Eixo Temático: 05 - Mídia, Educação e Leitura · Web viewEssas imagens que sustentam a...

23
INVENÇÕES E TRADIÇÕES CULTURAIS NO PANTANAL DE MATO GROSSO DO SUL, BRASIL: A PEDAGOGIA DE PRESERVAÇÃO DO MEIO AMBIENTE NA PERSPECTIVA DA HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO Autora: Profa. Dra. Léia Teixeira Lacerda (Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul/UEMS - Instituto Nacional de Áreas Úmidas/ INAU/UFMT/CNPq) E-mail: [email protected] Co-autores: Profa. Dra. Maria Leda Pinto (Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul/UEMS - Instituto Nacional de Áreas Úmidas/INAU/UFMT/CNPq) – Email: [email protected] Profa. Dra. Márcia Maria de Medeiros (Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul/UEMS - Instituto Nacional de Áreas Úmidas/ INAU/UFMT/CNPq) E-mail: [email protected] Profa. Dra. Onilda Sanches Nincao (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul/UFMS - Instituto Nacional de Áreas Úmidas/ INAU/UFMT/CNPq) E-mail: [email protected] ; [email protected] Prof. MSc. Paulo Goulart Junior (Universidade Anhanguera- Uniderp - Instituto Nacional de Áreas Úmidas/ INAU/UFMT/CNPq) – E-mail: [email protected] Palavras-Chaves: Pedagogia, Ambiente, História No uso de cantos e recontos O pantaneiro encontra o seu ser. Aqui ele alcança a altura das manhãs E os cinzentos do entardecer (MANOEL DE BARROS, 1998). I. Considerações Iniciais O presente texto tem por objetivo apresentar dados parciais do projeto de pesquisa interinstitucional: Vozes Pantaneiras: O vivido e o narrado nas Histórias de Vida dos

Transcript of Eixo Temático: 05 - Mídia, Educação e Leitura · Web viewEssas imagens que sustentam a...

Page 1: Eixo Temático: 05 - Mídia, Educação e Leitura · Web viewEssas imagens que sustentam a produção do discurso foram propostas, inicialmente, por Michel Pêcheux (1997, p. 81-4)

INVENÇÕES E TRADIÇÕES CULTURAIS NO PANTANAL DE MATO GROSSO DO SUL, BRASIL: A PEDAGOGIA DE PRESERVAÇÃO DO MEIO AMBIENTE NA PERSPECTIVA DA HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO

Autora:Profa. Dra. Léia Teixeira Lacerda (Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul/UEMS - Instituto Nacional de Áreas Úmidas/ INAU/UFMT/CNPq)E-mail: [email protected]

Co-autores:Profa. Dra. Maria Leda Pinto (Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul/UEMS - Instituto Nacional de Áreas Úmidas/INAU/UFMT/CNPq) – Email: [email protected] Profa. Dra. Márcia Maria de Medeiros (Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul/UEMS - Instituto Nacional de Áreas Úmidas/ INAU/UFMT/CNPq)E-mail: [email protected]. Dra. Onilda Sanches Nincao (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul/UFMS - Instituto Nacional de Áreas Úmidas/ INAU/UFMT/CNPq) E-mail: [email protected] ; [email protected]. MSc. Paulo Goulart Junior (Universidade Anhanguera-Uniderp - Instituto Nacional de Áreas Úmidas/ INAU/UFMT/CNPq) – E-mail: [email protected]

Palavras-Chaves: Pedagogia, Ambiente, História

No uso de cantos e recontosO pantaneiro encontra o seu ser.

Aqui ele alcança a altura das manhãsE os cinzentos do entardecer

(MANOEL DE BARROS, 1998).

I. Considerações Iniciais

O presente texto tem por objetivo apresentar dados parciais do projeto de pesquisa interinstitucional: Vozes Pantaneiras: O vivido e o narrado nas Histórias de Vida dos Habitantes do Pantanal Sul-mato-grossense - Preservação e Respeito ao Meio Ambiente. Esta pesquisa tem por finalidade estabelecer uma inter-relação entre as histórias de vida dos povos do Pantanal: a imagem, por eles, discursivamente construída do espaço onde vivem e atuam, e as campanhas de preservação e respeito ao meio ambiente, notadamente, as ações antrópicas identificadas na Bacia do Alto Paraguai1 .

Esses habitantes, vivendo do trabalho nesse espaço formado por áreas úmidas, com características geográficas e sócio-históricas singulares, constituem-se, histórica e socialmente, por meio da riqueza linguística que se concretiza na convivência com outros falantes do português, do espanhol e das línguas indígenas, presentes na interação discursiva do dia-a-dia, resultantes do convívio, em regime de fronteira aberta, com o Paraguai e a Bolívia.

É por meio do uso da língua, aliado a outros aspectos do contexto histórico e social, que o homem se constitui como sujeito que estabelece vínculos com outros

Page 2: Eixo Temático: 05 - Mídia, Educação e Leitura · Web viewEssas imagens que sustentam a produção do discurso foram propostas, inicialmente, por Michel Pêcheux (1997, p. 81-4)

sujeitos e com outras culturas, construindo dessa forma, a sua história e a sua identidade. Diante disso, a questão que se coloca é: em que medida se instauram os efeitos de sentido da pedagogia pantaneira, como metáfora do cotidiano de seus habitantes (indígenas e não-indígenas) na preservação desse importante bioma para o Planeta?

O desafio, portanto, é compreender a inter-relação das tradições e invenções dos saberes culturais da pedagogia do povo pantaneiro em relação às questões ambientais, estabelecendo um contraponto com as campanhas de preservação ao meio ambiente pantaneiro, presentes na mídia. As narrativas levantadas, além de se constituírem no corpus desta pesquisa, posteriormente farão parte do acervo do Arquivo da Memória da Palavra dos Povos Pantaneiros2, sediado na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul - Unidade Universitária de Campo Grande. Para tanto, estão sendo analisadas as histórias de vida dos povos pantaneiros, numa perspectiva da Análise do Discurso, (doravante AD), da Educação, da Antropologia, da Biologia e da História Cultural.

