Educação Permanente como Prática

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1 EDUCAÇÃO PERMANENTE COMO PRÁTICA 1 Túlio Batista Franco 2 Rafael Cardoso Chagas 3 Camilla Maia Franco 4 INTRODUÇÃO A Organização Pan-Americana da Saúde difundiu para o âmbito da saúde a proposta de Educação Permanente (EP) dos trabalhadores, para impulsionar o desenvolvimento dos sistemas de saúde nas diversas regiões onde atua. Esta proposição reconhece que os serviços de saúde são organizações complexas em que a aprendizagem significativa é uma diretriz importante para possibilitar processos de mudança no cotidiano das práticas em saúde. Em 2005 o Ministério de Saúde no Brasil adota a Política Nacional de Educação Permanente (Brasil, 2007) que propõe implementar no seu cotidiano de formação a noção de aprendizagem significativa, que deve propiciar e apoiar o pensamento reflexivo, dialógico, contextual, complexo, intencional, colaborativo, construtivo e ativo. Transformada em política, a EP é alçada à agenda nacional e tratada por todas as instâncias do Sistema Único de Saúde (SUS), contando com incentivo governamental para sua implementação. No entanto, isto não encerrou o debate sobre sua compreensão. Este continua muito ativo, na medida em que a EP se refere a uma ideia inovadora de educação em serviço, que supõe a construção de novos sentidos para o trabalho, o ensino e aprendizagem no SUS. Este artigo pretende discutir a Educação Permanente como dispositivo para o desenvolvimento SUS, em uma perspectiva de mudança da gestão do cuidado e suas práticas. Tomamos como caso para ilustrar este debate a experiência do Programa de Educação Permanente em Volta Redonda (RJ), e os muitos processos de mudança que foram e ainda são disparados por dentro da rede de saúde. Temos observado que o desenvolvimento de políticas de saúde traz como principal desafio aos seus gestores operar mudanças qualitativas sobre os modos produtivos do cuidado e seu funcionamento. A palavra mudança é suficientemente forte para indicar que estamos falando, neste caso, de inovações na gestão de políticas de 1 Referência: FRANCO, Túlio Batista; CHAGAS, Rafael Cardoso; FRANCO, Camilla Maia. “Educação Permanente Como Prática”. In, Pinto, S.; Franco, T.B.; Magalhães, M.G. et al: Tecendo Redes: os planos da educação, cuidado e gestão na construção do SUS; a experiência de Volta Redonda-RJ. São Paulo: Hucitec, 2012. 2 Psicólogo, Prof. Dr. da Universidade Federal Fluminense. 3 Historiador, Mestrando em Saúde Coletiva pela Universidade Federal Fluminense. 4 Psicóloga, Mestre em Saúde Coletiva pela Universidade Federal Fluminense.

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O artigo levanta a história da educação permanente, propõe que seja dispositivo de mudança na saúde, e discute as metodologia ativas associadas ao conceito de aprendizagem significativa. A dinâmica da aprendizagem significativa é discutida e proposto um novo modelo explicativo para sua função de transformação dos cenários de trabalho e aprendizagem.

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EDUCAÇÃO PERMANENTE COMO PRÁTICA1

Túlio Batista Franco2

Rafael Cardoso Chagas3

Camilla Maia Franco4

INTRODUÇÃO

A Organização Pan-Americana da Saúde difundiu para o âmbito da saúde a

proposta de Educação Permanente (EP) dos trabalhadores, para impulsionar o

desenvolvimento dos sistemas de saúde nas diversas regiões onde atua. Esta proposição

reconhece que os serviços de saúde são organizações complexas em que a aprendizagem

significativa é uma diretriz importante para possibilitar processos de mudança no

cotidiano das práticas em saúde. Em 2005 o Ministério de Saúde no Brasil adota a

Política Nacional de Educação Permanente (Brasil, 2007) que propõe implementar no

seu cotidiano de formação a noção de aprendizagem significativa, que deve propiciar e

apoiar o pensamento reflexivo, dialógico, contextual, complexo, intencional,

colaborativo, construtivo e ativo. Transformada em política, a EP é alçada à agenda

nacional e tratada por todas as instâncias do Sistema Único de Saúde (SUS), contando

com incentivo governamental para sua implementação. No entanto, isto não encerrou o

debate sobre sua compreensão. Este continua muito ativo, na medida em que a EP se

refere a uma ideia inovadora de educação em serviço, que supõe a construção de novos

sentidos para o trabalho, o ensino e aprendizagem no SUS.

