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«217» ABEL VARZIM e os Trabalhadores EDUCAÇÃO E TRABALHO REVISTA TRIMESTRAL Propriedade da Associação de Trabalhadores para a Cultura e Desenvolvimento (LABOR) N.º 15 JULHO/SETEMBRO - 1980 DIRECTOR : Amílcar C. Mateus SECRETARIADO DA DIRECÇÃO : Manuel Campos, Francisco Lopes, Manuela Morgado e António Marques ADMINISTRAÇÃO : Vítor Rocha e Emília da Fonseca COLABORADORES DESTE NÚMERO, coordenado pela Redacção : Anónimo, António R. Rodrigues, Eugénia M. Borges, Francisco Maria da Silva, Helena Cidade Moura, Henrique Barrilaro Ruas, Irene Carmo, José Luís G. Ferreira da Silva, Manuel Alpiarça, Manuel Rocha, Maria Luísa Ferreira, e outros a quem muito se agradece. ADMINISTRAÇÃO, REDACÇÃO, DISTRIBUIÇÃO E ASSINATURAS: Educação e Trabalho 1200 Lisboa Rua Duque de Palmela, 2-5.º - Telefs. 57 30 15/57 33 41 CONDIÇÕES DE ASSINATURA Portugal (Continente e Ilhas): 50$00 (3 números) Outros países (Via aérea): US$ 3,5 PREÇO DESTE NÚMERO: Portugal (Continente e Ilhas): 20$00 Outros países: US$ 2 COMPOSIÇÃO E IMPRESSÃO: Mirandela & C.ª Travessa da Condessa do Rio, 7-9 1200 Lisboa Tiragem 1500 ex.

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«217» – ABEL VARZIM e os Trabalhadores

EDUCAÇÃO E TRABALHO REVISTA TRIMESTRAL Propriedade da Associação de Trabalhadores para a Cultura e Desenvolvimento (LABOR) N.º 15 – JULHO/SETEMBRO - 1980

DIRECTOR: Amílcar C. Mateus

SECRETARIADO DA DIRECÇÃO: Manuel Campos, Francisco Lopes, Manuela Morgado e António Marques

ADMINISTRAÇÃO: Vítor Rocha e Emília da Fonseca

COLABORADORES DESTE NÚMERO, coordenado pela Redacção: Anónimo, António R. Rodrigues, Eugénia M. Borges, Francisco Maria da Silva, Helena Cidade Moura, Henrique Barrilaro Ruas, Irene Carmo, José Luís G. Ferreira da Silva, Manuel Alpiarça, Manuel Rocha, Maria Luísa Ferreira, e outros a quem muito se agradece.

ADMINISTRAÇÃO, REDACÇÃO, DISTRIBUIÇÃO E ASSINATURAS: Educação e Trabalho 1200 Lisboa – Rua Duque de Palmela, 2-5.º - Telefs. 57 30 15/57 33 41

CONDIÇÕES DE ASSINATURA Portugal (Continente e Ilhas): 50$00 (3 números) Outros países (Via aérea): US$ 3,5

PREÇO DESTE NÚMERO: Portugal (Continente e Ilhas): 20$00 Outros países: US$ 2

COMPOSIÇÃO E IMPRESSÃO: Mirandela & C.ª Travessa da Condessa do Rio, 7-9 1200 Lisboa Tiragem 1500 ex.

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N.º 15 JULHO-SETEMBRO 1980 SUMÁRIO

Introdução Pág. 5 Nota de Apresentação – Biografia Manuel Campos 11 A formação de dirigentes de obras sociais, de Louis Colens – Os comentários do Dr. Abel Varzim M. C. 15 O drama de «O TRABALHADOR» Manuel Alpiarça

Antologia 21 Aviso-prévio sobre sindicatos nacionais 29 Os princípios de uma economia nova em relação ao trabalho 35 A Família, a Propriedade e o Comunismo 41 Acção Social 43 A Miséria – Reserva industrial 45 Duas cartas contraditórias?

Testemunhos 53 Padre Abel Varzim e comunismo F. Maria da Silva 57 «O amor tem de ser servido pela organização» Manuel Rocha 61 Na Assembleia da República: Dois depoimentos Helena Cidade Moura e H. Barrilaro Ruas 65 «Detestava todas as formas de opressão» Eugénia M. Borges 67/68 Dois Testemunhos Bispo de Madarsuma E Anónimo

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ABEL VARZIM e os trabalhadores

INTRODUÇÃO

Desde 1978, e com a publicação do seu n.º 7, a linha editorial de «EDUCAÇÃO E TRABALHO» obedeceu ao critério de que cada número da revista seja inteiramente dedicado a um assunto considerado de importância para os trabalhadores. Assim temos procedido ao longo destes dois anos com o tratamento, já, de oito temas e assim pensamos continuar por alguns números mais. Com a publicação do n.º 15 – agora nas mãos do leitor - poderia supor-se interrompido o critério atrás mencionado, dado nos debruçarmos, desta vez, sobre a figura de um Homem. Para muitos e muitos dos trabalhadores que nos lêem, Abel Varzim tem bastante que ver com o trabalho, com os trabalhadores e com as suas lutas e esperanças. Porque Abel Varzim foi um lutador inconformado e incómodo por melhores condições de educação, de habitação, de trabalho, de saúde, de salários - numa só frase – por um reconhecimento da dignidade do homem trabalhador. Inconformado, por se saber de desabafos seus acusando-se de nem sempre fazer tudo o que deveria ou poderia. Incómodo, porque não se vergando não permitiu que um Poder político autoritário o calasse ou modificasse, comprando-o. Dentro das estruturas desse próprio Poder político - na Assembleia Nacional – a sua voz ecoou com vigor denunciando e acusando. Para a própria Hierarquia da Igreja, de que era ministro pelo sacerdócio, Abel Varzim era incómodo. Provam-no actos - reprováveis por imerecidos - de figuras altamente colocadas na Hierarquia do seu tempo. Depois da sua morte, ocorrida em 20-8-64 pouco se disse ou fez no sentido de colocar Abel Varzim no lugar que justamente é seu entre os trabalhadores portugueses e os que, pela defesa dos seus mais sagrados direitos, por eles mais têm lutado. Não cabe nestas breves linhas de apresentação descrever toda a trajectória da vida de Abel Varzim, nem quem as escreve poderia com segurança fazê-lo. Abel Varzim passou pela nossa juventude como uma figura que apenas conhecemos, já nos seus últimos anos como Pároco da freguesia da Encarnação, em Lisboa, à qual, aliás, não pertencíamos.

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Mas ao longo de quanto se vai ler - em depoimentos ou artigos- a sua trajectória e a sua personalidade ficarão, estamos certos, muito nítidas, até pelo ineditismo de muita coisa que agora publicamos. Se fosse vivo, Abel Varzim teria já, neste momento, completado 78 anos. Completamos com este número a homenagem que o IFST lhe dedicou no dia 29 de Abril passado com a realização de uma mesa-redonda sobre a sua vida e a sua obra.

»»»»»» «««««« Deste número fazem parte a Biografia completa e exacta (tão completa e exacta quanto possível) do homenageado; Dois artigos um pouco diferentes do tipo comum de testemunho: o primeiro sobre os comentários que A. Varzim fez à obra do P. Louis Colens quando a traduziu para português – A formação dos dirigentes de obras sociais, e o segundo sobre O Drama de «O Trabalhador», da autoria de Manuel Alpiarça que viveu intensamente aquilo que descreve; Alguns textos originais que patenteiam o ideal que afincadamente e sem desfalecimento seguiu na vida (O Aviso-prévio sobre Sindicatos Nacionais; Os princípios duma economia nova em relação ao trabalho; A Família, a Propriedade e o Comunismo; Acção Social), fazendo menção de outros que, por absoluta falta de espaço, não podemos inserir, mas mereceriam sê-lo pela doutrina que encerram e pela actualidade de que ainda se revestem; Três documentos inéditos a que ninguém poderá negar importância: num desenvolve a condenação do capitalismo e trata-se de um artigo cortado pela censura, noutro faz ele a sua própria defesa em termos dramáticos junto do seu superior hierárquico, no terceiro revela o seu apoio incondicional à atitude tomada pelo Senhor Bispo do Porto para com o Poder constituído, documentos cujas cópias nos foram amavelmente cedidas por pessoas amigas a quem A. Varzim as havia confiado em vida. Finalmente, na íntegra ou em excertos, publicamos vários testemunhos antigos e modernos de pessoas que se manifestaram sobre a personalidade rica e multifacetada do Dr. Abel Varzim.

V. R.

NOTA DE APRESENTAÇÃO – BIOGRAFIA MANUEL CAMPOS

1. ABEL VARZIM DA CUNHA E SILVA, filho de Adelino da Costa e Silva, lavrador, e de Maria Adelaide Varzim da Cunha e Silva, professora primária, nasceu em Cristelo,

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Barcelos, em 29 de Abril de 1902, tendo do mesmo matrimónio havido mais quatro filhos: José, Armando, Maria da Paz e Maria de La Salette – todos já falecidos. Feita a escola primária, entrou no Seminário de Braga, em 1916, onde permaneceu até 1925, ano em que, acabado o Curso de Teologia com alta classificação, foi ordenado sacerdote, no dia 29 Junho, pelo Arcebispo de então, D. Manuel Vieira de Matos. Em Novembro seguinte, a convite do respectivo Prelado, D. José do Patrocínio Dias, foi prestar serviços no Seminário Menor de Beja, onde exerceu até Junho de 1930 as funções de Prefeito e Professor de várias disciplinas e fundou Um Grupo de Escuteiros. De 1930 a 1934, frequentou a Universidade de Lovaina, na Bélgica, tendo obtido o doutoramento em Ciências Político-Sociais, em Maio de 1934, com a apresentação da tese Boerenbond belge (Cooperativa Agrícola), que a conhecida editora de Bruges DESCLÉE DE BROUWER ET CIE. publicou, em grande formato. 2. Regressado a Portugal, começou por colaborar com Mons. Manuel Lopes da Cruz, seu grande amigo de infância, na Empresa da Revista Renascença, sendo pouco depois nomeado Assistente Geral da L.O.C. e responsável pelo jornal «O Trabalhador» (35/36). Em 1939 foi nomeado Director do Secretariado Económico-Social(1). Dentro das actividades do Secretariado Económico-Social, fundou no ano social de 1941/42, o Centro de Estudos e Acção Social para Universitários que preparou um interessante grupo de rapazes e raparigas que, embora em campos políticos diferentes, compreenderam e quiseram realizar a doutrina social da Igreja (Relatório de 1944/45). No dizer do Dr. Manuel Rocha, «o P. Varzim chegou uns meses depois (o Dr. Rocha tinha chegado na Primavera de 34). Já tínhamos lançado «O Trabalhador». Ele tomou conta(2). Abel Varzim foi desde 1935 até 1948, o animador, o responsável, o orientador, o redactor principal, mas nunca apareceu no cabeçalho como Director. Na 1.ª fase foram Directores A. Matos e Manuel da Anunciada Soares e na 2.ª (de Janeiro a Julho de 1948) António Mendes Cerejo.

1 Este Secretariado havia sido constituído com carácter oficioso pela Junta Central da A. C. P., em Novembro de

1933, com o nome de Secretariado de Acção Social, tendo sido escolhido para seu director o P. Boaventura Alves de Almeida. Em 15 de Fevereiro de 1935 (Boletim «Acção Católica Portuguesa» N.º 10), a mesma Junta Central dá existência oficial a este órgão de actividade com o nome de Secretariado Económico-Social e nomeia para seu director o Dr. Manuel Rocha. Abel Varzim foi assim o terceiro director do Secretariado encarregado das actividades sociais da Acção Católica Portuguesa. Foi o terceiro e último director efectivo, que durante 9 longos anos (de 1939 a 1948) o pôs em plena actividade e nele trabalhou sem descanso. 2 «O Trabalhador» foi fundado, como quinzenário, em Maio de 1934, pela Junta Central da Acção Católica

Portuguesa, por iniciativa do então Arcebispo de Mitilene, D. Ernesto Sena de Oliveira. O seu primeiro número saiu em 1 de Maio do mesmo ano. Em fins de Abril de 1935, por acordo entre aquele prelado e a Empresa da Revista Renascença, a propriedade do jornal passou para aquela empresa e a responsabilidade da sua redacção para o P. Abel Varzim. Neste regime se manteve até fins de 1946. Então por dificuldades financeiras, a Empresa da Revista Renascença, depois Rádio Renascença, como já dissemos, entendeu que não podia suportar o «déficit» e desligou-se da administração, devolvendo à Junta Central da A. C. a propriedade do jornal, que por sua vez achou melhor suspendê-lo (Dezembro de 1946). Terminou aqui a 1.ª fase de «O Trabalhador», jornal quinzenário, Por iniciativa e esforço de A. Varzim e de mais um punhado de sacerdotes e trabalhadores, em Setembro de 1947, é lavrada a escritura notarial que dá origem à S. E. T. – Sociedade Editorial «O Trabalhador», S.A.R.L., com o capital inicial de 100 contos, a qual ficaria responsável pela publicação do semanário «O Trabalhador» - 2.ª série - que começou a sua publicação em 17-1-48.

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O jornal «O Trabalhador» na 2.ª fase durou apenas 26 semana. O primeiro número saiu em 17-1-48 e o último em 10-7-48. A nota oficial do Subsecretário de Estado das Corporações e Previdência Social, publicada por imposição no número 5, foi o princípio do fim. O Dr. Abel Varzim tinha os seus dias contados dentro da organização de «O Trabalhador» e por arrastamento seria demitido de todos os cargos que então desempenhava. Mas demos a Palavra ao seu último relatório como Director do Secretariado Económico-Social (47/48): «Em fins de Janeiro (de 1948) por ordem da Reunião do Venerando Episcopado, comunicada, verbalmente pelo Ex.mo e Rev.mo Senhor Presidente da Junta Central da A.C.P. encerramento da actividade assistencial do Secretariado, cuja execução se prolongou até fins de Março para evitar incompreensão do público». «Em Maio desautorização do Director do Secretariado perante os Organismos Operários, da A. C. pelo Secretário Geral da Junta Central, que assumiu directamente, sem justificação, as funções que competiam de direito e sempre competiram de facto ao referido Director.» «Em princípios de Junho, a mesma desautorização feita desta vez pelos Organismos Operários da A. C. pela recusa de colaboração, aliás anteriormente combinada, no esforço do Secretariado em prol do semanário «O Trabalhador». «Em Julho, demissão do Director do Secretariado, de Assistente Geral da L.O.C. em sequência da suspensão de «O Trabalhador». «Em fim do mesmo mês, ordem de encerramento do Secretariado...». Remetemos o leitor que deseje saber mais pormenores para o artigo «O Drama de O Trabalhador». 3. Desempenhou também neste espaço de tempo, as funções de Chefe da Redacção da LUMEN, revista de Cultura do Clero, onde escreveu uma série de artigos sobre o dever social do padre, de que destacamos os seguintes títulos:

A miséria imerecida (Lumen - Ano I - 1937)

O dever social cristão (Lumen - Ano V - 1941)

Princípios de novos tempos (Lumen - Ano VIII - 1944)

Ingredere Civítatem (Lumen – Ano XII - 1948)

Problemas da vida paroquial I e II (Lumen - Ano XIII - 1949)

Descristianização das massas populares (Lumen - Ano XIV - 1950)

Sintomas de ausência de Deus (Lumen - Ano XIV - 1950) Escreveu muito em jornais e revistas, especialmente nos diários NOVIDADES, JORNAL DE NOTICIAS E O COMÉRCIO DO PORTO. Destaca-se no primeiro a série de «Cartas da Bélgica», de 30 a 34, e a série «Impressões da França», 14 artigos apaixonantes então escritos entre 3 e 26 de Outubro de 1946 depois de uma visita de estudos de mês e meio a este país. A sua colaboração nos outros dois diários foi também assídua e ansiosamente procurada. Além disso, espalhou o seu saber por muitas outras publicações como por exemplo: Boletim «Acção Católica Portuguesa», «Juventude Operária», «Lutador Cristão», «Lar e Trabalho», «Voz do Trabalho», «Vida e Alegria», etc.

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Não descurou a obra de livro. Publicou, como já vimos, a tese de doutoramento «Boerenbond belge», «O Dever social» (Conferência), em 1941, e «Comunismo», em 1949. Todas as obras estão esgotadas e nenhuma foi reeditada. Traduziu para português a obra de Louis Colens, sociólogo belga, «A Formação dos Dirigentes de Obras Sociais», de que saíram duas edições. Em artigo à parte faz-se referência desenvolvida às notas que acrescentou à tradução, pela sua pertinência e aplicação ao ambiente português. 4. Foi neste espaço de tempo também, entre 38 e 48, professor de três cadeiras importantes no Instituto do Serviço Social: Encíclicas Sociais, Encíclicas Familiares e Economia Politica. No relatório de 47/48, escreve a propósito o seguinte: «Em princípios de Março (de 1948) quebra de ligação que vinha existindo há dez anos entre o Instituto do professor de Encíclicas Sociais e Familiares e ainda de Economia Política, demissão sugerida pelo Governo que auxilia financeiramente o referido Instituto». 5. Exerceu ainda as funções de deputado da nação na 2.ª Legislatura da Assembleia Nacional, de 1938 a 1942. Interveio por várias vezes com coragem e arrojo. As suas intervenções foram sobretudo quatro: O problema do desemprego. Os sindicatos em Portugal, A Assistência de menores a espectáculos públicos e o Casamento dos militares em serviço. Não voltou a ser eleito deputado. A sua queda política ficou resolvida por ocasião do seu discurso sobre Os sindicatos nacionais, como ele conta em documento publicado mais adiante. 6. Acarinhou, assistiu e animou a Cooperativa Popular de Portugal e suas sucursais (Lisboa, Guimarães e Ponta Delgada), o Serviço Sanitário e Social, que ainda existe, agora na Rua Manuel Bernardes, 30 – Sede da L.O.C. Num dos relatórios anuais, A. Varzim, diz:

«A nossa Cooperativa tem tido vida desafogada, mas quase milagrosa... Como chegasse agora o momento de lhe dar vida nova ou der ver desaparecer o único campo de acção económica que nos resta, optou este Secretariado pela primeira solução. Depois de obtida autorização para a instalação da Cooperativa no novo Bairro da Madre de Deus - e já temos promessa da mesma autorização para outros bairros - conseguiu-se que o Estado mande nele construir, em terreno para o efeito oferecido pela Câmara, um edifício apropriado com instalações convenientes para a montagem de todos os ramos de comércio necessários ao aprovisionamento dos seus numerosos habitantes; bem como de salas para jogos, reuniões, etc. A Cooperativa pagará metade das despesas de construção, em vinte anuidades, entrando, no fim deste período, na posse plena da propriedade do edifício. As possibilidades do desenvolvimento da Cooperativa, que tem hoje quase mil sócios, são aliás enormes. Nada, porém, se poderá fazer sem que à sua frente esteja pessoa técnica e moralmente competente, e se possa dispor de suficientes meios financeiros. Este Secretariado resolveu já a primeira dificuldade procurando o homem que reúne todas as qualidades necessárias; e, para começo da resolução da segunda, obteve da Junta Central para a Cooperativa um empréstimo de 20 000$00.

