisava tentar compreender, que eu e voc havamos causado grande mgoa no corao de Glucia e decidimos retornar juntas para nos entender, desatar os ns desses desentendimentos de uma vez por todas e perdoar. Pois, ento, faamos a nossa parte. Vamos perdoar e esquecer. que somos to legais contraps Iara , procuramos ser pessoas de bem, mas d para sentir a averso dela por ns a metros de distncia. Infelizmente, os avs contriburam muito para o fortalecimento desse sentimento raivoso dela por mim. Voc os conheceu bem? - No. Nunca tive a chance de dar um "oi". Nem em festinhas de colgio? - Tampouco... Nunca permitiram ter contato comigo. Jamais me dirigiram a palavra. E, toda vez que Glucia passava um fim de semana com eles, voltava mais agressiva e amarga. Basta voc se lembrar da colao de grau dela, dois anos atrs. No foram porque sabiam que iriam nos encontrar. - Isso no est certo. - uma defesa que usam para diminuir a dor da perda. No aceitam a morte de Miriam. - Ela morreu h mais de vinte anos! Como no aceitar? Difcil julgar o sentimento dos outros. Seu Eriberto e dona Justina no acreditam na vida aps a morte. muito difcil conviver com a ideia de "nunca mais". Eu os entendo. Mesmo no concordando com esse comportamento, o mais estranho nisso tudo que eu no sinto raiva da Justina ou do Eriberto disse Iara. Na crena deles, nunca mais podero rever a filha. Fica difcil aceitar e viver acreditando que nunca mais vamos reencontrar aqueles que amamos e morreram. Deve ser duro para dona Justina acordar todos os dias e imaginar que nunca mais, em tempo algum, reencontrar a filha amada. At entendo, Dbora. Mas eles nunca me deram a oportunidade de me aproximar. Seu pai sofreu muito com tudo isso. Ele gostava muito do seu Eriberto e vice-versa. No certo. Nem certo, nem errado. Simplesmente . Me, voc bem sabe que aceitar a realidade a base de tudo para mantermos nosso equilbrio. Nem todo mundo gosta de mim ou de voc, e assim ser com todas as pessoas que vivem no planeta. O melhor abenoar dona Justina e seu Eriberto. Abenoar, sei. Est pedindo muito, no acha? Mame, cada um tem um jeito de ser. Desde que no atrapalhem a minha vida. - Eles no atrapalham. Voc que se deixa perturbar. s ver como Glucia nos trata. Pacincia. Tambm precisamos entender que ela tem seu jeito Dbora deu de ombros. O que fazer? Ela se afastou dos avs. Faz anos que ela no os visita. Depois da adolescncia, Glucia passou a evitar os avs.

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    - Imagine como dona Justina e seu Eriberto devam estar se sentindo? Pelo pouco que sei, eles no tm parentes. - Esto envelhecendo e... - E emendou Dbora poderiam contar com a nossa amizade. - Como? exasperou-se Iara. Eles preferem um encontro com o diabo a nos conhecer. Dbora deu de ombros. - A vida sabe o que faz, no mesmo? E em relao a Glucia? Como ficamos? indagou Iara, aflita. - No se aflija, me. Semana que vem Glucia se casa e vai embora. E nem vamos acompanhar a gravidez. Dbora fez um muxoxo. Sabia que Glucia no estava esperando filho algum. Ouvira sem querer uma conversa da irm com Magali e, ento, desconversou: - No creio que vamos voltar a nos relacionar. Glucia sempre fez questo de dizer que voc roubou o papai dela. Seu pai era um homem triste e estava desiludido. Andava sem rumo na vida. Estava casado havia pouco tempo, tinha um monte de planos, uma filha pequena... e de repente se viu vivo, sem chances de transformar sonhos em realidade, sem planos para o futuro... Entendo isso. Glucia no v assim. Iara deu de ombros. Tentara naqueles anos todos ser uma boa me para a enteada, mas sentia forte rejeio da menina. Tornou, amvel: - Vai ver voc tem razo: h alguma coisa que no bate bem entre ns e ela. - Estar aqui na Terra uma oportunidade de progresso e conquistas. esquecer tudo o que fomos e o que