Este artigo pretende discutir a Educação Permanente como dispositivo para o

desenvolvimento SUS, em uma perspectiva de mudança da gestão do cuidado e suas

práticas. Tomamos como caso para ilustrar este debate a experiência do Programa de

Educação Permanente em Volta Redonda (RJ), e os muitos processos de mudança que

foram e ainda são disparados por dentro da rede de saúde.

Temos observado que o desenvolvimento de políticas de saúde traz como

principal desafio aos seus gestores operar mudanças qualitativas sobre os modos

produtivos do cuidado e seu funcionamento. A palavra mudança é suficientemente forte

para indicar que estamos falando, neste caso, de inovações na gestão de políticas de

1 Referência: FRANCO, Túlio Batista; CHAGAS, Rafael Cardoso; FRANCO, Camilla Maia. “Educação

Permanente Como Prática”. In, Pinto, S.; Franco, T.B.; Magalhães, M.G. et al: Tecendo Redes: os planos da educação, cuidado e gestão na construção do SUS; a experiência de Volta Redonda-RJ. São Paulo: Hucitec, 2012. 2 Psicólogo, Prof. Dr. da Universidade Federal Fluminense.

3 Historiador, Mestrando em Saúde Coletiva pela Universidade Federal Fluminense.

4 Psicóloga, Mestre em Saúde Coletiva pela Universidade Federal Fluminense.

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saúde, operação de redes, e por consequência, melhoria significativa na atenção aos

usuários.

Inovações para que tenham impacto na qualidade dos serviços de saúde, devem

incidir sobre o seu cotidiano, os processos de trabalho, as relações entre os

trabalhadores das equipes que prestam os serviços, e destes com os usuários. Esta

dinâmica é observada no plano da micropolítica, isto é, na ação de cada profissional a

partir do lugar em que realiza o seu trabalho. Esta intensa atividade é que define a

produção de serviços assistenciais, e deve caracterizar o cuidado que é ofertado aos

usuários. Assim temos como pressuposto que processos de mudanças nos serviços de

saúde só se efetivam se houver investimento para além do plano macropolítico, que está

relacionado às normas e ao aparato instituído. É necessário fazer uma intervenção no

plano da micropolítica, onde é possível criar uma implicação de cada um, dar novos

sentidos ao trabalho e cuidado, criar potências de análise e intervenção sobre os

processos vivenciados entre os trabalhadores e destes com os usuários.

Para dar um exemplo: as normas e protocolos que orientam para a cobertura e

procedimentos adequados a qualquer linha programática não garantem que os

profissionais vão acolher, estabelecer vínculo com usuários, se responsabilizar pelos

problemas de cada um, garantir segurança aos fluxos assistenciais, dando conforto e

resolutividade em uma atenção integral. Estes aspectos do cuidado são o produto da

relação que o trabalhador estabelece com o usuário e dependem da forma como eles o

significam e ao cuidado em saúde. Os atos profissionais são fortemente definidos por

uma ética, um modo de agir pautado no que cada um tem como valor para si, e que é

singular, ou seja, os sentidos para o ato de cuidar podem ser muito diferentes de um

trabalhador para outro. Portanto, as normas editadas para orientar os serviços são

insuficientes para garantir a sua eficácia e qualidade. No momento em que o trabalhador

está com o usuário, há um razoável autogoverno sobre seu próprio trabalho e suas

decisões neste plano do cotidiano definirão a qualidade da atenção à saúde (Merhy,

2002), o que nos indica que os processos de mudança têm que necessariamente passar

pelo próprio trabalhador, pois o trabalho é por excelência a matriz do ato produtivo do

cuidado. É a isto que chamamos de micropolitica, uma atividade cotidiana, rizomática,

pautada pela liberdade do trabalho vivo e com forte potência instituinte. É um espaço

onde se cruzam os vários projetos de cuidado no caso da saúde, sejam eles centrados em

modelos biomédicos e restritivos, ou em cuidado integral centrado nas necessidades dos

usuários. Esse espaço é marcado por tensões e conflitos, não necessariamente danosos,

pois podem ser produtivos na medida em que desafiam as equipes a uma permanente

pactuação e superação dos fazeres cotidianos.

Entendemos que as ações de saúde ganham expressão real é no plano da

micropolitica, e é aqui que o trabalhador encontra altos graus de autonomia para decidir

como será a produção do cuidado. Portanto, para mudar os serviços de saúde é

necessário compreender as questões que perpassam este espaço, o modo de organização

do processo de trabalho e suas ações no cotidiano.

Estudos anteriores (Merhy, 2002; Franco, 2007) nos informam que a produção

do cuidado em saúde é permeada por vários fatores, mas dois deles são fundamentais

para a tomada de decisões e processamento do trabalho: o conhecimento técnico que faz

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com que o trabalhador opere sob uma certa lógica; e, a sua subjetividade, que traz à

cena o modo singular com que significa a saúde, o cuidado e o próprio usuário. As duas

dimensões, do saber e da subjetividade, combinadas têm grande força operatória.