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A montagem da Sucursal do Bairro da Madre de Deus e de outras Sucursais com possibilidades de pleno êxito vai no entanto exigir verbas muito mais elevadas, que este Secretariado pensa obter, interessando nesta obra de grandes perspectivas algumas entidades particulares que possam não só financiar, como auxiliar e até fiscalizar o seu andamento comercial e financeiro.»

À MARGEM pelo próprio punho do Dr. Abel Varzim: «Tudo isto foi miseravelmente torpedeado pelo Dr. Castro Fernandes.» 7. A par do cuidado que dedicou aos problemas dos trabalhadores mereceu-lhe, também, particular atenção a formação do clero, para quem fez dezenas de conferências e escreveu dezenas de artigos (tendo até sido escolhido para orientar um dos habituais retiros da Conferência Episcopal Portuguesa), e foi pároco da Encarnação, em Lisboa, onde fundou a Liga Nacional contra a Prostituição e o Centro Paroquial da Encarnação destinado às crianças mais necessitadas, e deu incremento aos movimentos juvenis e de adultos da A. C. A propósito da Liga contra a Prostituição, escreveu a alguém (em 8-1-63), um ano e tal antes de morrer, as seguintes palavras: «... Aliás, os meus maiores sofrimentos não vieram da Acção Católica. A obra das raparigas da prostituição, essa, sim, essa é que me fez beber o cálix da amargura, de que fui, aliás prevenido, para meu amparo. Dou graças a Deus, embora tenha tido de comer ou rilhar as côdeas do pão amassado pelo diabo». Em 1957, «o P. Varzim Pediu espontaneamente a demissão da Paróquia, por motivo do seu abalado estado de saúde do corpo e do espírito; deixou Lisboa, a conselho de amigos e do próprio irmão; foi para a sua casa natal na mesma freguesia minhota; continuou a exercer no Porto, perto da terra da naturalidade, a sua missão caritativa e humanitária». (Em «Na Hora do Diálogo - resposta a muitas questões», de D. Manuel Gonçalves Cerejeira, Cardeal-Patriarca de Lisboa) e veio a falecer, inesperadamente, ferido por ataque cardíaco, no dia 24 de Agosto de 1964. Sacerdote cem por cento, procurou ser fiel à interpelação do Evangelho. Soube descobrir Cristo nos outros, a quem dedicou a vida, não voltando, nunca, a face a incómodos ou dificuldades. Perseguido, não pactuou com o Poder, mas também nunca cedeu à tentação do Comunismo. Amou com autenticidade e com verdadeira liberdade os homens, embora condenasse sempre os erros.

* * *

A FORMAÇÃO DOS DIRIGENTES DE OBRAS SOCIAIS DE LOUIS COLENS

Os comentários do Dr. Abel Varzim

Como diz o Dr. Manuel Rocha no seu depoimento que, por nossa conta e risco, intitulamos: «O amor tem que ser servido, pela organização...», «poucos, neste mundo, nos influenciaram tanto como Colens. O Varzim traduzia em português, muitos anos depois, os esquemas dessas lições da sexta-feira dadas na escola de Dirigentes da

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Liga dos Trabalhadores Cristãos, onde o Padre Colens nos dava a paixão da libertação dos oprimidos e a convicção de que o amor não é tudo, o amor tem que ser servido pela organização». Assim foi. Abel Varzim traduziu para português aí por 1942 a obra do P. Louis Colens intitulada A FORMAÇÃO DOS DIRIGENTES DE OBRAS SOCIAIS, que ainda hoje julgamos de muita actualidade. Vamos apenas transcrever as notas mais importantes, notas que, segundo se declara em N. B. da página 21: «Todas as notas, salvo indicação contrária, são do tradutor». L. Colens diz a certa altura que «uma actividade que se inspire num fim negativo, tem os seguintes defeitos: falta de iniciativa - falta de realizações efectivas - falta de sinceridade; por conseguinte, falta de influência real». A. Varzim comenta este último defeito do seguinte modo: Chamamos a atenção dos leitores para a tão importante, mas tão desconhecida, doutrina desta observação. Em Portugal, muitas obras foram fundadas, tendo a justificá-las apenas um fim negativo. Por ex, um salão recreativo, uma filarmónica, um grupo de escuteiros, para que os operários ou os jovens não vão às tabernas, aos cafés, aos maus cinemas; uma creche, um Patronato, para que as crianças não andem pelas ruas a perder-se. Muitos sistemas de educação, nas paróquias, nas famílias, nos colégios, etc. são fundados sobre negações - para que não conheçam o mal, não se percam. Exerce-se uma severa vigilância: para que não façam maldades... Tais sistemas, tais fins - contrários ao espírito do catolicismo que todo ele é acção positiva e de conquista e não apenas de defesa – são a causa da inutilidade de tantos esforços! E bastam para explicar certos resultados de certas educações. Cerca de 40 anos depois, não terá esta observação a mesma, senão mais, actualidade? A propósito das «obras para promover o levantamento económico» da classe operária escreve: Não foi ao acaso que o autor seguiu esta ordem, ao determinar o fim da organização da classe operária: o levantamento económico, intelectual, moral e social do trabalhador e da sua família... É que o ponto de partida da redenção do operário tem de ser, sob pena de inutilidade de esforços, o levantamento da sua vida económica. Elevando-lhe a vida económica, tratar-se-á de promover, depois, o levantamento intelectual. O moral e o social seguir-se-ão naturalmente depois, porque estão já solidamente colocados os alicerces da nova construção. Querer começar, por exemplo, pelo levantamento do nível moral é perder o tempo e o feitio. A psicologia das massas e a experiência são disso suficientes provas. Mais adiante observa: Para promover o levantamento económico do operário, a primeira coisa a fazer é o aumento do salário. Pontanto, a primeira de todas as obras é o sindicato. A não ser que as circunstâncias excepcionais duma localidade aconselhassem outra obra económica. E continua: O socialismo belga começou a sua organização pelas cooperativas. Nas localidades de população operária, fundava uma cooperativa. Agrupando assim os operários, ia, a pouco e pouco, a pretexto de tratar de assuntos da cooperativa, fazendo reuniões, em que expunha o seu programa de reivindicações sociais. Com os lucros da organização, cooperativa fundava ao lado um sindicato, mandava formar propagandistas, etc. Foi, pois, à volta das cooperativas que se formou o socialismo, que chegou a dominar a classe operária na Bélgica, enquanto os católicos não despertaram.

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A táctica do socialismo não deixou de ser hábil e aconselhável em muitas regiões. Tudo depende do estudo aprofundado das circunstâncias da região. Aqui temos uma boa pista ainda hoje para Portugal. Ou não será? Ao falar da organização da Liga dos Trabalhadores Cristãos, o próprio autor escreve em nota: «A Liga local é o ponto essencial do, movimento. É que, para exercer uma acção sobre os operários, não basta criar secretariados nacionais ou regionais, realizar congressos, tomar decisões. A maioria dos operários que seria preciso converter ou elevar, ignora a existência dos secretariados e das decisões dos congressos. Logo, não são atingidos por uma acção social deste género. Um operário habita num lugar determinado, onde tem uma família, amigos e uma maneira própria de viver. E neste meio que é preciso, atingi-lo. Estas e outras pequenas circunstâncias levam-nos à conclusão - confirmada aliás pela experiência de todos os dias de que, se queremos organizar a classe operária de maneira eficaz, é preciso, antes de mais nada, organizar em cada localidade um agrupamento que possa seguir a vida individual dos operários, que saiba atingi-los em sua casa, que possa entrar em contacto com a sua mulher e os seus filhos e que possa adaptar as organizações sociais à vida real do operário. É precisa, pois, antes de mais nada, uma organização local. E, nos grandes centros, várias organizações - uma para cada paróquia ou para cada grupo de paróquias. É um erro imaginar que basta possuir uma boa organização nacional ou regional. Esta poderá servir de centro de direcção, mas nunca pode bastar para a execução das decisões tomadas. E, se não é para as executar que elas se tomam, melhor seria não perder tempo em tomá-las». Quem pode negar que estas considerações do próprio Louis Colens estão carregadas de actualidade para nós portugueses? Quem será capaz de pô-las em prática no nosso meio trabalhador? A propósito da dificuldade que uma organização social tem em dirigir por si mesma um negócio comercial ou financeiro. A. Varzim escreve: Foi prática vulgar na Bélgica, e em outros países, encarregar um ou mais sacerdotes da acção comercial ou financeira das obras sociais. A razão era que a honorabilidade do sacerdote era um chamariz. Mas a experiência mostrou, salvo raríssimas excepções, que não há pior comerciante nem mais desastrado financeiro do que um Padre. Para ser comerciante ou financeiro não bastam a boa vontade, a dedicação, o entusiasmo e a honradez. É necessária uma preparação especial e um conhecimento profundo da técnica dos negócios, coisa que se não adquire dum dia para o outro. Ora os sacerdotes nunca receberam educação comercial, porque não é essa a sua missão. Pelo contrário, o sacerdócio foi criado por Jesus Cristo para fins mais altos, para o negócio da Salvação - missão que se não coaduna com a rigidez dos processos comerciais. Podíamos citar dezenas e dezenas de bem tristes exemplos, não só em Portugal, mas sobretudo no estrangeiro. Aos sacerdotes que lerem este trabalho aconselhamos, apoiados na experiência e na autoridade dos mais notáveis dirigentes de obras sociais do estrangeiro, a que nunca se ponham à frente de obras financeiras, nem que dêem o seu nome como garantia da segurança dum negócio. Para este aspecto da organização social, escolham-se, sempre e com o máximo escrúpulo, leigos competentes na técnica comercial e financeira.

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Porque nem sempre cumpriu na prática os conselhos que no livro que traduziu tão prudentemente inculcou muito teve que sofrer por causa do dinheiro, que nunca lhe chegava para valer aos outros.

M. C.

* * *

O DRAMA DE «O TRABALHAD0R» MANUEL ALPIARÇA

«Escusam de cá voltar em busca de provas revistas, porque o jornal está suspenso», disse, por fim, em tom grave, o contínuo que servira de intermédio no jogo de perguntas e evasivas, mantido entre dois elementos de «O Trabalhador», recebidos à porta da escada, e um ou mais funcionários da Censura que defenderam o anonimato, pra lá da porta da recepção. Terminava assim mais uma confrontação, não a última mas talvez a mais relevante, entre o Padre Abel Varzim e os poderes constituídos. O choque dava-se, não porque o sacerdote fugisse ao diálogo, embora o fosse já considerando, infrutífero. Ele ousava sempre. Admitia que os outros fossem capazes, um dia, de reflectir e de reconsiderar, como ele próprio fazia todos os dias. Ao iniciar a aventura da 2.ª fase de «O Trabalhador» não teria o apóstolo da mensagem social do Evangelho grandes dúvidas quanto à posição dos governantes, relativamente à classe trabalhadora: que aguardasse calmamente adormecida, ou amedrontada, porque reprimida, o que viesse a ser-lhe atribuído na distribuição que os senhores do País e as estruturas que, omnipotentemente, eles comandavam, tinham planeado e executariam... «à medida das possibilidades». O Dr. Varzim tinha já a experiência do deputado de uma só legislatura que pagara com a não-inclusão em novas listas a liberdade que usara para defesa da verdade e da justiça; tinha o dia-a-dia da sua vida, desde o regresso da Bélgica, em cuja Universidade Católica se formara e cujas organizações operárias cristãs vivera intensamente. Ele sabia-se vigiado pelas autoridades civis, obstaculizado frequentemente por elas, olhado com desconfiança por algumas autoridades religiosas e fracamente apoiado por outras. Ele sabia tudo isso, mas não podia deixar morrer «O Trabalhador». Tratava-se de um quinzenário, propriedade da Empresa da Rádio Renascença, que durante muito tempo - desde Maio de 1934 – se publicava como órgão da J.O C. e da L.O.C. Quando os rapazes da J.O.C. criaram o seu próprio jornal(3), a Renascença, encontrando dificuldades de ordem económica desinteressou-se da sua publicação e mostrou-se disposta a renunciar à propriedade do título. O Dr. Varzim lançou-se à constituição da Sociedade Editorial «O Trabalhador», com dinheiro seu, de um grupo de padres interessados no apostolado social e de muitos trabalhadores cristãos. As acções eram de cem escudos. O capital inicial cifrava-se em cem contos e rapidamente ultrapassou os cento e sessenta. Certo da indispensabilidade daquela tribuna, o esforçado sacerdote levou os seus companheiros de ideal a estabelecer ao jornal uma periodicidade semanal e a

3 Em Fevereiro de 1945: «J. O. C.»

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dotá-lo com um corpo de colaboradores regulares. Apesar de tudo o que já tinha passado, quis acreditar na promessa do Sub-secretário de Estado das Corporações e Previdência Social que, perguntado a tal respeito, lhe garantiu que nada aconteceria ao semanário, se as suas críticas e observações se baseassem na verdade. Que havia de dizer um político! Diga-se, entretanto, que o Dr. Varzim, mesmo que duvidasse do político, tentara sempre... O reverso da medalha viu-se logo, desde o primeiro número, publicado a 17 de Janeiro de 1948, com a qualidade e quantidade de cortes a que o jornal foi sendo sujeito, mas, muito especialmente, a partir do número 5, em que, já com o jornal paginado, foi necessário retirar mais de duas páginas - tinha oito - para nelas inserir extensa nota oficiosa do dito Subsecretário e a resposta, mais breve, que o Dr. Varzim redigiu, de imediato, ali mesmo na tipografia. Essa nota afirma, a certa altura, que «O Trabalhador utiliza o melhor estilo marxista» e termina dizendo que «O Trabalhador, na realidade, constitui o mais execrável elemento de desorientação dos espíritos, de deformação da verdade e abastardamento da dignidade dos que trabalham». Para chegar à conclusão que pretendia, utilizou o autor da nota passagens de artigos do jornal, isoladas do seu contexto e distorcidas a seu gosto. Na resposta, o Dr. Varzim retomou essas passagens, reintegrou-as no seu contexto, cotejou-as com documentos do ensino pontifício e provou que a orientação do jornal estava de acordo com a doutrina social cristã: «Como cristãos, seguimos a doutrina que os Sumos Pontífices têm proclamado, desde há quase 60 anos para cá. A nossa linguagem não é de teor diferente da deles», lia-se no final da resposta. Esta atitude não acalmou os que se regiam pelo Estatuto do Trabalho Nacional, decalcado na fascista «Carta del Lavoro Italiano», embora se proclamassem, quando julgavam convir-lhes, realizadores da Doutrina Social Católica, «no específico condicionalismo do mundo português». Não ficaram mais sossegados, quando o Dr. Varzim, em artigo intitulado «A Nossa Posição», escrevia: «Durante muito tempo, houve a ilusão de que o totalitarismo nazista ou fascista era o maior dique oposto ao comunismo. Muitos católicos deixaram-se iludir nessa boa fé. Era isto desconhecer o comunismo e o, totalitarismo. Nós nunca nos enganámos. Não por sermos mais espertos do que os outros, mas porque, lendo e meditando os ensinamentos dos Sumos Pontífices, «cometemos o pecado» de acreditar neles com toda a nossa alma. «Pio XI, para combater o comunismo, não apelou para o nazismo - que condenou energicamente – nem para o fascismo, contra o qual não menos energicamente lutou». Depois de transcrever parte da encíclica «Divini Redemptoris», ao instruir os cristãos sobre a sua posição activa na vida social, o autor reporta-se ao caso português e afirma: «para desfazer quaisquer dúvidas que existam no espírito dos de boa-fé, nada nos custa declarar publicamente - e nisto vai a nossa honra de homens e de cristãos - que «O Trabalhador» não foi nem é um jornal de tendências, ambições ou doutrinação de política partidária». A explicar a missão do jornal - coincidente com a razão da sua luta pessoal - conclui: «Preocupa-nos o problema social, a desorientação ideológica e moral dos operários. Porque seguimos uma doutrina social – que para um católico é a única