O caráter inovador desta pesquisa consiste em realizar uma análise interdisciplinar do cenário local e global das tradições orais, dos saberes e dos conhecimentos culturais dos povos pantaneiros e das campanhas de preservação ao meio ambiente idealizadas pelo Governo Federal. Isso permitirá estabelecer um diálogo entre a História da Educação, a Educação Ambiental e a Cultura da região. Esse material, dada a sua relevância científica e cultural, deverá ser divulgado nos diferentes cursos de graduação e pós-graduação das Universidades Brasileiras.

Para esta análise foi escolhida a história de vida de um dos pantaneiros, que foi coletada por meio de um roteiro, para entrevistas abertas. O resultado da pesquisa revelou como o pantaneiro vê a sua relação com o patrão, com o capataz, com os seus companheiros, bem como a importância de seu trabalho nesse contexto e como se sente vivendo e preservando esse importante bioma para o planeta.

II. Vozes dos Povos do Pantanal – Sul-Mato-Grossense: o vivido e o narrado

Situado na região central da América Latina, o Pantanal sul-mato-grossense foi inicialmente ocupado com a migração de cuiabanos, paulistas, mineiros, gaúchos, nordestinos, paranaenses, atraídos pelas terras propícias à criação extensiva de gado de corte. No entanto, a fixação do não-indígena nessas terras aconteceu, de forma mais efetiva, após a Guerra do Paraguai, quando muitos dos antigos donos reconstruíram suas fazendas que tinham sido invadidas.

Segundo Nogueira (1990, p. 21), o Pantanal apresenta dois aspectos importantes para a sua caracterização: o isolamento em relação às grandes metrópoles do país e a proximidade com dois países latinos, com os quais, tem convivido intensamente. O resultado desse relacionamento foi a assimilação de muitos hábitos e costumes paraguaio, boliviano e indígena, hoje integrados ao cotidiano do homem pantaneiro.

É uma região que se diferencia das demais regiões do país, especialmente pela riqueza de sua biodiversidade, pela beleza da paisagem, pela opulência de seu ecossistema aquático, pela singularidade do homem que a habita.

Analisar a linguagem do pantaneiro dentro desse contexto é ter a possibilidade de conhecer as construções identitárias e as representações que tem de si mesmo e do

2

Page 3: Eixo Temático: 05 - Mídia, Educação e Leitura · Web viewEssas imagens que sustentam a produção do discurso foram propostas, inicialmente, por Michel Pêcheux (1997, p. 81-4)

espaço em que vive e atua. Como afirma Brandão (1998, p. 37): [...] É porque constitui o sujeito que a linguagem pode representar o mundo: porque falo aproprio-me da linguagem, instauro a minha subjetividade e é enquanto sujeito constituído pela linguagem que posso falar e representar o mundo.

Ampliar pesquisas dessa natureza constitui-se, do nosso ponto de vista, em um avanço que não se refere só aos aspectos linguísticos reconhecidamente singulares nesse contexto, mas, indo além, refere-se àqueles que, por meio da língua, podem ser evidenciados, já que esta, como observa Geraldi (1996, p. 28.): “[...] enquanto condição de produção da história presente vem marcada pelos seus usos e pelos espaços sociais destes usos”.

Na análise adotamos o conceito de língua defendido pelo teórico russo Mikail Bakhtin, que compreende a língua como algo concreto, vivo, capaz de dar conta das situações cotidianas de uso, isto é, a linguagem, nessa perspectiva, é uma atividade histórica e social. Outras noções importantes como a de sujeito e de discurso, utilizadas neste trabalho, são próprias da AD. O sujeito, sendo essencialmente histórico, deixa de ser visto como único na instância discursiva, para deixar evidente seu caráter contraditório que, segundo Brandão, “[...].marcado pela incompletude, anseia pela completude, pela vontade de ‘querer ser inteiro’”. Assim, numa relação dinâmica entre identidade e alteridade, o sujeito é ele mais a complementação do Outro.

O discurso, por sua vez, é feito de sentido construído em um processo de interação verbal. Como diz Possenti (1988, p. 201-2), é “[...] um acontecimento, ou seja, não é previsível, nem necessário. Não é da ordem da estrutura, mas da materialidade, é um fato que acontece.” Para o autor, em análise do discurso, a questão semântica deve ser compreendida como efeito de sentido tendo em vista que os enunciados acontecem em determinadas condições de enunciação3.

Dessa maneira, para a análise do discurso o contexto histórico-social é fundamental na construção do sentido e estruturação da identidade do homem. Considerados esses pressupostos, podemos afirmar que toda aproximação de um texto4

coloca em pauta as suas condições de produção. Essas condições estão presentes na interação dos aspectos linguísticos com os

aspectos extralinguísticos que podem apresentar, na materialidade discursiva, as pistas que buscamos os sujeitos que constituem a pedagogia pantaneira como protagonista da preservação e respeito ao meio ambiente.

Outro aspecto a ser considerado quando se trata de construções identitárias é a teoria das Representações Sociais que tem como foco os aspectos individuais e coletivos do conhecimento social; assim, o sujeito se constitui nas relações sociais, e esse fenômeno ocorre por meio da linguagem (MOSCOVICI ,1978).

A identidade é múltipla e dinâmica, tal qual a cultura de diferentes grupos sociais. O sujeito convive com diferentes grupos, com os quais se identifica em maior ou menor grau; cultiva sentimentos de pertencer a esses grupos e assume identidades correlatas. Com os saberes e as trocas culturais de seu grupo de origem, o indivíduo interage nos diferentes contextos, numa inter-relação com o Outro.

E é essa representação social — presentes nas vozes vividas e narradas — que fornece pistas constitutivas do ponto de vista lingüístico, cultural e educativo do protagonismo dos povos pantaneiros para a preservação natural do meio ambiente.

Essas imagens que sustentam a produção do discurso foram propostas, inicialmente, por Michel Pêcheux (1997, p. 81-4) por meio de uma esquematização [...] de formações imaginárias que designam o lugar que A e B se atribuem cada um a si e ao Outro, a imagem que eles se fazem de seu próprio lugar e do lugar do Outro”.

3

Page 4: Eixo Temático: 05 - Mídia, Educação e Leitura · Web viewEssas imagens que sustentam a produção do discurso foram propostas, inicialmente, por Michel Pêcheux (1997, p. 81-4)

É importante ressaltar que para Pêcheux os elementos A e B não caracterizam a “presença física de organismos humanos individuais”, mas que estes designam “lugares determinados na estrutura de uma formação social, lugares dos quais a sociologia pode descrever o feixe de traços característicos”. Assim, em um contexto de produção econômica empresarial, o “lugar do patrão, o “lugar” do empregado e o “lugar” do gerente, por exemplo, vêm marcados por “propriedades diferenciais determináveis”.