vivemos. Vamos aproveitar para desejar que Glucia encontre, de alguma forma, a felicidade. - Voc est certa ajuntou Iara. Fizemos a nossa parte. Eu e voc procuramos deixar o passado para trs e nos propusemos a construir um bom relacionamento com ela. Se Glucia ainda guarda alguma mgoa no corao, nada podemos fazer. Estou em paz com minha conscincia. No gosto quando voc fala nesse tom reclamou Iara. Que tom? - Nesse tom proftico. Parece que sente alguma coisa ruim que est por acontecer... Dbora desconversou novamente, para no afligir a me: No vejo nada. Ela baixou os olhos e fez ligeira prece em favor da irm. A sua sensibilidade lhe dizia que uma grande mudana estava por acontecer. E nem sempre essas mudanas parecem ser agradveis aos olhos humanos. Se havia uma sensao de abertura e calor no peito, Dbora sabia que algo bom estava por acontecer. Se a sensao era de peito oprimido, como ela estava sentindo naquele momento, era sinal claro de que algo ruim estava por vir. Dbora tinha uma intuio afiada e sabia que algo desagradvel estava prestes a acontecer irm. Por isso, orou com o corao aberto, visualizando Glucia feliz e sorridente. Em seguida, agradeceu vida. A fim de no deixar Iara preocupada, resolveu falar sobre assuntos que despertassem a alegria na me. Sorriu e perguntou: - Como voc e papai se conheceram? J contei como foi. Sei por cima, mas faz tanto tempo que perdi alguns detalhes. Conte-me tudo novamente. Iara abriu um sorriso e comeou a contar. Depois de um bom tempo, ela confidenciou:

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    - Sabe que, quando nos conhecemos, seu pai me foi apresentado pela Jussara? Amizade antiga a de vocs, no, me? - . Sinto uma forte ligao afetiva por ela. Percebo que ela triste. Jussara foi maltratada pela vida. Ela era bem maluquinha, engatava um namoro atrs do outro, sempre se envolveu com homens que espezinharam seu corao. Ela se formou tcnica de enfermagem, depois foi trabalhar num grande hospital. Mas dona de uma pizzaria. No consigo imaginar Jussara como enfermeira. Ela se envolveu com um mdico casado, a esposa dele descobriu e a vida de Jussara transformou-se num inferno. Nunca mais conseguiu emprego como enfermeira. Ela poderia prestar concurso, trabalhar em hospital pblico. - Ficou traumatizada e perdeu o gosto pela profisso. Jussara simptica, tem carisma ajuntou Dbora. Deveria voltar a exercer a profisso. Eu tambm insisto nisso. A populao est vivendo mais, envelhecendo mais. Os idosos necessitam de cuidados especiais, e ela sempre gostou de cuidar de pacientes idosos. Ento por isso que ela infeliz disse Dbora. Acha, filha? Claro! Ela se formou enfermeira, sempre gostou da profisso. Depois, por conta de uma relao afetiva malsucedida, ela largou tudo. Foi se meter com comrcio e vive com um rapaz mais novo que ela que, c entre ns, no nada confivel. - Penso da mesma forma concordou Iara. Dbora sentiu um arrepio. No gosto do Cirilo. Ele no um homem que inspire confiana. Tem algo estranho em seu semblante. Tambm no gosto dele, filha. - Jussara bem que podia se separar dele. Toda vez que o vejo, sinto que vai aprontar alguma para cima dela. Acha mesmo? Sim. - Posso lhe confidenciar um segredo, filha? Claro. Hoje, antes do incidente com o vestido de Glucia, Jussara me ligou. Est preocupada porque anda sumindo dinheiro do caixa da pizzaria. - Srio? . Jussara acredita que Cirilo esteja envolvido com outra mulher. Hoje sexta-feira, dia de grande movimento, e Cirilo disse que tinha "assuntos" a tratar. Cirilo tem um ar cafajeste, no pior sentido do termo. Infelizmente carrega a ganncia exacerbada como chaga em seu esprito. Logo, ele ter de prestar contas tanto ao mundo como prpria conscincia. Dbora falara de maneira cadenciada, porm com modulao de voz firme e levemente alterada. Iara sabia que havia momentos em que a filha se transformava em outra pessoa. Procurou manter o rumo da conversa: Jussara falou que tnhamos muito o que conversar e iria aproveitar nosso encontro amanh no salo de beleza para colocarmos os assuntos em dia. Eu gosto dela. gente de bem. - , sim, filha. Ela uma boa mulher. Conversaram mais um pouco, e o telefone tocou. Dbora atendeu:

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    Oi, pai! - A Glucia j saiu? Faz um tempinho, por qu? - Tentei ligar no celular dela e s d caixa postal. Ela est muito empolgada com a festa de despedida de solteira! Tem razo Armando sorriu do outro lado do aparelho e prosseguiu: Querida, diga sua me que a reunio com o grupo espanhol acabou neste momento. No vou sair com eles para jantar. sexta-feira e o trnsito, assim como os restaurantes, est uma loucura. Daqui a meia hora estarei em casa. - Vamos pedir uma pizza? tima ideia, filha. Ligue para a pizzaria da Jussara. Pode deixar. Um beijo. - Seu pai est a caminho? indagou Iara. Sim, disse que chega em meia hora. Quer pizza para o jantar. Vamos ligar para Jussara. Que tal uma meio a meio, de mussarela e de calabresa? E uma garrafa de refrigerante diet! ajuntou Dbora. Elas riram. Iara pegou o telefone e ligou para fazer o pedido. Um rapaz atendeu e ela perguntou por Jussara. Est ajudando nas entregas porque Cirilo no veio trabalhar. Iara deu de ombros e fez o pedido, enquanto Dbora foi arrumar a mesa na copa.

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    Captulo Seis Glucia entrou no carro e bateu a porta com fora. Ei, no a porta da sua geladeira, mas a do meu carro reclamou Magali. Desculpe, amiga. Por que demorou tanto? Estou aqui parada h mais de dez minutos. Fiquei de bate-boca com aquelas duas. De novo? Estou irritada, nervosa. Elas me tiram do srio! No fale nesse tom. E que tom eu poderia usar para me referir a elas? Iara roubou meu pai de mim, e Dbora fez com que ele tivesse de dividir a ateno conosco. No justo. J disse que seus avs envenenaram sua mente. Mentira. No vejo meus avs h um tempo. E o que voc escutou na infncia? Essas conversas ficam gravadas no nosso inconsciente. Glucia remexeu na bolsa e considerou: Meus avs s me contaram a verdade nua e crua. - Voc j conversou com Iara para saber como ela e seu pai se conheceram? Pelo que sei, foi depois que sua me morreu. Iara se aproveitou de um jovem vivo com uma filha pequena para criar. Os fatos so um s, mas cuidado com as verses. No v defend-las de novo. Por favor. No se passe por advogado do diabo. Sou sua amiga. Gosto de voc. No acho justo brigar tanto com Iara. - Ela quase acabou com a minha noite! Arruinou meu vestido. Quanto drama por conta de um vestido queimado! No comentou que a Iara vai lhe comprar um igualzinho? E se no tiver outro na loja? Voc j est supondo que ela no vai encontrar o vestido. No d para ser mais otimista? Otimista? No sou como voc, que v tudo com alegria. S o fato de estar viva me deixa alegre. Parece a Dbora falando. Fez-se silncio. Glucia retocou o batom e perguntou: O que foi? No vai falar? Eu?! No. Depois voc reclama que eu vivo defendendo sua irm. Dbora uma garota que enxerga beleza em tudo. Eu tambm prefiro ver o mundo dessa forma. J tem tanta gente pessimista. Escolho ser otimista. Vocs devem ter sado do livro Poliana. (5) 5 Poliana um clssico da literatura universal lanado em 1913 pela escritora Eleanor H. Porter (1868-1920). A menina Poliana no aceita desculpas para a infelicidade e empenha-se de corpo e alma em ensinar s pessoas o caminho para superar a tristeza e a negatividade em nossa vida por meio do "jogo do contente: A obra sensibiliza a todos pelo otimismo, amor, bondade e pureza de sentimentos que a personagem irradia. por isso que resiste ao tempo e tem cativado geraes h quase um sculo. Magali riu.