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legítima não queremos a responsabilidade perante Deus e perante a História de a calar, como luz que se abafa, debaixo do alqueire». Não abrandou, em consequência, antes se exacerbou, a sanha da Censura contra o jornal. E não foram só passagens do punho dos seus responsáveis e colaboradores o alvo dos cortes. Estes atingiram trechos das Escrituras -Evangelhos e Epístolas, principalmente - e das Encíclicas Pontifícias. Conte-se, a propósito, que um dos sócios e chefe da tipografia onde «O Trabalhador» era feito disse um dia a um dos «graúdos» da Censura: «a mim que sou trabalhador e que recebi uma formação cristã, o que me fere é cortarem afirmações do próprio Papa». Resposta: «que quer você? O Papa tem a sua Política, nós temos a nossa...» «Eles estão muito zangados convosco», disse, por essa altura, a um dos responsáveis da Redacção, em encontro completamente fortuito, eminente figura do episcopado português, hoje desaparecida. O objectivo daqueles cortes, para além da função normal da Censura, era tirar todo o interesse que o jornal pudesse ter para os trabalhadores, asfixiá-lo economicamente e obrigar-nos a desistir. O processo não resultou. Contra a adversidade, compondo-se, em média, doze páginas, para saírem oito, e, em certos artigos, com tipo demasiado grande, para «tapar» espaço, «O Trabalhador» tinha passado já o 20.º número da sua publicação e aparecia, pontualmente, à venda, em cada sábado. Mas a situação económica era má. Soou, então, o sinal para o assalto. Trazida verbalmente pelo tal chefe da tipografia, uma proposta chegou, sem indicação de origem, aliás, facilmente identificável: 600 contos por uma empresa onde estariam comprometidos pouco mais de 200. Todos nos lugares ocupados até agora. Só se pretende dar orientação em assuntos que se ligam com a conjuntura internacional de que, diz-se, os responsáveis do jornal não terão conhecimento aprofundado. O Dr. Varzim disse logo que não ficava. Mas adiantava que não era ele o director, nem queria impor atitudes a quem quer que fosse. Na posição de colaborador, que era a sua, podia «sumir-se», discretamente. Nenhum dos que participaram na redacção do jornal se mostrou disposto a colaborar no equívoco de, mantendo o título e o elenco dos que assinavam os artigos nele inscritos, pôr «O Trabalhador» ao serviço duma causa que não era a dos trabalhadores. Simultaneamente, foi consultada a maioria dos accionistas, espalhados pelo País. A resposta veio pronta: «Não nos rendemos; podem derrubar-nos, dum golpe. Não nos vergarão com ameaças, nem nos comprarão, qualquer que seja o preço». Foi esta a resposta dada, a seu tempo, ao contrafeito mensageiro. Dez dias passaram sobre a resposta, que não viesse a ordem de suspensão «sine die». Transmitida, em primeira mão, como se referiu no início, à porta da escada, por um contínuo. Depois foi confirmada oficialmente, mas nunca justificada. Quando, por carta, foram pedidas as razões da suspensão, obteve-se, por escrito, a indicação de que as razões já tinham sido apresentadas, verbalmente, ... ao chefe da tipografia. «Eles não arriscavam muito em concretizações... Do lado da hierarquia católica, também pouco se arriscou em apoio a quem pretendia defender a doutrina da Igreja, sujeitando-se, embora, a qualquer reparo na interpretação prática. Vieram duas ou três cartas, lamentando o sucedido... O Núncio Apostólico, Mons. Ciriaci, recebendo demoradamente um grupo de responsáveis que lhe levou a colecção dos cortes da

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Censura, mostrou compreender perfeitamente a situação, que relataria. Asseverou, no entanto, que Roma nada faria em desacordo com as autoridades religiosas do País. Com tudo isto, o Dr. Varzim não se mostrava abatido. Logo no fim da tarde em que, retornando do Palácio Foz à velha trapeira da Rua Gomes Freire - que «O Trabalhador» compartilhava com uma família locista - os dois elementos lhe transmitiram a notícia da suspensão, ele exclamou: É pena não termos aqui uma bandeira, porque a desfraldaríamos duma janela, sobre o telhado, Porque isto é uma grande vitória. Não conseguiram calar-nos pela razão; tiveram que fazê-lo pela força incontrolada que ainda possuem. Suprimiram um meio de comunicarmos com os trabalhadores e de nos fazermos eco da sua voz. Mas não, nos liquidaram. Nós continuamos iguais a nós próprios. Prosseguiremos o combate pela justiça, embora com outras armas. Bem podia garanti-lo, Por si. Ele, pelo menos, lutou até ao último alento.

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ANTOLOGIA

AVISO-PRÉVIO SOBRE SINDICATOS NACIONAIS(4)

O Sr. Abel Varzim - Sr. Presidente: pedi a palavra para mandar para a Mesa o seguinte aviso-prévio: Pretendo tratar, em aviso-prévio, de certos aspectos da organização sindical corporativa, pelas seguintes razões: 1.ª - Porque existe da parte de muitos entidades patronais, uma guerra, muitas vezes vitoriosa, contra a organização ou existência dos sindicatos nacionais; 2.º - Porque o desenvolvimento da organização sindical tem sido impedido por falta de protecção legal e ainda por falta de execução de medidos legais já existentes; 3.º - Porque este estado de coisas tem conduzido, muitas vezes, à execução arbitrária dos contratos singulares ou colectivos de trabalho, com grave prejuízo dos direitos jó legalmente reconhecidos dos operários. Assembleia Nacional, 16 de Janeiro de 1939. - O deputado Abel Varzim da Cunha e Silva.

ORDEM DO DIA

O Sr. Presidente - Tem a palavra, para fazer o seu aviso-prévio, o Sr. deputado Abel Varzim. O Sr. Abel Varzim - Sr. Presidente: entendo dever começar a explanação do meu aviso-prévio por expor alguns princípios doutrinais que julgo imprescindíveis para a compreensão do fim que tive em vista. O homem é um ser, por natureza, social. Isolado, sozinho, nada pode fazer. Desde o, berço á tumba nós somos devedores para com todos os nossos irmãos. O que vestimos, o, que comemos, a nossa própria educação, tudo nos foi dado pelo trabalho dos outros homens. De maneira que eu nada seria, nem nada poderia ser, se não tivesse tido constante e permanentemente o concurso dos outros homens a trabalharem para mim. Eu tenho, portanto, para com eles todos uma dívida a pagar, uma dívida de justiça. Aquilo que eles me deram devo retribui-lo, empregando toda a minha actividade, todo o meu esforço, tudo aquilo de que sou capaz para o bem comum. O meu trabalho profissional, a minha actividade, não tem outro fim senão pagar à humanidade, pagar à sociedade de que eu faço parte uma dívida de justiça social. A profissão, seja industrial ou operária, o funcionário público e o advogado, o médico ou o sacerdote trabalham e devem trabalhar, não para ganhar a sua vida mas para pagar esta dívida de justiça. Só cumprindo este dever é que se adquire o direito de receber da sociedade o suficiente para se manter, para viver condignamente, com o trabalho prestado.

4 NdR: «Assembleia Nacional» - II Legislatura – Sessão n.º 36 de 16 de Fevereiro de 1939

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Portanto, a actividade industrial, que é aquela que me interessa actualmente, é uma actividade que se deve dirigir primeiro para prestar um serviço social, e só em segundo lugar, e como consequência deste fim primário, dá o direito à recompensa. E tanto mais direito a uma remuneração maior quanto mais útil e maior for o serviço prestado à sociedade. Tudo pela Nação, nada contra a Nação. Interpreto esta maneira de dizer pela compreensão deste princípio social. O liberalismo inverteu esta ideia, afirmando que todos os homens se movem pelo seu interesse pessoal, e, mais do que isso, aconselhou todos os homens a só se moverem pelos seus interesses individuais. O liberalismo subverteu a boa harmonia e a paz da sociedade. Como consequência, movendo-se os homens pelos seus interesses individuais, começaram a triunfar na sociedade os mais ousados, os menos escrupulosos, aqueles que tinham mais possibilidades de vencer na luta. Foi assim que nós chegamos a uma questão social. Ao lado de um número reduzido daqueles que tudo tinham, uma multidão imensa daqueles que nada possuíam. Esta situação era uma injustiça, e uma injustiça social. A Revolução Nacional veio, repor as coisas no seu lugar, e teve e tem como mira, fundamentalmente, a restauração da ordem social. Todos a trabalhar para o bem comum, para depois adquirirem o direito a receber a condigna paga do seu esforço. Encontramos marcado, magistralmente, este fim da Revolução Nacional nesta frase já consagrada: enquanto houver um lar sem pão a Revolução continua. Num discurso do Dr. Salazar encontro também marcado bem nitidamente o plano da Revolução Nacional. Diz: «Com a mesma solicitude com que temos acudido a outras necessidades e com a mesma tenacidade com que havemos resolvido outros problemas até há pouco considerados insolúveis nós trataremos do seu (do operário) emprego, da sua habitação, da sua higiene, da sua saúde, da sua invalidez, do seu salário, da sua educação, da sua organização e defesa, da sua elevação social, da sua dignidade; nós melhoraremos a sua condição – não digo bem -, nós transformaremos a sua posição na vida económica e no Estado.» É precisamente esta melhoria e esta transformação que se propôs a Revolução Nacional, porque ela é a justiça social. Para a realizar organizou-se ou quer organizar-se corporativamente a Nação. Para cada profissão formou-se um só corpo, com o fim de que não fosse posto interesse individual a sobrepor-se ao interesse comum, mas o interesse comum a dominar o interesse individual. A organização corporativa consta da organização patronal e da organização operária. Por isso foram criados os sindicatos nacionais. Estes têm um duplo fim: defender os interesses dos operários e promover a sua formação social, primeiramente; estabelecer o equilíbrio social na produção, em segundo lugar. Terão eles correspondido a estes dois fins? Muito se tem feito, e eu sou o primeiro a reconhecê-lo. A obra realizada merece o nosso maior aplauso. Mas eu tenho notado, sobretudo ultimamente, que os sindicatos nacionais não têm podido realizar os seus fins, não têm defendido os interesses profissionais dos operários e não têm realizado, consequentemente, o equilíbrio social para que foram

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criados. E não têm defendido os interesses dos operários porque não têm tido força para tanto e porque muitas entidades patronais lhes têm movido ultimamente uma guerra que eu direi quase de morte. Não têm força porque seria necessário que todas as entidades patronais os respeitassem e considerassem, mas, infelizmente, tenho notado que não só não têm consideração por eles como muitas vezes têm feito tudo para os inutilizar. Há patrões e há industriais que têm despedido dirigentes sindicais só pelo facto de o serem, e V. Exas. Sabem que eu não estou a inventar. Há Patrões e há industriais que têm lançado no desemprego os que se afirmam propagandistas sindicais. Há patrões e industriais que têm lançado para o desemprego e para a miséria aqueles que se atrevem a queixar-se aos sindicatos. Mas há mais. Há regiões do País onde o ser-se sindicalizado constitui um verdadeiro perigo. Não me quero alongar em provar as afirmações que fiz, porque elas são do conhecimento de todos nós. Eu sei e eu conheço que há entidades patronais que têm colaborado magnificamente com os sindicatos e que há entidades patronais que não têm feito mais porque se o fizessem sujeitar-se-iam a ter de fechar as suas portas. Mas é precisamente por causa dos bons patrões que eu me queixo, de não ter havido ainda a força suficiente para corrigir e castigar os maus patrões. Poderá alegar-se que eles podem apelar para o Instituto Nacional do Trabalho e Previdência. Esse só pode actuar pela fiscalização ou pelos tribunais de trabalho. Vejamos a situação: Louvo a acção do Instituto Nacional do Trabalho e Previdência e das suas delegações. Tenho pena de não poder louvar sem restrições, e isto porque em toda a parte há quem não queira ver ou sacrificar-se pela situação dos operários. Mas reconheço também que o Instituto Nacional do Trabalho, não pode vir em auxílio daqueles que são injustamente perseguidos, porque os seus meios de acção não me parecem já suficientes. Em primeiro lugar eu observo e tenho observado que o Instituto Nacional do Trabalho está absorvido pela burocracia. Já quase não tem mais tempo do que o indispensável para escrever e assinar papéis. Por outro lado, a fiscalização não se tem manifestado verdadeiramente eficaz, devendo a sua ineficácia a várias razões. Uma delas é a falta de verba. Algumas vezes tenho escrito aos delegados do Instituto Nacional do Trabalho a pedir-lhes que mandem a sua fiscalização a este ou àquele ponto, e tenho recebido a resposta de que não há verba para pagar as despesas fiscais - isto apesar de ser certo que a verba para pagamento destas despesas provêm do Fundo de Desemprego, instituição para a qual o operariado desconta incessantemente 2 por cento das suas férias. Lastimo que este facto aconteça, privando os operários da protecção com que seriam libertados da má conduta de tantos patrões. Mas a fiscalização não é eficaz também porque os operários ocultam a verdade aos fiscais. Eles sabem que no dia em que disserem o que se passa serão irremediavelmente despedidos e nenhuma outra fábrica os aceitará. Preferem, portanto, ser ludibriados a contarem com clareza e lealdade o que se passa ou o que se tem passado. O Sr. Mário de Albuquerque – E como é que V. Exa. sabe isso?

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Se eles não dizem a verdade em relação a uma coisa, não há garantia da veracidade do que afirmem em relação a outra. O Orador - Por terem dito a verdade têm sido muitos despedidos e até já o foram alguns por mo terem dito a mim. Assim, o Instituto Nacional do Trabalho nem sempre tem conhecimento daquilo que se passa. Outras vezes os operários não se queixam à fiscalização porque, trabalhando em pontos muito distantes do Instituto ou das delegações, teriam de perder dias de trabalho para apresentarem as suas reclamações. E não sabem se com resultado se sem ele. Poder-se-á dizer ainda que o operariado tem nos subdelegados do trabalho o seu natural defensor junto dos tribunais. Mas o que eu verifiquei é que os operários nem sempre se vão queixar aos subdelegados do Instituto e, mesmo que se vão queixar, o subdelegado não pode proceder. Têm eles de pôr pessoalmente a questão no tribunal. Ora sendo os subdelegados do Instituto agentes do Ministério Público, deveria dar-se-lhes o poder de actuar independentemente da queixa do operário, porque quando o operário vai pôr a queixa no tribunal não encontrará normalmente ninguém que vá fazer a prova, a não ser em Lisboa e Porto ou noutro grande centro de população, porque ele sabe que neste caso será irremediavelmente despedido. Têm-se dado muitos casos destes, e basta que se dê um e que conste para que o operário se cale. O Sr. António Pinheiro Torres - Eu trabalho nos tribunais do trabalho há muitos anos, e nunca houve um processo que não tivesse pelo menos três testemunhas de facto operários, e nunca me constou que eles fossem despedidos. Vozes - Isso é no Porto. O Orador - Isso prova que no Porto as coisas correm melhor do que noutras partes. O Sr. Gastão Figueira - V. Exa., que conhece o que se Passa noutras partes, tem alguma coisa a dizer, por exemplo, a respeito da delegação do Funchal? O Orador - Eu não tencionava referir-me particularmente a ninguém, para não cair no perigo de cometer involuntárias injustiças. Mas devo declarar a V. Exa. que não tenho nenhuma espécie de queixa contra a delegação do Funchal. O que posso dizer a V. Exa. é que se têm dado casos frequentes de as testemunhas irem depor contra o patrão e no dia seguinte já não terem trabalho na fábrica. E muitas vezes nem nas outras fábricas do mesmo ramo, por haver, por vezes, entendimentos para tal entre patrões. Apoiados. Já que tenho citado tantas frases do Sr. Dr. Oliveira Salazar, quero citar mais uma: «Perante o Estado a Nação tem também o dever de falar a verdade»». Como deputado da Nação julgo meu dever perante o Governo falar a verdade. Estou convencido de que a situação em que se encontram os sindicatos nacionais e de que a facilidade com que muitos patrões abusam dos operários se deve algumas vezes ao próprio Estado. Eu tenho observado que em algumas empreitadas públicas se estabelecem salários mínimos inferiores ao que se paga no geral. Apoiados.

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E tenho observado que imediatamente os patrões diminuem os salários, dizendo decerto para consigo: «pois se o Estado só paga isto, para que estamos nós a pagar mais?» E observo também ainda que não só se estabelecem salários mínimos inferiores, como até, muitas vezes, os próprios empreiteiros não pagam nem sequer esses salários mínimos. E tenho também observado que o Estado nem sempre dá o seu apoio à organização corporativa. Pelo menos algumas repartições do Estado. E eu queixo-me de que, tendo o Sr. Presidente do Conselho publicado um despacho determinando que nas obras do Estado se desse preferência aos sindicalizados, não tenha sido cumprido esse despacho num só caso. E quem falta? O Ministério das Obras Públicas, as câmaras municipais, etc. E queixo-me de que nas câmaras municipais, servidas por homens do Estado Novo, se pague ordinariamente um salário inferior ao habitual. Não digo em todas, porque há câmaras municipais que cumprem o seu dever, mas conheço várias que pagam salários de miséria aos seus operários. Os sindicatos nacionais não têm podido cumprir a sua missão não só de defesa dos interesses dos operários, mas também de formação social dos próprios operários. E receio que se caminhe na propaganda sindical sem que se prepare ao mesmo tempo um escol de dirigentes e propagandistas sindicais. Mas infelizmente até hoje nada ainda se fez neste capítulo. A situação afigura-se-me esta: os sindicatos nacionais não defendendo os interesses dos seus associados, estão a caminhar para completa ruína ou para inevitável agitação social. Entendo que se devem empregar todos os esforços, em todos os sectores do Estado Novo, sejam eles sectores políticos ou sectores administrativos, no sentido de se levantarem os sindicatos nacionais aos olhos dos próprios operários. Até hoje não conseguiram os sindicatos merecer-lhes confiança. E sinto que vão perdendo a que já tiveram. Não quero demorar mais as minhas considerações sem ocupar mais tempo a V. Exas. (Não apoiado) a provar e a demonstrar as afirmações que fiz, mas entendo que deveria, talvez, apontar alguns remédios para esta situação. O primeiro e fundamental remédio seria a cooperação corporativa de patrões e de operários. Sem essa cooperação nem uns nem outros compreenderão a beleza do e sem essa formação tanto uns como outros verão no corporativismo o inimigo n.º 1, porque os entravará nos seus anseios dominadores. Depois seria necessário tornar o Instituto Nacional do Trabalho e Previdência um instrumento mais eficaz. Quando começou a organização corporativa tinha suficiente força, tinha gente bastante para trabalhar. Hoje, que essa organização se tem desenvolvido, ainda permanece com os mesmos assistentes, as mesmas delegações e pouco mais pessoal. Ora isto já não é suficiente para acompanhar o movimento que se tem operado e, sobretudo, para exercer aquela acção social que deve ser o seu principal objectivo. Seria ainda necessário rever a legislação que regulamenta os sindicatos nacionais. Desde que eles possam estar em juízo para defender os seus operários, desde que possam, em nome dos operários, tratar com os patrões em pé de igualdade, nessa altura desaparecerão quase todas as razões de queixa.