O autor, considerando a importância da imagem que se fazem os interlocutores nos processos discursivos, representou-a por meio de um quadro, onde faz um levantamento das questões que evidenciariam o que ele chama de jogo de imagens de um discurso.

O quadro elaborado por Pêcheux sobre as formações imaginárias, foi organizado, em dois blocos, por Mussalim (2000, p. 137) com a finalidade de facilitar sua compreensão, ao leitor:

1. A imagem que o sujeito, ao enunciar seu discurso, faz:

a) do lugar que ocupa:

b) do lugar que ocupa seu interlocutor;

c) do próprio discurso ou do que é enunciado.

2. A imagem que o sujeito, ao enunciar seu discurso, faz da imagem que seu interlocutor faz:

a) do lugar que ocupa o sujeito do discurso;

b) do lugar que ele (interlocutor) ocupa;

c) do discurso ou do que é enunciado.

Esse jogo de imagens não é dado a priori, mas se constitui no processo discursivo pelo sujeito que vai se constituindo à medida que constrói o seu discurso, tendo em vista o lugar de onde enuncia e os interlocutores com quem/para quem enuncia.

Portanto, analisar o discurso desses povos sobre sua relação com o meio ambiente é ter a possibilidade de fazer uma análise das condições de produção do discurso que vai evidenciar as imagens sobre as quais esse sujeito fundamenta seu discurso. É ter também a possibilidade de conhecer as vozes que permeiam essa voz, sua identidade discursiva, cultural, as representações que tem do espaço pantaneiro, no que diz respeito à preservação ambiental, estabelecendo um contraponto com as campanhas oficiais de preservação e respeito ao meio.

III. A Preservação do Pantanal nas Histórias de Vida dos Pantaneiros: Processos Educativos, Saberes e Tradições Culturais

Para estudarmos os processos educativos, os saberes e as tradições culturais da preservação do Pantanal selecionamos a história de vida do Sr. SNC, não-indígena, 45 anos, que trabalha e reside na Fazenda Paloma, distrito de Taboco, Município de

4

Page 5: Eixo Temático: 05 - Mídia, Educação e Leitura · Web viewEssas imagens que sustentam a produção do discurso foram propostas, inicialmente, por Michel Pêcheux (1997, p. 81-4)

Corguinho-MS, que consideramos representativa para a análise desta proposta de trabalho. Nesse discurso, realizamos o recorte das instâncias discursivas que julgamos relevantes para o estudo da preservação do Pantanal em relação às campanhas oficiais, de preservação a esse meio ambiente, presentes na mídia.

O homem pantaneiro5 que há muitos anos habita o Pantanal aprendeu a conviver com um mundo inundado, úmido e/ou seco. É um homem simples, calmo, acostumado à solidão e ao isolamento, mas que não deixa de lado a solidariedade: está sempre pronto a receber, a informar, a servir de guia, a explicar sobre animais e águas e a contar seus causos6

De acordo com Pinto (2007) a relação de sobrevivência no Pantanal permeia todo o discurso desses povos pantaneiros. O aprendizado dessa sobrevivência, do prover para a vida, pressupõe um enfrentamento diário às adversidades da natureza (reais), ao sobrenatural (o que está no imaginário), às relações com o patrão via capataz, à convivência com os vizinhos, à questão da saúde (o empecilho das longas distâncias e a cura pelas ervas).

[...] Meu nome é SNC. ... aí eu comecei a trabaia no Pantanal por volta de doze... doze ano... treze ano já comecei a trabaia no Pantanal... mas trabaiava em cima de:::.. da área de campero... né? Aí eu enjoei de trabaia no campo... tá? dos treze até os dezessete ano... eu trabaiei no... no campo... mas não... nunca tive acidente no campo... aí eu larguei de trabaia no campo e passei a trabaia com trator... aí minha vida foi só trabaia no Pantanal com trator... éh:::.. puxá CARga... levá CARga... duma fazenda pra otra... as vêis... a gente trabaiava o dono da fazenda tinha duas... três fazenda... então... a gente tinha que locomove de uma pras otra pra levar CARga, né? são mantiMENto... as vêis arame... éh material... que as vêis tava construindo e a gente tinha que levar... e daí que a gente começava a sofrer MAIS que a vida de campero... que as vêis a gente achava que a vida de tratorista era mais fácil e não era... era mais difícil... mais difícil porque a cavalo você não atola e com trator você atola... né? com trator você atola e as vêis fica o dia inteiro... a noite inteira com ele ali... sem poder sair... e de a cavalo não... se você saiu cedo... você tem certeza que à tarde você tá na sua casa... e a trator não... porque o trator não tem como você tira ele do lugar e pôr no outro... a não ser ele mesmo sair... né? (questão ambiental) então é muito difícil a vida no Pantanal nesse sistema... pra quem trabaia... todas as partes que você trabaia no Pantanal é difícil... né? não tem nada fácil... não existe nada fácil... porque só... o Pantanal é uma área muito grande... é uma área muito grande... então é difícil uma fazenda dentro do Pantanal... né? há quinze... vinte anos atrás que ela tinha três mil hectares... ela sempre é de QUArenta mil hectares... CINqüenta mil hectares... então pra você locomove... as distâncias são muito grande... você teje de a pé... você teje de a cavalo... você teje em cima de um trator... tudo é longe... tudo é longe (disso aí)... né? aqui pra cima da serra você sobe aí:::.... numa fazendinha de três mil hectares... você anda o dia inteiro nela... de tarde você tá na ( )... no Pantanal você anda o dia inteiro numa invernada e não chega no fim dela... são só fazenda grande... (N1 – HISTÓRIA DE VIDA DO SR. SNC, 45 anos, Fazenda Paloma, 28/08/2004).

É possível estabelecer uma relação entre o discurso e as memórias desse peão e a sua formação para o trabalho no Pantanal, espaço com características muito singulares

5

Page 6: Eixo Temático: 05 - Mídia, Educação e Leitura · Web viewEssas imagens que sustentam a produção do discurso foram propostas, inicialmente, por Michel Pêcheux (1997, p. 81-4)

para a sobrevivência humana. Considerando o lugar que ocupa, ao enunciar o seu discurso: seu local de trabalho e a função que desempenha, esse pantaneiro se coloca, em primeiro lugar, como trabalhador do pantanal.

