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EFEITOS DAS DECISÕES DE INCONSTITUCIONALIDADE E DE CONSTITUCIONALIDADE NO DIREITO BRASILEIRO
LUIZ GUILHERME MARINONI
EFEITOS DAS DECISÕES DE INCONSTITUCIONALIDADE E DE CONSTITUCIONALIDADE NO
DIREITO BRASILEIRO
LUIZ GUILHERME MARINONI
Professor Titular da Universidade Federal do Paraná – Brasil
Pós-Doutorado na Università degli Studi di Milano. Visiting Scholarna Columbia University
Sumário: 1. Eficácia erga omnes; 1.1. Eficácia erga omnes e coisa julgada material; 1.2.
Decisão de constitucionalidade e possibilidade de posterior ou outra ação direta de
inconstitucionalidade; 1.3. Decisão de constitucionalidade com efeitos erga omnes e impacto
das novas circunstâncias sobre o controle difuso; 1.4. Efeitos temporais da revogação da
decisão de constitucionalidade; 2. Eficácia vinculante; 2.1. Primeiras considerações; 2.2.
Extensão objetiva; 2.3. Extensão subjetiva.
1. Eficácia erga omnes
1.1. Eficácia erga omnes e coisa julgada material
A Constituição Federal brasileira e a Lei 9.868/99, quando tratam da eficácia das
decisões proferidas nas ações de inconstitucionalidade e de constitucionalidade, falam
em eficácia erga omnes sem aludir à coisa julgada material. O art. 102, § 2.º, da
Constituição Federal afirma que “as decisões definitivas de mérito, proferidas pelo
Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações
declaratórias de constitucionalidade, produzirão eficácia contra todos e efeito
vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração
pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal”. O art. 102, § 2.º, é
expresso e claro no sentido de que a eficácia contra todos (erga omnes) deriva das
“decisões” do Supremo Tribunal Federal e não da coisa julgada. Por sua vez, o art. 28,
parágrafo único, da Lei 9.868/1999 diz que “a declaração de constitucionalidade ou de
inconstitucionalidade, inclusive a interpretação conforme a Constituição e a
declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, têm eficácia contra
todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração
Pública federal, estadual e municipal”. Note-se que a Constituição Federal e a Lei
9.868/99 aludem apenas a “eficácia contra todos e efeito vinculante” e não a coisa
julgada.
Isto já é indício de que as decisões de inconstitucionalidade e constitucionalidade,
embora tenham efeitos contra todos, não ficam acobertadas pela coisa julgada.
Contudo, importa perceber a distinção dogmática entre os efeitos diretos da sentença e
a coisa julgada material.
As sentenças de inconstitucionalidade e de constitucionalidade produzem efeitos
contra todos pelo simples fato de terem eficácia direta contra todos e não em virtude
de ficarem revestidas pela coisa julgada material. A preocupação em selar tais
decisões com coisa julgada material teria o objetivo de impedir os seus
questionamento e rediscussão judicial. Acontece que a imutabilidade destas decisões
não deriva da coisa julgada material, mas da falta de legitimidade ad causam “de
todos” os representados pelos legitimados às ações de inconstitucionalidade e
constitucionalidade. Não é a coisa julgada que opera efeitos erga omnes, mas os
efeitos diretos da sentença. Todos ficam submetidos à decisão pela circunstância de
não poderem discutir a constitucionalidade da lei em abstrato. Uma vez decidida a
(in)constitucionalidade da lei, nada pode ser feito pelos cidadãos ou por todos os que
são representados pelos legitimados ao controle abstrato. Estão eles submetidos à
decisão, sendo impossível o seu questionamento em qualquer ação concreta. Retenha-
se o ponto: a estabilidade da decisão não deriva da impossibilidade de se voltar a
questionar a constitucionalidade, mas da impossibilidade em discuti-la e da submissão
à decisão tomada pelo Tribunal constitucionalmente legitimado a defini-la.
Seria possível pensar em impossibilidade de voltar a discutir a constitucionalidade
apenas em relação aos demais legitimados para a ação. Ocorre que, se os legitimados
às ações de inconstitucionalidade e de constitucionalidade podem discutir a
constitucionalidade de lei em nome de toda a coletividade, o questionamento da lei
por um deles tem efeitos sobre os demais, impedindo-lhes de voltar a discutir a
(in)constitucionalidade definida pelo Tribunal.
Argumenta-se, na antiga teoria geral do processo, que a decisão de
inconstitucionalidade produziria coisa julgada material erga omnes, dizendo-se que isto seria
decorrência da substituição processual levada a efeito pelo autor da ação direta. Ada
Pellegrini Grinover, por exemplo, afirma que a “coisa julgada valerá erga omnes, por força da
própria substituição processual que se opera na pessoa do ente ou titular da ação, o qual age
em nome próprio, mas como substituto processual da coletividade; e também por força da
titularidade passiva da ação, que se configura no próprio órgão público do qual emanou a lei
ou ato inconstitucional”1.
Trata-se de tentativa de transpor, forçadamente, conceitos do processo civil tradicional
para o plano do processo constitucional de índole objetiva. O instituto da substituição
processual foi pensado para o processo inter partes e para as situações em que se tutela, em
nome próprio, direito ou situação subjetiva de terceiro. Ora, no processo objetivo não existe
direito de terceiro ou alguém que o substitui, requerendo a tutela de direito subjetivo em
nome próprio. Há, simplesmente, ente a quem a Constituição atribui legitimidade para ativar
o processo de controle de constitucionalidade das normas, de que defluem decisões que,
naturalmente, beneficiam os cidadãos.
A coisa julgada material, nos processos entre partes, almeja impedir que o bem da
vida entregue a um dos litigantes possa ser dele retirado, seja mediante o
questionamento do objeto litigioso já decidido, seja por meio da tentativa de
reabertura da discussão da própria decisão. Porém, a definição da
(in)constitucionalidade da lei não confere qualquer tutela a direito individual ou
mesmo transindividual, mas tem a função de dar proteção à ordem jurídica,
evidenciando a sua legitimidade constitucional2. A proibição da rediscussão da
1 GRINOVER, Ada Pellegrini, Controle de Constitucionalidade, Revista Forense, v. 341, p. 3 e ss.
2 Na verdade, uma Corte constitucional não tem apenas a função de controlar a compatibilidade das leis com a Constituição, mas também a missão de outorgar efetividade social à Constituição. Como diz Owen Fiss, a tarefa da jurisdição não se resume a “apenas declarar quem está certo e quem está errado” ou a “dar sentido aos valores públicos”; cabe à jurisdição implementar estes valores, assim como “remover a condição que ameaça os valores constitucionais” (FISS, Owen, The formes of justice, Harvard Law Review, v. 93, p. 4 e
decisão de (in)constitucionalidade é questão afeta à estabilidade e à coerência do
direito objetivo, valores obviamente incompatíveis com a abertura à mutação das
decisões acerca da sua constitucionalidade.
Portanto, tudo bem visto, fica fácil perceber que a eficácia erga omnes das decisões de
inconstitucionalidade decorre da circunstância de que estas decisões têm eficácia direta
contra todos e não da coisa julgada material3.
1.2. Decisão de constitucionalidade e possibilidade de posterior ou outra ação direta de
inconstitucionalidade
O fato de a eficácia erga omnes das decisões de inconstitucionalidade constituir
manifestação da eficácia direta de decisão que diz respeito a todos, e não da coisa julgada
material, não quer dizer, como já esclarecido acima, que tais decisões possam ser
questionadas ou rediscutidas.
Tais decisões obviamente não podem ser questionadas ou rediscutidas por aqueles
que não têm legitimidade à ação de (in)constitucionalidade. Ademais, os legitimados
extraordinários que não participaram da ação em que a decisão foi proferida não podem
voltar a questionar a constitucionalidade simplesmente pela razão de que a função que lhes
foi atribuída já foi desempenhada, culminando na manifestação da Corte incumbida de
proceder ao controle abstrato da constitucionalidade.
ss). Na mesma linha, afirma Richard Fallon que identificar o significado da Constituição não é a única função da Corte. Uma missão crucial da Corte é a de pôr a Constituição em execução com êxito. No original: “Identifying the ‘meaning’ of the Constitution is not the Court’s only function. A crucial mission of the Court is to implement the Constitution successfully” (FALLON, Richard, Implementing the constitution, Harvard Law Review, v. 111, p. 58).
3 No direito português, Rui Medeiros sustenta que a eficácia erga omnes da declaração de inconstitucionalidade não só não é incompatível, “como também se harmoniza perfeitamente com a autoridade do caso julgado”. (MEDEIROS, Rui, A Decisão de Inconstitucionalidade. Os autores, o conteúdo e os efeitos da decisão de inconstitucionalidade. Lisboa: Universidade Católica Editora. 1999, p. 809).