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E, como tenho dito o essencial daquilo que queria dizer, e como não tenho competência para traçar ao Governo um plano de acção (Não apoiados),limito-me a confiar no Governo, porque espero que ele saiba muito bem como há-de continuar a Revolução Nacional. Vozes - Muito bem! ########## Nota: Além deste AVISO-PRÉVIO SOBRE SINDICATOS NACIONAIS, teve mais cinco intervenções durante a legislatura em que foi deputado: - Na 2.ª sessão legislativa da legislatura 38/42, de 25-11-39 a 5-3-40, fez duas intervenções: 1.ª Sobre orientação e coordenação dos estabelecimentos de educação para o serviço social; 2.ª Sobre o Aviso-prévio referente a Desemprego. - Na 3.ª sessão legislativa referente à mesma legislatura, de 25-11-40 a a 22-2-41, mais uma sessão extra, interveio: 1.º Acerca da Concordata e do Acordo Missionário celebrado com a Santa Sé; 2.º Sobre o Decreto-Lei N.º 31 107 referente ao casamento dos militares em serviço. - Na 4.ª sessão legislativa, decorrente entre 25-11-41 e 21-2-42 pronunciou-se - Sobre a proposta de lei que cria o imposto sobre lucros extraordinários de guerra. Qualquer das intervenções foi importante. Mas tiveram impacto especial na Assembleia e no público (tanto que logo marcaram a sua exclusão em futuras legislaturas) o aviso-prévio sobre Sindicatos nacionais e as intervenções sobre o Desemprego e o Casamento dos militares em serviço.

**** Jornal «O Trabalhador», n.º 229, de 5-Xl-43

«Tu não crês em Deus. Mas isso não impede que Ele exista e que governe o mundo. Isso não impede que a Lei que nos impôs seja a única salvadora. Foram os sacrifícios daqueles milhares de operários, as orações daquelas almas lavadas, a Fé daqueles corações decididos que hão-de merecer de Deus misericórdia para as lágrimas dos miseráveis, castigo para os desmandos dos poderosos. Nossa Senhora, ao cantar as magnificências de Deus, que A fez tão excelsa e tão grande, levantou a sua voz para proclamar profeticamente que a omnipotência divina «havia de depôr dos seus tronos aos poderosos e exaltaria os humildes» - «que havia de despedir sem nada aos ricos, e que encheria de bens os famintos». A Profecia realiza-se pela implantação da justiça social no mundo, na medida em que o mundo levanta os olhos para Deus. A História mostra-nos com efeito que os períodos de injustiça, de sangue e de lama, correspondem exactamente às épocas em que a humanidade se esqueceu de Deus. Basta reparar, caro amigo, na data em que nasceu a

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moderna escravidão do homem. Começou ela, com efeito, no dia em que o homem se impôs uma lei oposta à lei de Deus. Amarás o teu próximo como a ti mesmo, dissera Deus. Seguirá o homem o seu interesse particular e egoísta, proclamaram os homens. E no dia em que prevaleceu a lei do egoísmo sobre a lei do Amor - isto é, no dia em que foi proclamado o liberalismo - nesse mesmo dia começou a tragédia horripilante do salariado escravizador do século passado. Restaurar a justiça, libertar o homem, só é possível fazê-lo na medida em que se viva a lei do fraterno amor.» ABEL VARZIM - Cartas a um comunista, em «O Trabalhador», n.º 229, de 5-Xl-43, a propósito de uma peregrinação operária a Fátima.

OS PRINCÍPIOS DUMA ECONOMIA NOVA EM RELAÇÃO AO TRABALHO (5

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A) A dignidade do operário Trabalhar é empregar um esforço útil em vista da subsistência humana. Raros são os bens que a natureza oferece ao homem prontos a ser utilizados. A imensa maioria deles só o pode ser, mediante o trabalho de cultura, extracção, fabrico, transporte, conservação... Numa Palavra, mediante o que se convencionou chamar a produção. São três os elementos da produção: natureza, capital e trabalho. Destes três elementos o mais nobre é, sem dúvida, o trabalho. A natureza é pura matéria, matéria transformada pelo trabalho e não consumida ainda. No entanto, aquele que Possui a natureza ou o capital dirige a economia. O que possui apenas o trabalho é dirigido por ela. Podemos ir mais além: o trabalho – elemento nobilíssimo porque o único humano - está subjugado pelos dois outros elementos! «Da oficina, exclama Pio XI, só a matéria sai enobrecida; o homem nela se corrompe e avilta». Esta inversão de valores, característica de economia capitalista, é indigna da pessoa humana que se tem visto assim relegada à categoria de máquina sem inteligência nem alma. Não tivesse Deus chamado o homem a participar da Sua própria dignidade e nobreza, e seria uma afronta à inteligência a posição que o trabalho ocupa na produção. Tornado Filho de Deus, essa posição degradante é uma afronta ao próprio Deus. Nem se julgue que a Posição degradante do trabalho é pura abstracção intelectual. Concretiza-se na vida social, em trágicas e dolorosas consequências. Socialmente, o operário é um diminuído, classe inferior e embrutecida, a quem se não estende a mão. Na fábrica, na rua, não o saudamos, não o admitimos à nossa Presença e se lhe falamos, é sempre tratando-o por tu. No entanto, na sua Pessoa vive Cristo, ele é a morada do Espírito Santo, o Templo da Santíssima Trindade. Se a nossa Fé não fosse obscurecida, nunca ousaríamos trata-lo assim.

5 Semanas Sociais Portuguesas: Segundo Curso - Coimbra 1943

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Bernardette era uma rapariguita pobre, dessas miseráveis criaturas esfarrapadas e sujas, que não quereríamos junto de nós. Mas a Santíssima Virgem aparece-lhe. Na terceira aparição, pede-lhe que volte à gruta: «voulez-vous avoir Ia bonté de venir ici pendant quinze jours?»» A pobrezita conta às pessoas que a interrogam com espanto: «Ela disse-me: «quere ter a bondade?» E insiste, num misto de alegria e confusão: sim, Ela disse: «Vous», Entre todos, foi a Mãe de Deus, a única pessoa que a não tratou por tu. É mais terrível ainda a situação moral do operário. Ele vive forçadamente, pela necessidade de ganhar o pão de cada dia, num ambiente de depravação e em perigo moral constante. Para ser virtuoso, seria necessário que fosse herói. «Sentimo-Nos horrorizados ao pensar nos gravíssimos perigos a que estão expostos nas fábricas modernas os costumes dos operários (sobretudo jovens) e o pudor das mulheres e donzelas... Deste modo, o trabalho corporal, ordenado pela divina Providência, depois da culpa de origem, para remédio do corpo e da alma, converte-se frequentemente em instrumento de perversão». (Quad. Anno). Não podemos tomar, perante tamanha hecatombe moral, a atitude de Pilatos: «innocens ego sum a sanguine justi hujus; vos videbitis» - «estou inocente do sangue deste justo; isso não é comigo». Numa ordem cristã, o trabalho tem de ocupar a primazia na escala dos valores. A dignidade humana, a dignidade cristã do trabalhador assim o reclamam. O homem não foi feito para a economia. Esta é que deve existir para aquele. Não pode portanto subordinar-se o homem à economia, mas a economia é que deve submeter-se às necessidades da vida humana. Uma vez obtido este equilíbrio, salvar-se-á a dignidade do trabalho, e ele voltará a ocupar na sociedade o lugar de justa nobreza que perdeu. B) A Liberdade do operário Filho de Deus, o operário é uma pessoa a quem o Pai que está nos céus dotou de vontade individual e, portanto, de liberdade. A pessoa humana é inalienável. O homem senhor da sua pessoa, é senhor do seu trabalho. Tem o dever de trabalhar, mas pertence-lhe o direito de escolher o trabalho, segundo as suas aptidões e as maiores possibilidades de rendimento social. Só em face duma calamidade universal poderá ser constrangido a trabalhos de necessidade pública. Senhor do seu trabalho, o homem tem o direito de lhe fixar livremente as condições, contanto que não atentem contra o bem comum. As exigências da vida moderna tornaram, porém, o homem isolado incapaz de regular por si só as condições do trabalho. Viu-se constrangido pela necessidade a Procurar apoio em associações profissionais que estabeleçam, em sua vez, as condições do seu trabalho. Estas associações permanecem no entanto livres, tanto na sua constituição - desde que se proponham fins honestos (Rerum Novarum e Quad. Anno) - como na escolha dos seus estatutos. A elas pertence, em nome da Pessoa humana que representa, discutir e aceitar livremente as condições do trabalho. A situação em que se encontra o trabalhador perante os doadores de trabalho raras vezes se concilia com os direitos inalienáveis do homem. Esta submissão, diminuindo a personalidade, rebaixou-o quase à simples condição de coisa. E ele, que deveria ter orgulho da sua profissão, que deveria conhecer e amar a máquina,

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companheira diária do seu labor, regozijar-se do seu trabalho e ter consciência do seu valor social, sentindo-se humilhado e submetido, começou a odiar a fábrica e o patrão, e a ver no trabalho uma degradação, de que era preciso libertar-se. Mais uma vez, os planos da Providência sobre o trabalho - meio ordinário de santificação - foram frustrados. Qualquer ordem económica só poderá chamar-se cristã quando conceda ao homem o uso pleno das faculdades com que Deus o dotou. Enquanto não conseguirmos dar-lhe a consciência de que é um homem nunca poderemos aspirar a que se sinta cristão. C) A independência do operário Produtor do bem económico, o trabalho é-o também de independência. Mas a independência moral e social não podem subsistir sem a independência económica. O trabalho deve garantir ao trabalhador esta condição essencial do desenvolvimento da personalidade. O que não tem independência económica não pode, com efeito, cuidar do seu próprio aperfeiçoamento nem da vida e educação regular das novas gerações. O operário apenas com o salário de cada dia, sujeito a todas as contingências de doença, acidentes, morte prematura, desemprego, nunca tem certo o dia de amanhã, nunca repousa o espírito para o poder cultivar ou desenvolver. Se hoje tem pão e luz em sua casa, o mais pequeno incidente da vida pode privá-lo deste bem a todo o momento. E sem o ter garantido, não poderá sentir-se superior aos animais, que, quase como ele, outra coisa não tem senão o alimento que todos os dias o dono lhes dá. A dignidade humana e a nobreza do trabalho reclamam que este conceda ao homem a independência necessária para que Possa, em toda a tranquilidade de espírito, desenvolver as suas faculdades, e, segundo a expressão de S. Tomás, Praticar a virtude. Já Leão XIII o reclamava, em 1891: «O operário que receber um salário suficiente, para ocorrer com desafogo às suas necessidades e às de sua família, se for avisado seguirá o conselho que Parece dar-lhe a própria natureza: aplicar-se a ser parcimonioso e obrar de forma que, com prudentes economias, vá juntando um pequeno pecúlio que lhe permita chegar um dia a adquirir um pequeno património... Importa que as leis favoreçam o espírito de propriedade, o reanimem e desenvolvam, tanto quanto possível entre as massas populares». E também Pio XI tinha já sido bastante explícito ao afirmar: «É necessário empregar energicamente todos os esforços, para que, ao menos de futuro, as riquezas granjeadas se acumulem em justa proporção nas mãos dos ricos e, com suficiente largueza se distribuam pelos operários... para que, vivendo com parcimónia, aumentem os seus haveres, aumentados e bem administrados provejam aos encargos da família; e, libertos assim de uma condição precária e incerta qual é a dos proletários, não só possam fazer frente a todas as eventualidades durante a vida, mas deixem ainda por morte alguma coisa aos que lhe sobrevivem». Muito mais incisivo foi, porém, Pio XII na recente mensagem do Natal: «A dignidade da pessoa humana exige normalmente, como fundamento natural para viver, o direito ao uso dos bens da terra, a que corresponde a obrigação fundamental de outorgar a propriedade particular, se for possível, a todos». (Lumen, Março de 1943, p. 136). E, depois de repetir com particular insistência, que a dignidade da

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pessoa humana exige «...o direito ao uso dos bens da terra...», «o direito a manter e desenvolver a vida corporal, intelectual e moral...», «o direito ao uso dos bens materiais consciente dos seus deveres e limitações sociais...», «o direito ao trabalho...»», «a um salário suficiente para as necessidades do trabalhador e da sua família, à conservação e aperfeiçoamento de uma obra social que torne possível uma segura, ainda que modesta propriedade particular para todas as classes do povo», Sua Santidade, com vigorosa energia, proclama que é necessário «impedir que o operário, que é ou será pai de família, se veja condenado a uma dependência ou escravidão económica inconciliável com os seus direitos de pessoa». A sociologia católica terá portanto de travar rija batalha pela libertação do operário da escravidão económica. A independência é com efeito condição indispensável duma vida cristã plenamente vivida conforma os desígnios da Providência. Enquanto o operário se vir acorrentado à condição de proletário e estiver na dependência do penhorista, do merceeiro, do usurário, e da miséria económica, não terá condições de poder harmonizar a sua vida com as exigências da sua filiação divina. Nem lar, nem luz, nem pão suficientes em sua casa, não foi por certo este o modelo deixado ao mundo pela humilde oficina de carpinteiro do divino operário de Nazaré. _______ Semanas Sociais Portuguesas: Segundo Curso - Coimbra 1943: «Bases Cristãs duma ordem nova». 2.ª parte do trabalho apresentado por A. Varzim neste Curso, trabalho que dividiu em três partes: 1.ª A Voz do Evangelho e 3.º Esboço duma política social cristã.

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Jornal «O Trabalhador», n.º 1, de 1-V-1934

COM SANGUE OU SEM SANGUE Há várias maneiras de falar a quem é injustamente tratado. Se se excita o descontentamento, chegamos à revolta. Se se reprime o desabafo, provocamos o ódio que leva também à mesma revolta. O comunismo e o socialismo julgaram que era preciso excitar o descontentamento dos operários, para conseguirem aquilo a que eles têm incontestável direito. O liberalismo supôs que se devia reprimir o brado de indignação dos operários, como se fosse injusta a sua voz. O resultado destas duas tácticas foi o derramamento do sangue humano.

*** Para obrigar a sociedade a dar aos operários aquilo a que eles aspiram com tanta justiça, não é preciso sacrificar vidas humanas. E quantas e quantas têm sido sacrificadas com heroísmo inutilmente! Para quê? Admiro a abnegação, o espírito de sacrifício e o heroísmo daqueles que se deixam matar na convicção de que morrem pela felicidade dos seus camaradas de trabalho e de infortúnio. São heróis!

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Mas detesto a atitude dos chefes que, depois de terem provocado a revolução, fogem covardemente enquanto o sangue dos operários corre em vão. São bandidos! Não!.. Nós não vos pedimos, operários, o vosso sangue. Não vos pedimos a viuvez das vossas mulheres, nem a orfandade dos vossos filhos. Para conseguirmos uma mais justa repartição da riqueza nacional, para conquistarmos para todos os operários portugueses o justo aumento do conforto doméstico, do bem estar social e da riqueza pessoal, só vos pedimos um coisa, a vossa boa vontade. Boa vontade para nos organizarmos ordenadamente, para constituirmos uma força respeitada, para reclamarmos pacificamente, mas energicamente, o reconhecimento dos nossos direitos. O nosso ideal? Que não haja mais proletários na sociedade. Que não haja famílias sem pão, que não haja crianças sem ensino, que não haja casas sem conforto, que não haja um operário na miséria, que não haja quem não possa, pelo seu trabalho, viver confortadamente. O nosso ideal? Fazer da classe operária uma classe forte, instruída e respeitada. Consegui-lo-emos sem sangue? Sim. Consegui-lo-emos sem sangue se todos os operários vierem connosco. Se todos os operários quiserem secundar os nossos esforços. Não descansaremos, enquanto não tivermos conseguido para todos justiça, pão justiça e felicidade. Cumpriremos a nossa palavra. _______ Abel Varzim, em «O TRABALHADOR» n.º 1 – 1.05.1934

≡≡≡ ≡≡≡

A FAMÍLIA, A PROPRIEDADE E O COMUNISMO (6)

A segunda fortaleza mais atacada pelo comunismo é a Família. Também temos de a fortificar decididamente, porque também não será com a Família quase em ruínas que se fará frente a ataques tão cientificamente organizados contra ela. E tanto mais urgente se nos afigura a grande empresa de restauração da Família, quanto mais abalada o comunismo a encontrou. Com efeito, o liberalismo quebrou-lhe a resistência minando-a nas suas próprias bases. Não só a desconheceu na sua legislação e na sua orgânica social, como lhe minou os alicerces quando arrancou a mulher e a criança para as fábricas, quando fomentou a sua proletarização, quando a instalou nos bairros de latas, partes de casa e águas-furtadas, quando abriu creches, jardins de infância, refeitórios económicos, maternidades e asilos, ou quando entregou a família numerosa à miséria e ao escárnio.

6 Do livro «Comunismo», de A. Varzim - SET. 1949, págs. 136 a 144.

Nota: o primeiro baluarte contra o comunismo considera-o o Autor a Religião, assunto que trata no mesmo capítulo de pág. 125 a 136.