Ao narrar a sua vida, remete ao trabalho, tanto às atividades que exerceu, como em relação às que realiza atualmente e como aprendeu a realizá-las. A narrativa a respeito do seu processo educativo para o trabalho é uma referência e um modelo a ser apresentado às novas gerações de peões pantaneiros.

A memória e as invenções das tradições culturais é um dos elementos constitutivo do processo educativo do peão pantaneiro para o trabalho. É nesse recontar dos causos de suas experiências os peões demonstram dominar e preservar o meio ambiente.

Considerando com Bakhtin (1986, p. 112) que: “A palavra dirige-se a um interlocutor: ela é função da pessoa desse interlocutor: variará se se tratar de uma pessoa do mesmo grupo social, se estiver ligada ao locutor por laços sociais mais ou menos estreitos (pai, mãe, marido, entre outros.)”, podemos dizer que, ainda em relação ao lugar que ocupa o sujeito e o lugar que ocupam os interlocutores, a narrativa do peão pantaneiro é atravessada por um discurso, que explicita — a quem não é da região e, portanto, não a conhece — como se dá o seu aprendizado e a sua saída para outras atividades até chegar a uma formação melhor, inclusive uma posição de poder de decisão, a de encarregado das máquinas, ou seja, aquele responsável pelo bom funcionamento das máquinas e que tem o grupo de tratoristas e piloteiros de barco para coordenar.

[...] conforme a gente vem aprendeno de tratorista... então... você vai aprendeno... você vai aprendeno... você vai aprendeno e vai subino... né? vai subino... -- então na Caimã... eu já entrei como encarregado de máquina... daí eu comandava dezesseis tratorista... eu comandava lá... tudo éh::... tudo era por minha conta... então... eu num precisava í no gerente pra saber se eles podia pegar um dia... se eles... precisava de um dia de forga... eles num precisava í no gerente... eles podia vim ni mim né? se eles precisasse dum dia... (N1 – HISTÓRIA DE VIDA DO SR. SNC, 45 anos, Fazenda Paloma, 28/08/2004).

Muito embora os povos pantaneiros não tenham tido a oportunidade de passar por uma formação escolarizada regular, sobre como viver e sobreviver no Pantanal, podemos dizer que o aprendizado desses peões se constituiu em parte por meio da formação não escolarizada, ou seja, o recontar dos causos e também de ver como o Outro faz em sua convivência diária com o trabalho. Isso é o que caracteriza a Pedagogia Pantaneira, desenvolvida, por meio das tradições orais em uma região de fronteira, nesse caso especifico, sempre voltada para a preservação e o respeito ao meio ambiente.

Essa preocupação antrópica e ambiental do pantaneiro está presente nas narrativas coletadas, pois atuando em uma área que, em muitas situações, é cheia de adversidades e vicissitudes, esse pantaneiro, está integrado a esse contexto, respeitando a flora e a fauna desse habitat, sobretudo, como forma de sobrevivência e proteção à vida, como se observa neste trecho da narrativa oral:

[...] NÃO... a gente se aprende assim... tem uma pessoa que::... éh/você trabaia... vão supor no campo primeiro né? eu trabaiei... comecei a trabaia com doze ano... então... você num tem... você num

6

Page 7: Eixo Temático: 05 - Mídia, Educação e Leitura · Web viewEssas imagens que sustentam a produção do discurso foram propostas, inicialmente, por Michel Pêcheux (1997, p. 81-4)

sabe trabaia... então... você vai aprende oiando os zotro fazê... conforme o zotro vai fazeno... então... o própio capataz... que (fala) que é da fazenda... ele apóia você... “vai lá... joga o laço... laça... pega... maneia né?” pra você í aprendeno... então você já aprende trabalhano... você já aprende trabaLHANO... aprende fazê tudo... ( ) éh... se aprende tudo que é feito... em cima do campo... é os própios campeiro que faz... ele aprende faze um (arreio)... aprende trança o laço... aprende fazê um::.. ( )... aprende tudo... então nada éh fácil pra ele... né? ele mesmo faz a traia dele... se você... vai aprende trabaia com trator... se eu com treze... dezessete ano... eu num saBIA... então o que eu ia sê? ia trabaia de ajuDANte... você começa trabaia de ajudante daquele tratorista... você tá entendeno? ai você vai trabaiando de ajudante... aí você vai oiano ele... ele trabaia... muda marcha... pára... sai né? aí você pede pra ele “deixa eu leva um pouquinho?” então você vai pegá... como você vai pegá? você vai pegar nos lugar bom... porque se ele te dé num luga ruim... ocê vai ficar ruim... vai ser pra ele... porque você vai atola... vai fica mais difícil... então depois que você aprende nos lugar bom... aí você começa a::.. dirigir também nos lugar difícil... pra vê se você tem capacidade de fazê o serviço que ele fez... então você já aprende sofrendo... você já aprende trabaiando em cima daquilo ali que você aprende... né? então hoje... você passa num lugar difícil... passou bem... quando é amanhã... ele já não tem medo de te entregar o trator pra você í sozinho... porque sabe que você vai e VOLta... uma atolada... duas atolada... não vai deixar o trator na estrada... você vai vim com ele... você vai desatolar... ocê vai sofrê até você voltar aquele trator pra trás... (ih... você faz isso com boa vontade?) boa vonTAde... tudo com boa vontade... e isso que ele num ajuda muito... você se vira... porque todas as vezes que cai numa dificuldade... e o próprio cara que é profissional... tira você... você jamais vai aprende... tá entendeno? então ele vai ‘NÃO... voCÊ tem que fazê assim”... ah mais... não... “faz assim que você vai sai daí” tá entendeno? agora se ele fizer... você não tá aprendeno... né? então... ele vai deixá você sofre um pouco... que é pra você aprende... pra vê se você tem paciência... se você não é nervoso... que as vêis a pessoa começa mexe fica muito nervoso... ele já larga de mão... pega o caminho e vai embora e a... sua máquina ficou pra trás... por que se não? “ah::... porque eu pelejei lá e não deu certo” mas como não deu certo? como é que o rapaz vai lá e tira e vêm? então a pessoa nunca pode fica nervoso... todo serviço que você fica nervoso... você não... não faz mais... (N1 – HISTÓRIA DE VIDA DO SR. SNC, 45 anos, Fazenda Paloma, 28/08/2004).