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    Pode ser. Aprendi muito com a menina Poliana. Ela se tornou a minha herona na adolescncia. Acho que sou alegre e otimista por conta do livro. Ele me influenciou positivamente. Para mim foi um saco ter de ler aquilo na poca do colgio. Que menina mais boba! - Boba por qu? Ela transformou positivamente a vida de vrias pessoas, inclusive da tia ranzinza. Fico. Esse tipo de comportamento inadmissvel nos dias de hoje. E outra: estamos falando de um livro escrito h quase cem anos. - Um clssico da literatura universal no tem data de validade, Glucia. Veja os textos de Shakespeare, Dostoievski, Machado de Assis... - Deus me livre e guarde! Eu prefiro revistas de moda e de celebridades. Aprendo muito mais com elas do que com essa literatura cheirando a mofo, de sculos passados. Prefere alimentar a cabea com assuntos superficiais, com peridicos que vivem a bisbilhotar e ridicularizar a vida dos outros? Glucia assentiu. Isso mesmo. O mundo hoje assim. Todo mundo repara em todo mundo. S voc ficou parada no sculo passado. Magali deu partida e balanou a cabea para os lados. Dbora tambm assim. Eu tenho um jeito parecido com o dela e at seu noivo v a vida com otimismo. - Se eu tivesse o pai rico que Luciano tem, tambm seria bastante otimista. Enquanto Magali engatava a marcha, Glucia gesticulava coordenando a boca com as mos. - Eu amo o Luciano, mas sabe que prefiro o jeito do Lucas? Ningum perfeito. Eu queria o Luciano com aquele jeito malandro do irmo. O que isso? Voc admira o Lucas? Nunca notou? - No, Glucia. Nunca notei. Estou chocada com a informao. Pois no se choque. Posso ser sincera e verdadeira com voc? Lucas me atrai. Perigoso isso. Vocs vo se encontrar mais vezes, sero cunhados... Glucia deu uma risadinha safada. Correremos riscos! Que delcia! No correto. Ele esperto, safadinho, se d bem sempre. Se voc acha bonito se dar bem atrapalhando a vida dos outros, tudo bem. Ora, Magali. Lucas que sabe viver. O mundo sempre foi e sempre ser dos espertos. Eu gosto do Luciano, mas... - Sempre tem um "mas". . Ele muito bonzinho. - No confunda ser bonzinho com ser bom. Luciano um homem bom. Bonzinho aquele que adora ser adulado pelas pessoas. O bonzinho anseia que todos enalteam suas virtudes, caso contrrio, torna-se pessoa intratvel. Voc sempre defendeu o Luciano. Porque ele um rapaz do bem, honesto como o pai. simptico, humilde, tem uma cabea boa. Lucas um perdido. Perdido nada. Ele tem um gnio forte. Por que no troca de noivo?

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    No m ideia. O sinal fechou e Magali virou o rosto para Glucia. Posso fazer uma pergunta sincera, de amiga para amiga? Claro, Magali. - Outro dia perguntei a mesma coisa e voc desconversou. Agora pode perguntar. Sou toda ouvidos. Voc ama mesmo o Luciano? Glucia demorou a responder. Mordiscou os lbios. - A... amo. Sim, eu o amo. - Tem certeza? - Para que certeza? Ele foi seu primeiro namorado. Antes eu namorei o Miguel, o Leozinho... - Voc ficou com o Miguel, com o Leozinho e com o Vicente. O Luciano foi seu primeiro namorado "srio". Eu me acostumei com ele. S isso? Sim. Luciano tem boa aparncia, tem dinheiro, vai me realizar todos os desejos e fazer todas as vontades. descendente de gregos e eu vou ter um sobrenome diferente. Meu sogro um dos empresrios mais famosos deste pas. milionrio. A partir da semana que vem, vou me tornar praticamente uma celebridade. Isso o que importa. O resto a gente ajeita. Ento, voc no o ama? - J disse. Acostumei-me com a presena dele. Luciano um cachorrinho bem treinado, um homem bem apessoado que faz tudo o que quero e vai me dar um monte de cartes de crdito, para eu gastar sem limites. E, de mais a mais, para que queremos um homem? Para amar e ser amada. Para compartilhar uma vida, para amadurecer e crescer juntos, respeitar as diferenas, ser paciente, admirar o parceiro, fortalecer os laos de amor e intimidade... Glucia soltou uma gargalhada. Voltou a assistir queles filmes com a Meg Ryan e a Sandra Bullock? Acha mesmo que a gente pode viver uma histria de amor como essas comdias aucaradas que o cinema americano nos faz engolir? Acho e... Glucia a cortou com amabilidade e fez um sinal com a mo. O sinal abriu. Magali nada disse. Adorava Glucia porque ela agia de maneira natural. Esse jeito de ser era caracterstica do seu esprito. Eram amigas de muitas vidas e, por isso, aceitava e fazia esforo para entender a maneira como Glucia enxergava e vivia a vida. No gosto do Lucas replicou Magali. - Porque ele galinha? Ele no bate muito bem. nervosinho, agressivo. Ora, Magali, as mulheres adoram um homem safado, com pegada. No penso como voc. Lucas um cara legal. Moleco, mas espertalho. Tenho amigas que saram com ele e ela abaixou o tom de voz dizem que ele o m-xi-mo! Um garanho insacivel.