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Não será difícil ao comunismo, perante tanta ruína, acabar o seu aniquilamento pela estatização da juventude, pela escola única, pela proclamação de que a criança pertence ao Estado e de que a maternidade é uma função social. Obra gigantesca a da restauração da Família que se não fará com palavras, nem com discursos, nem com propaganda, mas com uma acção simultaneamente religiosa e social. Arrancar a Família das mãos do Adversário, só poderá conseguir-se por uma intervenção enérgica de todos os cristãos em todos os campos (jurídico, económico e social) em que se joga o seu destino. Mas... como? Para não falar nas clarividentes encíclicas de Leão XIII e Pio XI, sirvam-nos de norma, ao menos, as instruções de Pio XII, felizmente nosso chefe. O Santo Padre não vê, com efeito, salvação possível para a família enquanto se não conseguir para ela: a) «espaço, luz e desafogo, para que possa atender à missão de perpetuar a vida e educar os filhos»- Com efeito, não pode haver família, onde não houver um lar; e não haverá lar, onde não houver uma casa independente, espaçosa e arejada. b) «unidade económica, espiritual, moral e jurídica». A família é a base e a célula do organismo social: se não constituir uma unidade económica (salário familiar), uma unidade espiritual e moral de que tenha conta a própria organização paroquial e a Acção Católica, e uma unidade jurídica com direitos próprios e bem definidos, não pode ser... uma célula. c) «um lugar em que a vida familiar, sã material e moralmente, logre manifestar-se em todo o seu vigor e valor.» d) «uma ordenação industrial que faça com que «o lugar do trabalho e o da habitação não estejam tão separados que façam do chefe de família e educador dos filhos quase um estranho em sua própria casa.», e) um vínculo de confiança e de mútuo auxílio entre a família e as escolas(

7).

Como poderão os cristãos operar esta ofensiva de resgate da Família, se não penetrarem nos campos de batalha onde todos estes problemas se decidem: a administração, a vida económica, a actividade social, a indústria, o ensino, etc.? Renunciar à intervenção dos católicos como tais na vida económica e social, não será desistir da batalha e entregar a Família às mãos dos inimigos?(

8)

7 Da Mensagem de Pio XII, no Natal de 1942.

8 «Temos diante dos olhos - evidência dolorosa! - os perigos que, disso temos Nós medo, poderão vir, para esta

geração e para as gerações futuras, do desconhecimento, da diminuição e da abolição progressiva dos direitos próprios da família. Por isso levantamo-Nos, como acérrimo defensor destes direitos, com plena consciência do dever que Nos impõe o Nosso ministério apostólico. As dificuldades da nossa época, tanto exteriores como interiores, materiais ou espirituais, os múltiplos erros com as suas inumeráveis repercussões, ninguém os experimenta tão dolorosamente como a nobre e pequenina célula familiar. Verdadeira coragem e, na sua simplicidade, heroísmo digno de admiração e respeito, são muitas vezes necessários para suportar as durezas da vida, o peso cotidiano das misérias, a indigência progressiva, e as restrições em medida nunca dantes experimentada, e de que não se vê nem a razão nem a real necessidade. Os que têm cura de almas, os que observam no Íntimo os corações, conhecem as lágrimas escondidas das mães, a dor resignada de tantos pais, as amarguras sem conta de que não falam as estatísticas nem podem falar, vêem ansiosamente crescer esta montanha de sofrimentos, e sabem como as forças de subversão e destruição estão em marcha, prontas para servir-se delas, a favor dos seus tenebrosos propósitos. «Nenhum homem de boa vontade e com olhos para ver poderá recusar à autoridade do Estado, nas condições extraordinárias em que se encontra o mundo, direito mais amplo que o ordinário e proporcionado com as circunstâncias, para acudir às necessidades do povo. Mas a ordem moral estabelecida por Deus exige que, mesmo

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O terceiro baluarte contra o qual o comunismo se enfurece é a Propriedade. Destrui-la é destruir o homem. O comunismo sabe-o perfeitamente. Mas também aqui, como na Família, encontrou o marxismo o campo aberto. Com efeito que fez o liberalismo económico senão arrancar a propriedade ao grande número para a concentrar nas mãos da minoria? Que deseja, por sua vez o marxismo senão completar a obra, arrancando a propriedade a essa minoria? O homem sem propriedade não tem onde assente a sua independência. Sem independência, não é livre. Enfraquecer a liberdade humana, destrui-la, esmagá-la aos pés para que possa ser em toda a sua extensão, o verdadeiro «Príncipe deste mundo», eis o grande empenho do Adversário. Toda a Proletarização é diabólica. Mas a Propriedade não se defenderá eficazmente teimando em ver no seu actual regime a obra da Providência divina(

9). «Deus não assinou uma parte (de propriedade)

a nenhum homem em particular, mas quis deixar a limitação das propriedades à indústria humana e às instituições dos povos»(

10).

Aceite o princípio de que «o regime de propriedade não é mais imutável do que qualquer outra instituição da vida social»(

11), se queremos defender esta

importantíssima fortaleza, teremos de avançar para o campo da vida social onde a questão se decide, e aí modificar o actual regime de propriedade, de forma a que ela chegue a todas as famílias. São estas, aliás, as normas precisas do actual Pontífice: «A dignidade da pessoa humana exige normalmente, como fundamento natural para viver, o direito ao uso dos bens da terra, a que corresponde a obrigação fundamental de outorgar a propriedade particular, se for possível, a todos. As normas jurídicas positivas que regulam a propriedade particular podem mudar e conceder uso mais ou menos ilimitado; mas se querem contribuir para a pacificação da comunidade, deverão impedir que o operário que é ou será chefe de família, se veja condenado a uma dependência ou escravidão económica, inconciliável com os seus direitos de pessoa»(12). Aqui, como em tudo o mais, limitarem-se os católicos a uma atitude de passividade social e de discursos, é imitar o gesto do velho e pacífico Chamberlain que mandava «bombardear» o Ruhr com milhões de panfletos. A batalha está travada, e é séria de mais para a descurar. Compreenderam-na em toda a sua profunda gravidade os industriais católicos da Europa que têm procurado reformar as estruturas das empresas para dar aos seus colaboradores a consciência de serem homens. Em 8 e 9 de Maio do corrente ano, reuniram-se em Paris os representantes de mais de 2000 empresas que já tinham feito experiências nos diferentes países. Presidiu ao Congresso, M. Al. Dubois, que, no discurso inaugural acentuou: «O mundo do trabalho está fendido porque o progresso

em tais circunstâncias, se sujeite a exame ainda mais sério e ponderado a liceidade das medidas impostas e a sua real necessidade, segundo as regras do bem comum.» (Pio XII, Enc. Summi Pontificatus, in Problemas da Guerra e da Paz, Lisboa, Bertrand, pág. 90 e seg.). 9 «Queremos abster-Nos de classificar a conduta prática de certos defensores do direito de propriedade; pela

maneira como interpretam o seu respeito e o seu uso, conseguem, melhor do que os adversários, abalar esta instituição natural indispensável à vida do homem e da família.» (Pio XII, discurso de 7 de Março de 1948, aos participantes do Congresso das trocas internacionais, organizado em Roma, pela Confederação Geral Italiana do Comércio). 10 Leão XIII Enc. Rerum Novarum, in A Igreja e a Questão Social, obr. cit. pág. 33. 11 Pio XI, Enc. Quadrag. Anno, id, id., pág. 149. 12 Pio XIII, Mensagem do Natal de 1942, in Problemas da Guerra e da Paz, obr. cit., pág. 346

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impõe a divisão do trabalho que separa o homem da sua obra: já não tem dela a paternidade; já não é criador – é um assalariado! Esta obra tornou-se colectiva e é preciso restituir aos trabalhadores a propriedade não só pessoal mas também colectiva, sob formas novas que temos de instituir progressivamente. É, uma revolução a fazer no modo de repartição das responsabilidades e dos frutos do trabalho»(

13).

Os católicos não hão-de temer as dificuldades. Não se põem hoje problemas difíceis em campo nenhum para os homens de boa vontade: «A pergunta de Caim: «serei eu porventura guardião de meu irmão?», a moral e a religião respondiam outrora: «Deves sê-lo». Hoje, graças à técnica, é possível responder: «Podes sê-lo». E também é verdadeiro acrescentar: «O teu destino será o seu, Porque se deixas marchar os acontecimentos sem os prever, e os conduzir, suprimirás a vida humana, em lugar de a melhorar. Faze a tua escolha»(

14).

Perante o problema da Propriedade, como perante os outros, é preciso fazer a escolha: ou lutar por ela contra o comunismo, ou deixá-la arruinar, abrindo as portas ao comunismo. «Pois que somos homens cristãos, devemos trabalhar com todas as forças por esta ordem social cristã, única capaz de salvar a Sociedade em tão grande perigo actualmente. Senão será o comunismo. «Mas cuidado! Não basta dizer-se anti-comunista. É muito fácil mas completamente inútil, tanto mais que muitos daqueles que se dizem anti-comunistas não o são senão para garantir melhor, posições adquiridas. Escutemos Mgr. de Provenchères, arcebispo de Aix: «Os Cristãos devem precaver-se, não vá a sua atitude anti-comunista aparecer desastrosamente como uma oposição à elevação da classe operária, e ao seu desejo de libertação e de justiça». «Que imensa responsabilidade têm diante de si os cristãos!»(

15).

O comunismo chama-nos a combate. Sabemos a sua táctica. Conhecemos qual deve ser a nossa Que nos espera? –

Jornal «VIDA e ALEGRIA» (16)

- Está na moda falar-se em de proletarização. O termo é usado por todas as correntes. Crê V. Rev.ª que a classe operária pode desproletarizar-se fora da Igreja? - Só a Igreja, sim senhor. O comunismo, esse não, porque no dia em que pensasse na desproletarização, assinava a sua sentença de morte. Não há comunismo senão nos países onde há fome e proletarização. Portanto, o comunismo não põe sequer o problema. E não sendo ele, quem o porá? Só a Igreja evidentemente. Toda a fome e sede de justiça que por ai vai, foi a Igreja quem a cavou na alma humana. A desproletarização é obra de fôlego. Só a Igreja a poderá levar a cabo pela insistência da sua doutrinação e pela persistência de acção dos organismos católicos, tanto patronais

13 Bulletin Social, des Industriels, Bruxelas, Junho de 1948, pág. 279. 14 Raoul Dautry, Director honorário dos caminhos de ferro do Estado francês, in Bulletln Social des Industriels, Maio

de 1948, pág. 205. 15 Bulletin des Industriels, Maio de 1948, pág. 240. 16

NdR: Jornal «Vida e Alegria», órgão da J.O.C.F.

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como operários. Vinte séculos de História demonstraram já que ela era capaz destas tarefas. Será mais uma vez capaz desta, com o tempo e com a Fé. ____ VIDA E ALEGRIA, n.º 108/109-Março/Abril de 1955, de uma entrevista de Silva Costa com Abel Varzim.

ACÇÃO SOCIAL

Urge criar aqueles organismos patronais que hão-de fazer compreender aos patrões os seus deveres cristãos

Pensa-se ordinariamente, que a acção social na Acção Católica é missão exclusiva dos Organismos operários. E não faltam elementos não operários que, desejando fazer acção social, anseiam por colaborar com os trabalhadores, oferecem-lhes os seus serviços e até se propõem para seus dirigentes e mentores. É boa a intenção, mas errada a visão. A intenção é descer ao meio social, que pretendem apostolizar, exercer aí a fraternidade, fazendo compreender que não há luta de classes na Acção Católica. E ainda ajudar a trazer para a Fé uns tantos operários, julgando que assim se trabalhará pela paz social. Mas é preciso compreender que, se a doutrina da luta de classe começou pelos de baixo, a prática começou pelos de cima. Di-lo, bem claro, toda a economia da Quadrogesimo Anno. Por outras palavras mais claras ainda: Os de cima começaram a ofensiva pela exploração dos de baixo. Os debaixo tomaram as armas para se defender dos de cima e aniquilá-los, se possível fosse, como se faz a um agressor injusto. É esta a dolorosa realidade e é assim que a vêem, em todas as suas dramáticas consequências, as classes trabalhadoras. Para suprimir o conflito, o único e eficaz caminho será cessarem os de cima a ofensiva e proporem a paz. Só se poderão condenar os de baixo, se a não aceitarem. Posto o problema neste pé, que é o verdadeiro historicamente, concluímos que a acção social deve dirigir-se, com mais intensidade e energia, às classes dirigentes. O contrário será perder o tempo, porque os operários não aceitariam a nossa actuação junto deles. A experiência ensina-o, com superabundância, neste meio século de actividade social católica no mundo cristão, onde apenas se viram florescer as Organizações operárias católicas, que tomaram abertamente a ofensiva das reivindicações operárias contra os abusos das classes dirigentes. Todas as outras ou morreram ou vegetam. Os operários virão facilmente - porque eles preferem a paz social que aliás só redunda em seu benefício - quando virem que a nossa acção social é feita junto daqueles que os estão a tratar injustamente e não reconhecem neles, praticamente, a sua dignidade cristã de Filhos de Deus. Compreendendo a verdadeira posição do problema, Pio XI indicou na Quadragesimo Anno, o caminho a seguir: «os primeiros e imediatos apóstolos dos operários devem ser operários; os apóstolos dos industriais e comerciantes devem sair dentre eles». São, portanto, todos os organismos da Acção Católica que são chamados a fazer acção social e, sobretudo, os organismos destinados às classes dirigentes. Mas

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entenda-se que a acção social destes organismos deve ser feita no próprio meio. Porque temos andado às avessas é que nos vemos forçados, para não perder de todo o crédito nem a simpatia, a pregar a cada uma das classes os deveres da outra. Erro grave que, longe de aproximar a distância que as separa, a afasta mais ainda. O caminho é pregar os deveres a cada uma. Mas este caminho só dará resultado, se a actuação junto de uma e de outra for simultâneo. Urge, por isso, criar aqueles organismos patronais que hão-de fazer compreender aos patrões os seus deveres cristãos. Uma outra questão prévia importa pôr ainda. A melhor acção social, a mais perfeita, é a Caridade. Mas a caridade é o complemento e a perfeição da Justiça. Não pode falar-se em caridade onde não haja Justiça, porque aquela só pode assentar os seus alicerces sobre a cúpula desta. Para poder a Acção Católica realizar a Caridade - a sua missão principal - tem de esforçar-se primeiro por realizar a Justiça. É aos problemas da Justiça social que primeiro deve atender. ______ Artigo de A. Varzim em o LUTADOR CRISTÃO,(17

) Nov.º 1950 - N.º 22.

A MISÉRIA - RESERVA INDUSTRIAL (18)

Falando da situação do trabalhador industrial, dissemos, no nosso último artigo, até que ponto a economia o desumanizou. E fê-lo conscientemente. O homem, segundo a filosofia cristã, tem um fim próprio a atingir. Tudo quanto existe na natureza foi posto pelo Criador ao seu serviço. A própria organização social, política e económica não tem outra razão de ser senão a de o servir. Que fez, porém, a concepção racionalista do mundo? Criou o mito da riqueza e pôla como finalidade suprema das actividades humanas. Os tratados de economia, a ambição dos governantes, a preocupação dos produtores nada mais viam para além da riqueza. Fim último a atingir, tudo devia submeter-se à suas leis universais. E, de facto. tudo se submeteu: a religião que se corrompeu; o Estado que se abastardou: a vida social que se desintegrou; o direito que se viciou; a moral que se quis transformada; a família que se desagregou; o homem que se desumanizou. Posta com efeito a riqueza no cimo da escala dos valores, tudo o mais deveria alterar-se e corromper-se. Vejamos o fenómeno sob o ponto de vista do trabalho e da família. Se o objectivo superior a atingir era a riqueza, e se esta só poderia ser criada pelo trabalho, é evidente que o trabalhador deveria ser considerado um mero instrumento da produção da riqueza, isto é, um meio de produção, como a ferramenta ou a força motriz. O produtor (ou, como lhe chamam em economia, o empresário) para poder levar a efeito a sua tarefa «criadora» de riqueza, deveria poder dispor de meios de acção, à

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NdR: “LUTADOR CRISTÃO”, órgão da L.O.C., criado após a suspensão de «O TRABALHADOR» - Maria Inácia Rezola

– “A Igreja no Mundo Operário” – Gráfica de Coimbra - LOC/MTC – pag. 226 18

Artigo do Dr. Abel Varzim cortado pela censura, portanto inédito

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sua vontade. O trabalho deveria ser manejado, livremente, na medida das necessidades da produção. Para o conseguir, era preciso colocá-lo, portanto, à disposição do empresário. Criou-se, para o efeito, a fábrica, ou melhor, o centro industrial. Os homens deveriam fixar-se à volta da fábrica para serem utilizados ou dispensados segundo os interesses da produção da riqueza. A esta submissão degradante não se submeteriam os trabalhadores enquanto a isso não fossem obrigados pela força. Como a escravatura já não estava na moda, depressa se arrancou ao trabalhador a sua independência económica. Uma vez reduzidos à única propriedade da força do trabalho, quer dizer, uma vez proletarizados, sem outros meios de subsistência, além do seu trabalho, a força que os havia de compelir à nova espécie de escravatura funcionaria automaticamente: a fome. Compelidos pela necessidade, depois de despojados de tudo, não lhes restaria outro caminho senão o de ir ele próprio, submisso, procurar trabalho, colocar-se à disposição do empresário, fixar-se perto da fábrica, à espera de que as exigências da produção o chamassem a receber um salário em troca de trabalho. Assim se ergueram à volta das grandes cidades industriais, essas cinturas miseráveis, verdadeira reserva industrial posta ao serviço da riqueza e imolada aos seus caprichos. O empresário tinha aliás todo o interesse na existência dessas cidades de miséria. Davam-lhe, com efeito, a máxima elasticidade de movimentos, para poder recrutar, a bom preço e imediatamente, todo o trabalho necessário ao seu lucro, ou despedi-lo, com a mesma liberdade, sempre que se tornasse necessário ao bom «andamento» dos negócios. O capitalismo tem nestes antros de degradação humana o seu maior triunfo. Para que o operário se submeta, são absolutamente indispensáveis. Como especular com a necessidade de emprego e obter trabalho a baixo preço, sem a concorrência desta imensidade de trabalhadores esfomeados, sujos, desmoralizados e ignorantes? Sem essa reserva, digamos, melhor, sem esse stock de «mercadoria humana» que seria chamada ao mercado ou dele retirada, segundo os interesses dos empresários? Numa economia capitalista, a grande miséria nunca desaparecerá, precisamente porque não convém ao capitalismo que desapareça. No dia em que todo o operário tivesse trabalho e recuperasse a sua independência económica, nesse dia teria terminado o império capitalista. E é por isso que são acoimadas de ilusórias as aspirações sociais cristãs, que reclamam a enérgica supressão da miséria e a independência económica de todos os trabalhadores. No fundo, a batalha é bem nítida. Ao proclamar o direito ao trabalho e a reforma da Assistência no sentido duma actuação social que liberte da miséria, e não apenas no sentido «paternalista» que a mantém... assistida; ao reclamar Serviço Social e não apenas Assistência por mais social que se diga, não é apenas os direitos do homem que defendemos. É combate mortal que desencadeamos contra o capitalismo. Não admira que este resista e se obstine. Joga nisso a sua própria existência. Só é de lastimar que pessoas de mentalidade anti-capitalista não tenham podido ver a grandeza da batalha e se deixem facilmente conduzir pelos conceitos e costumes capitalistas, prolongando a vida a um regime social e económico há muito condenado pelos próprios textos constitucionais portugueses e pela consciência cristã. Mas o assunto merece mais largo estudo. Continuaremos.