Discute-se se o Supremo Tribunal Federal pode voltar a tratar de norma que já
declarou constitucional, seja mediante sentença de procedência em ação de
constitucionalidade, seja por meio de sentença de improcedência em ação de
inconstitucionalidade. Seria possível argumentar que, nestes casos, é possível propor
“outra” ação de inconstitucionalidade sobre a mesma norma, desde que baseada em
fundamento diverso. Objetar-se-ia sob a alegação de que, na ação de
(in)constitucionalidade, o Tribunal deve analisar a norma impugnada à luz da
Constituição, e, assim, não fica adstrito aos fundamentos invocados na petição inicial,
o que eliminaria a possibilidade de se questionar a constitucionalidade da norma com
base em outro fundamento. O Supremo Tribunal Federal, na ação direta de
inconstitucionalidade 1896, afirmou que “é da jurisprudência do Plenário o
entendimento de que, na ação direta de inconstitucionalidade, seu julgamento
independe da causa petendi formulada na inicial, ou seja, dos fundamentos jurídicos
nela deduzidos, pois, havendo, nesse processo objetivo, arguição de
inconstitucionalidade, a Corte deve considerá-la sob todos os aspectos em face da
Constituição e não apenas diante daqueles focalizados pelo autor. É de se presumir,
então, que, no precedente, ao menos implicitamente, hajam sido considerados
quaisquer fundamentos para eventual arguição de inconstitucionalidade, inclusive os
apresentados na inicial da presente ação ....”.4
Note-se que a impossibilidade de se propor nova ação direta de
inconstitucionalidade não se resume ao caso em que o Tribunal julgou procedente
ação declaratória de constitucionalidade, mas também diz respeito à situação em que a
ação direta de inconstitucionalidade foi julgada improcedente. Assim, decidiu-se no
recurso extraordinário 357.576 que, tendo o Plenário, ao julgar a ação direta de
inconstitucionalidade 2.031, “dado pela improcedência da ação quanto ao art. 75, §§
1.º e 2.º, introduzido no ADCT pela EC 21/1999, isso implica, em virtude da causa
petendi aberta em ação dessa natureza, a integral constitucionalidade desses
dispositivos com eficácia erga omnes”.5
4 ADI 1.896-8, Pleno, Rel. Min. Sydney Sanches, j. 18.02.1999.
5 RE 357.576-7, 1a. Turma, Rel. Min. Moreira Alves, j. 17.12.2002.
Cabe esclarecer que a eficácia preclusiva da coisa julgada material, no
processo inter partes, inibe a rediscussão do objeto litigioso já decidido apenas
quando o fundamento que se pretende utilizar para tanto foi deduzido ou poderia ter
sido deduzido diante da causa de pedir da ação primitiva. A eficácia preclusiva da
coisa julgada material é explicada mediante o princípio do deduzido e do dedutível,
que quer dizer que tudo o que foi deduzido, ou poderia ter sido deduzido em face da
causa de pedir que fundou a ação, não pode servir para o vencido fundar outra ação
para rediscutir o litígio. Em outras palavras, apenas é possível propor outra ação,
acerca de pedido já julgado, quando esta se funda em outra causa de pedir, distinta
daquela que fundou a primeira ação. Não cabe outra ação, ainda que baseada em
fundamento anteriormente não deduzido de forma expressa ou discutido, quando este
fundamento se insere na causa de pedir da ação primitiva e, assim, poderia ter sido
deduzido ou discutido.
Se a causa de pedir das ações de inconstitucionalidade e de
constitucionalidade é aberta, incluindo qualquer fundamento que esteja na
Constituição, não há como supor que a eficácia preclusiva da decisão de
(in)constitucionalidade possa liberar qualquer fundamento para ensejar outra – no
sentido de distinta ou diversa – ação de inconstitucionalidade. Se todos os
fundamentos constitucionais podem ser livremente analisados pela Corte, ainda que
não contidos em uma específica causa de pedir, não há como admitir que
determinado fundamento não tenha sido deduzido ou discutido na ação de
(in)constitucionalidade.
Na verdade, o instituto da eficácia preclusiva da coisa julgada é incompatível
com a ação direta de (in)constitucionalidade não apenas porque aqui não se está
diante de coisa julgada material, mas também porque não se pretende, com a
eficácia preclusiva da decisão de constitucionalidade, preservar a decisão de
constitucionalidade acerca de uma lei para abrir oportunidade para outra decisão
sobre a constitucionalidade da mesma lei, mas sim obstaculizar qualquer outra
decisão de constitucionalidade acerca da lei. A eficácia preclusiva da coisa julgada
impede a rediscussão de igual causa de pedir e pedido, enquanto que a eficácia
preclusiva da decisão de constitucionalidade simplesmente obsta a rediscussão da
constitucionalidade da mesma lei, não importando o fundamento que se pretenda
utilizar para tanto - já que, diante do controle abstrato, não se concebe a ideia de
impreclusibilidade de causa de pedir. Quando um pedido pode se fundar em duas ou
mais causas de pedir, é possível conviver com duas ou mais decisões legítimas
acerca de um mesmo pedido. Porém, a ação de constitucionalidade tem causa de
pedir aberta e, portanto, obviamente não se pode conceber duas decisões acerca da
constitucionalidade de uma mesma norma.
No entanto, é preciso ver que a noção de causa de pedir aberta, como não
poderia deixar de ser, é atrelada a um instante, uma vez que engloba as várias causas
de pedir que podem existir em certo momento. Ou seja, a ideia de causa de pedir
aberta não perde algo que é essencial ao próprio conceito de causa de pedir,
precisamente a sua dimensão temporal, concretizada mediante a lembrança de que
toda causa de pedir é o reflexo de um estado jurídico e de fato que se apresenta em
determinado momento histórico. De modo que a causa de pedir aberta, por
consequência, espelha todos os fundamentos constitucionais válidos em certo
instante da história.
Como se percebe, a historicidade inerente à validez dos fundamentos
constitucionais deixa entrever que a decisão de constitucionalidade pode ser objeto de
rediscussão na medida em que os fundamentos constitucionais, bem como a sua
compreensão, se alteram ao longo do tempo. É certo que esta leitura pressupõe que o
controle abstrato das normas constitucionais não pode se desligar dos fatos sociais. A
transformação da realidade e dos valores sociais, bem como a alteração da
compreensão geral do direito6, pode levar a norma a ter outro sentido, e, assim, à
6 É indiscutível que uma Corte Constitucional não pode ficar presa a entendimentos jurisprudenciais passados. Porém, isso obviamente não quer dizer que a Corte possa abandonar as suas posições diante de qualquer tese, nova doutrina ou interpretação discrepante. Quando se fala em mutação da “compreensão geral” acerca do direito se alude a uma nova concepção geral - presente na Academia e nas Universidades – a respeito da questão jurídica, que deve ser pacífica, clara, capaz de evidenciar que a manutenção do precedente configuraria a perpetuação de um equívoco (MARINONI, Luiz Guilherme, Precedentes obrigatórios, 2a. ed. São Paulo, Ed. RT, 2011, p. 310).
admissão de que uma lei antes vista como constitucional pode passar a ser
inconstitucional.
Lembre-se que a alteração da realidade social e dos valores da sociedade, a
evolução da tecnologia e a transformação da concepção jurídica geral acerca de
determinada questão abrem oportunidade para a Suprema Corte americana realizar o
overruling de precedentes constitucionais. É verdade que a decisão de
constitucionalidade proporciona estabilidade à ordem jurídica e previsibilidade aos
jurisdicionados e não – como a coisa julgada material - segurança jurídica às partes.
Nas ações concretas, em que a sentença outorga tutela jurisdicional à parte formal ou
às partes em sentido material, a função da coisa julgada é dar segurança ao litigante,
permitindo-lhe usufruir da tutela jurisdicional que lhe foi outorgada sem medo que ela
possa ser contestada ou usurpada. Nas ações abstratas, ao se decidir pela
constitucionalidade, nenhum direito ou vantagem é deferido diretamente a alguma
parte, ganhando a estabilidade da ordem jurídica e a previsibilidade de todos.