O maior desafio para a consolidação das políticas que signifiquem mudança para

patamares superiores de qualidade e cuidado integral aos usuários da saúde está

justamente na necessária reorganização do processo de trabalho. Esta mudança precisa

incidir sobre a cognição, ou seja, será necessário incorporar novos saberes; incide

também na subjetividade, isto é, no modo de significar o usuário, suas necessidades em

saúde, fazendo com que o ato de cuidar seja da vontade de cada trabalhador em sua

relação com o usuário. É para operar estes processos de mudança que se aposta

firmemente na Educação Permanente. Ela aparece no cenário como um poderoso

dispositivo para o desenvolvimento das políticas, pois atua no plano da micropolitica, e

age diretamente nos produtores dos serviços: os trabalhadores. Mas a Educação

Permanente precisa ser qualificada. É necessário dar-lhe conteúdo para que ela possa

cumprir esta função de operar um modo de ensino e aprendizagem que forme um novo

conhecimento e uma nova subjetividade, ou seja, dispare processos de cognição e

subjetivação ao mesmo tempo. Para isto é necessário um método que reconheça que as

Unidades de Produção do Cuidado são também Unidades de Produção Pedagógica. Por

este princípio as redes de serviços servem como cenários para o ensino e aprendizagem,

trazendo à análise o vivido por cada um, possibilitando construir novos saberes e, ao

mesmo tempo, uma nova subjetividade, capazes de reordenar os significados que o

trabalhador imprime ao mundo do cuidado em saúde (Franco, 2007).

Entendemos a Educação Permanente (EP) como dispositivo para o

desenvolvimento de políticas, algo que pode criar um efeito de desarrumação da ordem,

operando a partir deste primeiro movimento processos de desterritorialização. Por que a

Educação Permanente guarda estas possibilidades? Por ser uma prática educacional que

se processa nas redes de serviços, e, centrada nos processos de trabalho, tendo como

insumo os cenários da prática, as vivências dos trabalhadores e suas dúvidas, angústias,

alegrias e tristezas, as mazelas dos usuários que adentram estes serviços para encontros

cotidianos com os profissionais. A EP estrutura-se com base nas propostas de

pedagogias ativas, onde o trabalhador é sujeito do seu próprio aprendizado. É uma

educação no e para o trabalho, pois se entende que as vivências do cotidiano nos

cenários de trabalho de cada um representam uma grande possibilidade de

aprendizagem, na qual o trabalhador-educando retorna modificando seu próprio trabalho

e a realidade em que está inserido. E quando estas práticas são colocadas em análise

pelos seus próprios protagonistas, os trabalhadores, ganham expressão para eles

mesmos, possibilitando o exercício crítico sobre seu próprio processo de trabalho, a

autoanálise necessária para a desconstrução e construção de mundos sensíveis, que

esbarram nos afetos e dão a eles expressão no fazer cotidiano.

A EDUCAÇÃO PERMANENTE

A ideia de uma educação que tenha o caráter de permanência, ou seja, que se

prolonga por toda a vida, é bem antiga e remonta à Revolução Francesa que fez constar

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no programa educativo da Revolução de 1789 e se consolida na legislação posterior. Na

Inglaterra há registros da educação permanente em documentos do Ministério da

Reconstrução, em 1919, que se consolida por documentação publicada pelo Ministério

da Educação após a 2ª Guerra. O que se observa é que há um esforço de

institucionalização da educação permanente realizado na primeira metade do século

XX, em que é possível registrar também proposições do conhecido filósofo Gaston

Bachelard, que insistia em uma educação “contínua no decorrer da vida” (Gadotti,

1984).

O termo Educação Permanente surge pela primeira vez na França em um projeto

de reforma elaborado pela Liga Francesa de Ensino, em 1955, e tem suas bases

assentadas na ideia de uma educação que continua para além da escola, um processo

que se estende para a vida em todos os tempos e lugares. A ideia de uma educação

permanente como estruturante da política educacional global passa a existir com maior

ênfase a partir do final da década de 1960 e início da de 1970 após um amplo

movimento intelectual sobre o tema na Europa. Segundo Gadotti:

Não é por mero fruto do acaso que a UNESCO, o Conselho da

Europa e a OCDE (Organização da Cooperação e Desenvolvimento

Econômico), após 1968, apresentaram novos projetos para

substituir o sistema “tradicional” de ensino, por um sistema de

Educação Permanente5 (Gadotti, 1984, p. 63).

