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Liliana Patrícia da Silva Rodrigues
EFEITOS NO FETO DA INGESTÃO DE ÁLCOOL
DURANTE A GRAVIDEZ
Universidade Fernando Pessoa
Faculdade de Ciências da Saúde
Porto, 2014
Liliana Patrícia da Silva Rodrigues
EFEITOS NO FETO DA INGESTÃO DE ÁLCOOL
DURANTE A GRAVIDEZ
Universidade Fernando Pessoa
Faculdade de Ciências da Saúde
Porto, 2014
Liliana Patrícia da Silva Rodrigues
EFEITOS NO FETO DA INGESTÃO DE ÁLCOOL
DURANTE A GRAVIDEZ
Trabalho apresentado à Universidade
Fernando Pessoa como parte dos requisitos
para obtenção do grau de mestre em Ciências
Farmacêuticas.
i
Resumo
O consumo de álcool durante a gravidez é a principal causa (evitável) de problemas à
nascença e no desenvolvimento das crianças, podendo levar ao aparecinento de
Desordens do Espectro Alcoólico Fetal.
A Síndrome Alcoólica Fetal (SAF) é a mais grave das consequências da exposição fetal
ao álcool e resulta em défices no desenvolvimento físico e neurológico do feto que se
mantêm ao longo da vida. Nos últimos anos, tem-se verificado um aumento do consumo
de álcool entre a população feminina, o que eleva a preocupação da comunidade médica
em torno da questão.
Com este trabalho pretendeu-se fazer uma revisão bibliográfica sofre os efeitos no feto
resultantes da ingestão de álcool durante a gravidez, identificando-se os fatores de risco,
as características encontradas nas crianças que sofreram exposição fetal ao álcool e as
possíveis consequências.
Concluiu-se que atualmente continua a haver dificuldades no diagnóstico, que começam
com a omissão por parte da mãe relativamente à ingestão de álcool. Verificou-se
também que continua a haver dúvidas relativamente a algumas questões essenciais,
como a dose de álcool capaz de causar dano no feto, e que é essencial a adoção de
medidas preventivas que promovam a abstinência ao álcool durante o período de
gestação.
ii
Abstract
Alcohol consumption during pregnancy is the main cause (avoidable) of problems at
birth and throughout child development, and can lead to the appearance of Alcoholic
Fetal Spectrum Disorders.
Fetal Alcohol Syndrome is the most severe of the consequences of fetal exposure to
alcohol and results in deficits on the physical and neurological development of the fetus
which remains throughout life. On the last years, there has been an increase on alcohol
consumption among female population, which increases the concern of the medical
community in relation to this issue.
The aim of this work was to do a literature review concerning fetus effects caused by
alcohol ingestion during pregnancy, identifying risk factors, phenotypes observed in
children who suffered fetal alcohol exposure and possible consequences.
It was possible to conclude that diagnosis is still difficult to perform, starting with
mother’s omission concerning alcohol ingestion. It was also found that there are still
doubts relatively to some essencial issues, as alcohol dose able to cause fetus damage,
and the acknowledgment that is fundamental the adoption of preventive measures to
promote alcoholic abstinence throughout pregnancy.
iii
Agradecimentos
Gostaria de agradecer a todas as pessoas que contribuíram para a realização deste
trabalho.
À Professora Doutora Inês Lopes Cardoso, orientadora deste trabalho, que se
disponibilizou para tudo o que foi necessário e demonstrou enorme paciência, sabedoria
e disponibilidade.
À minha família, pelo apoio incondicional e ajuda prestada durante todo o percurso
académico.
Aos meus colegas de trabalho, pela compreensão nos momentos mais difíceis e
exigentes.
A todos quantos, embora não expressamente referidos, deram o seu contributo.
Muito obrigada.
iv
ÍNDICE GERAL
Resumo ............................................................................................................................. i
Abstract ........................................................................................................................... ii
Índice de Figuras ............................................................................................................ v
Índice de Tabelas ........................................................................................................... vi
Lista de Abreviaturas ................................................................................................... vii
I. Introdução ............................................................................................................ 1
II. Álcool .................................................................................................................... 4
2.1. História ............................................................................................................................... 4
2.2. Metabolismo do álcool ....................................................................................................... 5
2.3 Teratogenicidade do álcool ................................................................................................. 8
III. Álcool na gravidez ............................................................................................. 13
3.1. Alcoolismo Feminino ....................................................................................................... 13
3.2. Factores de risco para o efeito do álcool .......................................................................... 16
3.3. Desordens do Espectro Alcoólico Fetal .......................................................................... 19
IV. Síndrome Alcoólica Fetal .................................................................................. 24
4.1 Características ................................................................................................................... 24
4.2 Sinais/ Sintomas ................................................................................................................ 25
4.3 Diagnóstico ....................................................................................................................... 26
4.4 Tratamento ........................................................................................................................ 31
V. Conclusão ........................................................................................................... 33
VI. Bibliografia ......................................................................................................... 34
v
Índice de Figuras
Figura 1: Vias de metabolização hepática do etanol (adaptado de Estes, 1989) ……… 6
Figura 2: Principal via do metabolismo hepático do etanol: Sistema ADH (adaptado de
(Gramenzi et al, 2006) …………………………………………………………………. 7
Figura 3: Metabolização hepática do etanol pelo sistema MEOS (adaptado de Gramenzi
et al, 2006) …...………………………………………………………………………… 8
Figura 4: Reações esquemáticas da via da catalase (adaptado de Jordão Júnior, 1998)..8
Figura 5: Oxidação do Acetaldeído a Acetato (adaptado de Gramenzi et al, 2006) ….. 9
Figura 6: Recém-nascido com anomalias faciais associadas a exposição intrauterina ao
álcool (adaptado de Costa, 2010) ……………………………………………….……. 19
Figura 7: Recém-nascido com as três dismorfias faciais características da SAF: filtro
nasal liso, lábio superior fino e fenda palpebral menor que o 10º percentil para a idade
(adaptado de Mesquita, 2010) ……………………………………………………..…. 28
vi
Índice de Tabelas
Tabela 1: Características das principais vias de metabolização hepática do etanol
(adaptado de Jordão Júnior, 1998) ………………………………………………...…… 9
Tabela 2: Fatores de risco associados a gestantes consumidoras de álcool e à SAF
(adaptado de May, 2001) ……………………………………………………………... 17
Tabela 3: Características encontradas nas crianças expostas ao álcool no período pré-
natal (adaptado de Thackray, 2001) ………………………………………………..… 20
Tabela 4: Critérios para diagnóstico de ARBD (adaptado de Hoyme et al., 2005) …. 21
Tabela 5: Critérios para diagnóstico de ARND (adaptado de Hoyme et al., 2005) .… 22
Tabela 6: Sinais e sintomas da SAF de acordo com a faixa etária (adaptado de
Thackray, 2001) ……………………………………………………………………… 25
Tabela 7: Critérios para diagnóstico de SAF (adaptado de Bertrand., 2004) ……….. 29
vii
Lista de Abreviaturas
ARBD - Alcohol-related birth defects/ Defeitos de nascimento relacionados ao álcool
ARND - Alcohol-related neurodevelopment disorders/ Desordens de
neurodesenvolvimento relacionadas ao álcool
ADH - Álcool Desidrogenase
ADN - Ácido desoxirribonucleico
ALDH - Acetaldeído Desidrogenase
CDC - Centers for Disease Control and Prevention
DEAF - Desordens do Espectro Alcoólico Fetal
EUA - Estados Unidos da América
EUROCARE - European Cancer Registry
IOM - Institute of Medicine of the National Academy of Science
MEOS - Microsomal Ethanol Oxidizing System/ Sistema Microssomal de Oxidação do
Etanol
QI - Quociente de Inteligência
NAD - Dinucleótido de Nicotinamida e Adenina
NADH - Dinucleótido de Nicotinamida e Adenina na forma reduzida
NADP - Dinucleótido de Nicotinamida e Adenina Fosfato
NADPH - Dinucleótido de Nicotinamida e Adenina Fosfato na forma reduzida
PET - Tomografia por emissão de positrões
viii
SAF - Síndrome Alcoólica Fetal
SICAD - Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências
SNC - Sistema Nervoso Central
SPECT - Tomografia computorizada por emissão de fotão único
WHO - World Health Organization
Efeitos no feto da ingestão de álcool durante a gravidez
1
I. Introdução
Desde há muitos séculos, o álcool é consumido por homens e mulheres em diversas
ocasiões, tais como cerimónias religiosas, celebrações e outros eventos públicos. No
entanto, desde os tempos bíblicos que se estabelece uma relação entre o consumo de
álcool durante a gravidez e efeitos nefastos no bebé. Por exemplo, em antigas
civilizações proibiam as noivas de se embriagarem na celebração do seu casamento para
que numa possível gravidez não ocorresse efeito do álcool (Grinfeld, 2009).