Dessa maneira, a Pedagogia Pantaneira, se constitui por meio das memórias e das tradições orais desses pantaneiros que, no processo cotidiano de sobrevivência e de trabalho — nessa imensa planície — fazem circular no grupo os saberes culturais e os conhecimentos nessa lida com o meio. É nesse espaço singular que habitantes vivem e constroem as suas histórias de vida em uma interação direta e saudável com o meio ambiente.

Como nos ensina Bakhtin:

Todo ato cultural vive por essência sobre fronteiras, sem estas ele perde terreno, torna-se vazio, pretensioso, degenera e morre. [...] Enfim deve-se dizer que nenhum ato vive nem se movimenta no vazio, mas na atmosfera valorizante, tensa, em um mundo vivo e

7

Page 8: Eixo Temático: 05 - Mídia, Educação e Leitura · Web viewEssas imagens que sustentam a produção do discurso foram propostas, inicialmente, por Michel Pêcheux (1997, p. 81-4)

significante, assim proporcionando e proporcionado pela cultura em determinado tempo e espaço (BAKHTIN, 2002, p. 29-30).

As histórias de vida contadas e recontadas pelos peões a respeito da preservação do meio ambiente é rememorada e ressignificada a todo momento de geração a geração. Essa resignificação passa também pelo uso das novas tecnologias que chegam ao Pantanal e trazem novas atividades, sempre voltadas para o respeito ao meio ambiente, como é o caso do Ecoturismo.

Podemos estabelecer, também, uma comparação entre a descrição feita por Souza (2004) sobre o espaço escolar e o espaço da aprendizagem dos peões pantaneiros no processo de preservação do meio ambiente.

A descrição da historiadora nos diz que:

A escola é um lugar de memória. Quando o olhar pode atravessar a espessura do tempo, distingue vestígios reconhecíveis de sua história. O desenho quadrangular da sala de aula a porta de entrada próxima a cadeira do mestre, o alinhamento das carteiras, o agrupamento sob o paradigma numérico, segundo idade e nível de aprendizagem, o ensinamento em grupo a partir de horário e programa pré-estabelecidos, têm parentesco direto com as oficinas dos primeiros tempos da Revolução Industrial. Outras marcas são ainda mais velhas: o aviso de silêncio na biblioteca, o desenho do pátio e dos corredores guardam a memória dos mosteiros; as aulas expositivas das primeiras universidades, os exercícios dos colégios medievais. O quadro-negro e o giz, a lembrança da invenção dos salesianos no Século XVII (SOUZA, 2004, p. 07).

Por outro lado, o espaço dos peões pantaneiros apresenta-se igualmente como um lugar positivo de aprendizagem e de sobrevivência. No entanto, esse espaço e esse 1 Implementação de Práticas de Gerenciamento Integrado da Bacia Hidrográfica para o Pantanal e Bacia do Alto Paraguai ANA/GEF/PNUMA/OEA: Programa de Ações Estratégicas para o Gerenciamento Integrado do Pantanal e da Bacia do Alto Paraguai: Relatório Final/Agência Nacional de Água - ANA... [et al.]. – Brasília: TDA Desenho e Arte Ltda., 2004, p. 64.

2 O Arquivo da Memória da Palavra dos Povos Pantaneiros, se constitui em um espaço que abrigará — gravado em suporte adequado — o material de pesquisas realizadas na região pantaneira, pelos pesquisadores da UEMS e das demais IES sul-mato-grossenses. Esse Arquivo produzirá fontes orais que possibilitarão, aos pesquisadores e aos Programas de Pós-Graduação da UEMS, novas pistas e novas pesquisas, bem como a disponibilização desses dados para outros pesquisadores, instituições e Programas de Pós-Graduação, que queiram ampliar a compreensão sobre a vida dos povos pantaneiros e seu contexto sócio-cultural.

3 Enunciação aqui é entendida “... como um ato histórico e social. Portanto, não é independente de outras enunciações.[...] Uma enunciação não ocorre no vazio, mas em posições enunciativas prévias aos atos singulares de enunciação e são relativamente estáveis, embora historicamente mutáveis.”

4 Por razões práticas, estamos tratando os termos texto e discurso como sinônimos.

5 Entende-se, portanto, por homem pantaneiro, neste contexto, o elemento nativo do Pantanal ou aquele que nele vive há mais de vinte anos, compartilhando hábitos e costumes típicos da região, assimilados pela força do convívio diário com os mesmos (Conforme NOGUEIRA, 1989, p. 31).

6 Os peões possuem uma imaginação fértil para inventar as grandes mentiras e uma predisposição inata para colocar apelidos nos outros.

8

Page 9: Eixo Temático: 05 - Mídia, Educação e Leitura · Web viewEssas imagens que sustentam a produção do discurso foram propostas, inicialmente, por Michel Pêcheux (1997, p. 81-4)

aprendizado não estão enquadrados na lógica social e educativa presentes na memória institucional apresentada por Souza (2004).

Os vestígios da organização desse aprendizado são descritos nas histórias e nas tradições culturais presentes nas narrativas orais desses peões, ao longo do tempo. É possível afirmar que essas histórias e tradições se depreendem do discurso desse pantaneiro de maneira metafórica, pois segundo Coracini (1991, p.135), [...] as palavras não têm sentido próprio definido: seu sentido é sempre contextual”, já que sua natureza é polissêmica.