Acontece que a estabilidade e a previsibilidade não podem ser obstáculos à
mutação da compreensão judicial da ordem jurídica. Lembre-se do que disse o Juiz
Wheeler, em Dwy v. Connecticut Co.: “A Corte que melhor serve ao direito é aquela
que reconhece que as normas jurídicas criadas numa geração distante podem se
mostrar, após longo tempo, insuficientes a outra geração; é aquela que descarta a
antiga decisão ao verificar que outra representa o que estaria de acordo com o juízo
estabelecido e assente da sociedade e não concede qualquer privilégio à antiga norma
por conta da confiança nela depositada. Foi assim que os grandes autores que
escreveram sobre o common law descobriram a fonte e o método do seu
desenvolvimento e, em seu desenvolvimento, encontraram a saúde e a vitalidade de
tal direito. Ele não é nem deve ser estacionário...”.7
Como os fatores que autorizam a revogação de decisão de constitucionalidade
militam em favor da própria oxigenação e do desenvolvimento da ordem jurídica, a
7 CARDOZO, Benjamin N., The nature of judicial process, New Haven: Yale University Press, 1921, p. 150-152.
única restrição para a rediscussão de norma já declarada constitucional estaria no
prejuízo que ela poderia trazer à previsibilidade. Contudo, a previsibilidade não só é
valor que não pode se sobrepor à necessidade de desenvolvimento do direito, como
perde consistência diante dos próprios fatores que evidenciam o desgaste da primitiva
decisão.
Ademais, a alteração da realidade e dos valores sociais, assim como da concepção
geral do direito, obviamente são situações posteriores, que, assim, não infringem a eficácia
preclusiva da decisão de constitucionalidade, já que, por sua própria natureza, estão longe
de poder configurar causa de pedir que estaria presente à época desta decisão. Tais
circunstâncias conferem nova configuração aos fundamentos de constitucionalidade, que,
assim, abrem oportunidade a uma “outra” ação de inconstitucionalidade – quando a
primeira ação de inconstitucionalidade foi julgada improcedente - ou a uma ação de
inconstitucionalidade que não se limita a reproduzir os fundamentos já discutidos na
anterior ação de constitucionalidade.
Ao admitir, diante da alteração da situação de fato e das concepções jurídicas, a
possibilidade de a Corte declarar inconstitucional norma que antes proclamou
constitucional, Elival da Silva Ramos afirma que as decisões de procedência proferidas nas
ações declaratórias de constitucionalidade produzem “coisa julgada material apenas
relativa”.8
É supérfluo argumentar que há contradição em termos entre “coisa julgada material”
e “relativa”. O que importa verificar é se a coisa julgada material é compatível com a
alteração de circunstâncias própria à revogação de precedentes. Note-se bem. É indiscutível,
na melhor dogmática processual, que a coisa julgada material revela estado jurídico e de fato
existente no instante em que proferida a decisão, pelo que a alteração do direito e dos fatos,
abrindo oportunidade à configuração de nova causa de pedir, faz surgir outra ação, diferente
daquela que desembocou na coisa julgada material. Quer isto dizer, simplesmente, que,
quando surgem circunstâncias configuradoras de outra causa de pedir, o problema do
8 RAMOS, Elival da Silva, Controle de constitucionalidade no Brasil, São Paulo: Saraiva, 2010, p. 275.
obstáculo da coisa julgada material sequer se coloca. Ora, a coisa julgada material
obviamente não é capaz de impedir a propositura de ação fundada em outra causa de pedir.
Portanto, vistas as coisas de forma adequada, o real problema está em saber se a
alteração da realidade e dos valores sociais, assim como da concepção geral acerca do
direito, configuram circunstâncias capazes de paralisar a eficácia da coisa julgada material ou,
ao contrário, de simplesmente viabilizar a revogação de precedente constitucional. É preciso
perceber que a paralisação da eficácia da coisa julgada material em razão da alteração das
circunstâncias se destina a tutelar as partes envolvidas em uma situação jurídica que se
desenvolve no tempo. Assim, por exemplo, o conhecido exemplo do dever de pagar
alimentos. Porém, no caso de definição da legitimidade de norma em face da Constituição, a
questão sempre estará situada unicamente sobre a norma e, por consequência, sobre a
atuação do próprio Supremo Tribunal Federal. Ou seja, diante da alteração dos valores, da
realidade social ou da concepção geral do direito, desaparece a legitimidade constitucional
da norma, a obrigar o Supremo Tribunal Federal a proferir outra decisão acerca da
constitucionalidade da mesma norma.
Perceba-se que a decisão de que a norma é inconstitucional não faz desaparecer a
anterior decisão de constitucionalidade. Ambas as decisões convivem harmonicamente, uma
vez que são pautadas em distintos fundamentos e têm eficácia em períodos diferentes. A
anterior decisão de constitucionalidade permanece válida e eficaz para a época em que foi
proferida, mas os efeitos da primitiva decisão deixam de operar diante da decisão de
inconstitucionalidade – e isto sem se falar nos eventuais efeitos retroativos da última. O
problema é de eficácia da decisão no tempo.
1.3. Decisão de constitucionalidade com efeitos erga omnes e impacto das novas
circunstâncias sobre o controle difuso
A decisão de constitucionalidade, proferida em sede de controle abstrato, somente
pode ser impugnada quando presentes as novas circunstâncias referidas no item anterior.
Fora daí, impondo-se a decisão de constitucionalidade, nada pode ser questionado. Contudo,
quando presentes as circunstâncias que abrem oportunidade para se ter como
inconstitucional norma antes proclamada constitucional, importa perguntar se o
jurisdicionado pode propor ação para buscar a tutela de direito que tenha como pressuposto
a inconstitucionalidade da norma já declarada constitucional.
O problema deixa de ser o de se a decisão de constitucionalidade - diante da
alteração da realidade e dos valores sociais e da compreensão geral do direito - pode ser
modificada, e passa a ser o de se outro tribunal, além do Supremo Tribunal Federal, pode
aferir a presença de nova circunstância como fundamento para outra decisão acerca da
questão constitucional.
A solução deste problema exige que seja agregada à discussão a questão da
eficácia vinculante das decisões de (in)constitucionalidade. Embora a análise desta
questão deva ser aprofundada mais à frente, cabe frisar que as decisões de
(in)constitucionalidade têm, além de eficácia erga omnes, efeitos vinculantes em
relação “aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e
indireta, nas esferas federal, estadual e municipal” (art. 102, § 2.º, CF).
Como se está a pensar em novas circunstâncias, seria possível argumentar que
os juízes e tribunais não estariam submetidos à decisão proferida na ação direta.
Quando se pensa a partir de outro fundamento, é certo, não se está diante da mesma
causa ou da mesma questão constitucional, de modo que é correto afirmar que,
alteradas as circunstâncias, os demais juízes e tribunais, ao se depararem com a norma
já proclamada constitucional, não estão frente da questão constitucional já decidida.
Sucede que a eficácia vinculante não se resume a obstaculizar outra decisão acerca da
mesma questão jurídica, mas vai além, impedindo outra decisão acerca da
constitucionalidade da norma, não importando se novos fundamentos estão presentes.
Não cabe a qualquer “outro órgão do Poder Judiciário” dizer que uma nova
circunstância é suficiente para fazer cessar a eficácia erga omnes da decisão de
constitucionalidade. Apenas o Supremo Tribunal Federal tem poder para revogar os
seus precedentes. Ao se admitir uma nova circunstância, ainda que se passe a tratar da
antiga questão em outra perspectiva, afirma-se que a primitiva decisão não mais serve
a defini-la. Isto significa que outro órgão do Poder Judiciário estaria a proclamar que
decisão do Supremo Tribunal Federal - em vista, por exemplo, da alteração da
realidade social - não mais prestaria a dar sentido à norma que foi proclamada
constitucional. Não calha argumentar que, diante de nova circunstância, não se revoga
o precedente, mas apenas se diz que o precedente não se aplica a uma nova situação.
Ora, se é necessário dizer que o precedente não se aplica, há exercício de poder
deferido unicamente ao Supremo Tribunal Federal. Realmente, o fato de a eficácia
vinculante incidir “em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário” quer dizer
exatamente que apenas o Supremo Tribunal Federal pode revogar os seus precedentes.
Não obstante, o fato de nenhum outro órgão judicial, que não o Supremo
Tribunal Federal, poder revogar os precedentes relativos a decisões tomadas em ação
direta de constitucionalidade não significa excluir a possibilidade de se impugnar a
constitucionalidade da norma ao se exercer pretensão de tutela de direito em “ação
concreta”. É possível admitir a incoação do controle difuso para se chegar ao
Supremo Tribunal Federal, já que o jurisdicionado não dispõe de qualquer outro meio
para fazer valer o seu direito enquanto o precedente não for revogado9.