A partir deste momento, o discurso da educação permanente passa a fazer parte

das ações de governos pelo mundo todo, inclusive dos países emergentes que, como o

Brasil, ainda não tinham nem universalizado a educação básica. O pensamento era de

que uma educação por toda a vida e em qualquer lugar seria fundamental para

incorporar as novas demandas da sociedade, que passava a produzir cada vez mais

novas tecnologias em espaços de tempo cada vez menores, e para combater as

desigualdades sociais, quanto mais estudos melhor seria a condição de vida dos

trabalhadores. Gadotti caracteriza a educação permanente, da forma que surgiu no

mundo, como ideologia porque esconde o essencial. Assim:

Escondendo essa dependência em relação ao sistema social, a

Educação permanente nos esconde também a sua impotência. Ela

não pode, por isso, cumprir suas promessas, cria entre os

trabalhadores a esperança e a crença em uma formação que deveria

favorecer sua promoção individual, mas que tem por finalidade a

produtividade e a acumulação capitalista ilimitada6( Gadotti, 1984,

p.109).

5 Gadotti, Moacir. A Educação Contra A Educação. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1984, p.63.

6Gadotti, Moacir. Op. Cit., p. 109.

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Apesar de a educação permanente estar vinculada à forma como se estruturam as

formas de poder na sociedade, ela é feita por sujeitos concretos, que atuam muitas vezes

de maneiras diversas do que dizem as normas. Portanto, segundo Gadotti, aproximando

a educação permanente de sua filosofia, pautada na ideia de que o sujeito está em

constante aprendizado, indivíduos envolvidos em projetos educacionais podem operar

processos de mudança. O autor diz que:

A sua maneira, a Educação Permanente responde a esta

necessidade. Contudo, mostramos como ela canaliza, traduz essa

necessidade fundamental, segundo a vontade do poder. Todavia,

mesmo apoiando-se sobre o ser, ela exprime todas essas exigências

do ser pelo ter. Se constatamos isso, trata-se agora de saber como

reorientar a educação para o ser, para a existência, para o humano.

Essa questão se coloca particularmente para aqueles que trabalham

na educação7( Gadotti, 1984, p.165).

Com este resgaste histórico em que a concepção de Educação Permanente foi

problematizada, torna-se necessário debater a realidade em que esta será pensada. O

projeto de educação permanente voltado para reorganizar os processos de trabalho em

serviços de saúde deve ser elaborado levando em consideração a forma como se

estrutura o trabalho nos dias de hoje, especificamente o trabalho em saúde, e sua relação

com os princípios e diretrizes resultados de uma luta social empreendida pelo

movimento sanitarista brasileiro. Portanto, a formação não deve desconsiderar o mundo

e a realidade em que se insere.

A Educação Permanente em Saúde começou a ganhar centralidade a partir da

década de 1970, colocada pela Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) com

objetivo de melhorar as práticas na saúde. Essa proposta tinha em vista melhorar o

planejamento da saúde através de uma melhor gestão do trabalho. No Brasil, a

constituição de 1988, que criou o SUS, resultado do movimento de luta pela reforma

sanitária, e a lei orgânica do SUS, em 1990, estabelecem a formação de “recursos

humanos” na saúde como atribuição do sistema8 (Brasil, 2011). Desde esse período,

Segundo Franco (2007), pode-se constatar que embora tivessem ocorrido investimentos

em processos educacionais nos serviços de saúde, inclusive como estratégia para

implementar as diretrizes do SUS, não tem se alterado de modo significativo as práticas

assistenciais e os processos de trabalho9 (Franco, 2007).

Para Franco, muitos projetos de educação permanente em saúde têm repetido

velhas práticas da educação formal e privilegiado processos de gestão extremamente

normativos, nos quais os trabalhadores, os usuários e as práticas cotidianas não são

7 Ibid., p.165.

8BRASIL. Lei Nº 8080 de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção

e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Disponível em: www.camara.gov.br, acessado em: 12 de Outubro de 2011. 9 Franco, T. B.. Produção do Cuidado e Produção pedagógica: integração de cenários do sistema de

saúde no Brasil. In: Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.11, n.23, p.427-38, set/dez 2007.

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colocados em questão. Desta maneira, estes projetos educacionais reproduzem uma

lógica hierárquica da produção do conhecimento, desconsiderando que a atividade

profissional cotidiana produz um saber com base na própria experiência de trabalho.