Dessa maneira, os efeitos de sentido construídos na história de vida desse peão pantaneiro evidenciam o que chamamos de metáforas do cotidiano desses povos de que trabalho é aprendizado, trabalho é vida, trabalho é sobrevivência e viver é aprender. Nessa dinâmica metafórica homem e natureza interagem diuturnamente:

[...] éh um aprendiZADO... tudo que você aprende no Pantanal é um aprendizado... porque se você não aprende... você num VIVI... você não vive MESMO... tudo é diFÍcil... né? você tem que ter MUIta paciência... né? você atola o trator... se você ficou nervoso... aí... se o trator fica lá... ele fica::.. você vai embora... que pra nóis num... que pra nóis... nada segura NÓIS... se você vem com trator bem... se não vem... você vem a pé... ocê vem por dentro d’água... rasgando água pela cintura... espantando jacaré... sucuri... mas você vem emBORA... por quê? porque você é CRIado e nascido ALI... você não tem medo daquilo ali... né? você não tem medo...você tá vendo na sua frente três... quatro jacaré... você vai pra cima deles... eles que tem que saí de você né? então se você ficou nervoso... você vai larga o trator? você tem que tê muita paciência... tranqüilidade... para pensa... cuma que eu tenho que fazê pra mim sai daí? até você achá um meio de você tirá a condução que você atolou... pra pode vim embora... né? então... é onde você vai pegano média cos patrão... (ah tÁ...) você tá entendeno? se você começá desisti... eles já te manda emBORA... né? você não SERve.. éh::.. você não SERve... porque você vai leva uma carga... principalmente de uma fazenda pra otra... hoje chegou a compra do mês... aí eles põem você pra levá essa compra lá num retiro... cinqüenta quilômetros... lá no retiro... as pessoas de lá num tinham mais nada o que cumê... já tinha acabado... então aquela compra tem que chegar LÁ... aí você atola o trator... fica nervoso... volta pra trás... aquela compra vai chegar lá em três quatro dia... qué dizer que você não tá sofrendo... quem tá sofrendo é os otro que tá sem nada lá... então... aí tem que existir muita paciência... tranqüilidade... (N1 – HISTÓRIA DE VIDA DO SR. S. N. C, 45 anos, Fazenda Paloma, 28/08/2004).

É possível depreender também um efeito de sentido metafórico de que trabalho é sofrimento:

[...] então depois que você aprende nos lugar bom... aí você começa a::.. dirigir também nos lugar difícil... pra vê se você tem capacidade de fazê o serviço que ele (o capataz) fez... então você já aprende sofrendo... você já aprende trabaiando em cima daquilo ali que você aprende... né? então hoje... você passa num lugar difícil...[...] não vai deixar o trator na estrada... você vai vim com ele... você vai desatolar... ocê vai sofrê até você voltar aquele trator pra trás... [...] e isso que ele (o capataz) num ajuda muito... você se vira... porque todas

9

Page 10: Eixo Temático: 05 - Mídia, Educação e Leitura · Web viewEssas imagens que sustentam a produção do discurso foram propostas, inicialmente, por Michel Pêcheux (1997, p. 81-4)

as vezes que cai numa dificuldade... e o próprio cara que é profissional... tira você... você jamais vai aprende... tá entendeno? [...] se ele fizer... você não tá aprendeno... né? então... ele vai deixá você sofre um pouco... que é pra você aprende... pra vê se você tem paciência... se você não é nervoso... que as vêis a pessoa começa mexe fica muito nervoso... ele já larga de mão... pega o caminho e vai embora e a... sua máquina ficou pra trás... (N1 – HISTÓRIA DE VIDA DO SR. S. N. C, 45 anos, Fazenda Paloma, 28/08/2004).

Esses sentidos explicitados apresentam, no entanto, sentidos outros perceptíveis pelo “não-dito” naquilo que se diz, porque existe uma lógica e uma tradição cultural de respeito e preservação ao meio ambiente. Consideramos que esse “não dito” está relacionado ao espaço de onde falam esses sujeitos e da imagem que fazem de seus interlocutores — não conhecedores da vida nessa região — e, portanto, não conhecedores dos saberes e tradições de respeito e preservação desse habitat, historicamente construído por esses povos.

Entretanto, essa preocupação se revela como um contraponto ao que é feito pelas agências idealizadoras das campanhas que veiculam o discurso da preservação do meio ambiente desconectado dessas relações do homem com a natureza e do habitante dessa região, especificamente, situada no Brasil Central.

A dinâmica metafórica da relação dos povos pantaneiros com a natureza, na maioria das vezes nem sempre é considerada no processo de elaboração das políticas de preservação e respeito ao meio ambiente, pois isso implica em ouvir o que esses povos têm a dizer dessa viva relação cultural.

A relação de alteridade do peão-pantaneiro com o gerente e o capataz, a capacidade de inventariar as maneiras para sobreviver no meio ambiente diante das dificuldades do trabalho e das intempéries da natureza são alguns dos elementos que precisam ser considerados na elaboração das campanhas de preservação desse meio ambiente. Esses povos defendem a possibilidade de construir uma consciência pacífica na relação de trabalho, pois a boa vizinhança e o respeito ao espaço do Outro é uma questão de sobrevivência:

[..] pra você vê... tudo é difícil... tudo é difícil... tivemo dois filhos... a guria já fez dezenove e o guri tem onze... onze ano... bom... aí eu tive essa guria com... em oitenta e cinco... aí dei um tempo... né? vamo pará... porque você fazê filho hoje é fácil... cuidar deles que é difícil... né? então... primeiro você vê se você tem condição de cuidar dos seus filho... aí sim... você faz o filho.... ele não pede para nasce... mas eles tem que sê (espirrou)/então... pra você tê hoje cinco... seis... sete filho... num tá fácil... num tá fácil... é muito difícil... a guria tá no terceiro ano e o guri já tá na quinta... então... ele tem onze não... (estudam em Aquidauana?) NÃO... ela estuda no:::.. no Taboco mesmo... no Taboco mesmo ela estuda aí e o guri já vai pra quinta série... então... ela esse ano ela fecha o ensino médio... né? aí ela já vai prestá::: cursinho pra fazê o vestibular... aí ela vai segui o que ela... pretende sê né? mas por enquanto ela tá fechando o::: ensino médio do terceiro ano... agora.... esse ano ela... se ela não reprová ela... - - peço a Deus que não... né? que nunca reprovou - - ela fecha o terceiro ano... eu já também fiz de tudo na minha vida foi... foi... fui até balconista ( ) pra tê os filhos estudano... porque lá no Pantanal é difícil escola... então... você não tem escola no Pantanal... né? se você tem um escola é até quarta série... aí da quarta série pra frente... você tem que saí... ou você deixa os filhos sem estudá... ou... muda do Pantanal... eu