Nesta hipótese é possível argumentar, mediante recurso extraordinário, que a
norma, antes vista como constitucional, perdeu esta qualidade diante da alteração da
realidade ou dos valores sociais ou da concepção geral acerca do direito. Não haveria
racionalidade em admitir a invocação dessas circunstâncias em nova ação de
inconstitucionalidade e, ao mesmo tempo, impedir o Supremo Tribunal Federal de as
enxergar ao se defrontar com recurso extraordinário.
9 Contudo, é possível admitir, em hipóteses excepcionais, de notória e incontestável perda de substrato do precedente, uma espécie de revogação antecipada pelos tribunais ordinários, nos moldes do que ocorre no common law mediante o que se denomina de antecipatory overruling. V. KNIFFIN, Margaret N., Overruling Supreme Court precedents: anticipatory action by United States courts of appeals. Fordham Law Review, 1982; KELMAN, Maurice, Anticipatory stare decisis. University of Kansas Law Review, 1959, 8, p. 165 e ss; ROGERS, John M., Lower court application of the “overruling law” of higher courts. Legal Theory, 1995, p. 183; THURMON, Mark Alan, When the court divides: reconsidering the precedential value of Supreme Court plurality decisions. Duke Law Journal, Durham, vol. 42, nov. 1992; CAMINKER, Evan H., Sincere and strategic voting norms on multimember courts. Michigan Law Review, Ann Arbor, vol. 67, ago. 1999; DELANEY, Sarah K., Stare decisis v. The “New Majority”: the Michigan Supreme Court’s practice of overruling precedent, 1998-2002. Albany Law Review, Albany, vol. 66, n. 871, 2003.
Lembre-se, aliás, que não é apenas a decisão de constitucionalidade que se
sujeita às chamadas novas circunstâncias, mas também a decisão que, proferida em
recurso extraordinário, reconhece a inconstitucionalidade de norma.10 A norma, no
caso, não é retirada do ordenamento jurídico, embora os motivos determinantes da
decisão fiquem acobertados pela eficácia vinculante, atingindo todos os outros órgãos
do Poder Judiciário.11 Assim, é certamente possível que a decisão que reconheceu a
inconstitucionalidade de dada norma seja um dia contrariada, pelas mesmas razões
que autorizam a revogação de precedente constitucional ou que dão ao Supremo
Tribunal Federal a possibilidade de declarar inconstitucional uma norma que antes
pronunciou constitucional.12
1.4. Efeitos temporais da revogação da decisão de constitucionalidade
Porém, há necessidade de não violar a segurança jurídica daquele que se
comportou de acordo com a decisão de constitucionalidade. Não se pode esquecer
que, no caso de relações continuativas, a decisão opera para o futuro porque a própria
ação, tendo de se fundar em nova circunstância, não objetiva alcançar senão as
situações que estão por vir. Na verdade, não há como admitir ação direta de
inconstitucionalidade ou “ação concreta” para negar situação jurídica formada com
base na decisão de constitucionalidade, pois isso seria violar a confiança justificada.
10 V SILVA, Lucas Cavalcanti da, Controle difuso de constitucionalidade e o respeito aos precedentes do Supremo Tribunal Federal. In. Marinoni, Luiz Guilherme (coord.). A força dos precedentes – Estudos dos cursos de mestrado e doutorado em direito processual civil da UFPR). Salvador: JusPodivm, 2010. p. 149 e ss.
11 Lembre-se que, no controle difuso, a lei declarada inconstitucional continua a existir, ainda que em estado latente. O Senado é comunicado para, em concordando com o Supremo Tribunal Federal, suspender a execução do ato normativo. Porém, a sua não concordância não interfere sobre a eficácia vinculante da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal. Os planos são nitidamente distintos.
12 Frise-se que existem casos – embora excepcionais –, nos Estados Unidos, em que a Suprema Corte “ressuscita” a lei que era vista como dead law ou que estava apenas on the books, exatamente por já ter sido declarada inconstitucional.
Essa apenas cede, excepcionalmente, quando a decisão de constitucionalidade, à
época em que as situações se consolidaram, já deixara de ter credibilidade no seio
social e no círculo jurídico, hipótese em que será possível atribuir efeitos retroativos à
decisão de inconstitucionalidade.
A confiança depositada pelo jurisdicionado no precedente não pode ser
desconsiderada pelo Supremo Tribunal Federal. O responsável pela legítima
expectativa criada em favor do jurisdicionado deve zelar para que as situações que se
pautaram no precedente sejam efetivamente respeitadas, sem deixar de considerar,
igualmente, os fatores que possam fazer crer que a confiança no precedente já teria
esmorecido. Assim, o Tribunal deve modular os efeitos temporais da decisão de
inconstitucionalidade levando em conta a credibilidade no precedente. É preciso
compatibilizar a retroatividade da decisão com o momento em que os fatores que
justificaram a revogação não apenas se mostraram presentes, mas também fizeram
crer que a antiga decisão não se sustentaria por muito tempo.
Assim, a decisão proferida em recurso extraordinário, considerando
inconstitucional a norma antes afirmada constitucional, poderia não ter efeitos
retroativos em relação à própria situação litigiosa sob julgamento, como acontece no
direito do common law ao se aplicar o pure prospective overruling. No direito
estadunidense, a prática judicial dos efeitos retroativo e prospectivo é variada. Em
caso de revogação de precedente, caminha-se entre a eficácia geral simplesmente
retroativa – o que comumente acontece – e a eficácia geral plenamente prospectiva,
admitindo-se, em determinados casos, a irretroatividade da decisão em relação ao
próprio caso sob julgamento - pure prospective overruling.13 Não há dúvida que, nesta
13 “Increasingly in recent years, however, the courts have adopted a technique, known as prospective overruling, in which overruling is made less than fully retroactive. In the simplest case the new rule is made applicable to the immediate transaction (that is, the transaction in the case to be decided), but not to any other transaction that occurred before the date of the decision. There are a number of variations. In some cases, the new rule is not made applicable even to the immediate transaction. This variant is sometimes called pure prospective overruling” (EISENBERG, Melvin, The nature of the common law, Cambridge: Harvard University Press, 1998, p. 127-128).
hipótese, pode haver decisão favorável sem quaisquer efeitos concretos benéficos.14
Mas isso é próprio de um sistema em que os precedentes constitucionais, ainda que
firmados em controle difuso, têm força vinculante, independentemente de suas
repercussões nos casos concretos que os oportunizaram.
2. Eficácia vinculante
2.1. Primeiras considerações
De acordo com o art. 102, § 2º, da Constituição Federal, “as decisões
definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de
inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão
eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder
Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e
municipal”. Neste sentido, o art. 28, parágrafo único, da Lei 9.868/99, afirma que “a
declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive a
interpretação conforme a Constituição e a declaração parcial de inconstitucionalidade
sem redução de texto, têm eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos
órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal”.
As decisões de constitucionalidade e de inconstitucionalidade têm eficácia
vinculante. Antes de se analisar a porção da decisão (extensão objetiva) que é por ela
coberta, assim como quem são os seus destinatários (eficácia subjetiva), importa esclarecer a
razão do fenômeno.
A tradição do civil law é avessa à obrigatoriedade dos precedentes. Sequer teve a
possibilidade de constatar a necessidade de a ordem jurídica não se mostrar dividida com
decisões díspares para casos iguais. Acreditava que a lei bastaria para dar coerência ao
14 Trata-se de problema que não passou despercebido a Eisenberg: “Furthermore, a regular use of pure prospective overruling would diminish the incentive to argue for overruling in future cases, because the litigating party would bear the cost of the litigation but would not benefit from its result” (EISENBERG, Melvin, The nature of the common law, cit., p. 131).
direito. Não passou muito tempo - desde a sedimentação da tradição do civil law - para os
tribunais perceberem que realizam um trabalho de interpretação da norma legal, o que fez
brotar, no seio do sistema jurídico, a ideia de que haveria a necessidade de tribunais de
uniformização, inicialmente vistos como de cassação.
Isto, contudo, não conduziu àquilo que logicamente seria inevitável, ou seja, a um
sistema em que os precedentes dos tribunais superiores têm força obrigatória ou vinculante.
Esqueceu-se, em nome de “bandeiras” como a de que o “juiz deve ter liberdade para julgar”,
que o Estado de Direito é incompatível com uma ordem jurídica destituída de coerência e
estabilidade, assim como que a sociedade não pode se desenvolver sem previsibilidade em
relação às decisões dos tribunais. O ambiente esteve muito escuro para se ver que decisões
diferentes para casos iguais são tão ou mais nocivas do que ter leis que discriminam pessoas
iguais. Não obstante, o fato é que a cegueira tomou conta da doutrina jurídica, que, por
muito tempo, ficou sem perceber uma necessidade inseparável da tradição do common law,
exatamente a de que os tribunais não podem definir questões jurídicas iguais de maneira
distinta caso não queiram enfraquecer ou dissolver a legitimidade do direito e do próprio
poder estatal.