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    violento e adora deixar marcas. Ouvi delas que jamais sairiam com ele de novo. um homem bruto, sem sensibilidade. E para que sensibilidade? Isso ns, mulheres, temos de sobra. Os homens so naturalmente predadores, Magali. Eles conduzem, eles mandam. Lucas a personificao do macho. Falando assim, parece que tem vontade de ter um caso com seu futuro cunhado. Glucia riu, ardilosa. - J no lhe falei que no m ideia? Magali balanou a cabea para os lados, numa negativa. Qual o problema? Eu sempre fui uma mulher liberal. Chegaram ao bar e Magali, boca fechada, puxou o breque de mo. Desceram e ela pegou o tquete das mos do manobrista, enquanto Glucia apanhava a bolsa. Eu pago. Hoje voc s vai se divertir. Deixe a bolsa no carro. Vou danar e transpirar. Preciso retocar a maquiagem. No d para carregar os apetrechos. Preciso da bolsa. Mas turrona, mesmo. Glucia pegou o celular e notou que recebera uma mensagem de Luciano. Leu e desligou o aparelho. Hoje eu no sou de ningum. Magali mexeu a cabea para os lados novamente, mas nada disse. De que adiantaria? Por mais que gostasse de Glucia e do jeito que ela se expressava, no compactuava com o comportamento da amiga. Sabia que ela no amava Luciano e, se no tivesse um freio, poderia tornar-se amante de Lucas. Isso deixava Magali triste. "Luciano um rapaz to bom, to amoroso. Muitas mulheres dariam tudo para ficar ao lado dele. Por que ser que Glucia no enxerga isso? Por qu?", pensou. Glucia a puxou pelo brao e a despertou de seus pensamentos. - Vamos aproveitar que a noite nossa! Pegue um drinque no bar enquanto eu vou cumprimentar as meninas, trocar de roupa e vestir a minha fantasia de Madonna. Magali fez sim com a cabea. Logo a msica alta tomou conta do espao e dos ouvidos. Era praticamente impossvel conversar. O DJ tocava uma mistura de msicas atuais com sucessos dos anos 1980. Magali sorriu e deixou-se contagiar pela gostosa melodia.