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DUAS CARTAS: CONTRADITÓRIAS? I

Exm.º e Rev.mo Senhor D. Manuel É 1,20 da madrugada e não consigo ter sono. Desde a nossa conversa de sábado tenho tido uma tamanha amargura comigo, que sinto a necessidade de desabafar. Peço a V. Ex.ª, me desculpe e me deixe falar, não vendo nas minhas palavras mais que o desabafo de uma alma de Padre que, tendo-se debruçado sobre o Evangelho, os Santos Padres e as Encíclicas Pontifícias, doou a Deus a saúde, as honras, as dignidades humanas, os louvores, o bem-estar material, a própria vida para fazer alguma coisa pela almas dos operários. Caiem-me as lágrimas dos olhos ao verificar que tudo isso foi em vão, que ninguém me entende nem pretende entender-me, que se me desvirtuam as palavras e as intenções, e que quando chamo a atenção para o perigo em que estamos por não termos organizações adaptadas às exigências terríveis da actualidade – há anos que o venho fazendo – se me tomam essas palavras como uma confissão de falência de quanto eu tenho feito e sofrido pela classe operária! Apesar de todas as minhas misérias e incompetências e infidelidades à graça de Deus, eu posso afirmar a V. Ex.ª Rev.ma que por mim não temo. Eu sei que ainda posso, se me deixarem, juntar grande parte da classe operária à volta do meu nome. Eu sei que grande parte dos operários, em todo o país, me estima e está pronta a vir comigo para onde eu a chamar. Sei-o, porque tenho milhares de cartas, de telegramas, de conversas a afirmar-mo. Sei-o porque quase todos os dias recebo a prova disso. Não é a falência da minha acção que eu confesso. Ando triste e chamo a atenção, porque tudo isto é à volta do meu nome. Se eu morrer, a Igreja em Portugal não poderá contar com outro padre capaz de impedir que se dê um dia a catástrofe. Estou a dar o meu ordenado todo da Acção Católica para que o Orlando possa ser Padre, na esperança de ele me poder substituir um dia no meio dos operários. Tenho sofrido muito. Injustiças e ingratidões de pessoas a quem tenho valido. Deslealdades revoltantes de elementos a quem os meus superiores apoiam – Deus o mostrará um dia se com razão ou sem ela –, insultos, calúnias, incompreensões, reprimendas públicas e particulares; tenho sido acusado de ambicioso, de despeitado, de idealista, de louco, de comunista, de parvo, de pateta, de tudo. O próprio bem que tenho feito me tem sido muitas vezes atribuído a pobreza de espírito e a ser “anjinho”. Todos me iludem, me exploram, me enganam … Tudo tenho sofrido em silêncio por amor da classe operária e da Igreja. Há muito teria desertado se não fosse cobardia e comodismo traiçoeiro. Sei que sou dos primeiros a morrer se um dia houver chacina, mas prefiro ficar, enquanto os meus superiores me não mandarem tratar de outro ofício. Se falo, sou acusado de dizer coisas de mais. Se me calo, acusam-me de não falar. Se escrevo e faço projectos, não me respondem. Se não os faço, é porque perco o meu tempo em inutilidades. Muitas vezes tenho pensado que a culpa é só minha, que sou de facto um doido. Peço a Deus que me ilumine, que me leve deste mundo, que faça de mim o que quiser, mas que me dê paz, que me dê uma certeza. Tenho chorado muitas lágrimas, senhor Bispo! Mas sinto dentro de mim qualquer coisa que me diz que não deserte. Eu não teria forças se não fossem as

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orações de tantas almas boas que rezem por mim. Faço 45 anos amanhã, 3.ª feira, não queria que se falasse nisso, mas eu sei que todos os locistas rezarão por mim, que muitas secções mandarão celebrar o santo Sacrifício a pedir a minha saúde e a minha coragem. E eu sinto o dever de ficar. A suspensão de “O Trabalhador” tem arrancado lágrimas a muitos operários. Para mim, foi um choque tremendo. Tem havido muita alegria em certos arraiais. Não é por amor de Deus nem das almas dos operários que se alegram. E eu sinto-me só, sem dinheiro, sem amparo, sem estímulo! No momento em que mais era preciso que a voz da Igreja se não calasse, cai uma bandeira que eu não sei se já terei forças de voltar a erguer. E caiu, em grande parte, por uma deslealdade sem nome que se há-de pagar muito caro. Deixei que o jornal parasse a sua publicação, porque ele não era meu, e senti bem claramente que isso dava alegria a muita gente. Que se alegrem que o Senhor não dorme. Eu continuarei a sofrer, não por mim que, pessoalmente, nada disso me interessa, mas por tudo o que significa o que se faz de boa vontade ofereço a Deus todas as humilhações que tenho sofrido, para que tudo seja para maior glória de Deus e para a salvação da classe operária. Quando, no primeiro ano em que estive na Assembleia Nacional, tive a triste ideia de, um dia, anunciar um “aviso prévio” sobre os Sindicatos Nacionais, fui avisado, no dia seguinte pelo Costa Brochado de que nessa mesma noite tinha sido decidido aniquilar-me, porque se não poderia consentir que um padre tratasse destes assuntos. Até hoje não perguntei ao Costa Brochado os nomes dos que assistiram a essa apressada reunião. Posso contudo dizer quem foram, porque o senti dezenas de vezes. Nas suas conversas, mimoseavam-me com os mais “lindos” nomes, esses católicos que se encontram ainda em altos postos do Estado Novo, a malsinar as minhas intenções e a fazer propaganda, junto de todos, inclusivamente junto de V. Ex.ª Rev.ma contra mim. É por amor à Verdade, a Cristo e à Igreja? Os nomes que me chamara e chamam a mim, chamarão a V. Ex.ª Rev.ma se um dia V. Ex.ª falar em defesa dos operários. Eles não querem. Muitos desses nomes o[s] têm chamado ao Senhor Cardeal, por ter “ousado” condenar o Alfredo Pimenta! Infelizmente, lidei com essa gente. Conheço-os. E também conheço outros que talvez com melhor intenção, vêm dizer que eu disse isto ou aquilo. Infelizmente, tudo me chega aos ouvidos, e mais dia menos dia, sem eu querer, lá fico sabendo quem foi que disse. Então V. Ex.ª Rev.ma julga-me capaz de andar por aí fora, em Beja ou fora de Beja, a dizer uma palavra que seja, contra os Estatutos ou bases da A.C.? Eu, que tanto a defendi quando tantos outros a atacaram e hoje se armam em seus defensores. Creia, senhor D. Manuel, que esta de Beja, foi uma das que mais me fizeram sofrer. Eu que tantas humilhações tenho sofrido em silêncio, só para não me desviar um ápice que seja das instruções que recebo quando mas dão! Desde o princípio da A.C. que eu venho dizendo, mas só entre assistentes e à Junta Central, que tenho por errado caminho dividir a Família. Várias vezes o disse a V. Ex.ª Rev.ma, muito tempo antes de sequer pensar em ir a França. E sempre que falo em Família, esclareço sempre o meu pensamento. A acção deve ser feita na Família. A salvação só poderá vir com eficácia na Família. Mas salvaguardei sempre a organização da A.C. Porque é que V. Ex.ª Rev.ma se não informa junto do Senhor Bispo

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de Beja? Ele sabe muito bem o que eu disse e o que tenho dito. Ele assiste a todas as minhas palestras. V. Ex.ª Rev.ma tem a impressão de que eu sou um indisciplinado. Já o disse em público e tem-mo feito sentir muitas vezes em particular. Se discuto, se apresento a minha opinião, é porque julgo ser meu dever de lealdade fazê-lo. Não vou dizer uma coisa a V. Ex.ª Rev.ma e pensar o contrário. Dê-me V. Ex.ª uma ordem e depois julgue se sou indisciplinado. Indisciplina e amor à Igreja não sei como possam conciliar-se. Eu não tenho inveja de ninguém, não acuso ninguém, não ando a encher os ouvidos de ninguém sobre este ou sobre aquele. O que tenho a dizer, digo-o à própria pessoa. Pois comigo não se procede assim. De caras, até hoje, poucos me têm dito isto ou aquilo. E esses não são os que vão dizer a V. Ex.ª que eu fiz ou que eu disse. Olhe, Senhor D. Manuel, que eu já sofri a humilhação de ter colegas na A.C. que têm ido dizer mal de mim, depreciar a minha acção, a leigos inscritos na A.C.. Tem-se procurado tirar até da minha influência (!) elementos da A.C.. E contudo a esses sacerdotes ainda respeito talvez mais. Alguns sei que já estão arrependidos, graças a Deus. Não por mim, mas por eles e pela causa. Mas só agora reparo que não há direito de vir maçar V. Ex.ª Rev.ma com uma carta deste tamanho. Peço-lhe perdão. As horas de desânimo que me têm assaltado são, porém, tantas que eu me alonguei, para vencer mais esta. Eu sei que V. Ex.ª Rev.ma tem uma péssima ideia da acção que eu ando a desenvolver na L.O.C.. Digo com sinceridade que tenho amor à L.O.C., mas não tanto que me magoe em ser transferido de sector. Não peço para sair nem para ficar. Quero servir onde a minha acção possa ser útil. Não me vou embora, porque tenho tantos compromissos que não sei como me livrar deles. Em todo o caso, logo que me seja possível libertar, creia, Senhor D. Manuel, que lho direi imediatamente, a fim de decidir o que mais convém à causa da Igreja. Não fujo, mas não peço nada. Onde ficar, aí será o meu lugar. Eu só não quero ir para o inferno. Do resto nada me interessa. Também não tenho amarras nenhumas ao Secretariado. Na hora que julgarem conveniente, entrego com alegria as chaves daqueles míseros gabinetes. Pode ser hoje mesmo, se o quiserem. E assim como trabalho com a L.O.C., assim trabalho com a L.I.C. ou com seja o que for. E se me quiseram dar uma paróquia também a aceito alegremente. Sei que deixarei uma L.O.C. disciplinada, elementos formados e prontos para todos os sacrifícios. Eles não fugirão no momento do perigo. São capazes de lutar, de sofrer e de dar a vida pela Igreja. Para eles peço, porque o merecem, mais justiça do que aquela que lhes tem sido feita, talvez por minha culpa, e porque lhes tenho ensinado a humildade. E agora peço a V. Ex.ª Rev.ma que acredite na muita dedicação e amizade que esta confidência revela para com V. Ex.ª Rev.ma*. Se não fosse amigo não desabafaria nos termos em que o fiz. Peço, por isso, licença para me subscrever com o mais elevado respeito.

De V. Ex.ª Rev.ma Muito grato

a) Pe. Abel Varzim 28-4/947

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Cristelo, Barcelos, 25/9/958

Ex.mo e Rev.mo Senhor D. António Ferreira Gomes,

Venerando Bispo do Porto

Mão amiga enviou-me cópia da carta de V. Ex.ª Rev.ma a Sua Ex.ª o Senhor Presidente do Conselho.

Depois de a ler, resolvi manifestar a V. Ex.ª Rev.ma a minha alegria por tão “cristão atrevimento”, acrescentando, porém, que em minha opinião foi tempo perdido tê-la enviado.

Mudei agora de pensar, depois da leitura do panfleto que escreveu, a despropósito, o Sr. Dr. Manuel Anselmo.

Realmente, valeu a pena! E valeu-a sobretudo, para trazer um pouco de mais à luz do dia até que ponto

urge pregar e ensinar o Evangelho aos estômagos cheios, uma vez que é anti-nacional e subversivo (além de ser inútil) pregá-lo a estômagos vazios.

Eu sei, Senhor Bispo, por dolorosa experiência, o que é a dor de ver católicos com responsabilidades acusar Padres e Bispos de políticas subversivas, anti-nacionais e até infiéis à Fé Cristã, só pelo facto de ensinarem, sem reticências, o Evangelho. Dor, tanto mais profunda por nascer da angustiosa verificação de nos encontrarmos hoje perante uma religião muito igual àquele que, para defender a Honra de Deus e o prestígio de César, pediu a morte de Jesus como blasfemo por um lado (Mt 26, 65 – Mc 14, 64 – Lc 24, 70), como revolucionário e subversivo (Lc 23, 14), malfeitor (Jo 23, 30) e inimigo de César (Jo 14, 12) por outro! E o paralelo é tanto mais inquietante, quanto mais parecidos são com a atitude de Caifás, a rasgar os seus vestidos, as lágrimas que choram sobre o nosso ”desvio” e, com o Zelo em defender o Imperador Romano, no tribunal de Pilatos, os gritos de defesa de quem de semelhantes advogados não deveria precisar.

Dor não por nós, pois nos contenta e recompensa a palavra de Jesus! “O discípulo não é mais do que o Mestre e o criado não mais do que o patrão. Basta ao discípulo ser tratado como o seu Mestre e o criado não mais do que o patrão; se ao Chefe de Família chamaram Belzebut, quanto mais não o farão aos da sua casa!” (Mt 10. 24-25).

Dor, por eles e pelas futuras gerações. Lembro-me de, há uns dez anos, ter recebido uma carta de um dos então

responsáveis máximos da União Nacional, que gentilmente me advertia do perigo que a igreja corria se continuássemos a pôr objecções doutrinárias à organização corporativa portuguesa. E dizia esse amigo – pois continuamos a sê-lo, apesar das nossas fundamentais divergências – que, com a nossa atitude, estávamos a fazer o jogo dos comunistas (eles poderão melhor dizer quem é que o está fazendo) e acrescentava: “mas quando as igrejas arderem e a carne dos Padres rechinar é que se verá quanta razão nos assiste na nossa doutrina e nossa actuação”. Permiti-me responder, devolvendo-lhe o argumento: “Mas quando as igrejas arderem e a carne dos padres rechinar, é que verá então como vocês todos podem limpar as mãos à parede pelo lindo futuro que estão preparando”.

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A mim parece-me, com efeito, que há razões de sobra para pôr em causa a bondade de uma árvore cujos frutos derradeiros, na própria e insistente confissão dos que a plantaram e tão raivosamente a cultivam, serão o incêndio, o assassínio, a perseguição à Igreja e a catástrofe final de uma Pátria gloriosa. A história ensina-nos que os frutos da Evangelização são outros. E, se para sermos bons patriotas, temos de anunciar um Evangelho que precisa da força das armas para não redundar em catástrofe nacional, então teremos que responder com S. Paulo, que pregamos o Evangelho de Jesus que “se alguém nos anunciasse um Evangelho diferente daquele que recebestes, esse seja repelido”. (Gál. 1, 6)

É por isso que cada vez mais me convenço da urgente necessidade de termos de ensinar o autêntico Evangelho, em primeiro lugar aos intelectuais que se julgam católicos, mas infelizmente não são. Não vê, com efeito, V. Ex.ª Rev.ma, como a pregação integral da doutrina secular da Igreja molesta e descontenta tantos que se julgam – quem sabe se sinceramente? – defensores da mesma Igreja e das suas liberdades? Tantos que se ufanam de defender as costas aos Padres e aos Bispos, tantos que, a todos os cantos proclamam que, sem eles, regressaríamos às perseguições religiosas?

Se estes não aguentam a pregação do Evangelho e nos acusam de insensatos e de imprudentes quando o fazemos, que conclusão tirar, senão a de que o desconhecem e, portanto, o não vivem?

Bem sei que esta linguagem – como a de V. Ex.ª Rev.ma – escandaliza aqueles que nos vêm dar, conselheiralmente, lições de evangelização e de prudência, do alto das suas altíssimas cátedras. Esses todos, se fossem realmente cristãos, haveriam de saber que “a Deus aprouve salvar os crentes pela loucura da Sua mensagem (1 Cor 1, 21) e que “a prudência dos prudentes Deus a reprovará” (Is 29, 14).

Desculpe-me Ex.ª Rev.ma esta larga carta que pretende ser mais uma voz que se ergue a pedir que não desfaleça no caminho da evangelização que tão apostolicamente encetou. É que, enquanto houver católicos a chamar loucos e imprudentes aos pregadores do Evangelho, necessidade dobrada haverá de mais e mais insistir neles. Com efeito, apesar de não ser mais do que um humilde Padre, tenho sempre presente o que S. Paulo escreveu a Timóteo: “Eu te esconjuro diante de Deus e de Nosso Senhor Jesus Cristo que deve julgar os vivos e os mortos; eu te abjuro em nome da Sua aparição e do Seu Reino; prega a Palavra, insiste oportuna e importunamente, corrige, ameaça, exorta, mas sempre com paciência e sem cessar de instruir, porque um tempo virá em que os homens não suportarão mais a sã doutrina da salvação… mas fecharão os ouvidos à verdade e se precipitarão sobre fábulas” (II Tim 4,2). E é triste que, para defender tais fábulas, sintam necessidade de ofender Bispos.

Peço licença para, respeitosa e devotadamente, me subscrever com a maior veneração.