No direito brasileiro há particularidade que torna a questão muito mais grave.
É que o sistema abre oportunidade ao controle difuso de constitucionalidade, ou seja,
à possibilidade de todo e qualquer juiz ou tribunal dar a sua interpretação sobre a
constitucionalidade de lei ou ato normativo. Ora, o controle difuso, ao propiciar tantas
decisões de constitucionalidade quantos forem os casos concretos levados ao
Judiciário, acaba por gerar a incoerência da ordem jurídica em seu ponto mais
sensível, o da harmonia das leis com a Constituição. Recorde-se, aliás, que mesmo
nos países em que o controle de constitucionalidade é reservado a um Tribunal
Constitucional, como na Alemanha, atribui-se eficácia vinculante aos fundamentos
determinantes das decisões constitucionais15.
15 No direito alemão, ver: Kerbusch, Hermann. Die Bindung an Entscheidungen des Bundesverfassungsgerichts: unter besonderer Berücksichtigung der Verbindlichkeit von Normenkontrollentscheidungen. 1982; Wischermann, Norbert. Rechtskraft und Bindungswirkung verfassungsgerichtlicher Entscheidungen: zu den funktionsrechtlichen Auswirkungen der extensiven Auslegung des § 31 Abs. 1 BVerfGG. Berlin: Duncker & Humblot, 1979; Schlaich, Klaus. Das Bundesverfassungsgericht: Stellung, Verfahren, Entscheidungen; ein Studienbuch. München: Beck, 2004; Mels, Philipp. Bundesverfassungsgericht und Conseil Constitutionnel: ein Vergleich der
Se é nocivo ter decisões diferentes versando a interpretação de uma mesma lei
federal, é absurdo ter variadas decisões acerca da sua constitucionalidade. Se os juízes
ordinários podem e devem realizar o controle difuso, esse é necessariamente prévio à
decisão a respeito do Supremo Tribunal Federal, mas no sentido de que, após o Supremo ter
definido a questão constitucional, os juízes e tribunais inferiores sequer podem decidi-la,
cabendo-lhes, unicamente, aplicar a decisão. Isto é decorrência da lógica do sistema e da
razão de ser do próprio Supremo Tribunal Federal.
A tutela da Constituição por parte do Supremo Tribunal obviamente não teria
racionalidade caso os demais tribunais e juízes pudessem se opor às suas decisões.
Sucede que negar uma decisão do Supremo Tribunal Federal não equivale a
simplesmente desconsiderar o seu dispositivo. A unidade do direito mediante o fio
condutor da Constituição exige que se leve em conta a fundamentação das decisões da
Suprema Corte16.
Note-se que o dispositivo da decisão de inconstitucionalidade, ao afirmar que a
norma “X” é inconstitucional, pouco diz sobre a questão constitucional, não sendo suficiente
para servir como elemento de identificação do entendimento da Corte e de individualização
daquilo que deve ser observado pelos demais tribunais e juízes. A compreensão do sentido
Verfassungsgerichtsbarkeit in Deutschland und Frankreich im Spannungsfeld zwischen der Euphorie für die Krönung des Rechtsstaates und der Furcht vor einem “gouvernement des juges”. München: Vahlen, 2003; Schalk, Sebastian. Deutsche Präjudizien und spanische “Jurisprudencia” des Zivilrechts: eine vergleichende Gegenüberstellung. Frankfurt am Main/Berlin/Bern/Wien: Lang, 2009; Kau, Marcel. United States Supreme Court und Bundesverfassungsgericht: die Bedeutung des United States Supreme Court für die Errichtung und Fortentwicklung des Bundesverfassungsgerichts. Berlin/Heidelberg: Springer, 2007; Bauer, Thorsten. Die produktübergreifende Bindung des Bundesgesetzgebers an Entscheidungen des Bundesverfassungsgerichts: zugleich ein Beitrag zur Prozeduralisierung des Rechts. Berlin: Duncker & Humblot, 2003.
16 No direito português, Rui Medeiros afirma que não existe fundamento para admitir uma vinculação dos tribunais aos motivos determinantes da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral. Para o jurista português, “uma vinculação dos tribunais aos motivos determinantes da declaração de inconstitucionalidade constituiria uma grave travão à evolução do Direito Constitucional” (MEDEIROS, Rui, A Decisão de Inconstitucionalidade. Os autores, o conteúdo e os efeitos da decisão de inconstitucionalidade, cit., p. 812-813).
conferido à Constituição pelo Supremo Tribunal não prescinde da análise da fundamentação
das suas decisões.
O Supremo Tribunal Federal fala em motivos ou fundamentos determinantes,
em conteúdo essencial e em eficácia transcendente. As expressões “motivos ou
fundamentos determinantes” e “conteúdo essencial” se referem à decisão. Querem
expressar os fundamentos que determinam ou são essenciais à conclusão judicial. A
eficácia transcendente, por sua vez, é aquela que transcende ao caso, interferindo
sobre os demais casos que, embora não tratando da mesma norma, configuram igual
questão constitucional, a ser solucionada mediante a aplicação dos mesmos
fundamentos ou motivos que determinaram a decisão.
Assim, decidiu-se, na Reclamação 1987, que a decisão violara o “conteúdo
essencial do acórdão proferido na mencionada ação direta, que possui eficácia erga
omnes e efeito vinculante. A decisão do Tribunal, em substância, teve sua autoridade
desrespeitada de forma a legitimar o uso do instituto da reclamação”. Afirmou-se,
ainda, que a hipótese justificaria “a transcendência sobre a parte dispositiva dos
motivos que embasaram a decisão e dos princípios por ela consagrados”,
argumentando-se “que os fundamentos resultantes da interpretação da Constituição
devem ser observados por todos os tribunais e autoridades, contexto que contribui
para a preservação e desenvolvimento da ordem constitucional”.17 O relator desta
Reclamação, Ministro Maurício Correa, observou que “o ato impugnado não apenas
contrastou a decisão definitiva proferida na ação direta de inconstitucionalidade 1662,
como, essencialmente, está em confronto com os seus motivos determinantes”.18
No common law, a ratio decidendi identifica os fundamentos, motivos ou
razões determinantes ou essenciais da decisão. Em verdade, a preocupação com os
fundamentos determinantes da decisão é a mesma que inspira a individualização da
ratio decidendi. Trata-se de definir as razões que levaram a Corte a decidir, deixando-
17 RCL 1987, Pleno, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ de 21.05.2004.
18 RCL 1987, Pleno, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ de 21.05.2004.
se de lado os pontos que, ainda que analisados, não interferem ou determinam o
resultado do julgamento, considerados, assim, obiter dicta.
A ratio decidendi ou os fundamentos determinantes estão inseridos na
fundamentação da decisão. Individualiza-se a ratio decidendi ou os fundamentos
determinantes olhando-se para a fundamentação. Se um fundamento, embora não
necessário, pode ser suficiente para se alcançar a decisão, este apenas é determinante
quando constitui premissa sem a qual não se chegaria na específica conclusão acerca
do caso. De maneira que o fundamento determinante é o que se mostra
imprescindível, e, assim, essencial à decisão que foi proferida.