Já em Inglaterra, aquando da disseminação do consumo do gin, em meados do século
XVIII, os médicos alertaram para o perigo do consumo de álcool durante a gravidez,
descrevendo as crianças nascidas de mães consumidoras habituais como crianças fracas,
débeis e desatentas. No entanto, a sociedade interpretou os alertas como moralistas,
associando os problemas no desenvolvimento dos fetos às causas que também faziam as
mães beberem (Warner, 1975).
Ao longo do século XIX, início do século XX, houve vários investigadores (em França
e Inglaterra) que estabeleceram relação entre o consumo de álcool e alterações a nível
do desenvolvimento fetal, contudo, só no final da década de 60 e início de 70 os efeitos
nefastos do álcool na gravidez voltaram a ter grande interesse na comunidade científica
(Mattson, 1998). Em 1968, um grupo de investigadores franceses publicou os resultados
de um estudo sobre filhos de pais alcoólicos, onde descreveram as características físicas
bastante específicas das crianças filhas de mães alcoólicas (Lemoine, 1968), registando-
se aí a primeira referência à Síndrome Alcoólica Fetal. No entanto, só em 1973 nos
Estados Unidos da América (EUA), com a publicação de um artigo semelhante por
investigadores de Seattle (Jones et al., 1973), é que a comunidade científica mundial
despertou para a problemática.
O termo clínico Síndrome Alcoólica Fetal foi introduzido nesse ano (1973) por Jones e
Smith como sendo um padrão específico de malformações nas crianças filhas de
mulheres alcoólicas crónicas (Jones, 1973).
O consumo de álcool durante a gravidez é a principal causa (evitável) de problemas à
nascença e no desenvolvimento das crianças, podendo levar ao desenvolvimento de
Desordens do Espectro Alcoólico Fetal (DEAF) que tem na sua forma mais severa a
Efeitos no feto da ingestão de álcool durante a gravidez
2
Síndrome Alcoólica Fetal (SAF), resultando em défices no desenvolvimento físico e
neurológico ao longo da vida (CDC, 2012). Assim, o consumo de álcool nas mulheres
grávidas constitui um dos problemas mais relevantes do alcoolismo crónico.
Apesar de desde a Antiguidade haver referências às consequências da exposição fetal ao
álcool, apenas nas últimas décadas se tem verificado um grande interesse médico em
torno do assunto. Nota-se uma crescente preocupação com o aspeto tóxico da ingestão
de álcool durante a gravidez e o efeito deste sobre desenvolvimento do feto e
posteriormente da criança e do adulto.
Atualmente, o consumo de álcool é habitual no quotidiano das mulheres em idade
reprodutiva, o que eleva a preocupação em torno da questão para a comunidade médica.
O modo despreocupado e até encorajante com que a ingestão de álcool pelas mulheres é
encarada pela população contribui para tal.
Com o aumento do interesse e consequente investigação, pesquisas permitiram perceber
que os efeitos sobre o feto resultantes da exposição ao álcool são de um extensa
complexidade e amplo espectro, dificultando muitas vezes a suspeita clínica e
diagnóstico devido à variedade de aspetos clínicos e comportamentais associados
(Grinfeld, 2010).
Alguns fatores de risco para o efeito do álcool estão identificados, como por exemplo o
nível educacional e económico da gestante, no entanto continuam a existir dúvidas,
mecanismos por estabelecer, associações causa-efeito por fazer. Uma questão ainda por
responder diz respeito à quantidade e frequência de álcool ingerido capaz de causar
dano no feto, dificultando a identificação de uma quantidade (máxima) segura para a
ingestão de álcool na gestação (O'Leary, 2012), o que leva a que as orientações sejam
para total abstinência de álcool durante a gravidez.
O interesse pelo tema para a realização deste trabalho surgiu pela atualidade da questão,
tendo em conta o aumento do consumo de álcool na juventude, o que leva a uma maior
preocupação e crescente interesse da comunidade científica e médica pelo tema, e
também pela sua importância, pois estando o consumo de álcool tão enraizado na nossa
sociedade é importante perceber os seus efeitos na gravidez, de modo a informar a
população e definir estratégias de prevenção.
Efeitos no feto da ingestão de álcool durante a gravidez
3
Com este trabalho pretende-se fazer uma revisão bibliográfica sobre os efeitos no feto
da ingestão de álcool durante a gravidez, percebendo o panorama atual sobre o
alcoolismo feminino e em particular na gravidez, os fatores de risco associados, o
quadro clínico da exposição gestacional ao álcool, o seu diagnóstico e tratamento, e
também estratégias para a sua prevenção.
O trabalho encontra-se organizado em três capítulos: no primeiro aborda-se o álcool,
seu metabolismo e teratogenicidade; no segundo é abordado o alcoolismo feminino
durante a gestação, os fatores de risco associados e os efeitos no feto; no terceiro
capítulo é dado uma maior enfoque aquele que é a consequência mais grave da
exposição ao álcool durante a gravidez, a Síndrome Alcoólica Fetal.
Efeitos no feto da ingestão de álcool durante a gravidez
4
II. Álcool
2.1. História
Acredita-se que as primeiras bebidas alcoólicas terão tido origem na Pré-História,
durante o período Neolítico devido à facilidade da sua obtenção a partir da fermentação
natural de frutas.
Mais tarde, egípcios, gregos e romanos desenvolveram a arte do fabrico de bebidas
alcoólicas (cerveja e vinho), conhecendo também os efeitos que estas provocavam no
Homem (Mello et al., 2001). Os filósofos gregos já discutiam os possíveis efeitos
nefastos do álcool sobre os filhos de mães consumidoras (Silva, 2000).
O processo de destilação, introduzido na Europa a partir do século XI, deu origem a
outros tipos de bebidas - mais alcoolizadas - que passaram a ser usadas na sua forma
destilada. Esse tipo de bebida, de teor alcoólico elevado, passou a ser considerado como
um “remédio” pois “dissipavam preocupações e aliviavam a dor” (Oliveira et al., 2012).
No final do século XVIII, a partir da Revolução Industrial, assiste-se a um grande
aumento da oferta de bebidas alcoólicas, levando a um maior consumo e
consequentemente a um aumento de excessos no consumo de álcool. É nesta época que
ocorrem as primeiras referências à embriaguez como doença (Ferreira-Borges, 2004).
Atualmente, o álcool é uma droga (legal) amplamente consumida por todo o mundo.
Como possui uma conotação diferenciada de todas as outras drogas, o seu uso é
facilmente aceite pela sociedade. O fácil acesso, baixo custo e elevada aceitação social,
levam a que o consumo de álcool seja cada vez mais estimulado, levando a que seja a
substância psicoativa mais consumida do mundo (Oliveira, 2010).
Em Portugal, o vinho é a bebida alcoólica mais consumida, seguido da cerveja e das
bebidas espirituosas. Depois de já ter sido um dos maiores consumidores de bebidas
alcoólicas do mundo, verifica-se uma diminuição do consumo de álcool em Portugal,
mantendo-se, contudo, bastante acima da média europeia e com a população mais jovem
a consumir cada vez mais (WHO, 2014).
Efeitos no feto da ingestão de álcool durante a gravidez
5
2.2. Metabolismo do álcool
O álcool, quando ingerido por via oral, é completamente absorvido ao longo do tubo
digestivo: 30% no estômago, aproximadamente 65% no duodeno e o restante no cólon
(Mello et al., 2001).
A absorção ocorre rapidamente, havendo alguns fatores que podem influenciar a sua
velocidade, tais como: concentração de álcool, composição da bebida, estado da mucosa
gástrica e duodenal, ingestão simultânea de alimentos, etc. Em indivíduos em jejum a
absorção do álcool faz-se mais rapidamente do que quando ingerido juntamente com
alimentos, atingindo a sua concentração máxima no sangue até cerca de uma hora e
meia após a ingestão (Mello et al., 2001).