Ainda segundo o autor:

O SUS, pela dimensão e amplitude que tem, a capilaridade social e

a diversidade tecnológica presente nas práticas dos trabalhadores,

aparece na arena dos processos educacionais de saúde como um

lugar privilegiado para o ensino e aprendizagem, especialmente os

lugares de produção da saúde, o “chão de fábrica” do SUS, lugar

rico de ação criativa dos trabalhadores e usuários. Educar “no” e

“para o” trabalho é o pressuposto da proposta de Educação

Permanente em Saúde. No SUS, os lugares de produção de cuidado

são, ao mesmo tempo, cenários de produção pedagógica, pois

concentram as vivências do cotidiano, o encontro criativo entre

trabalhadores e usuários10

(Franco, 2007, p. 433).

A formação em saúde, da forma que tem se expressado hegemonicamente, não

se coloca como parte do desafio de mudar o modelo técnico-assistencial da produção do

cuidado, já que este modelo se estrutura, não apenas pelas normas, mas principalmente

no cotidiano do trabalho, capturando a autonomia do trabalhador em autogovernar seu

processo de trabalho. Com efeito, a formação do profissional que atenda às necessidades

sociais da saúde, com ênfase no SUS, deve reorganizar os processos de trabalho com

objetivo de construir um modelo de saúde centrado no usuário enquanto sujeito da sua

própria saúde. Para Ceccim, a formação articulada com os princípios do SUS deve

romper com a racionalidade administrativa e gerencial hegemônica em que os

trabalhadores são entendidos como “recursos humanos” para passar a entendê-los como

sujeitos ativos na produção da saúde11

(Ceccim, 2005).

Dessa forma, a educação permanente precisa ser pensada como um programa de

formação vinculado aos referenciais do Sistema Único de Saúde, colocando-se como

parte do desafio em construir novos paradigmas para saúde. Segundo Ceccim e

Feuerwerker, a formação deve articular ensino, gestão, atenção e controle social,

elevando para primeiro plano o cotidiano dos serviços, compondo um quadrilátero da

formação, sob a direção do SUS. A Educação Permanente deve se articular de forma

não vertical, onde as quatro dimensões dialogam entre si e se comprometem em

conjunto com cada princípio do SUS. Uma formação integrada e responsabilizada pela

consolidação do SUS e de seus princípios, para os autores, exige uma nova concepção

de educação permanente em que:

10

Ibid., p.433.

11Ceccim, Ricardo. Onde se Lê “Recursos Humanos da saúde”, Leia-se “Coletivos Organizados de

Produção da Saúde”. Desafios Para a Educação. In: Pinheiro, Roseni; Mattos, R.A.(orgs). A Construção Social da Demanda, Rio de Janeiro, CEPESC/UERJ: ABRASCO, 2005.

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7

As demandas para a educação em serviço não se definem somente

a partir de uma lista de necessidades individuais de atualização,

nem das orientações dos níveis centrais, mas prioritariamente a

partir dos problemas da organização do trabalho, considerando a

necessidade de prestar atenção relevante e de qualidade, com

integralidade e humanização, e considerando ainda a necessidade

de conduzir ações, serviços e sistemas com produção em rede e

solidariedade intersetorial. É a partir da problematização do

processo e da qualidade do trabalho – em cada serviço de saúde –

que são identificadas as necessidades de qualificação, garantindo a

aplicabilidade e a relevância dos conteúdos e tecnologias

estabelecidas12

(Ceccim, 2004, p. 50).

Com essa perspectiva para a formação de trabalhadores em saúde, a partir de

2003, o Ministério da Saúde, através do Departamento de Gestão e da Educação na

Saúde, formula a Política Nacional de Educação Permanente em Saúde. Esta política,

homologada pelo Ministério da Saúde em 200413

(Brasil, 2004), define como estratégia

para sua implementação a criação de Pólos Regionais de Educação Permanente para o

SUS, que têm por objetivo articular, na gestão do ensino em serviço, as instituições de

formação e os serviços de saúde. Todavia, segundo Ceccim, um dos formuladores dessa

política, continua:

Seguindo absolutamente viva, entretanto, a necessidade de

transmutar a racionalidade administrativa e gerencial hegemônica

para uma visão de trabalho vivo, que se faz em ato, onde operam

processos e relações e não a hegemonia da técnica, dos

procedimentos, dos protocolos e das rotinas que antecedem o

contato real com cada usuário, com cada colega de equipe, com

cada serviço singularmente inserido em uma rede14

(Ceccim, 2004,

p. 166).