10

Page 11: Eixo Temático: 05 - Mídia, Educação e Leitura · Web viewEssas imagens que sustentam a produção do discurso foram propostas, inicialmente, por Michel Pêcheux (1997, p. 81-4)

mudei... mudei pra mim podê dá estudo pros meus filhos... eu já num tenho... né? meu estudo é pouco... então... pra sê uma família de tudo analfabeto... (riu) achei que:: num compensava né? então... pelo menos um da família tem que tê estudo... daí que eu vim::. mudando... vim saindo do centro do Pantanal... vim subindo mais pra frente... onde tinha até oitava série... aí onde tinha oitava série... se num tinha mais recurso pra mim... eu vinha pra cidade... éh:: eu trabaiava sozinho na fazenda... mandei minha família pra cidade... passando um MONte de dificuldade sozinho... pra manda a família pra cidade... pra podê os filho estudar... né? aí eu trabaiava sozinho.... aí eu fui... aí eu fui enjoando de trabalha sozinho... aí que eu comecei a tra/pensa assim numa fazenda que tivesse condições de nóis morá junto... com a faMÍlia estudano... tudo junto... aí... então... mais num é fácil... mas graças a Deus consegui a fazenda... que foi aí... pertinho de::. de Campo Grande... então tinha condução que levava até Campo Grande e trazia até a fazenda... aí nóis mudemo tudo junto... aí você fica em::. harmonia com a família... né? (N1 – HISTÓRIA DE VIDA DO SR. SNC, 45 anos, Fazenda Paloma, 28/08/2004).

Como a vida no Pantanal é uma vida difícil e muito diferente do que circula na mídia televisiva, o lugar da escola e o espaço de aprendizagem, para os povos pantaneiros é o campo, a travessia das águas, tocando o gado, em contraponto aos longos períodos de estiagem, que constituem a pluralidade desse bioma em constante interação com a diversidade étnica e cultural. Essa diversidade aliada à crença no poder do conhecimento e das tradições orais, da argumentação e da reflexão é o que impede que o respeito degenere em indiferença na interlocução com o Outro e na preservação do meio ambiente.

Dessa maneira, é possível afirmar que há um processo educativo instituído por meio do discurso e das tradições culturais, dos povos pantaneiros, evidenciado no trabalho, no lazer, na solidariedade, na vivência e na sobrevivência, enfim, na vida pantaneira para a preservação e o respeito ao meio ambiente.

IV. Considerações FinaisEm uma análise parcial dos dados da pesquisa evidenciam-se os efeitos de

sentido da Pedagogia Pantaneira, como metáfora do cotidiano de seus habitantes7

(indígenas e não-indígenas) na preservação desse importante bioma para o Planeta.Essa Pedagogia, conforme demonstramos, se constitui por meio do discurso

que, em uma linguagem metafórica, evidencia as tradições culturais, os saberes e os conhecimentos do espaço onde esses povos vivem e atuam.

De acordo com as narrativas orais do peão pantaneiro a vida no Pantanal é uma vida difícil e muito diferente do que circula na mídia em geral, como por exemplo, na televisão, no cinema, nos prospectos e folderes das campanhas publicitárias, publicações em revistas, sites na internet, pacotes comercializados pelas agências de turismo, entre outros.

O desejo de futuro desses povos para os seus filhos e as novas gerações não é a vida que eles levam no Pantanal “[...]ou... muda do Pantanal... eu mudei... mudei pra 7 Considerando que o projeto que originou esse artigo encontra-se ainda em fase de levantamento de dados, apresentamos os com dados de uma narrativa de um pantaneiro não-indígena sendo que o levantamento de dados junto aos povos indígenas que residem no Pantanal Sul-Mato-Grossense será realizado no segundo semestre de 2011.

11

Page 12: Eixo Temático: 05 - Mídia, Educação e Leitura · Web viewEssas imagens que sustentam a produção do discurso foram propostas, inicialmente, por Michel Pêcheux (1997, p. 81-4)

mim podê dá estudo pros meus filhos... eu já num tenho... né? meu estudo é pouco... então... pra sê uma família de tudo analfabeto... (riu) achei que:: num compensava né? então... pelo menos um da família tem que tê estudo...” (N1 – HISTÓRIA DE VIDA DO SR. SNC, 45 anos, Fazenda Paloma, 28/08/2004). No contexto do “não-dito”, presente neste trecho da fala do pantaneiro, evidencia-se o sentido de que ele não quer esse tipo de vida para os seus filhos.

Essa reflexão do pantaneiro nos remete à noção de memória defendida por Bakhtin (2009). Ao falar de memória, o teórico russo explica que ela é sempre de passado e de futuro, pois ambas andam juntas, são complementares.

Memória de passado: pode-se definir como o solo comum que uma comunidade lingüística compartilha. São as experiências, enunciados, discursos e valores que nos constituem. A História da qual somos filhos é a memória de passado. Memória de futuro: pode-se definir como projeção. [...] Ao enunciar, resgatam-se os valores já estabelecidos, mas ao invocar os valores ou significações, concomitantemente, reinventa-se o sentido, pois o indivíduo contribui com o tom, a expressão e o desejo do seu projeto discursivo. A memória de passado é o que se pode chamar de atual, contemporânea; já a memória de futuro é utópica, isto é, ainda sem lugar, nãoconcretizada (BAKTHIN Apud GEGe, 2009, p. 72).

O pantaneiro pela memória de passado que o identifica projeta uma memória de futuro utópica, desejada para seus filhos, diferente daquela que lhe é contemporânea, mostrando que cada momento vivido é conclusivo e, ao mesmo tempo, é o inicio de uma nova vida.

Esse sujeito incompleto por natureza — afinal sua história está acontecendo — vai se construindo a partir de suas movimentações no espaço pantaneiro. Movimentações essas evidenciadas nas tradições culturais, nos saberes e nos conhecimentos e na preservação desse meio ambiente

Portanto, o lugar da escola e o espaço de aprendizagem, para os povos pantaneiros é o campo, a travessia das águas, tocando o gado, em contraponto aos longos períodos de estiagem, que constituem a pluralidade desse bioma em constante interação com a diversidade étnica e cultural, muito diferente do discurso veiculado pela mídia oficial, que coloca o espaço pantaneiro, muitas vezes, de maneira romântica e parasidíaca sem considerar as vozes e as tradições culturais do povo pantaneiro na idealização das campanhas de preservação.

A imagem desse pantaneiro que se dá pelo discurso da oralidade, mostra a vida prática, o ensinamento prático que se presentifica na dinâmica do cotidiano. É a imagem da repetição na linguagem que mostra que o trabalho dele é assim, o ritmo no espaço pantaneiro é assim, conforme lindamente descreve o poeta Manoel de Barros em sua crônica Lides de Campear:

Na Grande Enciclopédia Delta Larousse, vou buscar uma definição de pantaneiro. “Diz-se de, ou aquele que trabalha pouco, passando o tempo a conversar”.