Uma vez na circulação sanguínea, o álcool difunde-se facilmente por todo o organismo
em função do conteúdo hídrico dos diferentes órgãos e tecidos. Assim, facilmente se
encontra na saliva, sangue, líquido céfalo-raquidiano, suor, urina, líquido amniótico da
mulher grávida e no leite da mulher a amamentar, atingindo especialmente os órgãos
mais vascularizados como o fígado, cérebro, rins e músculos (Mello et al., 2011).
A eliminação do álcool faz-se em cerca de 10% pelos pulmões, pelo suor e pela urina.
Os restantes 90% são, quase na sua totalidade, metabolizados a nível do fígado
(hepatócitos), ocorrendo uma reduzida metabolização extra-hepática a nível do tubo
digestivo (Mello et al., 2011).
No fígado, o etanol é eliminado por uma série de reações, sendo inicialmente oxidado a
acetaldeído (metabolito tóxico) e posteriormente a acetato (Kachani et al., 2008).
A reação de oxidação do etanol a acetaldeído é catalisada principalmente por uma
enzima, a Álcool Desidrogenase (ADH) (Monroe, 2001), no entanto quando esta via
não está disponível (por exemplo no alcoólico crónico) são utilizadas vias alternativas:
o sistema mitocondrial de oxidação do etanol (MEOS) e a via da Catalase (Kachani et
al., 2008; Mello et al., 2011; Caballeria, 2003).
Qualquer uma destas vias resulta na produção de acetaldeído, um metabolito tóxico que
pode causar desnaturação de proteínas, peroxidação lipídica e diminuição do nível de
Efeitos no feto da ingestão de álcool durante a gravidez
6
glutatião, potenciar o efeito tóxico de radicais livres, causar alterações estruturais na
mitocôndria e inibir os mecanismos de reparação de ADN (Jordão Júnior et al., 1998).
Figura 1: Vias de metabolização hepática do etanol (adaptado de Estes, 1989).
Relativamente à metabolização hepática do álcool pelo sistema ADH, numa primeira
fase ocorre formação de acetaldeído pela ação da ADH e seu cofator, o dinucleótido de
nicotinamida e adenina (NAD+) que é convertido à sua forma reduzida (NADH)
(Kachani et al., 2008). A atividade da ADH está limitada pela quantidade de NAD+
disponível e pela reoxidação de NADH em NAD+. Dado que o NAD+ é utilizado
noutras reações metabólicas a nível hepático, ocorrem perturbações do metabolismo
quando este é utilizado na degradação do álcool (Mello et al., 2001). O aumento do
consumo de álcool também inibe, por si só, a atividade da ADH.
Como é possível verificar na Figura 2, por cada mole de etanol oxidada ocorre a
formação de uma mole de NADH. Como o NADH não é reoxidado a uma taxa
suficiente para repor os níveis de NAD+, durante o metabolismo do etanol ocorre uma
considerável produção de NADH, aumentando a razão NADH/NAD+. A alteração deste
sistema redox leva a alterações metabólicas tais como o aumento da α-glicerofosfato
hepática e o estímulo à síntese de ácidos gordos com consequente diminuição da
oxidação normal dos ácidos gordos (Kitson, 1996).
Etanol
CatalaseMEOS ADH
Acetaldeído
Acetato
ALDH
Efeitos no feto da ingestão de álcool durante a gravidez
7
Figura 2: Principal via do metabolismo hepático do etanol: Sistema ADH (adaptado de (Gramenzi et al, 2006).
A ADH é uma metaloenzima que se encontra no citoplasma celular. Existem vários
polimorfismos no gene codificante da ADH que concedem uma maior ou menor
suscetibilidade individual ao alcoolismo e à sua toxicidade (Caballeria, 2003).
A ADH presente a nível gástrico, comparativamente com a ADH hepática, apresenta
uma menor afinidade para o etanol, no entanto, uma maior capacidade para a sua
oxidação, verificando-se um aumento da concentração de ADH no estômago aquando
do consumo de elevadas quantidades de álcool num curto período de tempo (Matsuo et
al., 2006). Comparativamente com os homens, nas mulheres a ADH gástrica tem a sua
atividade reduzida.
A atividade da ADH encontra-se inibida em situações de elevado consumo de álcool e
durante o jejum, o que explica a maior toxicidade do etanol quando consumido com o
estômago vazio. Deste modo, relaciona-se a presença de alimentos não só com uma
diminuição da velocidade de absorção do etanol como também com um aumento da
atividade da ADH gástrica e consequentemente da metabolização do etanol (Matsuo et
al., 2006).
Em situações de consumo excessivo e crónico de etanol em que a via ADH se encontra
inibida, a metabolização do etanol pode ocorrer por uma via suplementar, a via do
Sistema MEOS. Numa situação de consumo excessivo de álcool, esta via é responsável
pela eliminação de cerca de 20% do álcool ingerido (Lieber, 1991).
CH3CH2OH (Etanol)
CH3CHO (Acetaldeído)
ADH
(Citosol)
NAD+
H+ + NADH
Efeitos no feto da ingestão de álcool durante a gravidez
8
A oxidação do etanol através do Sistema MEOS ocorre a nível do retículo
endoplasmático nos hepatócitos, e utiliza como cofator o dinucleótido de nicotinamida e
adenina fosfato hidrogenado (NADPH) envolvendo a participação do citocromo P-450
(Kitson, 1996).
Figura 3: Metabolização hepática do etanol pelo sistema MEOS (adaptado de Gramenzi et al,
2006).
Uma terceira via de metabolização hepática do etanol é a via da catalase. A catalase é
uma enzima que existe em abundancia a nível hepático, e que catalisa a oxidação de
etanol a acetaldeído na presença de peróxido de hidrogénio (H2O2) (Lieber, 1999).
Na oxidação do etanol por esta via, ocorre inicialmente a oxidação do NADPH através
da NADPH-oxidase, com a formação de H2O2. O peroxido de hidrogénio, sob a
influência da catalase, promove a oxidação do etanol (Jordão Júnior, 1998). Neste
processo, ocorrem as seguintes reações:
Figura 4: Reações esquemáticas da via da Catalase (adaptado de Jordão Júnior, 1998).
CATALASE
CH3CH2OH + H2O2 CH3CHO + 2H2O
NADPH-oxidase
NADPH + H+ + O2 NADP+ + H2O2
M E O S
RE
CH3CH2OH (Etanol)
CH3CHO (Acetaldeído)
NADPH + H+ + O2
NADP+ + 2H2O
Efeitos no feto da ingestão de álcool durante a gravidez
9
O papel desta via está limitado pela baixa produção endógena de H2O2. Assim, em
condições fisiológicas normais a via da Catalase representa um papel menor na
oxidação do etanol (Lieber, 1999). No entanto, segundo Jordão Júnior (1998), o
consumo excessivo de álcool induz a atividade da NADPH-oxidase, contribuindo para
uma maior formação de peróxido de hidrogénio, aumentando assim a participação desta
via na oxidação do etanol.
Tabela 1: Características das principais vias de metabolização hepática do etanol (adaptado de
Jordão Júnior, 1998).
ADH MEOS CATALASE
Localização Citosol Retículo Endoplasmático Peroxissoma
pH ótimo -
Cofator NAD+ NADPH H2O2
Produto final Acetaldeído Acetaldeído Acetaldeído
Como se pode verificar na Tabela 1, as três vias de metabolização do etanol, apesar de
terem diferentes localizações subcelulares a nível hepático e utilizarem diferentes
cofatores, resultam no mesmo produto final, o acetaldeído. O acetaldeído, metabolito
tóxico, é convertido em acetato por ação da enzima aldeído desidrogenase (ALDH)
(Lieber, 1999).
Figura 5: Oxidação do acetaldeído a acetato (adaptado de Gramenzi et al, 2006).
C2H4O (Acetaldeído)
C3H3O2 (Acetato)
ALDH
(Mitocôndria)
NAD+
H+ + NADH
Efeitos no feto da ingestão de álcool durante a gravidez
10
2.3 Teratogenicidade do álcool
Os efeitos teratogénicos do álcool estão amplamente demonstrados na literatura em
diversos estudos, começando por ser descritos em 1968 por Lemoine. Desde então,
vários estudos foram efetuados demonstrando a capacidade teratogénica do álcool
quando ingerido por mulheres grávidas.