Por outro lado, não basta concluir que os fundamentos que não foram
efetivamente discutidos constituem obiter dicta. Nem mesmo há como pensar que
obiter dicta são apenas os fundamentos não adequadamente discutidos. É preciso
verificar, antes de tudo, se o fundamento podia ser discutido e se a decisão tomada
exigia a sua discussão19. Há um julgado do Superior Tribunal de Justiça que oferece
compreensível exemplo de obiter dicta. Trata-se de julgado que tratou da interpretação
do art. 475-J do Código de Processo Civil, mais precisamente a respeito da
necessidade de intimação do condenado para a incidência da multa de 10% diante do
não pagamento no prazo de quinze dias. No recurso especial 954.859, decidiu-se que
a multa incidiria independentemente de intimação pessoal do condenado.20 O relator,
Ministro Humberto Gomes de Barros, assim argumentou: “Alguns doutrinadores
enxergam a exigência de intimação pessoal. Louvam-se no argumento de que não se
pode presumir que a sentença publicada no Diário tenha chegado ao conhecimento da
parte que deverá cumpri-la, pois quem acompanha as publicações é o advogado. O
argumento não convence. Primeiro, porque não há previsão legal para tal intimação, o
que já deveria bastar. Os arts. 236 e 237 do CPC são suficientemente claros neste
sentido. Depois, porque o advogado não é, obviamente, um estranho a quem o
constituiu. Cabe a ele comunicar seu cliente de que houve a condenação. Em verdade,
o bom patrono deve adiantar-se à intimação formal, prevenindo seu constituinte para
19 V. Luiz Guilherme Marinoni, Precedentes obrigatórios, cit., p. 280 e ss.
20 REsp 954.859, 3a. Turma, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, DJ 27.08.2007.
que se prepare e fique em condições de cumprir a condenação. Se o causídico, por
desleixo, omite-se em informar seu constituinte e o expõe à multa, ele deve responder
por tal prejuízo”.21 Note-se que o Tribunal não estava julgando a responsabilidade do
advogado, mas somente analisando a necessidade de intimação pessoal do condenado
para a incidência da multa. De modo que a observação do relator, no sentido de que o
advogado se torna responsável pela multa ao não informar seu constituinte sobre a
condenação – certa ou não –, é verdadeiro obiter dictum, configurando-se como mero
argumento lateral, à margem da questão que estava sendo discutida, de solução
desnecessária para se chegar à decisão do recurso. Consequentemente, esta
observação, de que o advogado é responsável pela multa do art. 475-J, jamais poderá
ser invocada como precedente ou ratio decidendi.
Deixe-se claro que, embora a eficácia vinculante tenha inescondível
preocupação com a segurança jurídica, o seu escopo é completamente diverso ao da
coisa julgada material. Enquanto a última se destina a garantir a indiscutibilidade e a
imutabilidade da solução dada ao litígio, a primeira tem o fim de tutelar a coerência e
a estabilidade da ordem jurídica, assim como a confiança legítima, a previsibilidade e
a igualdade.
Se a coisa julgada material atinge apenas as partes do litígio, a eficácia
vinculante se presta a garantir a estabilidade da decisão judicial, evitando que, em
qualquer caso concreto, seja proferida decisão que não tome em conta os seus
fundamentos determinantes. Portanto, a eficácia vinculante tem a mesma finalidade da
eficácia obrigatória dos precedentes, aproximando-se, assim, do stare decisis.
No common law não é preciso falar em eficácia vinculante. Basta aludir a
ratio decidendi, uma vez que a força obrigatória ou vinculante é inerente ao sistema
de precedentes. Quando se pensa em ratio decidendi admite-se, implícita e
automaticamente, a sua força obrigatória. De modo que a ideia de eficácia vinculante,
no direito brasileiro, destina-se a enfatizar a força obrigatória dos fundamentos
determinantes das decisões constitucionais.
21 Idem.
2.2. Extensão objetiva
Ainda que a eficácia vinculante seja relacionada à obrigatoriedade dos
precedentes, e esta dependa da individualização dos seus fundamentos determinantes,
discute-se, inclusive no Supremo Tribunal Federal, acerca dos limites objetivos da
eficácia vinculante. Indaga-se, neste sentido, se a eficácia vinculante realmente se
estende aos fundamentos determinantes ou se é restrita ao dispositivo da decisão.
Emblemático, a respeito, é o julgamento da Reclamação 1987. Os argumentos
dos Ministros que, neste caso, limitaram a eficácia vinculante ao dispositivo da
decisão proferida na ação direta de inconstitucionalidade, não podem deixar de ser
lembrados.
O voto do Ministro Carlos Velloso é expresso no sentido de que a eficácia
vinculante, apesar de “inerente à natureza da decisão proferida na ação direta”, está
“sujeito a uma limitação objetiva: o ato normativo objeto da ação, o dispositivo da
decisão vinculante, não os seus fundamentos”.22 O voto do Ministro Carlos Britto tem
igual orientação, pois aderiu ao voto do relator “observando o limite objetivo da
reclamação”23, que não permitiria a alegação de violação à autoridade dos
fundamentos determinantes da decisão de inconstitucionalidade. O Ministro
Sepúlveda Pertence também foi contrário à tese de que uma decisão poderia ser objeto
de reclamação ao contrariar os fundamentos determinantes da decisão de
inconstitucionalidade, alegando que, se não fosse assim, estar-se-ia transformando
“em súmula vinculante qualquer premissa de uma decisão...”.24
22 “Não me oponho, Sr. Presidente, a esse efeito vinculante, que considero inerente à natureza da decisão proferida na ação direta. Quando esse efeito vinculante ficou expresso, na Constituição, com a EC 03/93 – C.F., art. 103, 2º - relativamente à ADC, afirmei que a EC 03/93 apenas explicitou algo já existente, implicitamente. Esse entendimento, mais recentemente, veio a predominar nesta Corte. Deve ficar claro, entretanto, que o efeito vinculante está sujeito a uma limitação objetiva: o ato normativo objeto da ação, o dispositivo da decisão vinculante, não os seus fundamentos” (RCL n. 1987, Voto do Ministro Carlos Velloso).
23 STF, RCL n. 1987, Voto do Ministro Carlos Britto.
24 STF, RCL n. 1987, Manifestação do Ministro Sepúlveda Pertence.
O fundamento do voto do Ministro Marco Aurélio foi diverso, mas igualmente
serviu para justificar que a eficácia vinculante estaria limitada ao dispositivo da
decisão. De acordo com este voto, a atribuição de efeito vinculante à fundamentação
equivaleria à admissão de coisa julgada em relação aos fundamentos da decisão, o que
“não seria admitido nem mesmo no campo civil, uma vez que o artigo 469 do Código
de Processo Civil é claro ao limitar a coisa julgada à parte dispositiva da sentença”.25
Elival da Silva Ramos, em tese de titularidade que versou o tema do controle
de constitucionalidade, fala em limites objetivos da coisa julgada material no processo
objetivo. Diz que “no controle principal, em que a questão de constitucionalidade
integra o pedido formulado pelo requerente, devendo ser dirimida na parte disponível
do acórdão, que a tanto se limita, os efeitos objetivos associados à solução da
pendência são resguardados pela coisa julgada, formal e material. A isso se denomina
limite objetivo da coisa julgada: apenas aos comandos contidos no dispositivo da
sentença ou acórdão, e que constituem os seus efeitos, é atribuída definitivamente,
impedindo que sejam reexaminados no mesmo ou em outro processo, por se tratar de
matéria decidida. Os elementos abordados na fundamentação da decisão que julga
ação direta, por mais relevante que sejam para que se possa bem compreender o que
foi decidido, jamais farão coisa julgada (art. 469, I, do CPC). Destarte, não se pode
pretender que gozem de alguma sorte de força vinculativa as considerações feitas em
sede de motivação sobre a correta maneira de interpretar as normas constitucionais
paramétricas ou o próprio ato legislativo controlado. De igual modo, se o dispositivo
do acórdão que julga ação direta consubstancia a aplicação particularizada de tese
jurídica sedimentada no âmbito do Supremo Tribunal Federal, devidamente
explicitada na fundamentação do julgado, não significa isso que se lhe deva prestar
25 “Mas, Senhor Presidente, há mais na hipótese: verificamos que o fator cronológico é contrario à admissibilidade, como já ressaltado pelo Ministro Sepúlveda Pertence, desta reclamação. Por quê? Porque na ADI n. 1.662 – se não me falha a memória -, cujo acórdão se diz descumprido, fulminamos um ato de 1997, e a base da decisão proferida pela louvável Justiça do Trabalho é um diploma posterior, é a Emenda Constitucional n. 30, de 2000. Mas, parte-se para o princípio da transcendência - e, aí, vislumbra-se a coisa julgada quanto aos fundamentos da decisão da Corte. Nem mesmo no campo civil temos coisa julgada de fundamentos. A coisa julgada diz respeito, de início – como está no artigo 469 do Código de Processo Civil – à parte dispositiva do julgado” (STF, RCL n. 1987, Voto do Ministro Marco Aurélio).
acatamento, como se estivesse resguardada pela coisa julgada. O tema dos limites
objetivos da coisa julgada no controle abstrato de normas não se deveria prestar a
maiores discussões, na medida em que, à falta de um tratamento específico no plano
constitucional, incide a disciplina vigente para os processos jurisdicionais em geral” 26.
A transcrição do argumento do ilustre constitucionalista se justifica para
demonstrar que parece estar presente, em importantes setores, uma imprópria
associação entre coisa julgada material e eficácia vinculante. Note-se que o Professor
Titular da Universidade de São Paulo afirma expressamente que “os elementos
abordados na fundamentação da decisão que julga a ação direta, por mais relevantes
que sejam para que se possa bem compreender o que foi decidido, jamais farão coisa
julgada”, pelo que “não se pode pretender que gozem de alguma sorte de forca
vinculativa as considerações feitas em sede de motivação sobre a correta maneira de
interpretar as normas constitucionais paramétricas ou o próprio ato legislativo
controlado”27.