Passando o tempo a conversar pode que se ajuste a um lado da verdade. Trabalha pouco, vírgula.

Natureza do trabalho determina muito. Pois sendo a lida nossa de a cavalo, é sempre um destampo de boca. Sempre um desafiar. Um porfiar inerente. Como faz o bacurau.

No conduzir de um gado, que é tarefa monótona, de horas inteiras, às vezes de dias inteiros, — é no uso de cantos e recontos que

12

Page 13: Eixo Temático: 05 - Mídia, Educação e Leitura · Web viewEssas imagens que sustentam a produção do discurso foram propostas, inicialmente, por Michel Pêcheux (1997, p. 81-4)

o pantaneiro encontra o seu ser. Na troca de prosa ou de montada, ele sonha por cima das cercas. É mesmo um trabalho na larga, onde o pantaneiro pode inventar, transcender, desorbitar pela imaginação.

Porque a maneira de reduzir o isolado que somos dentro de nós mesmos, rodeados de distâncias e lembranças, é botando enchimento nas palavras. È botando apelidos, contando lorotas. É, enfim, através das vadias palavras, ir alargando os nossos limites.

Certo é que o pantaneiro vence o seu estar isolado, o seu pequeno mundo de conhecimentos, e o seu pouco vocabulário, — recorrendo às imagens e brincadeiras.

Assim, o peão de culatra é bago-de-porco — porque vem por detrás. Pessoa grisalha é cabeça de paina. Cavalo corredor é estufador de blusa. Etc. Etc.

Sente-se, pois então que árvores, bichos e pessoas têm natureza assumida igual. O homem no longe, alongado quase, e suas referências vegetais, animais. Todos se confundem na mesma natureza intacta. Sem as químicas do civilizado. O velho quase enimismo.

Mas na hora do pega-pra-capar, pantaneiro puxa na força, por igual. No lampino do sol ou no zero do frio.

Erroso é pois incutir que pantaneiro pouco trabalha. Ocorre que enxertar a vaca a gente não pode ainda. Esse lugar é difícil de se exercer pelo touro. Embora alguns o tentem.

Vaca não aceita outro que não seja touro mesmo. O jeito é ficar reparando a cobertura e contando mais um bezerro daquele ato.

Só por isso se diz que o boi cria o pantaneiro (BARROS, 1985, p. 35).

Assim os saberes, as tradições culturais e os conhecimentos dos povos pantaneiros podem mobilizar reflexões e debates em torno da constituição de uma Educação Ambiental, no contexto do currículo formal, desenvolvido nas escolas da rede pública e, sobretudo no registro da História da Educação Brasileira como campo teórico, na medida em que apresentam as vozes que descrevem experiências de vida desses habitantes em uma região singular, localizada no Brasil Central.

Desta maneira, é sempre muito bom destacar os ensinamentos do Poeta a respeito do modo de vida dos povos pantaneiros que evidenciam uma forma de viver de acordo com o ritmo desse importante bioma para o planeta. Na interação homem e natureza é que podemos “alargar os nossos limites, botando enchimento nas palavras”, contribuindo, dessa forma, para o avanço da educação brasileira.

V. Referências Bibliográficas e DocumentaisBARROS, Manoel. O Livro de Pré-coisas: Roteiro para uma Excursão no Pantanal. Rio de Janeiro-RJ: Philobiblion, 1985, p. 35.BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e de Estética: a Teoria do Romance. 5a. ed. São Paulo-SP: Editora Hucitec e Anablume, 2002. Equipe de Tradução do Russo: Aurora Fornoni Bernardini; José Pereira Júnior; Augusto Góes Júnior; Helena Spryndis Nazário e Homero Freitas de Andrade.BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 3ª ed.São Paulo-SP: Hucitec, 1986.

13

Page 14: Eixo Temático: 05 - Mídia, Educação e Leitura · Web viewEssas imagens que sustentam a produção do discurso foram propostas, inicialmente, por Michel Pêcheux (1997, p. 81-4)

BRANDÃO, Helena H. Nagamine. Introdução à análise do discurso. 3ª edição. Campinas-SP: Editora da UNICAMP, 1994, p. 46.CORACINI, M. J. Um fazer Persuasivo: o Discurso Subjetivo da Ciência. São Paulo-SP: Educ; Campinas-SP: Pontes, 1991.GERALDI, J. Wanderley. Linguagem e Ensino: exercícios de militância e divulgação. Campinas-SP: Mercado de Letras, 1996.GRUPO DE ESTUDOS DOS GENÊROS DO DISCURSO (GEGe). Palavras e Contrapalavras: Glossariando Conceitos, Categorias e Noções de Bakhtin. São Carlos-SP: Pedro & João Editores, 2009.MOSCOVICI S. Representações sociais: investigações em psicologia social. Rio de Janeiro-RJ: Editora Vozes, 2003.MUSSALIM, Fernanda. A Análise do Discurso. In: MUSSALIM, F. & BENTES, A. Christina (Orgs.). Introdução à Lingüística – domínios e fronteiras, V.2. São Paulo-SP: Cortez, 2001.NOGUEIRA, Albana Xavier. O Que é Pantanal. São Paulo-SP: Brasiliense, 1990 (Coleção Primeiros Passos).POSSENTI, Sírio. Sobre a leitura: o que diz a Análise do Discurso? In: Marinho, Marildes (Org.). Ler e Navegar: Espaços e Percursos da Leitura. Campinas-SP: Mercado de Letras: Associação de Leitura do Brasil – ALB, 200l.SOUZA, Maria Cecília Cortez Christiano de. A Escola e a Memória. Bragança Paulista-SP: Editora Universitária são Francisco, 2004.PÊCHEUX, M & FUCHS, C. A propósito da análise automática do discurso: atualização e perspectivas. IN______________ GADET, F. & HAK, T. (Orgs.) Por uma análise automática do discurso. Campinas-SP: Editora da Unicamp, 1990.PINTO, M. L. Discurso e Cotidiano: Histórias de Vida em Depoimentos de Pantaneiros. São Paulo-SP: USP, 2007 (Tese de Doutorado).

Notas

14