Um dos primeiros processos conhecido é o modo como o álcool atinge os tecidos fetais
e a dinâmica das trocas sanguíneas - relativamente ao álcool - entre mãe e feto. A
barreira placentária é totalmente permeável ao álcool o que permite que a alcoolémia
fetal seja similar à materna. A difusão do álcool ocorre através do fluxo sanguíneo
placentar segundo um gradiente de concentração. Como a mãe metaboliza o álcool, a
concentração deste irá descendo ao longo do tempo na sua circulação sanguínea.
Contudo, como o feto não tem capacidade de metabolização do álcool - pois não possui
a enzima ADH - a concentração alcoólica fetal manter-se-á elevada por mais tempo até
que a sua concentração plasmática na mãe seja inferior à fetal, ocorrendo a difusão de
álcool no sentido inverso (circulação fetal → circulação materna), sendo este o principal
mecanismo de eliminação do álcool fetal (Mello et al., 2001). Como um dos efeitos do
álcool é a vasoconstrição do cordão umbilical pode ocorrer uma diminuição do fluxo
sanguíneo, aumentando a duração de exposição fetal ao álcool (Burd et al., 2007).
Os mecanismos de toxicidade do álcool sobre o feto não são, ainda, totalmente
conhecidos, existindo numerosos mecanismos que tentam explicar as lesões,
principalmente nas funções cerebrais (Thackray, 2001).
De acordo com Goodlett (2001), o álcool pode exercer a sua ação teratogénica
diretamente, agindo sobre o tecido fetal, ou indiretamente, interferindo com a
capacidade materna de assegurar o crescimento do feto. Estes mecanismos indiretos
estão relacionados com alterações fisiológicas da mãe - associadas, por exemplo, a má
nutrição - e consequente alteração da capacidade da placenta em assegurar os nutrientes
essenciais ao desenvolvimento fetal.
Segundo estudos efetuados em animais, as alterações craniofaciais características da
exposição pré-natal ao álcool podem ser explicadas por alguns mecanismos, tais como:
formação de radicais livres, redução da produção de ácido retinóico e consequente
Efeitos no feto da ingestão de álcool durante a gravidez
11
alteração da expressão de determinados genes essenciais à formação de tecidos e órgãos
(Goodlett, 2001; National Institute on Alcohol Abuse and Alcoholism, 2000).
Os efeitos do álcool sobre o desenvolvimento do cérebro do feto são particularmente
complexos, com mecanismos de ação que incidem sobre uma variedade de células e
moléculas cerebrais, e que variam de acordo com o grupo de células, as suas funções ou
a sua fase de desenvolvimento, podendo levar à morte celular, impedir a sua divisão ou
alterar a sua função (Goodlett, 2001). Apesar de alguns mecanismos serem específicos
para os tecidos do sistema nervoso, outros também afetam o desenvolvimento da região
craniofacial e outras áreas do corpo.
De acordo com a literatura consultada, os possíveis mecanismos da ação do álcool que
causam dano no SNC durante o desenvolvimento fetal são:
- Morte celular, podendo ocorrer por duas vias: apoptose e/ou necrose (Goodlett, 2001).
- Alteração da regulação da expressão genética, interferindo com a expressão de genes
envolvidos na formação e diferenciação de tecidos e órgãos (National Institute on
Alcohol Abuse and Alcoholism, 2000).
- Alteração do transporte e absorção de glucose, contribuindo para atrasos no
crescimento e lesões no SNC (Goodlett, 2001; National Institute on Alcohol Abuse and
Alcoholism, 2000).
- Formação de radicais livres, induzindo fenómenos de stress oxidativo que resultam em
danos celulares tanto a nível do SNC como da região crânio facial (Moscatello et al.,
1999),
- Modificação da ação de neurotransmissores com papéis fundamentais no
desenvolvimento cerebral do feto (glutamato e serotonina), principalmente por
interferência sobre os seus recetores, levando a défices cognitivos e comportamentais
(National Institute on Alcohol Abuse and Alcoholism, 2000).
- Alteração das funções dos fatores de crescimento – os fatores de crescimento
controlam a proliferação celular e garantem a sobrevivência das células durante o
desenvolvimento fetal. A exposição ao álcool interfere com a função e produção de
Efeitos no feto da ingestão de álcool durante a gravidez
12
alguns desses fatores levando a alterações no desenvolvimento do SNC (Chaudhuri,
2000).
- Alterações na adesão celular – A exposição ao álcool altera a função de uma molécula
de adesão celular (L1) interferindo com a migração das células nervosas, o que pode
levar a alterações no desenvolvimento do cérebro e causar deficiências mentais
(Goodlett, 2001)
- Efeitos adversos na formação dos astrócitos, levando à sua transformação prematura e
interrompendo a migração neural adequada, o que explica porque certos neurónios não
são encontrados nos lugares apropriados (National Institute on Alcohol Abuse and
Alcoholism, 2000).
- Aumento dos peptídeos opióides da terminação nervosa do trato gastrointestinal,
podendo levar à diminuição da motilidade intestinal, manifestada pela pseudo-obstrução
vista em algumas crianças com SAF (Chaudhuri, 2000).
- Inibição da enzima retinoldesidrogenase, diminuindo a produção de ácido retinóico.
Este ácido é essencial no desenvolvimento de vários tecidos e órgãos, incluindo as
células da crista neural (responsáveis pelas características craniofaciais) (Goodlett,
2001).
A exposição ao álcool no período pós natal também pode ter consequências para a
criança, nomeadamente durante a amamentação. O álcool é transferido para o leite
materno na proporção de 2% da alcoolemia materna, podendo levar a uma redução na
produção de leite e causar efeitos adversos no sono da criança, no desenvolvimento
neuromotor e mais tarde na aprendizagem (Grinfeld, 2009). Assim, é recomendado que
a mãe que ingeriu álcool não amamente nas horas seguintes (Niccols, 2007).
Efeitos no feto da ingestão de álcool durante a gravidez
13
III. Álcool na gravidez
3.1. Alcoolismo Feminino
Estudos comprovam que o consumo de álcool e o alcoolismo predominam no género
masculino no entanto, nos últimos anos, tem-se assistido a um aumento do consumo de
álcool entre a população feminina. A entrada da mulher no mercado do trabalho, e
consequente independência financeira e autonomia social, levaram a uma alteração do
seu papel na sociedade, incrementando também o consumo de álcool entre a população
feminina (Zanoti-Jeronymo et al., 2014).
Segundo Goodman (2000) os fatores físicos, sociais, económicos, culturais e
psicológicos, influenciam o modo como as mulheres se relacionam com o álcool, as
circunstancias em que bebem e o modo como o seu organismo reage.
A partir da integração da mulher no mundo laboral, aconteceram mudanças no papel da
mulher na sociedade, na família, e na forma como se integra na vida social. O processo
de socialização das mulheres passou a incluir o hábito de consumir álcool, tornando-se
uma das causas de alcoolismo feminino (Gómez Moya, 2005).
As mulheres iniciam o hábito de consumo de álcool mais tarde do que os homens, mas
os problemas relacionados ao uso de álcool surgem mais cedo, ou seja, após menos
tempo de consumo, nas mulheres do que nos homens. Este início mais tardio no
consumo de álcool pela população feminina está relacionado com fatores culturais e
sociais. Existe uma menor pressão social para que a mulher comece a beber, contudo
uma maior pressão para que a mulher pare de beber em caso de excessos. Socialmente,
não é bem aceite o consumo excessivo de álcool pelas mulheres (Grinfeld, 2010).
Desde a antiguidade, os relatos sobre alcoolismo feminino enfocam sobre os aspetos
morais e sociais em detrimento dos aspetos psicofisiológicos. Apenas recentemente a
questão passou a ser estudada em linhas de pesquisa (Cook, 2004).
De um modo geral, a população feminina consome menos álcool do que a população
masculina, no entanto para uma mesma quantidade de álcool consumido, os níveis de
etanol no sangue são mais elevados nas mulheres do que nos homens. Este fenómeno
deve-se principalmente devido a duas razões farmacocinéticas (Lieber, 1995): as
Efeitos no feto da ingestão de álcool durante a gravidez
14
mulheres apresentam maior proporção de gordura corporal, logo menor quantidade de
água e consequentemente menor volume de distribuição; e, em segundo lugar têm
menor capacidade de metabolização do álcool pela enzima ADH gástrica, o que leva ao
aumento da absorção do etanol e dos seus níveis sanguíneos (Mello et al., 2001). Outro
fator a referir é o atraso no esvaziamento gástrico durante a fase lútea do ciclo menstrual
nas mulheres, o que faz com que ocorra uma maior absorção de etanol sem uma prévia
metabolização (Lieber, 1995).