Quando pensamos a Educação Permanente nos serviços de saúde como parte de

um projeto de transformação, também se fala de uma mudança radical na forma de

conceber a educação e a construção de saberes. Além das práticas em saúde, torna-se

urgente subverter a lógica presente nas instituições formadoras, promovendo uma rede

de saberes entre diversos campos do conhecimento e eliminando a dicotomia existente

entre teoria e prática. Isso significa conceber o conhecimento como um bem social e não

como meio de manter as estruturas de poder estabelecidas pela criação de expertises

12

Ceccim, R.B. Feuerwerker, L.C.M. O Quadrilátero da Formação para a Área da Saúde: Ensino, Gestão,

Atenção e Controle Social. In: PHYSIS: Revista Saúde Coletiva. Rio de Janeiro: 14 (1), p. 41-65, 2004, p. 50. 13

BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS nº 198, de 13 de fevereiro de 2004. Brasília, 2004. 14

Ceccim, Ricardo. Onde se Lê “Recursos Humanos da saúde”, Leia-se “Coletivos Organizados de Produção da Saúde”. Op. Cit., p.166.

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como únicos competentes para se colocar sobre determinadas questões. Neste sentido,

Koifman e Saippa-Oliveira dizem que:

A utilização da expressão de “formação de redes” é salutar e nos dá

margem a compreender a rede como formada por pontos de

interseção, construídos a partir de uma visão não-linear de

sustentação na qual se entrecruzam saberes e práticas diversas. Os

“nós” assumem, desta forma, não só impedimentos à construção de

uma possível compreensão da realidade, mas elementos

unificadores e potencializadores de buscas de novos arranjos e

futuras parcerias, sejam elas colocadas no pleno da realidade

concreta ou da intersubjetividade15

(Koifman, L.; Saippa-Oliveira,

2005, p. 126).

Com estas considerações acerca da educação permanente em saúde podem-se

pensar algumas diretrizes para estruturação de planos de ensino em serviços de saúde.

Certamente, estes planos não devem ser estruturados como uma regra para ser adotada

em todas as circunstâncias em que projetos de educação se desenvolvem. Ao contrário,

precisam ter a flexibilidade necessária para se adaptarem à realidade em que estão

inseridos e ao conhecimento que os sujeitos implicados na formação trazem consigo.

A proposta de Educação Permanente não tem plano a priori. Os temas são

pautados coletivamente, conforme as necessidades verificadas pelos trabalhadores, em

permanente processo de pactuação com os supostos facilitadores do processo de EP, que

também fazem sugestões sobre as temáticas a serem enfrentadas pelo grupo. O objetivo

é pensar caminhos, trilhas, pistas a serem seguidas, tomando como guia o trabalho, as

práticas e cenários de inserção dos trabalhadores e a ideia geral de produção de sujeitos

implicados com sua prática e a mudança no SUS.

EDUCAÇÃO PERMANENTE COMO DISPOSITIVO DE MUDANÇA NO

SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE

Sabemos que a Educação Permanente em Saúde pode ser apenas uma retórica ou

materializar-se em prática transformadora. Pensamos que a metodologia com a qual será

trabalhada na formação de profissionais de saúde seja fundamental para essa

materialização, assim como a ação dos próprios sujeitos que trabalham com a educação

em saúde.

Nesse cenário, a aprendizagem significativa trabalhada originalmente pelo

psicólogo David Ausubel (1982), se dá a partir do momento em que o conteúdo a ser

aprendido relaciona-se intrinsecamente com os conhecimentos prévios que a pessoa já

construiu durante a sua trajetória de vida. Logo, esta nova informação apresentada

relaciona-se, de alguma forma, com os conhecimentos que já possuía. Para que a 15

KOIFMAN, L.; SAIPPA-OLIVEIRA, G. Produção de conhecimento e saúde. In: Pinheiro, R.; Ceccim, R.B.;

Mattos, R.M. (orgs). Ensinar Saúde: a integralidade e o SUS nos cursos de graduação na área da saúde. Rio de Janeiro: IMS/UERJ:CEPESC: ABRASCO, 2005, p. 126.

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aprendizagem de fato ocorra, faz-se necessário que o novo conteúdo apresentado tenha

significado para este sujeito e que ele esteja motivado a inter-relacionar o que lhe é

apresentado com o que já sabe, buscando a interação destes dois conteúdos, a fim de

formular um terceiro e único conteúdo elaborado por ele mesmo. Dessa forma, está

intrinsecamente relacionada e surge como uma questão central na proposta de Paulo

Freire, visto que para o autor é fundamental nesse processo o respeito à autonomia do

sujeito que ora está colocado enquanto educando. Esse aprendizado deve se dar no seu

próprio tempo, possibilitando a “dialogicidade verdadeira” (Freire, 1999, p.67), o

protagonismo dos sujeitos em cena, configurando um processo guiado pela metodologia

ativa de aprendizagem.

O diagrama a seguir é uma das representações que pode nos remeter a esta

metodologia ativa de aprendizagem. Maguerez apud Bordenave & Pereira (1995 p.