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    Captulo Sete Luciano estava saindo quando cruzou com o pai, sentado no sof. Est de pijamas? Estou assentiu Andrei. Pensei que fosse conosco despedida de solteiro. No esta noite. Por qu? Andrei abriu um sorriso encantador. Os dentes alvos e perfeitamente enfileirados o tornavam um homem muito mais bonito. Em seguida, fez um gesto vago com a mo: Passei da idade, filho. Est com tudo em cima! Mudei meus hbitos. No aguento ficar acordado at to tarde. Depois da uma hora da manh, eu apago. Vamos nos divertir s um pouquinho - sugeriu Luciano. - Estou me preparando para o dia do seu casamento. Prometo que na sua festa vou ficar at o ltimo convidado. Palavra de honra. Lucas entrou na sala. Enquanto arregaava as mangas da camisa, disparou: - O velho vai ficar a sentado, assistindo televiso? No, vou ler um pouco respondeu Andrei, enquanto acendia seu cachimbo. Uma noite to bonita, tanta mulher que vai ter nessa festa, e voc vai ficar a largado, pai? E qual o problema, Lucas? - Podia aproveitar e ir conosco para a balada. Por que no posso fazer o que quero? Por que fica me atormentando com o que tenho e o que no tenho que fazer? Esqueceu-se de que o pai aqui sou eu? Luciano riu. - , papai tem razo. Voc fica controlando a vida dele. Eu?! indagou Lucas. Voc, sim. No disse que no quer que ele se case? Melhor ficar em casa. De novo com essa implicncia de que eu no me case? replicou Andrei, contrafeito. Ah, pai, a gente fez uma grande fortuna. E da? Voc no vai entregar metade de tudo o que tem para a primeira vadia que aparecer, vai? Andrei fechou o cenho e levantou-se. Alteou a voz: Aft mu lipe! (6) 6. S me faltava isso, em grego. Luciano interveio: No fale assim. Estou defendendo nosso patrimnio. Nada mais justo. Papai no merece que tripudie sobre seus sentimentos, Lucas. Ele um bom homem e, quando o corao dele se interessar por outra mulher, ter todo o direito de se apaixonar e se casar. E, em relao nossa fortuna, como sempre lhe disse, ela no nossa, mas do papai. Eu e voc devemos construir a nossa. Efkarist respondeu Andrei, voltando a se sentar. - Obrigado digo eu, papai. No gosto quando Lucas fala com voc nesse tom.

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    Lucas sentiu um dio surdo brotar dentro de si. A raiva lhe consumia as entranhas com a camaradagem entre Luciano e Andrei. Trincou os dentes de raiva, abaixou a cabea e fechou os olhos. Contou at dez, imaginou estar matando dez carneirinhos. Em seguida, ergueu o rosto e sorriu como se nada tivesse acontecido. Estamos atrasados disse simplesmente. Luciano consultou o relgio e despediu-se do pai, beijando-o no rosto. No temos hora para voltar. Cuidem-se. - Sim, senhor. E, se os dois beberem, voltem de txi. Lucas fez um muxoxo com a boca e pegou o celular de Luciano. O que vai fazer? - Nada de celular. Estou levando o meu. A noite promete! Boa noite, pai disse Luciano. - Kalinihta Andrei respondeu ao boa-noite em sua lngua materna. Os rapazes saram e Andrei tragou seu cachimbo. Soltou a fumaa e o ambiente foi tomado por uma nvoa com aroma de chocolate. Suspirou e sentiu saudades de Judite. Ento, fechou os olhos e disse: - Pena voc no estar aqui para cuidar de nossos filhos. Juro que fiz tudo o que pude, mas Lucas me desagrada sobremaneira. Eu me esforo para am-lo, mas h momentos em que tenho vontade de esgan-lo. , Christ! Perdoe-me. Apertou os olhos tentando segurar as lgrimas que teimavam descer. O esprito de Judite, envolto numa luz brilhante, acariciava os cabelos grisalhos de Andrei. Meu querido, no adianta rogar a Christ ou Cristo, falando em grego ou portugus. Voc tem sido um pai maravilhoso, de comportamento equilibrado. Estou muito feliz em saber que, ao desencarnar, deixei as crianas aos seus cuidados. Nem sempre o reencarne em famlia feito entre espritos amigos. Muitas vezes escolhemos reencarnar ao lado de desafetos para limpar nosso corao de ressentimentos criados ao longo de sculos de dor. Voc e Lucas tm diferenas a ajustar, contudo, a vida lhe deu Luciano para ajud-lo a superar as adversidades. Voc vai vencer. Confie e acredite na vida. Sempre que possvel, estarei por perto. Judite aproximou a palma da mo e colocou-a prximo do corao de Andrei. Ele sentiu um calor aquecer-lhe o peito e, naturalmente, a tristeza se foi. A imagem de Judite, sorrindo, surgiu em sua mente. Andrei tambm sorriu, levantou-se e caminhou at a lareira. Pegou um porta-retratos em que estavam ele, Judite e os meninos, ainda pequenos, numa praia do litoral catarinense. Sinto muito a sua falta, querida disse em voz alta. - Sei disso, mas plan