Apesar de não ser conhecida a dose de álcool capaz de causar dano fetal, estudos
recentes sugerem que pequenas doses podem estar associadas à possibilidade de
perturbações mentais (Grinfeld, 2010). Assim, com a exposição do feto a um teratógeno
como o álcool, a mãe torna-se moralmente responsável pelas consequências finais. Está
também demonstrado que filhos de mulheres consumidoras abusivas de álcool
apresentam um risco elevado de doenças perinatais graves, tais como: malformações,
atraso no crescimento intra e extrauterino, sofrimento fetal e infeções, com sequelas
neurológicas e respiratórias (Brasiliano, 2005).
Segundo Balsa et al. (2013), a prevalência de consumo de bebidas alcoólicas entre as
mulheres portuguesas, em 2012, era de 50% na faixa etária dos 25-34 anos e de 24%
entre os 35-44 anos. De acordo com os mesmos autores, entre as consumidoras de
bebidas alcoólicas, as prevalências de embriaguez foram de 6,2% (25 a 34 anos) e de
0,4% (35 a 44 anos).
Estes dados relativos ao consumo de álcool em idade fértil, nomeadamente no que diz
respeito a padrões de consumo mais nocivos (alcoolismo), conferem uma noção do risco
da ocorrência de gravidezes expostas ao álcool, embora esta apreciação implique uma
análise cruzada com outros fatores de influência (SICAD, 2013).
De acordo com Mourad e Lejoyeux (1997), o alcoolismo feminino aparece muitas vezes
associado a perturbações psiquiátricas, tais como depressões, fobias, ansiedade ou
perturbações alimentares. Gómez Moya (2005) associa o alcoolismo feminino a uma
população de mulheres jovens, emancipadas e com bom nível educativo. No entanto,
segundo Garcia-Valdecasas-Campelo (2007) o alcoolismo na gravidez está associado a
gestantes de idade superior a 25 anos, a más condições socioeconómicas, a um nível
educacional baixo e também ao uso de outras drogas.
Efeitos no feto da ingestão de álcool durante a gravidez
15
Assim, o aumento do consumo de álcool por mulheres em idade fértil fez crescer a
preocupação a respeito da ingestão de álcool durante a gravidez, levando à importância
da caracterização do perfil da gestante alcoólica, até então desconhecido (Grinfeld,
2010). Esta caracterização do perfil da gestante consumidora de álcool revela-se de
extrema importância para a definição de medidas preventivas e de intervenção, de modo
a que seja possível uma assistência pré e pós natal.
Cada vez mais, uma avaliação criteriosa da SAF permite que as crianças diagnosticadas
com a doença possam receber os cuidados de saúde adequados o mais cedo possível e
sejam encaminhadas para serviços sociais de apoio. Os vários órgãos de pesquisa
recomendam uma vigilância ativa para se rastrear a SAF, sendo de extrema importância
que os trabalhos sejam desenvolvidos e divulgados entre os pesquisadores e agentes de
saúde, de modo a que os resultados possam ser comparados e atualizados, possibilitando
uma avaliação de risco padronizada e favorecendo estratégias de prevenção e tratamento
(Mancinelli, 2009).
Então, surge a necessidade de adotar políticas de prevenção do consumo de álcool
durante a gravidez, de identificação precoce do mesmo, de apoio das grávidas
consumidoras de álcool e de acompanhamento dos recém-nascidos que resultam deste
quadro. Neste contexto, a articulação intersectorial de políticas é fundamental, tanto ao
nível da saúde (por exemplo: promoção da saúde materna e neonatal) como noutros
domínios considerando os determinantes ambientais do consumo (SICAD, 2013).
Efeitos no feto da ingestão de álcool durante a gravidez
16
3.2. Fatores de risco para o efeito do álcool
“Fatores de risco” envolvem condições e/ou variáveis que favorecem a ocorrência de
resultados negativos para a saúde, o bem - estar e o desempenho social (Jessor et al.
(1995) cit in Börder, 2010). A identificação de fatores de risco promove o
estabelecimento de diagnósticos precoces e consequentemente intervenções mais
precoces, minimizando os danos.
Estudos relacionados com situações de abuso e dependência de álcool durante a
gravidez e efeitos no feto daí resultantes, frequentemente apontam para os mesmos
fatores de risco. Esses fatores representam uma variedade de condições que
normalmente estão presentes aquando do nascimento de crianças com SAF ou outros
danos relacionados com a ingestão de álcool (Day et al., 1991).
Algumas dessas condições podem aumentar o risco, levando a um consumo mais
elevado de álcool pela grávida (p. ex., características familiares e início precoce do
consumo de álcool). No entanto, outros fatores de risco são consequência do abuso e/ ou
dependência de álcool (p. ex., desemprego). Outras variáveis são fatores biológicos que
associados ao consumo de álcool aumentam o risco para o feto, como por exemplo, a
idade avançada da gestante ou o número de gestações anteriores. Para além desses,
vários fatores de risco estão associados ou correlacionados com o estilo de vida da mãe
(p. ex. o tabagismo) ou a fatores psicológicos como depressões ou estado de ansiedade
(May, 2001). Estes fatores de risco estão descritos na Tabela 2.
Segundo alguns autores, a fase da gestação em que ocorre exposição ao álcool é de
grande importância para o resultado final relativamente ao dano causado no feto. Os
danos ocorridos no momento da conceção e nas primeiras semanas de gestação podem
ser de natureza citotóxica ou mutagénica, levando a malformações graves. O primeiro
trimestre de gravidez é uma fase crítica para a organogénese, havendo risco de
malformações e dimorfismo facial. No segundo trimestre, ocorre uma maior incidência
de abortos espontâneos. No terceiro trimestre, a fase da gestação onde ocorre a
maturação e crescimento fetal, a exposição ao álcool lesa com maior gravidade o SNC,
atingindo o cerebelo, hipocampo e córtex pré-frontal, o que provoca atraso no
crescimento intrauterino, resultando em prematuridade e baixo peso à nascença e
Efeitos no feto da ingestão de álcool durante a gravidez
17
afetando o crescimento pós-natal (Grinfeld, 2009). Assim, a fase da gestação em que
ocorre exposição fetal ao álcool representa um fator de risco para o seu efeito. Se a
exposição se der durante toda a gravidez, maior o risco.
Tabela 2: Fatores de risco associados a gestantes consumidoras de álcool e à SAF (adaptado de
May, 2001).
Elementos Influentes Fatores de Risco Maternos
Saúde
• Idade> 25 anos
• Três ou mais filhos anteriores à criança com SAF
• Aborto ou parto prematuro anteriores relacionados ao consumo de álcool
• Uso simultâneo de outras drogas
• Desnutrição ou subnutrição
Situação socioeconómica • Baixo nível socioeconómico
• Desemprego ou emprego precário
Gestação • Gravidez prévia com exposição fetal ao álcool
• Consumo de álcool durante o primeiro trimestre de gestação
Padrão de consumo
• Início precoce de consumo de álcool
• Consumo frequente de álcool
• Consumo excessivo de álcool
• Não redução do consumo durante a gravidez
Perfil psicológico
• Baixa autoestima
• Depressão
• Disfunção sexual
Características da família
• História de consumo abusivo e/ ou dependência de álcool na família
• Parceiro alcoólico
• Estado civil instável (solteira/ separada)
• Perda de filho(s) para adoção
Fatores ambientais • Ambientes tolerantes ao consumo de álcool
De acordo com vários estudos, têm sido encontradas várias diferenças entre mães
alcoólicas cujos filhos apresentam sinais de terem sido expostos ao álcool durante a vida
intrauterina, e mães controlo (Leonardson, 2003). Entre essas diferenças, destacam-se as
seguintes (Leonardson, 2003; May, 2005; May, 2008):
• Idade entre 21-25 anos;
Efeitos no feto da ingestão de álcool durante a gravidez
18
• Antecedentes familiares de abuso/ dependência de álcool;
• Ser mãe solteira;
• Ter sido vítima de abuso sexual;
• Sofrer violência doméstica;
• Maior número de gestações e maior paridade;
• Abortos prévios;
• Baixo nível socioeconómico;
• Baixo nível educacional;
• Residência em zona rural;
• Padrão frequente de abuso de álcool (por ingestão de grande volume e/ ou por
consumo constante);
• Ingestão de álcool ao longo de toda a gravidez;
• Gravidez prévia com exposição fetal ao álcool;
• Convívio com parceiro alcoólico;
• Consumo de outras drogas em simultâneo;
• Absentismo às consultas pré-natais.