Ou seja, pretende-se fazer crer que, pela circunstância de a coisa julgada
material não recair sobre os fundamentos da decisão, inclusive por força de expressa
disposição do Código de Processo Civil (art. 469, I), as considerações feitas em sede
de fundamentação não podem ter eficácia vinculante. Porém, o fato de a coisa julgada
material não abranger a fundamentação não impede que outro instituto, o da eficácia
vinculante, circunscreva-a, deixando-a imune a posterior desconsideração. Perceba-se
que a coisa julgada material, ainda que atingisse a fundamentação, ficaria restrita aos
litigantes, dela sendo impossível advir, portanto, qualquer beneficio para a coerência e
para a unidade da compreensão da ordem jurídica. Ao contrário, a força obrigatória ou
vinculante dos motivos determinantes da decisão diz respeito exatamente à intenção
de se dar unidade à interpretação e à aplicação do direito.
26 Elival da Silva Ramos, Controle de constitucionalidade no Brasil, cit., p. 275-276.
27 Elival da Silva Ramos, Controle de constitucionalidade no Brasil, cit., p. 275.
Na realidade, a necessidade de isolar os fundamentos, projetando-os de modo
a atingir obrigatoriamente os demais tribunais e órgãos da administração, nada tem a
ver com coisa julgada sobre os fundamentos. A coisa julgada é instituto que atribui
segurança jurídica às partes de um processo, não tendo o objetivo de garantir a
coerência e a estabilidade do direito e a confiança legítima e a previsibilidade dos
jurisdicionados. Portanto, não se trata de saber se a coisa julgada pode atingir os
fundamentos, mas de perceber que os fundamentos, por revelarem o pensamento da
Corte, devem obrigar os demais tribunais e juízes, além da administração pública.
Ademais, apenas na perspectiva de funcionalidade lógica dos institutos, não há
qualquer sentido em reservar a eficácia vinculante ao dispositivo da decisão. Em
primeiro lugar porque o dispositivo não é suficiente para revelar a tese ou a orientação
do Supremo Tribunal Federal, de modo que a sua força obrigatória pouco adiantaria
para se outorgar unidade ao direito. Depois porque, ao se admitir que a força
obrigatória é limitada ao dispositivo da decisão, utiliza-se outro institututo para
reprisar o que já é garantido pela coisa julgada.
Grosso modo, sabe-se que a eficácia vinculante se destina a obrigar os juízes e
tribunais inferiores a decidir de acordo com o Supremo Tribunal Federal. Porém, a
eficácia vinculante não se destina a obrigar os órgãos judiciais a adotar o dispositivo
das decisões de (in)constitucionalidade. Objetiva, isto sim, vinculá-los aos
fundamentos determinantes destas decisões. Como já dito, não há racionalidade em
supor que, em virtude da eficácia vinculante, os demais órgãos judiciais estão
obrigados a respeitar o dispositivo das decisões de (in)constitucionalidade, uma vez
que isto decorre da eficácia erga omnes da decisão.
O problema obviamente não está em fazer respeitar a decisão de que a norma
X é constitucional ou inconstitucional, mas sim em vincular os demais órgãos
judiciais aos fundamentos utilizados para se chegar à conclusão de que a norma X é
constitucional ou inconstitucional. Apenas isto pode justificar a ideia de atribuir
eficácia vinculante a uma decisão de (in)constitucionalidade.
É realmente ilógico pensar em eficácia vinculante para atribuir força
obrigatória ao dispositivo das decisões. Estar-se-ia negando a própria razão de ser da
eficácia vinculante, cuja gênese não se desliga da necessidade de atribuir força
obrigatória à ratio decidendi ou aos fundamentos determinantes das decisões.
Lembre-se que, nos próprios sistemas em que o controle de constitucionalidade é
reservado a Tribunal Constitucional, como ocorre na Alemanha, atribui-se eficácia
vinculante aos fundamentos determinantes das decisões. Como esclarece Michael
Sachs, o Tribunal Constitucional Alemão possui jurisprudência firme e de longa data
no sentido de que a força vinculante das suas decisões vai além dos seus respectivos
dispositivos – isto é, vai além da decisão acerca do objeto do processo – para também
atingir os seus fundamentos determinantes. Ou seja, entende-se que a eficácia
vinculante atinge as concepções jurídicas determinantes das decisões do Tribunal
Constitucional28.
A eficácia vinculante tem o mesmo objetivo da eficácia obrigatória dos
precedentes. O precedente apenas é garantido com a vinculação dos órgãos judiciais.
Mas a parte dispositiva não é capaz de atribuir significado ao precedente; esse
depende, para adquirir conteúdo, da sua fundamentação, ou, mais precisamente, da
ratio decidendi ou dos fundamentos determinantes da decisão. Tudo isto contradiz a
limitação da eficácia vinculante ao dispositivo da decisão.
Afirmar que a coisa julgada não recai sobre os fundamentos para concluir que
estes não são atingidos pela eficácia vinculante é não apenas utilizar premissa
verdadeira para chegar em conclusão equivocada. É, mais do que isto, utilizar
premissa que não tem qualquer relação lógica com a conclusão. A eficácia vinculante
incide sobre os fundamentos por estes evidenciarem o entendimento da Corte. De
outro lado, o dispositivo, e não os fundamentos, delimita e evidencia o beneficio
concedido à parte vencedora. Imunizar os fundamentos é guardar o entendimento da
Corte, vinculando as decisões futuras sem que importem os litigantes, enquanto que
28 “Das BVerfG selbst hat in ständiger Rechtsprechung lange Zeit die Auffassung vertreten, dass diese Bindungskraft seiner Entscheidungen sich über den jeweiligen Tenor bzw. die regelmäßig darin getroffene Entscheidung über den Entscheidungsgegenstand hinaus auch auf die tragenden Gründe seiner Entscheidungen erstreckt. Damit beansprucht es diese Bindungswirkung auch für die Rechtsauffassungen, die für seine Entschediungen jeweils maßgeblich sind” (SACHS, Michael, Verfassungsprozessrecht, 2. ed., Frankfurt am Main: Verlag Recht und Wirtschaft, 2007. p. 186).
proteger o dispositivo é não permitir que a tutela ou o beneficio outorgado à parte dela
seja retirado, quando outras pessoas ou casos passam despercebidos.
Portanto, pouco importa buscar resposta à pergunta a respeito de quais são os
limites objetivos da coisa julgada, já que o real problema está em saber qual é a
porção da decisão que revela o entendimento do Tribunal, e, portanto, quais são os
limites objetivos da eficácia vinculante. Reitere-se: a coisa julgada tutela o litigante e
a decisão de um específico caso, sendo que a eficácia vinculante protege a autoridade
das decisões judiciais e, neste sentido, o próprio vigor da ordem jurídica.
De maneira que não se pode sustentar que os fundamentos não vinculam em
razão de a coisa julgada não lhes dizer respeito29. O raciocínio, como se viu, está mal
posto, devendo ser assim reformulado: ao se pretender cristalizar o entendimento da
Corte, a porção da decisão que deve ser isolada para vincular os julgamentos futuros
não está no dispositivo, mas nos motivos determinantes30.
2.3. Extensão subjetiva
O art. 102, §2º da Constituição Federal, diz que o efeito vinculante incide em
relação “aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e
indireta, nas esferas federal, estadual e municipal”
29 Contudo, há respeitados doutrinadores que enxergaram na eficácia vinculante mero reforço do que entendem ser a coisa julgada erga omnes da decisão de inconstitucionalidade. Nesta linha, Ada Pellegrini Grinover sugere que a eficácia vinculante é algo supérfluo, já que “deveria decorrer automaticamente do sistema, dada a eficácia e autoridade erga omnes” das sentenças de inconstitucionalidade. (GRINOVER, Ada Pellegrini, Controle de Constitucionalidade, Revista Forense, v. 341, p. 3 e ss).
30 A doutrina estabelecida na Reclamação 1.987 – que atribuiu aos fundamentos determinantes eficácia vinculante - não foi reafirmada na Reclamação 2.475 (Rcl 2.475-AgR/MG, Pleno, Relator para o acórdão Ministro Marco Aurélio, DJe 31.1.2008), que, da mesma forma que a Reclamação 1.987, teve como reclamada decisão proferida em sede de ação direta. Deixe-se claro, contudo, que há nitída divergência entre os Ministros do Tribunal acerca do ponto.