10,49), seu autor, o chamou de “método do arco” (figura 1).

Figura 1: Método do Arco

Fonte: Bordenave & Pereira, 1995 apud Franco, Camilla (2011).

Para Bordenave16

& Pereira (1995), a aprendizagem vista desta forma torna-se

uma pesquisa em que o aluno passa de uma visão sincrética, ou global do problema,

para uma analítica do mesmo – através de sua teorização – para chegar a uma síntese

provisória, que equivale à compreensão. Desta apreensão ampla e profunda da estrutura

do problema, causas e determinantes, são elaboradas hipóteses de solução. A síntese

tem continuidade na práxis, isto é, na atividade transformadora da realidade.

Entretanto, a Educação Problematizadora extrapola esse esquema, se pensarmos

que, na última fase do arco, o educando pratica as soluções que o grupo encontrou, ou

ele mesmo nas suas análises, confrontando suas hipóteses de solução com a realidade,

ocorrendo uma confrontação entre o ideal e o real, suas questões e o outro, valores,

16

De acordo com Camargo Jr. et al, 2008, p. 141: “Juan Díaz Bordenave, agrônomo, paraguaio,

estruturou sua proposta pedagógica com base em teorias construtivas e em reflexões de outros autores

como Charles Maguerez (...), que também desenvolvia ações de assessoria e capacitação entre grupos

de agricultores latino-americanos na década de 1960. (...) A influência do pensamento de Paulo Freire

também se verifica na explicitação de uma compreensão da dimensão política do processo de ensino-

aprendizagem, como uma relação entre sujeitos históricos”.

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necessidades, enfim, configura-se um campo de disputas interno ao próprio trabalhador,

no qual a configuração da sua subjetividade entra em cena. Esses confrontos provocam

no trabalhador a reflexão e aprofundamento sobre os conceitos usuais nas suas práticas,

permitindo-o perceber um campo mais ampliado de possibilidades de fazer, articulando

a interface com saberes e práticas de outras áreas, e ao mesmo tempo suas análises

retornam pra si mesmo como interrogação do seu próprio fazer, colocando-o em questão

junto com os problemas nos quais põe em foco. O trabalhador, então, utiliza a realidade

para aprender e, ao mesmo tempo, transformá-la, na busca de respostas para os

problemas da população, seu saber e fazer na saúde. Quando ele retorna para a prática

com a finalidade de nela intervir, esta realidade já não é mais a mesma, ela foi

modificada, tal como o olhar deste sobre a realidade. O esquema elaborado por Franco

(2011) e apresentado a seguir esclarece esta ideia:

Figura 2: Esquema representativo do processo de ensino-aprendizagem na

educação problematizadora

Fonte: Franco, Camilla (2011), p. 49.

Camilla Franco propõe que esse esquema representativo do método do arco não

seja circular, mas em forma de espiral, possibilitando diversos sentidos e direções,

ilustrando a dinâmica do processo de ensino-aprendizagem. “Esse novo esquema nos

mostra que o trabalhador não retorna ao mesmo ponto de partida, a mesma realidade,

mas sempre ressignifica essa realidade na relação teoria e prática” (Franco, 2011, p. 49),

e sempre em relação consigo mesmo, entre suas constantes idas e vindas no

aprendizado. Forma-se, deste modo, uma cadeia de ação-reflexão-ação, tendo como

ponto de partida e chegada a realidade social, que sofre mudanças por linhas de força

circulantes pela ética, a política e a subjetividade presente nesses emaranhados de

relações e práticas de saúde.

Page 11: Educação Permanente como Prática

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A Educação Permanente permite aos trabalhadores refletirem sobre as suas

experiências vividas no trabalho, estabelecendo os nexos da teoria com a realidade

vivenciada, possibilitando a transformação de suas ações, deflagrando um processo

dialético de prática-reflexão-práxis. Sobre isso, Gasparin (2007) conclui que se a prática

é o ponto de partida e de chegada no campo da criação do conhecimento, a práxis daí

advinda, além de transformar a realidade social, forma e transforma o próprio sujeito

fazedor-pensador desta práxis. Acreditamos que esta forma de produção do

conhecimento significa, no olhar da educação crítica, segundo Saviani (2003, p. 31), a

“luta contra a seletividade, a discriminação e o rebaixamento do ensino das camadas

populares” a fim de evitar que a educação seja aprisionada e elaborada de acordo com

os interesses hegemônicos. Dessa forma, possibilita trabalhar o conhecimento científico

e político intimamente relacionado com a possibilidade da criação de uma sociedade

democrática e uma educação ética e politicamente contextualizada. Este processo, na

lógica da formação em saúde, coloca-nos o desafio de incorporar as demandas sociais

no processo de ensino-aprendizagem, possibilitando a construção de um modelo de

atenção à saúde usuário-centrado, que seja em defesa da vida individual e coletiva.