De V. Ex.ª Rev.ma Servo no Senhor

Padre ABEL VARZIM

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TESTEMUNHOS

PADRE ABEL VARZIM E O COMUNISMO (19)

Glória do nosso presbitério é o Dr. Abel Varzim, pessoa discutida em vida, mas encarnação viva do Evangelho e venerada muito justamente, até por indiferentes ou adversários da Igreja, após a morte. Alguns viam nele - as lentes eram falsas - o comunista; na verdade, na sua alma ia de longada e em procissão a pura doutrina de Jesus. Escreveu um livro em 1949 com o título sobre capa vermelha, «Comunismo», e endereçou-o aos operários da LOC, de que era assistente eclesiástico. É de doutrina. É ainda actual. Vou transcrever dele, para vossa meditação algumas passagens. Lê-se no epílogo: «O comunismo é diabólica tentação. E não foi dado aos homens outro nome senão o de Jesus com que possam vencer Satanaz. O perigo, o grande perigo, não está em serem os Apóstolos perseguidos e esmagados. Milhares e milhares deles o têm sido e, precisamente por isso mesmo, não tem faltado o pão aos pequeninos. O desastre, o verdadeiro desastre, é o desfalecimento da fé porque então, já não pode haver trigo que impeça o homem de morrer à fome da negra fome do infinito. E este desastre é temeroso, em nossos dias, mais do que nunca certamente, porque a expansão do comunismo exigiria dos cristãos essa grande fé, que, infelizmente, fraqueja.» Estando no Evangelho vivido a força capaz de debelar o mal «comunista» - como todos parecem admitir - afirma ser causa de descrédito da religião a «inocência» com que se acusa de comunista a própria doutrina da Igreja, e de comunistas ou de simpatizantes do comunismo os defensores ou realizadores das encíclicas sociais. A religião aparece, com efeito, aos olhos do povo como inimiga de todo o progresso social. Por outro lado um tal juízo reflecte uma lastimável ignorância do comunismo, que não se confunde nem pode confundir com reivindicações sociais. No comunismo, o social é um mero acidente, ou melhor, um meio ocasional de propaganda. A essência do comunismo está noutro ponto. E é esse que urge divulgar, a ver se acabam de vez tantos mal entendidos, filhos da mais crassa ignorância dos grandes problemas modernos. No capítulo «Perspectiva» acrescenta: - O comunismo é o «contra-evangelho», a macaqueação demoníaca de todo o mistério divino e do corpo místico de Cristo. Enquanto muitos se preocupam apenas com a sua face económico-social, que não tem mais que um interesse meramente secundário, o Ímpio, a coberto da ignorância geral sobre o comunismo, vai realizando a sua obra, bem mais trágica, do aniquilamento de Deus na alma das multidões. É a táctica já conhecida do Adversário: «camuflar-se», iludir para triunfar. Desmascará-lo é vencê-lo. Contribuindo para esta obra absolutamente necessária de o desmascarar, talvez muitos cristãos compreendam finalmente que, a pretexto de combater o comunismo, estão afinal a fazer-lhe o jogo. Com efeito, o combate ao comunismo não é o combate

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Silva (Francisco Maria), Arcebispo de Braga, em Acima da Tormenta, artigo primeiro publicado em O Diário do Minho de 6/11/75.

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a um homem, a um império humano, a uma doutrina económico-social ou a uma filosofia política. Se o fosse, talvez pudesse ser derrotado por meios puramente humanos, isto é, com armas iguais às dele. Produto demoníaco, o comunismo só poderá ser vencido por forças superiores às das potências infernais. E essas só as possui Cristo. As armas que, podem vencer o comunismo - porque a batalha não é contra a carne e o sangue - são as indicadas por S. Paulo: a Verdade, a Justiça, o Zelo do Evangelho. A Fé, a Palavra de Deus e a Oração. Em termos claros, fala-nos o P. Abel Varzim, neste capítulo, da falsa visão do comunismo. «Para grande número de almas simples, é o comunismo um regime de vida social em que os bens deste mundo e o trabalho necessário para os produzir são repartidos igualmente. Ou então um regime de justiça vingativa em que se privam os gozadores da vida do seu excesso de privilégios, para os distribuir por aqueles que têm, até agora, suportado os rigores do trabalho e da miséria. Visto assim, o comunismo tem certo atractivo para os miseráveis e para os ambiciosos incompetentes. A campanha anti-comunista, baseada nesta maneira de entender o comunismo, torna-se, porém, ineficaz.» «Para outros o comunismo é o regime em que não existem mais nem propriedade nem família. Tudo é comum: propriedades, habitações, produtos industriais e agrícolas e outros bens da civilização.» «Também a partir daqui a propaganda é ineficaz, por falhar inteiramente o alvo. Para outros o comunismo é mais complexo: um regime ditatorial que deseja suprimir a distinção de classes para fundar um mundo novo proletário, rio, anti-capitalista, anti-religioso, que há-de proporcionar à humanidade o seu autêntico «paraíso» na terra, com todos os homens a gozarem de plenitude de bens materiais e espirituais que será possível obter pelo esforço comum, livre e atraente.» Ainda neste caso, os argumentos empregados contra são ineficazes. «Para um número mais reduzido de pessoas, o comunismo é um regime de aplicação da doutrina económico-social do marxismo: a luta de classes e a supressão da religião e do capitalismo. Os argumentos anti-comunistas aparecem, então, com ares mais importantes de sabor... científico. Mas continuam a ser ineficazes. Estas e outras maneiras de conceber o marxismo pecam todas da mesma ignorância da doutrina comunista. Quando muito, são apenas simples parcelas do comunismo, mas não o comunismo. Por isso mesmo, a campanha anti-comunista baseada em tal ignorância, é sempre inoperante, porque os autênticos comunistas riem-se dela e os que o não, são ficam desprovidos de argumentos para resistir ao bolchevismo. Há um argumento de propaganda anti-comunista, à primeira vista, mais eficaz: as transformações ideológicas e práticas por que tem passado o comunismo russo...» «No entanto, verificamos que, apesar do seu aspecto profundamente antipático para os nossos sentimentos e das profundas transformações por que tem passado, o comunismo, em lugar de se desacreditar, permanece sempre vigoroso e militante, abrindo caminho no meio dos povos, mesmo dos de maior tradição católica. Porquê?

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A razão é simples. O comunismo é uma filosofia que compreende uma concepção total do homem e do seu destino, e uma orientação também total da actividade humana. Marx e Lenine, antes de serem políticos ou chefes revolucionários, foram filósofos. Foi da sua doutrina filosófica que saíram toda a estrutura do Estado bolchevista, toda a norma de acção militante do partido e todas as regras da actividade comunista. Tudo foi minuciosamente estudado, inclusivamente as transformações a que assistimos hoje na Rússia. A falta de cultura filosófica é que tem impedido de compreender o comunismo, as suas reacções e a sua enorme vitalidade expansiva.» Porém, a filosofia de Marx e Lenine não são criações meramente deles. Não são mais do que o remate de toda a filosofia moderna que de Descartes, se lançara à tarefa de repelir Deus de entre os homens. A filosofia moderna opõe-se, com efeito, a Cristo e a Deus, num acto de orgulho e de sobranceira auto-suficiência. É uma atitude de completa e consciente recusa a tudo o que é divino. «O marxismo, como desabrochamento lógico de toda esta filosofia, não é por isso, nem mais nem menos, do que uma concepção do mundo, do homem e da vida, em posição, ponto por ponto, a todo o evangelho e a toda a tradição. Libertar o mundo de Deus, construir-se o homem como senhor absoluto dos seus próprios destinos, criar depois um homem novo dominador exclusivo dum mundo refeito à estatura do «super-homem», eis a tarefa do marxismo. Fruto maduro, da árvore racionalista, o marxismo aparece-nos assim como o mais completo anti-cristianismo, prodigioso sedutor das multidões, preparadas para o receber pelo desfalecimento da Fé. São as ideias quem governa o mundo. Se à filosofia marxista se não opuserem concepções cristãs...» O cristianismo é a afirmação da dependência radical do, homem em relação a Deus (é a realidade por Ele criada). É contra esta afirmação que se levanta a filosofia moderna, num acto de rebelião contra Deus, contra a verdade e contra o bem, acto de orgulho da inteligência humana que quer bastar-se a si mesma, criar a sua própria verdade e o seu próprio bem. Acto de rebelião da vontade contra Deus, contra a realidade objectiva, numa palavra, contra o mundo criado por Deus, não querendo submeter-se, mas realizar um mundo e um homem independente de Deus em que reine o super-homem. Repetição do pecado de Satã, que não quis submeter-se, e se esforça por arrastar à mesma rebelião a criatura humana.

Nota - Após o 25 de Abril, certos movimentos da esquerda orquestraram uma homenagem em memória do Dr. Abel Varzim, com sessão solene e panegírico, em Cristelo, sua terra natal. Bem a merecia, pela caridade que exerceu e de que foram beneficiários os promotores. Porém... o cariz de que a revestiram desvirtuava a pessoa e a verdade. Para repor as coisas no seu devido lugar, é que foram escritos este e os capítulos seguintes. Fica-se a saber que o pretenso «Comunismo» do Dr. Abel Varzim, nada mais era do que a vivência do Evangelho.

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«O AMOR TEM QUE SER SERVIDO PELA ORGANIZAÇÃO…» (20)

Fui aos Açores no, Verão de 1930, logo depois da minha ordenação em Roma, a 27 de Julho. Faz agora 50 anos. Tinha intenção de voltar a Roma, para mais dois anos de Teologia. Soube que o Prelado tencionava nomear-me director do diário católico A União, de que tinha sido redactor desportivo. Veio daí a mudança de Roma para Lovaina, para as Ciências Político-Sociais, que me preparariam melhor para o jornalismo. Monsenhor Lopes da Cruz acompanhou-me ao comboio e encaminhou-me para o seu grande amigo, P.e Abel Varzim, que tinha ido de Beja para Lovaina, pouco tempo antes, também para Ciências Político-Sociais. Foi o meu guia na Universidade. Apresentou-me aos professores e a alguns alunos, quase todos leigos, e entre eles o Príncipe Otão de Habsburgo, para quem eu levava as saudações do Senhor Bispo do Funchal (Cirineu do Imperador, da Imperatriz e das crianças, quando a esperteza satânica destruiu o império austro-húngaro). Abel Varzim e eu resolvemos morar juntos, numa «república de estudantes», paredes meias com o Instituto onde tínhamos quase todas as aulas. Direito Internacional privado facultou-nos o ensejo de ser alunos de uma das mais brilhantes figuras da Política Belga, o Visconde de Paulet. Economia Política abriu-nos clareiras inteiramente novas, com Maurice Defourny, secretário perpétuo da União de Malines, que todos sabiam tinha preparado o projecto, da Quadragesimo Anno, como a sua predecessora, a União de Friburgo, preparara a Rerum Novarum. Direito Internacional Público fez-nos acreditar na Sociedade das Nações, ao contrário da fórmula clássica das Alianças. Discutíamos. Mas nenhum de nós se fazia mais que o outro. O Varzim era mais velho. Trazia a experiência de Beja, onde fundara o escutismo e discordara de outros colegas no Seminário. Eu trazia a preparação escolástica da Gregoriana. O Varzim conhecia os congressos espectaculares, que muitas ilusões deixavam. O Senhor Dom Guilherme Augusto, meu saudoso Bispo de Angra, recomendara-me que estudasse a fundo a Acção Social da Bélgica; e logo fomos, nas férias do Natal de 1930, para Bruxelas, à reunião anual da Juventude Universitária Católica. Ouvimos o Assistente Geral, Dr. Jacques Leclerque, e Monsenhor Picard, Assistente Nacional de toda a Juventude Católica e o pioneiro do movimento operário cristão juvenil, o Cónego Cardijn, o mestre da Acção Católica especializada e fundador do Jocismo. Sentimos logo ali a controvérsia natural das duas correntes - a unidade e a especialização. A unidade não podia ser a fórmula italiana, imposta pelas tiranias do fascismo. De modo nenhum podia ser a continuação da supremacia dos intelectuais sobre os operários, das «Senhoras» sobre as «mulheres», como «descobrimos»» num relatório da «Liga da Acção Social Cristã». Saímos de Bruxelas ao rubro! E logo nos «convidámos» para correspondentes especiais das Novidades em Lovaina. O Varzim escrevia «Cartas da Bélgica», magistrais. Eu redigia Postais de Lovaina, quase diários, atrevidíssimos. Monsenhor Lopes da Cruz, «Chefe da Redacção», deitava «água na fervura», às vezes, raras vezes (modéstia àparte), como daquela vez em que ousámos discordar do Senhor Dom Manuel Gonçalves Cerejeira na sua afirmação de que «O Amor é tudo». 20 O título é da redacção. Trata-se do depoimento enviado pelo Dr. Manuel Rocha, actualmente em Massachusetls-

Ludlow, por ocasião da Mesa-Redonda realizada pelo IFST em 29-4-80, em homenagem ao Dr. Abel Varzim.

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Acompanhámos Cardijn e os três primeiros jocistas, Fernand Tonnet, Jacques Meert e Paul Garcet. Fora das aulas da Faculdade, íamos todas as sexta-feiras à escola de Dirigentes da Liga dos Trabalhadores Cristãos, onde o Padre Colens nos dava a paixão da libertação dos oprimidos e a convicção de que o Amor não é tudo, o amor tem que ser servido pela organização. Poucos, neste mundo, nos influenciaram tanto como Colens. O Varzim traduzia em português, muitos anos depois, os esquemas dessas lições da sexta-feira. Se a mais elementar modéstia me faria ocultar o efeito dessas cartas e postais, a gratidão ao Abel Varzim leva-me a dizer que o Senhor Dom Ernesto Sena de Oliveira, encarregado pelos Bispos de Portugal de organizar a Acção Católica Portuguesa, nos pediu o projecto de que saíram as Bases da nova organização oficial dos leigos. Bases aprovadas pela Santa Sé como fórmula ideal para os tempos modernos. Levámos Cardijn a Portugal onde um curso no Seminário dos Olivais deu aos Assistentes a técnica jocista, o método da formação, de militantes que Jesus usou na véspera do milagre das Bodas de Caná. Como é que se explica o facto de o P.e Abel Varzim ter escolhido para tese de doutoramento um tema agrário, uma organização agrária, o Boerenbond? Não foi por vir de Beja, nem por sentir, como sentia, a necessidade de reforma agrária no Alentejo. Foi porque tínhamos como nosso comensal na «república de estudantes» da Rua Kraken um dos assistentes eclesiásticos do Boerenbond e também porque o Professor Brusselmans, nosso Mestre de Direito Administrativo, era director do Boerenbond e deputado do Partido Católico pelo sector flamengo e agrário. Entusiasmámo-nos pela justiça das reivindicações flamengas e pela organização agrária católica Boerenbond, «un état dans un autre État». O correspondente das Novidades em Paris, o P.e Amadeu de Vasconcelos, jornalista brilhante que assinava sob o pseudónimo de «Mariotte», meteu-se uma vez a falar do problema belga. Modéstia à parte, refutámo-lo de tal maneira que nunca mais escreveu sobre a Bélgica! Quem visse a Bélgica pelo prisma parisiense, pois..., salvo seja, «botava asneira», pela certa. A Bélgica resulta da união, precária, às vezes, de dois povos, duas nações - a Flandres e a Valónia - tão diferentes que pareceriam antagónicas. A Valónia, nessa altura, era baluarte socialista. A Flandres expoentizava a força da organização católica: o Boerenbond. O povo não é holandês. É flamengo, com personalidade própria, com língua própria, com Universidades próprias. A Universidade Católica de Lovaina não é flamenga. É belga, mas existe em território flamengo e cultiva as tradições flamengas, sem quebra da unidade belga (pelo menos nesse tempo: todas estas referências devem aplicar-se a «esse tempo»), «Boerenbond» era símbolo de corporativismo, do verdadeiro. Quando recebemos os cinco primeiros decretos do chamado corporativismo português, traduzimo-los aos mestres da Universidade e a minha terceira tese de doutoramento (minha oficialmente, mas, de facto, de nós ambos) dizia assim: «L'organization corporative que le Gouvernement portugais vient de créer est contraire aux Encycliques Sociales et à la tradition sociale catholique». Na Primavera de 1934, fui para Lisboa, para os Serviços Centrais da Acção Católica portuguesa, especialmente para a Juventude Operária e para o Secretariado Económico-Social. Apresentei no Terreiro do paço o nosso projecto da organização Ouvi, de quem de direito, que o Governo decerto não o autorizaria. Subi logo ao

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Campo de Sant’Ana e demonstrei a S. Eminência Rev.ma a o Cardeal-Patriarca, o Senhor Dom Manuel Gonçalves Cerejeira, que não havia possibilidade nenhuma de conciliação entre o programa social das Encíclicas e o chamado corporativismo português. O P.e Varzim chegou uns meses depois. Já tínhamos lançado «O Trabalhador». Ele tomou conta. Prevenimo-lo. Às vezes, na véspera de ir para o prelo, o jornal vinha «cortado». Até Pio XI foi «cortado». Citávamos Quadragesimo Anno sobre desemprego. - «Quem é este Quadragésimo para vir falar de desemprego? Que é que ele sabe disso? O P.e Varzlm tentou o corta-mato, mas não teve melhor sorte. «O Trabalhador» teve que desaparecer. Mas foi melhor do que deixar-se «comprar». O Dr. Varzim foi nomeado deputado, mas veio um projecto de lei que o afligiu: Os oficiais do Exército não poderiam casar com noiva de «menos dinheiro». Assisti à entrevista com o Senhor Cardeal-Patriarca. Que havia de dizer? Pois que havia de dizer senão o que diz a moral cristã? O Dr. Varzim nunca mais foi nomeado deputado. Dentro da Acção Católica, houve, de uma vez, manobra para acabar com a especialização,: que era obstáculo à unidade! O Dr. Varzim provou que o decreto era revogação das «Bases» aprovadas pela Santa Sé. Só a Santa Sé tinha jurisdição para mudar decisões da... Santa Sé. Caíram em si e desistiram. A especialização não morreu. E não morre.