A norma constitucional diz que as decisões definitivas tomadas em ação direta
de inconstitucionalidade e em ação declaratória de constitucionalidade produzem
efeitos vinculantes em relação aos “demais órgãos do Poder Judiciário”, excluindo,
assim, o próprio Supremo Tribunal Federal. De modo que estão sujeitos à eficácia
vinculante os juízes de 1º grau de jurisdição, os Tribunais Estaduais e Regionais
Federais e todos os demais Tribunais Superiores, inclusive o Superior Tribunal de
Justiça.
É claro que a intenção da norma foi vincular os órgãos judiciais às decisões do
Supremo Tribunal Federal. Ocorre, diante disto, o que se chama de eficácia vertical
dos precedentes ou o que se pode chamar de eficácia vinculante em sentido vertical.
Em princípio, assim, as Turmas do Supremo Tribunal Federal, assim como o seu
próprio Plenario, não estariam vinculados aos fundamentos determinantes das
decisões de (in)constitucionalidade.
Não obstante, as razões que estão à base da eficácia vinculante em relação aos
“demais órgãos judiciais” também se impõem para obrigar o Supremo Tribunal
Federal e as suas Turmas. A estabilidade do direito, assim como a confiança
justificada e a previsibilidade exigem que os fundamentos determinantes das decisões
de inconstitucionalidade sejam observados pelo próprio Supremo Tribunal Federal.
Assim, se restou decidido que determinada norma X, de um estado da federação, é
inconstitucional em virtude da razão Y, norma idêntica de outro estado da federação
também deve ser declarada inconstitucional em virtude da mesma razão Y. Os
fundamentos determinantes se impõem às Turmas e ao Plenário.
Isto não quer dizer, como é óbvio, que o Plenário e as Turmas sejam
absolutamente obrigadas ou vinculadas em face dos precedentes do Supremo Tribunal
Federal. Como explicado acima, nem mesmo a parte dispositiva da decisão de
constitucionalidade produz efeitos para sempre. Por idênticos motivos, os
fundamentos determinantes de decisões de inconstitucionalidade ou de
constitucionalidade podem ser revistos diante da alteração da realidade ou dos valores
sociais, assim como da concepção geral acerca do direito31.
31 Sobre a força “inercial” dos precedente judiciais, uma vez que o tribunal que adota uma opção interpretativa deve mantê-la nos casos futuros até que razões mais fortes
Lembre-se que a particularidade da eficácia absolutamente vinculante é a
proibição de o Tribunal revogar a sua própria decisão, mesmo que tenha bons
fundamentos para tanto. Isto não mais ocorre nem mesmo na Inglaterra, uma vez que,
em 1966, um Statement afirmou que a antiga House of Lords poderia passar a revogar
os seus precedentes diante de certas circunstâncias.32 Frise-se que, antes disso, a
House estava absolutamente vinculada aos seus julgados, ainda que em certos casos
estivesse convicta de que, ao reiterá-los, estaria perpetuando uma decisão injusta.33
Ao se afirmar que o Supremo Tribunal também deve respeitar os seus
precedentes não se quer dizer que novas posições pessoais não possam ou devam ser
ouvidas, ou que a composição do Tribunal não expresse vontades morais
diferenciadas. O que se deseja evidenciar é que, para se alterar um precedente,
qualquer membro do Tribunal, seja recente ou antigo, deve expressar fundamentação
capaz de evidenciar que o precedente perdeu a sua razão de ser em face da alteração
da realidade social, da modificação dos valores, da evolução da tecnologia ou da
alternância da concepção geral do direito. Nesse caso, o magistrado assume um ônus
de evidenciar que tais motivos não só estão presentes, como são consistentes e fortes
demonstrem a necessidade de revisão do paradigma, ver ALEXY, Robert, Teoria de la Argumentacion Juridica. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1989, p. 261-266. A adoção de um precedente judicial gera uma espécie de “encargo de argumentação”, uma responsabilidade de demonstrar argumentativamente a necessidade de afastar-se do precedente já adotado, e isso em parte em respeito ao princípio de que casos similares devem ser julgados igualmente. Cf. também MACCORMICK, Neil, Legal reasoning and legal theory. Oxford: Clarendon Press, 1987, p. 188- 197.
32 Eis parte da justificativa do referido Statement: “Os Lordships consideram o uso do precedente uma base indispensável para decidir o que é o direito e para aplicá-lo aos casos concretos. Fornece um grau mínimo de certeza perante o qual os indivíduos podem pautar suas condutas, bem como uma base para o desenvolvimento ordenado de regras jurídicas. Os Lordships, não obstante, reconhecem que uma aderência muito rígida aos precedentes pode levar à injustiça em um caso concreto e também restringir excessivamente o devido desenvolvimento do direito. Eles propõem, portanto, modificar a presente prática e, embora tratando as antigas decisões como normalmente vinculantes, deixar de lado uma decisão anterior quando parecer correto fazê-lo”.
33 V. MACCORMICK, Neil. Can stare decisis be abolished? Judicial Review, 1996, p. 198.
o bastante para se sobreporem às razões determinantes antes adotadas. Caso a maioria
do Tribunal não consiga vencer o ônus de alegar e demonstrar que “boas razões”
impõem a revogação do precedente, ele deverá ser mantido.
Ademais, a eficácia vinculante das decisões de (in)constitucionalidade estende-se à
administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, conforme
claramente preceitua o art. 102, §2º da Constituição Federal. Deixe-se claro que a
Administração está vinculada aos fundamentos determinantes da decisão de
inconstitucionalidade. Assim, não constitui empecilho a circunstância de o órgão
administrativo do estado X não estar submetido à lei declarada inconstitucional, uma vez que
ele está vinculado aos fundamentos determinantes da decisão que assim a proclamou. O
mesmo vale, como é óbvio, para os órgãos municipais, que devem pautar suas condutas e
procedimentos com base nos fundamentos determinantes da decisão de
inconstitucionalidade, não importando se esta foi proferida em relação à lei de específico
município.
A norma do §2º do art. 102 da Constituição Federal, ao disciplinar os limites
subjetivos da eficácia vinculante, não se refere ao Legislativo. Isto não quer dizer que o
legislador não tenha compromisso com as decisões do Supremo Tribunal Federal. A questão
de o Legislativo ter ou não poder para editar lei com substância idêntica a de lei declarada
inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal nada tem a ver com a questão da eficácia
vinculante das decisões. Ora, a eficácia vinculante pertine à aplicação da lei e não à sua
elaboração e edição. Saber se o legislativo conserva poder para editar lei com substância
idêntica a de lei já declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal constitui
problema que está em plano mais acima, o da separação dos poderes.
Quando se diz que a administração pública direta e indireta, nas esferas federal,
estadual e municipal, está vinculada às decisões do Supremo Tribunal Federal, sequer se
pensa em violação do princípio da separação dos poderes. Como é óbvio, a administração
tem o dever de não aplicar norma declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal.
Sucede que o Poder de legislar não se confunde com o Poder de executar ou de aplicar as
normas. Aliás, o Legislativo, ao agir enquanto Poder que está subordinado às leis, não pode
negar as decisões do Supremo Tribunal Federal. Portanto, o problema da autonomia para
editar lei com substância já declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal é outro.
O legislativo não está impedido, em razão da eficácia vinculante, de editar lei com
conteúdo idêntico ao de lei já proclamada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal.
Até porque o legislativo pode entender que existem novas circunstâncias, como a
transformação da realidade ou dos valores sociais, que imponham a compreensão do texto
num sentido constitucional. Porém, isto não quer dizer que a atuação legislativa, destituída
de qualquer preocupação com a legitimidade constitucional do texto, possa se impor
simplesmente para negar os efeitos da decisão da Suprema Corte. Quando inexiste como
pensar em nova circunstância a justificar a atuação do legislador, a lei não se sobrepõe à
decisão de inconstitucionalidade. Perceba-se que o Judiciário e a Administração Pública
ainda estão vinculados à decisão do Supremo Tribunal Federal, cabendo-lhes, apenas,
distinguir se os fundamentos determinantes da decisão de inconstitucionalidade
contradizem ou não o texto da “nova lei” 34.
34 CLÈVE, Clèmerson Merlin, A fiscalização abstrata de constitucionalidade no direito
brasileiro, 2ª. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 209 e ss; MENDES, Gilmar,
Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade, 3a. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p.
444 e ss; BARROSO, Luis Roberto, O controle da constitucionalidade das leis, São Paulo,
Saraiva, 2006, p. 158 e ss; RAMOS, Elival da Silva, Controle de constitucionalidade no
Brasil, cit., p. 292 e ss.