Efeitos no feto da ingestão de álcool durante a gravidez
19
3.3. Desordens do Espectro Alcoólico Fetal
A exposição intrauterina ao álcool, resultante da ingestão de bebidas alcoólicas pela
grávida, leva a vários efeitos sobre o embrião ou feto. A severidade desses efeitos
(negativos) pode ir de moderada a muito grave, podendo levar a consequências severas
para toda a vida (Bertrand, 2005). Vários termos são usados para descrever esses
efeitos.
Atualmente, a expressão Desordens do Espectro Alcoólico Fetal (DEAF) é utilizada
para agrupar as várias condições no embrião, feto ou criança resultantes da exposição
pré-natal ao álcool, que incluem desde alterações físicas, mentais e comportamentais, a
problemas de aprendizagem (Mesquita, 2009).
De acordo com a classificação do CDC, as DEAF incluem: Defeitos de Nascimento
Relacionados ao Álcool (ARBD), Desordens de Neuro-desenvolvimento Relacionadas
ao Álcool (ARND) e a Síndrome Alcoólica Fetal (SAF). Esta representa o quadro
clínico mais grave resultante da exposição fetal ao álcool (a seguir à morte fetal).
As DEAF resultam da exposição fetal ao álcool e dependem da alcoolemia materna e de
outros fatores associados, como por exemplo a fase de desenvolvimento fetal em que
ocorre a exposição. Podem incluir uma grande variação de efeitos que permanecem para
toda a vida (Costa, 2009). Apesar de ainda não ser conhecido o motivo, nem todos os
filhos de gestantes consumidoras de álcool desenvolvem os seus efeitos nocivos,
desconhecendo-se o nível seguro de consumo de álcool durante a gravidez (Chudley,
2005).
Figura 6: Recém-nascido com anomalias faciais associadas a exposição intrauterina ao álcool:
filtro labial liso, labo superior fino e fenda palpebral (adaptado de Costa, 2010).
Efeitos no feto da ingestão de álcool durante a gravidez
20
Segundo Thackray (2001) as características encontradas nas crianças expostas ao álcool
no período pré-natal podem agrupar-se em cinco categorias: anomalias faciais (Figura
6), restrição de crescimento, alterações de desenvolvimento do SNC, alterações
comportamentais e defeitos congénitos (Tabela 3).
Tabela 3: Características encontradas nas crianças expostas ao álcool no período pré-natal
(adaptado de Thackray, 2001).
Caraterísticas
Anomalias faciais
• Fissura palpebral pequena
• Ptose palpebral
• Hemiface achatada
• Nariz antevertido
• Lábio superior fino
• Filtro Liso
Restrição de crescimento
• Baixo peso à nascença
• Restrição de crescimento apesar de nutrição adequada
• Baixo peso relativamente à altura
Alterações de desenvolvimento do SNC
• Microcefalia
• Anormalidades estruturais do cérebro como agenesia do corpo caloso e hipoplasia cerebelar
• Dificuldades motoras finas, perda da audição sensoneural, dificuldade de coordenação olho-mão
Alterações comportamentais
• Incapacidade de leitura
• Fraco desempenho escolar
• Dificuldade de linguagem
• Habilidades prejudicadas
• Dificuldade de memória
• Problemas com a perceção social
• Dificuldade de controlo de impulsos
• Comprometimento do raciocínio abstrato
Anomalias congénitas
• Malformações cardíacas
• Deformidade do esqueleto e membros
• Anomalias anatómicas renais
• Perda do ouvido
• Alterações a nível oftálmico
• Fenda labial ou do palato
Efeitos no feto da ingestão de álcool durante a gravidez
21
Os ARBD estão associados a alterações físicas em consequência da exposição
intrauterina ao álcool, incluindo malformações cardíacas, renais, ósseas, auriculares e
oftalmológicas, além das anomalias faciais (Segre, 2010).
Tabela 4: Critérios para diagnóstico de ARBD (adaptado de Hoyme et al., 2005).
Exposição materna ao álcool confirmada, duas ou mais caraterísticas faciais e uma ou mais das seguintes alterações estruturais:
Alterações esqueléticas
• Escoliose
• Sinostose radioulnar
• Defeitos vertebrais
• Contração das grandes articulações
Alterações cardíacas
• Anomalia dos grandes vasos
• Alterações no septo atrial e/ou ventricular
• Defeito no tronco cone
Malformações Renais
• Rins em ferradura
• Duplicação uretral
• Aplasia/hipoplasia e/ou displasia renais
Alterações Oftálmicas
• Ptose palpebral
• Estrabismo
• Erros de refração
• Anomalias dos vasos da retina
• Hipoplasia do nervo ótico
Malformações auditivas
• Orelha em abano
• Perda auditiva neurossensorial
• Agenesia do conduto auditivo
Anomalias menores
• Dedos pequenos
• Prega palmar na forma de bastão de hóquei
• Hipoplasia nasal
• Ponte nasal plana
• Dobra epicantal
• Clinodactilia
• Camptodactilia
• Hipoplasia facial
As ARND estão relacionadas com alterações funcionais ou cognitivas, como por
exemplo dificuldades de aprendizagem, de controlo dos impulsos, de atenção e de
memória (Segre, 2010).
Efeitos no feto da ingestão de álcool durante a gravidez
22
Segundo Hoyme et al. (2005), ARND pode ser diagnosticada em crianças com
crescimento e desenvolvimento estrutural normais, mas com características cognitivas e
alterações neuro-comportamentais típicas da exposição pré-natal ao álcool, incluindo
problemas na execução de tarefas, dificuldades de comunicação, disfunção motora e
respostas fisiológicas incomuns. Os critérios de diagnóstico de ARND, segundo o
Institute of Medicine of the National Academy of Science (IOM), encontram-se descritos
na Tabela 5.
Tabela 5: Critérios para diagnóstico de ARND (adaptado de Hoyme et al., 2005).
Exposição materna ao álcool confirmada e no mínimo uma das seguintes alterações
Crescimento anormal do cérebro
• Perímetro cefálico <10º percentil
• Alterações da estrutura do SNC
Alterações comportamentais ou
cognitivas
(que não podem ser explicadas por fatores
genéticos, familiares ou ambientais)
• Diminuição da capacidade de execução de tarefas, como por exemplo:
• planeamento
• julgamento
• aritmética
• Défices de compreensão e expressão da linguagem
• Alterações comportamentais
• disfunção motora
• baixo desempenho escolar
• dificuldades de interação social
• instabilidade emocional
• baixo desempenho escolar
Algumas características das DEAF são comum a outras síndromes, como por exemplo a
Síndrome de Williams, na qual também ocorre atraso do crescimento, microcefalia,
fendas palpebrais reduzidas e filtro nasal liso, além de problemas de aprendizagem e
distúrbios comportamentais. Outras síndromes a ter conta no diagnóstico diferencial são
as síndromes de Aarskog, Noonan, Dubowitz, Bloom, Turner e Opitz (Stratton et al.,
1996).
Segundo Grinfeld (2010) as DEAF devem ser sempre um diagnóstico de exclusão. Há
várias síndromes genéticas e com mal formações que possuem características
semelhantes às desordens do espectro alcoólico fetal e também situações em que
crianças com outras alterações ou síndromes genéticas nascem de mães consumidoras
Efeitos no feto da ingestão de álcool durante a gravidez
23
abusivas de álcool. Assim, em crianças com alterações comportamentais e/ou cognitivas
filhas de mães consumidoras de álcool não deve ser automaticamente feito um
diagnóstico de DEAF.
Efeitos no feto da ingestão de álcool durante a gravidez
24
IV. Síndrome Alcoólica Fetal
4.1 Características
Como já foi referido anteriormente, a SAF representa o quadro clínico mais grave
resultante da exposição pré-natal ao álcool. É definida como um padrão de anomalias e
défices no desenvolvimento, encontrados em crianças expostas ao álcool no período
pré-natal (May et al., 2007). Apresenta características de três categorias primárias:
restrições no crescimento pré e/ou pós-natal, anomalias faciais específicas e alterações
estruturais e/ou funcionais do SNC. Na presença destas três alterações, a confirmação da
exposição ao álcool no período pré-natal não necessita de confirmação (Bertrand, 2005).