NA ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA 26/02/80

A Sr.a Helena Cidade Moura (MDP/CDE): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Os representantes do PSD da Assembleia Municipal de Barcelos pediram adiamento da proposta apresentada àquele órgão autárquico, no sentido de dar o nome do padre Abel Varzim a uma rua naquela cidade por não estarem suficientemente elucidados sobre a figura extraordinária do Padre Abel Varzim. O CDS, possivelmente pela mesma razão, absteve-se. A biografia minuciosa do padre Abel Varzim encontra-se, porém, na Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira e embora termine oito anos antes da sua morte, em 1956, era ele pároco da Igreja da Encarnação, mas poderá, apesar disso, considerar-se historicamente completa. Afastado, pouco tempo depois desta data da sua paróquia e com residência fixada em Cristelo, Barcelos, o resto da sua vida teve apenas aqueIa acção profunda que marca os grandes sulcos, mas reduzidamente se traduz em factos. Muitos ficaram indelevelmente ligados a esta época da sua vida, outros, naturalmente, a desconhecem. O que poderá pertencer ao conhecimento geral é que fez, com distinção, o curso de Teologia no Seminário de Braga e que se doutorou brilhantemente em Ciências político-Sociais, em Lovaina. No estudo, na reflexão, no combate íntimo com os grandes dirigentes do movimento operário católico belga formou ele os seus esquemas intelectuais, ligados depois à nossa realidade através de uma forte consciência do seu dever de intervenção.

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Em Portugal tornou-se responsável dos movimentos da JOC e da LOC, fundou o Secretariado Económico-Social da Acção Católica e logo a seguir o Trabalhador, jornal subscrito por acções entre os operários e que foi, no marasmo do adormecimento da consciência católica oficial, um grito de luta tendo sido suspenso em 1948. Apesar de toda a sua acção cautelosa, nos limites que a situação politica lhe impunha, foi afastado da área social do trabalho e feito pároco da Igreja da Encarnação. Novas e apaixonantes tarefas o galvanizaram: fundou o Centro Paroquial de Assistência da Encarnação onde havia um centro médico exemplar, aulas e onde se encontravam, espontaneamente, independentemente de qualquer preconceito, aqueles que os problemas uniam. A imensa liberdade da sua fé levou-o depois, contra tudo, a fundar, com êxito, com a militância de sempre e com a visão larga dos problemas, a Liga Nacional contra a Prostituição. Nada poderia deter a sua real e honesta compreensão dos problemas sociais. Assim o entendeu o regime fascista que, reclamando-se de católico, tremia perante qualquer que fosse a acção do Padre Abel Varzim pois ela seria sempre o testemunho da verdade e a ameaça da visão global dos problemas. No Diário de Lisboa, de 1 de Setembro de 1964, dizia-se: «A sua honestidade intelectual conduzia-o naturalmente aos campos sem medo da liberdade de pensamento e nunca na sua boca ou nas suas mãos Cristo foi tão pequeno que temesse o raciocínio ou a acção dos homens.» Na sua luta, votada à ineficácia a curto prazo, contra a estrutura social dominante, criava áreas de liberdade à sua volta e, para além de operários, um grupo de estudantes universitários foi atraído pela dinâmica do esforço intelectual, do raciocínio actuante, da análise objectiva, pela alegria da clareza e da acção. O Padre Abel Varzim foi um mestre do antifascismo. Ele acreditava no valor da luta, nada nele era formal, Cristo vivia cada dia e em cada dia havia que optar entre a justiça e a injustiça junto dos factos reais. O farisaísmo não era compatível com o seu empenhamento concreto e humano. O seu mandato, como Deputado na Assembleia Nacional, que corresponde à fase inicial da sua luta de intervenção, é marcado por uma linguagem que o distingue - já nesse tempo - do simples homem de boa vontade. Ele era já um militante. E não será sem emoção que evocaremos hoje, nesta Assembleia, o seu aviso-prévio ao Governo, em 1939: Pretendo tratar, em aviso-prévio, de certos aspectos da organização sindical corporativa, pelas seguintes razões: 1.º Porque existe, da parte de muitas entidades patronais, uma guerra, muitas vezes vitoriosa, contra a organização ou existência dos sindicatos nacionais; 2.º Porque o desenvolvimento da organização sindical tem sido impedido por falta de protecção legal e ainda por falta de execução de medidas legais existentes; 3.º Porque este estado de coisas tem conduzido, muitas vezes, à execução arbitrária dos contratos singulares ou colectivos de trabalho, com grave prejuízo dos direitos já legalmente reconhecidos dos operários. Também o Padre Abel prosseguia um esforço inglório de teorização junto daqueles que não estavam dispostos a ouvi-lo e foi assim que nesse mesmo ano ele explicava: «A preocupação de aumentar a produção, sem existir ao mesmo tempo o cuidado de dar aos que a produzem o poder de compra com que a possam adquirir,

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mata a própria produção porque gera a crise da abundância e esta provoca a paralisação do braço do trabalhador, criador principal e fundamental da riqueza.» Estas mesmas paredes, Srs. Deputados, ouviram, em 1940, a denúncia do espezinhamento do movimento operário, feita por um padre católico: «Os Sindicatos [...] não têm defendido os interesses dos operários porque não têm tido força para tanto e porque muitas entidades patronais lhes têm movido ultimamente uma guerra que eu direi quase de morte. Há patrões e há industriais que têm lançado no desemprego os que se afirmam propagandistas sindicais. Mas há mais. Há regiões do país onde ser-se sindicalizado constitui um verdadeiro perigo.» Quanto à fiscalização do Instituto do Trabalho, Padre Abel esclarece: «Eles sabem que no dia em que disserem o que se passa serão irremediavelmente despedidos e nenhuma outra fábrica os aceitará.» E perante um protesto da Assembleia, o padre Abel continua com dignidade, de braços abertos, como se nada tivesse ouvido: «Por terem dito a verdade têm sido muitos despedidos. E até já, foram alguns por mo terem dito a mim.» Srs. Deputados, poderemos, logicamente, perguntarmo-nos: por que se terá apagado da memória dos autarcas do PSD e do CDS de Barcelos a imagem de um padre, dirigente católico, Deputado, que foi célebre e conhecido em tempos recentes e que nasceu e morreu em Barcelos? Sr. Presidente, Srs. Deputados: o MDP/CDE entende que a manipulação dos sentimentos religiosos que, historicamente, têm acompanhado, em Portugal, as várias fases de transformação social, é um mecanismo ilegítimo que não serve nem a liberdade nem a dignidade do homem. Torna medíocre, injusta e ineficaz a sociedade em que ele vive pelo bloqueio obscurantista que cria e pelo apelo que faz a sentimentos negativos de medo e de prepotência. Aplausos do MDP/CDE, do PS, do PC e do PPM, dos Deputados Reformadores e de alguns Deputados do PSD.

ꝏ O Sr. Barrilaro Ruas (PPM):-Sr. Presidente, Srs. Deputados: Pedi a palavra para me associar, em breves palavras, à homenagem aqui prestada pela Sr.a Deputada Helena Cidade Moura à memória, para nós muito querida, do Padre Abel Varzim. Como não era para pedir um esclarecimento à intervenção da Sr.a Deputada, e minha querida amigo, não me inscrevi para tal e preferi fazer uma curta intervenção que tem apenas como objectivos dizer que para nós, Grupo Parlamentar do PPM, Abel Varzim foi um dos nossos mestres mais queridos. Desde fui muitos anos que consideramos o Padre Abel Varzim um pioneiro da política do homem, um verdadeiro humanista, um daqueles portugueses que ensinaram ao povo português, no seu conjunto, e especialmente aos políticos, a serem verdadeiramente fraternos nas suas acções. O Padre Abel Varzim, mais do que militante e apóstolo, foi um português entre portugueses, foi alguém que nos ensinou, a todos, a estar aqui hoje a defender o povo português nos seus direitos e legitimidade, a defender os valores humanos fundamentais para além de todas as ideologias e por cima de todas as fronteiras que podem, por vezes, definir-nos, limitar-nos e diminuir-nos. A nossa homenagem, portanto, à memória impoluta de Abel Varzim. Aplausos gerais.

* Dois testemunhos tirados do «Diário da República», I Série, n.º 20, de 27 de Fevereiro de 1980.

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«DETESTAVA TODAS AS F0RMAS DE OPRESSÃO» * ...Conheci o P. Abel Varzim depois de chegar de Lovaina, onde se havia doutorado com elevada classificação, em Ciências Políticas e Sociais. Dotado de um contacto excepcional, em breve nos apercebíamos da sua inteligência vigorosa aliada a uma bondade cativante. Tinha então 32 anos e vinha para Lisboa com licença do seu Bispo a fim de trabalhar na Acção Católica. Começou também a colaborar com Mons. Lopes da Cruz, seu amigo de infância e a cujo esforço, inteligência e audácia se deve a Rádio Renascença. Outras actividades se seguiram de aspecto social e religioso. Destas, e foram muitas, parece-me de destacar a sua acção como Assistente Geral da LOC e mais tarde como pároco da Encarnação. Não posso, nem agora é a ocasião, fazer um estudo aprofundado do seu trabalho. Mas devo afirmar, por o haver testemunhado, a sua doação e espírito sacerdotal no quotidiano onde não faltavam as lutas, os espinhos e até as calúnias. Algum antigo Iocista poderá falar do seu amor pela causa operária, então desprotegida, e por cada um em particular. Muitos lhe ficaram a dever o pão de cada dia e sobretudo a luz da fé e amor de Cristo praticado nos irmãos. Outros, poucos, estou disso convencida, venderam Cristo por trinta dinheiros e militam hoje no ódio, em vez do amor comunicado por ele. Como deputado na Assembleia Nacional prontamente se desiludiu. Convidado a reconduzir-se, com muitos condicionamentos, imediatamente recusou. Tinha perdido totalmente as suas esperanças numa acção política eficaz. A sua luta no jornal O Trabalhador valeu-lhe grandes inimizades. Chegámos a recear a sua prisão ou exílio. Quando lhe falei do meu receio, só teve uma frase: «em toda a parte se pode servir a Deus». Algum tempo mais tarde, demitido de professor do Instituto de Serviço Social, onde tive a felicidade de ser sua aluna, e proibida a publicação de O Trabalhador por imposição do Subsecretário de Estado das Corporações, cheio de dívidas contraídas para socorrer os pobres e manter o jornal, pude partilhar com ele num período de profunda amargura. Sofreu muito, mas o seu sorriso bondoso não se apagou dos seus lábios, e embora nem sempre tivesse recebido um apoio convincente dos seus superiores, na sua alma profundamente sacerdotal e votada a Deus e à Igreja jamais houve um momento de revolta. O Subsecretário, sabia das suas dívidas e mandou oferecer-lhe 600 contos pelo jornal. Isto nos anos 40. E embora esse dinheiro representasse de algum modo a sua libertação, repudiou-o, tendo respondido: «não estar à venda nem o jornal nem o seu director». E custou-lhe muito a pagar essas dívidas. Teve-as quase sempre durante a sua vida para acudir aos outros, mas algumas vezes as pagou sem contudo serem feitas por ele, mas malevolamente em seu nome. Como poderei falar dele como pároco da Encarnação? Uma paróquia de grande pobreza, com o triste privilégio de entre as freguesias de Lisboa possuir o maior número de casas de prostituição. Gastou ali alguns anos da sua vida, imolada em trabalho, sofrimento e doação total aos seus paroquianos. E se é certo serem muitos os ricos devedores do seu amparo moral e do seu amor, os pobres, os mais chagados deste mundo, foram realmente os filhos do seu coração. Por eles deu a sua já gasta saúde, numa luta de todas as horas, procurando valer e encontrar soluções construtivas para tantas vidas inumanamente vividas. Mas sobretudo amou-os e sofreu com eles, como S. Paulo podia dizer que fez tudo para todos. Sem residência

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para pároco, ele vivia na igreja, tendo reservado para si um quarto frio e paupérrimo no alto da mesma, onde muitas vezes, quando as crises de bronquite e febre o atacavam, algumas das antigas alunas e outros o iam tratar. ...Foi depois para a sua terra natal, onde vivera os últimos anos em casa da sua irmã mais velha, mãe cristianíssima de numerosa família. Ia fisicamente arruinado e com uma doença grave de coração. Mas não era homem para se entregar ao repouso. E ali fundou uma cooperativa ainda próspera e uma casa de regeneração para raparigas no Porto. Quando pároco da Encarnação, havia já fundado na Amadora uma casa destinada ao mesmo fim... Foi professor, como já disse, e as suas alunas não podem ter esquecido as aulas cheias de interesse onde procurava transmitir além do seu saber a força do seu apostolado social e o ideal futuro para o trabalho de cada uma delas. Queria ainda referir o seu extraordinário espírito de pobreza. Nunca possuiu nada, e andou muitas vezes pelas ruas de Lisboa sem um tostão na algibeira. Posso afirmá-lo. Por isso, morreu pobre, embora materialmente tivesse socorrido muitos. Quando num dia tórrido de Agosto, Deus o chamou, passámos uma parte da noite no seu quarto de dormir anexo àquele onde o seu corpo repousava. Nesse ambiente de extrema pobreza onde nada havia de supérfluo, e onde até faltava o necessário, pudemos meditar na vida daquele padre despojado de tudo, mas em cuja alma nunca se apagou a alegria de viver, porque era rico de amor e generosidade. Detestava todas as formas de opressão. E era um dos motivos por que não aceitava qualquer regime totalitário fosse de esquerda ou de direita. Isso porém não o impedia de amar as pessoas e de receber com a mesma afabilidade fraterna um comunista necessitado de auxílio ou um agente da PIDE para o interrogar. Morreu com 62 anos, prematuramente envelhecido e gasto, por uma vida de lutas de bom combate contra os males e injustiças deste mundo. * Testemunho de Eugénia de Moura Borges por ocasião da Mesa-Redonda, realizada pelo IFST em 29-4-80, em homenagem a A. Varzim.

ꝏ António, bispo de Madarsuma (21

) Com amigos cumprimentos, deplora ter de comunicar que, em virtude de compromissos surgidos ultimamente, não poderá assistir, como prometeu, à sessão em memória do querido Dr. Abel Varzim. Associa-se, porém, em espírito, à justíssima homenagem prestada a este Sacerdote, pela seu bondoso espírito de acolhimento, sobretudo aos pobres e aos socialmente mais desprotegidos, pelo seu alto e indefectível espírito de justiça e, também, pela sua fidelidade à Igreja que servia de modo tão exemplar.

24-IV-80 NB. - Por ocasião da Mesa-Redonda realizada pelo IFST, em 29-4-80.

21

NdR: D. António dos Reis Rodrigues, Bispo Auxiliar de Lisboa

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TESTEMUNHO ANÓNIMO JORNAL DE NOTÍCIAS 12-1-43 «Foi ainda dentro deste meu culto pela verdade que eu li com infinito prazer espiritual, o último fundo, publicado neste jornal e assinado pelo dr. Abel Varzim. Que belo e dignificante artigo. Este sr. padre dr. Abel Varzim (mal ele sabe que eu o sei!) escreveu um dia, a meu respeito, esta frase que deixou, na minha alma torturada, um sulco de luz: «este homem parece-me sincero». O dr. Abel Varzim não me conhecia pessoalmente quando escreveu essa frase. Só mais tarde o conheci pessoalmente. Falei-lhe até hoje quatro vezes. Foi o suficiente para conhecer o Homem, em toda a sua beleza moral. É um apóstolo. Um amigo da Verdade, dos pobres, dos humildes. Este seu fundo a que me refiro, dá a nota do seu valor moral, mental e social. Há, na alma deste Homem, himalaias de ternura e tenacidade de Apóstolo. Nele o Homem-social e o Apóstolo, confundem-se. É um padre Cruz à luz do século XX. O padre Cruz ê um Apóstolo século XIX. O padre Abel Varzim, um Apóstolo século XX. Que diferença há entre dois apóstolos? Esta pequenina enorme diferença: o padre Cruz assenta toda a doutrina no regnum meum non est in hoc mundo; o dr. Abel Varzim, integrado embora nessa máxima do Evangelho, entende, e bem quanto a mim, que se para o espírito essa fórmula está certa e exacta e indiscutível, há que estabelecer para o corpo aquele mínimo de regalias indispensáveis à vida, no Amor, na Ternura, no equilíbrio social que, sendo pertença de toda a gente, o deve ser também dos humildes, dos desgraçados, dos que têm fome e sede de Justiça. Um é o Apóstolo, principalmente das almas; o outro é o Apóstolo das almas e dos corpos. Para um, a vida começa no Calvário; para o outro a vida é o próprio Calvário». N.B. - À margem está escrito: «não sei quem escreveu este artigo».

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QUE FAZES Aí, Ó CRISTO ANTIGO, PREGADO NESSA CRUZ ETERNAMENTE? LIBERTA A TUA MÃO OMNIPOTENTE DESPREGA, ESSÊS TEUS PÉS E VEM COMIGO.

NÃO SABES QUE SEM TI NADA CONSIGO? ESQUECES QUE FAZES FALTA A TANTA GENTE? OH! VEM DE NOVO COMO ANTIGAMENTE VIVER CONNOSCO E NÓS VIVER CONTIGO.

NÃO VENS? NÃO QUERES OUVIR A HUMILDE PRECE

DUM MUNDO QUE SEM TI DESAPARECE, VENCIDO PELA MORTE E PELA DOR? NÃO VENS? NÃO PODE A CRUZ FICAR SOZINHA? ENTÃO PERMITE QUE ELA SEJA MINHA EU FICO NELA E DESCE TU, SENHOR.

E DESCE TU, SENHOR. Este poema foi apresentado, na já referida mesa-redonda de 29.4.80 de homenagem a A. Varzim, por José Luís G. Ferreira da Silva, primeiro presidente geral da JOC e depois

colaborador íntimo do homenageado. J. Luís Ferreira da Silva atribuiu-lhe a recitação diária, como oração, e a própria autoria, e acrescentou: «Dizer isto (esta prece) com honestidade,

conscientemente, sinceramente - só dum poeta ou dum louco ou dum santo, ou dum santo».