Associado a estas características, as crianças com SAF frequentemente têm Quociente
de Inteligência (QI) baixo, comportamento inapropriado, dificuldades de aprendizagem,
instabilidade emocional, défice de atenção, hiperatividade e dificuldade de memória
(Koren et al., 2003)
A alteração mais comum, observada na SAF, é a restrição no crescimento pré e pós-
natal de grau moderado a grave, manifestando-se no peso, comprimento e perímetro
cefálico (Costa, 2010). Contudo, a alteração do padrão de crescimento é variável,
podendo manifestar-se em alguns casos logo no período intrauterino e noutros apenas
na adolescência (Bertrand, 2005). A exposição fetal ao álcool no terceiro trimestre de
gravidez é determinante para as alterações ao normal crescimento do feto/ criança. Na
avaliação deste parâmetro deve-se considerar variáveis como os fatores genéticos, as
medidas dos pais, o estado nutricional e a presença de outras doenças (Chudley, 2005).
A definição das alterações faciais específicas da SAF é um fator importante para a
caracterização da patologia.
A compreensão etiológica da SAF ainda não está completamente esclarecida e carece de
estudos mais abrangentes e aprofundados, tal como os critérios de diagnóstico, que
continuam a suscitar dúvidas e diferentes interpretações.
Efeitos no feto da ingestão de álcool durante a gravidez
25
4.2 Sinais/ Sintomas
Os efeitos resultantes da exposição fetal ao álcool podem afetar cada pessoa de modo
diferente, havendo variação dos sinais/sintomas e da severidade com que estes se
manifestam.
Os aspetos clínicos da SAF variam também de acordo com a idade do indivíduo,
apresentando diferentes sinais e sintomas ao longo da vida (Thackray, 2001). Este
podem ser consultados, por faixa etária, na Tabela 6.
Tabela 6: Sinais e sintomas da SAF de acordo com a faixa etária (adaptado de Thackray, 2001).
Faixa etária Sinais/ Sintomas
Recém-nascido
• Características faciais, como olhos pequenos
• Baixo peso à nascença
• Comprimento reduzido
• Microcefalia
• Hipotonia
• Irritabilidade
• Dificuldade de vinculação
• Cabeça pequena
• Problemas com o sono e sucção
• Problemas cardíacos, renais ou esqueléticos
Lactente
• Características faciais
• Alterações de neuro-desenvolvimento
• Restrições de crescimento (peso e altura)
Idade Escolar
• Características faciais
• Alterações de neuro-desenvolvimento
• Restrições de crescimento (peso e altura)
• Alterações comportamentais inexplicáveis (ex. hiperatividade)
Adolescente
• Alterações de neuro-desenvolvimento
• Alterações comportamentais inexplicáveis
• Dificuldades de aprendizagem
• Instabilidade emocional
• Dificuldade de inserção social
Adulto
• Alterações de neuro-desenvolvimento
• Alterações comportamentais inexplicáveis
• Problemas de saúde mental
Efeitos no feto da ingestão de álcool durante a gravidez
26
No momento da retirada do recém-nascido do ambiente intrauterino (alterado pelo
álcool) podem ocorrer manifestações clínicas de abstinência alcoólica. Estas podem
manter-se nos primeiros dois dias de vida do recém-nascido e caracterizam-se por
irritabilidade, hipersensibilidade, hipotonia, tremores, alteração do padrão de sono,
estado de alerta frequente, taquipneia e apneia, recusa alimentar e dificuldade de
vínculo. Tendo em conta que o metabolismo fetal/neonatal é mais lento que nos adultos,
o aparecimento da síndrome de abstinência pode aparecer um pouco mais tarde
(Thackray, 2001).
No recém-nascido e no lactente nem todas as características da SAF estão presentes, não
se conseguindo avaliar o neuro-desenvolvimento nem as funções cognitivas.
Entre os dois e os onze anos, as dismorfias faciais tornam-se mais evidentes e ocorrem
alterações clínicas a nível do desenvolvimento do SNC. Verificam-se problemas de
aprendizagem, dificuldades de interação social e incapacidade de execução de tarefas.
Estas crianças apresentam défices de memória e de atenção, instabilidade emocional,
acessos repentinos de fúria e ansiedade. Crianças expostas ao álcool no período pré-
natal, na idade pré-escolar e escolar apresentam dificuldades de comunicação e de
interação social semelhantes às crianças autistas (Jones, 2003). Nesta fase, o diagnóstico
de SAF torna-se mais fácil, pois todas as características da síndrome estão em
evidência.
Na adolescência, se as crianças forem adequadamente nutridas, normalmente os
parâmetros de crescimento normalizam. As alterações neurológicas e cognitivas tornam-
se mais evidentes nesta fase. Os problemas de aprendizagem, de memória, de interação
social e de raciocínio mantêm-se. Os problemas de comunicação podem levar ao
isolamento e incapacidade de manter um emprego (Costa, 2010).
O parâmetro que mais sofre mudanças ao longo do crescimento é o desenvolvimento do
SNC. Apesar das alterações estruturais (caso existam) permanecerem, a manifestação
dos problemas neurológicos e funcionais pode alterar-se ou até normalizar nas várias
fases de crescimento. No período pré-escolar e escolar, o atraso do desenvolvimento
cognitivo verifica-se nas dificuldades de linguagem, na hiperatividade e nos défices de
Efeitos no feto da ingestão de álcool durante a gravidez
27
atenção. Crianças mais velhas, podem apresentar atraso nas capacidades motoras. Na
adolescência e idade adulta, esses problemas mantêm-se, sendo acrescidos de problemas
secundários adquiridos ao longo da vida, decorrentes da sua condição principal (SAF),
tais como problemas mentais, abuso de álcool e/ou outras drogas, incapacidade de
manter um emprego, problemas legais (Chudley et al., 2005).
Efeitos no feto da ingestão de álcool durante a gravidez
28
4.3 Diagnóstico
A falta de marcadores de exposição ao álcool, entre outros fatores limitam a capacidade
de identificar indivíduos afetados pela exposição intrauterina ao álcool (Mattson, 2011).
Sobreposição com outros quadros clínicos, a variabilidade nas histórias de exposição e o
grau de comprometimento também podem afetar a identificação clínica precisa. A
existência de outras patologias com sintomas semelhantes é outro fator que dificulta o
diagnóstico. Num esforço para melhorar a identificação das crianças afetadas pelo
álcool em todo os espectros, a investigação centrou-se cada vez mais no
desenvolvimento de um perfil baseado nas capacidades cognitivas/comportamentais
alteradas em crianças com exposição fetal ao álcool. Tal perfil neuro-comportamental
de exposição ao álcool é relevante para o desenvolvimento de critérios diagnósticos
mais precisos para a identificação das desordens do espectro alcoólico fetal e para
melhorar o tratamento (Mattson, 2011).
Apesar dos efeitos resultantes da exposição pré-natal ao álcool serem conhecidos, por
vezes o diagnóstico correto não é efetuado devido à falta de uniformidade de critérios de
diagnóstico (Bertrand, 2004). Existem duas grandes publicações que estabelecem os
critérios de diagnóstico das desordens do espectro alcoólico fetal: os critérios do IOM
(1996) e os critérios de Washington (2000) (Hoyme et al., 2005). O fenótipo facial
característico da SAF (Figura 7) só foi objetivamente definido em 2000 por Astley e
Clarren com a publicação dos critérios de Washington (Astley, 2000).
Figura 7: Recém-nascido com as três dismorfias faciais características da SAF: filtro nasal liso, lábio superior fino e fenda palpebral menor que o 10º percentil para a idade (Mesquita, 2010).
Efeitos no feto da ingestão de álcool durante a gravidez
29
Relativamente à Síndrome Alcoólica Fetal, cientistas reunidos pelo CDC publicaram em
2004 as recomendações para o seu diagnóstico.
Recentemente, e como resultado de pesquisa bibliográfica durante cerca de dez anos
(2001-2011), foram publicadas as recomendações alemãs para o diagnóstico de SAF
(Landgraf, 2013). No entanto, as guidelines do CDC (2004) continuam a ser uma
referência internacional e amplamente aceites e seguidas pela comunidade médica. Na
Tabela 7, estão descritos os critérios de diagnóstico de SAF de acordo com o CDC.
Tabela 7: Critérios para diagnóstico de SAF (adaptado de Bertrand., 2004).
Diagnóstico de SAF requer: as três dismorfias faciais, restrição de crescimento e anormalidades do SNC a nível estrutural, neurológico ou funcional:
Dismorfias faciais • Filtro nasal liso
• Borda vermelha do lábio superior reduzida
• Fissura palpebral pequena (≤ 10º percentil)
Restrição de crescimento
• Comprimento e/ ou peso pré ou pós-natal ≤ 10º percentil (ajustado a idade, sexo, idade gestacional e raça)
Anormalidades do SNC
Estruturais
• Perímetro cefálico ≤ 10º percentil
• Alterações da imagem cerebral
Neurológicas
• Problemas neurológicos que saiam da normalidade
Funcionais
Desempenho substancialmente abaixo do esperado para a idade:
• Défice cognitivo ou intelectual em vários domínios ou atraso do desenvolvimento em crianças pequenas com desempenho <3º percentil
Ou
• Défice funcional <16º percentil em pelo menos três dos seguintes parâmetros:
Execução de tarefas
Funções motoras
Interação social
Atenção ou hiperatividade
Memória
De acordo com o CDC (2004), o diagnóstico de SAF requer a presença de
características de três categorias: três dismorfias faciais específicas, restrição de
crescimento pré e/ou pós-natal e alterações do desenvolvimento do SNC a nível
estrutural, neurológico ou funcional. Na presença destes critérios, a falta de confirmação
Efeitos no feto da ingestão de álcool durante a gravidez
30
da exposição intrauterina ao álcool não deve impedir o diagnóstico. No entanto, se
houver certeza de que não houve exposição fetal ao álcool o diagnóstico de SAF
também deve ser ignorado (Bertrand, 2005).
O diagnóstico de SAF é apoiado por exames auxiliares que permitem a captação de
imagens cerebrais, mais especificamente dos gânglios da base, do cerebelo, do corpo
caloso e do hipocampo, que são regiões mais afetadas pela ação do etanol no
desenvolvimento embrionário. São utilizadas técnicas como tomografia de emissão de
positrões (PET) e tomografia computorizada por emissão de fotão único (SPECT) entre
outras (Niccols, 2007).
Efeitos no feto da ingestão de álcool durante a gravidez
31
4.4 Tratamento/ Prevenção
Não há tratamento médico (curativo) específico para a Síndrome Alcoólica Fetal, assim
como para qualquer uma das outras desordens do espectro alcoólico fetal. No entanto,
há algumas intervenções propostas para as crianças e respetivas famílias que pretendem
minimizar os danos causados (Segre, 2010).
Um diagnóstico pré-natal é de extrema importância, pois permite uma intervenção sobre
a grávida de modo a evitar ou minimizar complicações fetais (Matta et al., 2008).
No período pós-natal, é importante o diagnóstico precoce de modo a que as intervenções
se iniciem rapidamente, permitindo um acompanhamento médico, educacional e
familiar (Paley, 2009). Apesar de não haver cura, estudos comprovam que uma
intervenção precoce pode melhorar o desenvolvimento da criança. Desde o nascimento
até aos três anos de idade é possível ajudar as crianças a desenvolverem capacidades
importantes, incluindo fala, locomoção e interação com outras pessoas (CDC, 2014).
As crianças com SAF geralmente apresentam dificuldades de aprendizagem juntamente
com défices acentuados na linguagem, leitura e matemática. Associado a estas
dificuldades estão também problemas de comportamento e instabilidade emocional.
Programas de educação especial direcionados para estas necessidades específicas das
crianças com SAF podem ajudá-las a ultrapassar estas dificuldades de aprendizagem
(Kable, 2007). Estes programas devem incluir estratégias como minimização de
distrações, explicação minuciosa de instruções verbais, repetição das instruções verbais
e apoio visual para a realização de tarefas (Green, 2007).
O apoio de serviços sociais, com profissionais especializados, pode ajudar as famílias a
lidarem com a SAF. O apoio psicológico contínuo aos pais e a promoção da interação
pais-crianças pode diminuir o stress parental e melhorar os cuidados em relação à
criança (Bertrand, 2009). As crianças com SAF mostram alguma dificuldade de
comunicação, de interação social e em entender regras sociais. Essas capacidades
podem ser desenvolvidas usando instruções simples em casa com os pais ou em sessões
de terapia, demonstrando mais uma vez a importância do papel dos pais e dos serviços
de apoio (Paley, 2009).
Efeitos no feto da ingestão de álcool durante a gravidez
32
A estabilidade do ambiente familiar é muito importante para indivíduos com SAF. Estes
tendem a ser mais sensíveis a alterações do estilo de vida ou de rotinas, a situações de
rutura e de violência. O apoio da família e da comunidade envolvente são importantes
para prevenir condições secundárias, como problemas com drogas ou com a lei (Paley,
2009).
Além das alterações do foro psiquiátrico, estão também frequentemente associados à
SAF problemas cardíacos, renais e esqueléticos, entre outros. Estas situações devem ser
acompanhadas e monitorizadas por especialistas, sendo essencial a assistência médica
adequada (Paley, 2009).
Relativamente a tratamento farmacológico, não existe nenhum medicamento específico
para a SAF. No entanto, alguns fármacos podem ser utilizados para tratar os sintomas
da SAF, como por exemplo a hiperatividade ou o défice de atenção com a utilização de
estimulantes como o metilfenidato. Antidepressivos podem ser utilizados para tratar
sintomas como irritabilidade, negativismo e comportamento antissocial. Para melhorar
sintomas como ansiedade e agressividade são usados neurolépticos e para problemas de
ansiedade pode recorrer-se a ansiolíticos (CDC, 2014). A resposta ao tratamento
farmacológico varia de indivíduo para indivíduo, sendo importante o acompanhamento
médico e a avaliação constante do tratamento (Paley, 2009).
A prevenção é o único método disponível para evitar qualquer uma das desordens do
espectro alcoólico fetal, incluindo a SAF. Nesse sentido é importante a implementação
de programas de prevenção que envolvam não só os profissionais de saúde, mas
também outros sectores estratégicos, alertando para os malefícios do álcool na gravidez.
Tendo em conta que não é conhecida a dose de álcool capaz de causar dano fetal, o
consumo de álcool deve ser evitado a partir do momento em que a mulher tenta
engravidar. Assim, recomenda-se a total abstinência ao álcool no período pré-
conceptual e pré-natal (Cook, 2003).
Efeitos no feto da ingestão de álcool durante a gravidez
33
IV. Conclusão
O consumo de álcool tem aumentado nos últimos anos, principalmente entre as
mulheres, o que resulta em inúmeras consequências decorrentes do seu abuso.
Atualmente, o álcool está identificado como agente teratogénico, sendo objeto de
grande interesse e investigação pelas inúmeras consequências que pode causar sobre a
gestante. Estas vão desde alterações comportamentais, aborto e danos no feto. Estas
consequências podem manifestar-se desde o desenvolvimento fetal até à idade adulta,
tendo repercussões que se estendem pelo ambiente familiar, escolar e social.
O consumo de álcool durante a gravidez é a principal causa (evitável) de problemas à
nascença e no desenvolvimento das crianças e pode levar ao aparecimento de Desordens
do Espectro Alcoólico Fetal, que têm a sua forma mais severa na Síndrome Alcoólica
Fetal. A SAF é a mais grave das patologias resultantes da exposição fetal ao álcool e
resulta em défices específicos no desenvolvimento físico e neurológico ao longo de toda
a vida, para os quais não existe tratamento. Assim, o consumo de álcool nas mulheres
grávidas constitui um dos problemas mais graves do alcoolismo crónico.
Tendo em conta que a grande preocupação e interesse pelo tema são relativamente
recentes (aproximadamente 40 anos), continua a haver questões sobre as quais ainda
existem dúvidas. Por exemplo, qual a quantidade de álcool ingerido e frequência de
ingestão necessária para causar danos ao feto. Assim, as recomendações vão no sentido
de total abstinência ao álcool desde o momento pré-conceptual até ao final da gravidez.
Deste modo, é importante a adoção de programas de prevenção que apelem à
abstinência ao álcool durante a gravidez e sensibilizem as mulheres para as possíveis
consequências nos seus filhos. Há uma necessidade de sensibilização dos profissionais
de saúde e de implementação de planos estratégicos de identificação precoce do
consumo de álcool durante a gravidez, de apoio às grávidas consumidoras de álcool e de
acompanhamento dos recém-nascidos que resultam deste quadro. Neste contexto, é
fundamental a articulação de políticas tanto ao nível da saúde como noutros domínios,
como por exemplo a nível escolar.
Efeitos no feto da ingestão de álcool durante a gravidez
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