Este trabalho ajuda-nos a pensar nos elementos que devem estar presentes na

caixa de ferramentas do educador para a Educação Permanente em Saúde. Tal caixa de

ferramentas contém o conjunto das tecnologias da educação e da saúde como

instrumentos para a prática educativa, desvelando alguns conceitos e termos da

educação para a saúde e colocando o processo de trabalho como elemento central de

análise para a Formação em Saúde. Assim, ela tem o compromisso com o sujeito da

ação, o trabalhador da saúde.

A Educação Permanente não tem, a princípio, uma força para a transformação da

realidade, pois, dependendo da situação em que é implantada e trabalhada, pode

representar apenas uma retórica de certas abordagens pedagógicas. Para que a EP se

materialize em prática transformadora, é necessário estar atento à metodologia utilizada

no processo educativo, assim como às práticas no cotidiano dos profissionais da

educação na saúde, que devem ser potentes o suficiente para disparar o processo de

transformação dos sujeitos.

Compreendemos que a EP tem como objeto de transformação o processo de

trabalho que envolve a produção do cuidado, possibilitando que o trabalhador, durante o

processo de ensino-aprendizagem, recrie as suas práticas de forma a melhorar a

qualidade dos serviços. A prática educativa em saúde, dependendo da metodologia

empregada, permite aos atores do processo refletir sobre o que ocorre no serviço, e

sobre o que precisa ser mudado no mesmo. O contexto da Educação Permanente em

Saúde valoriza o processo de trabalho como centro privilegiado da aprendizagem,

tomando-o ao mesmo tempo como objeto de análise e transformação, e ainda pode

disparar processos de autoanálise e autogestão dos próprios trabalhadores individuais ou

coletivos17

.

17

Autoanálise e autogestão são conceitos da Análise Institucional, trabalhados por Baremblitt (2002). O

primeiro refere-se ao processo de produção e reapropriação por parte dos coletivos autogestionários dos saberes acerca de si mesmo, desejos, demandas, necessidades. A autoanálise possibilita aos sujeitos o conhecimento das causas da sua alienação. Já autogestão refere-se ao processo e o resultado da

Page 12: Educação Permanente como Prática

12

Assim, pensamos nesses processos como possíveis através de uma “pedagogia

da implicação”, na qual os sujeitos estejam de fato comprometidos, envolvidos,

cúmplices de tudo o que vivem no âmbito do seu trabalho, e trazem estes sentimentos

para o processo de aprendizagem como algo natural, sendo um parte do outro. Apenas o

sujeito implicado pode ser o sujeito da mudança. A questão metodológica e a atividade

dos sujeitos no processo educativo são fundamentais para os resultados da EP. Para

Merhy (2005), a proposta pedagógica da EP possibilita a articulação com o novo agir do

sujeito, ao qual chamamos de agir instituinte. Para o autor, esse seria o cerne do desafio:

provocar “auto-interrogação” de si mesmo no agir produtor do cuidado; colocar-se

ético-politicamente em discussão no plano individual e coletivo do trabalho.

Freire e Nogueira (2002) nos levam a entender a educação como o esforço de

mobilização, organização e capacitação científica e técnica de grupos sociais. Desta

forma, a compreendemos como uma prática política, pois se compromete com a

mudança dos sujeitos e do mundo, na medida em que os sujeitos produzem o mundo e

são produzidos por ele.

Acreditamos que questionar, fazer perguntas para a realidade concreta, ir ao

encontro do cotidiano, é fundamental para estabelecer uma certa “intimidade” entre os

saberes socialmente construídos e a experiência do mundo do trabalho.

A EXPERIÊNCIA DE VOLTA REDONDA

O Programa de Educação Permanente em uma de suas atividades instituiu as

“Oficinas da Rede Básica” como lugar de processamento do ensino e aprendizagem aos

gestores das Unidades Básicas de Saúde. Reunia em torno de 60 gerentes em encontros

intensivos por dois dias no mês, e um período de dispersão no qual havia sempre uma

tarefa a ser cumprida pactuada na própria Oficina, geralmente envolvendo a equipe

local, como forma de levar até o conjunto dos trabalhadores as discussões, assim como

buscar entre eles novas possibilidades temáticas a serem enfrentadas.

As Oficinas eram um momento de síntese de discussões circulantes entre os

trabalhadores nas suas respectivas unidades, entre gerentes e destes com os diversos

fóruns que participavam na rede de saúde. No início buscou-se problematizar a relação

dos gerentes com os usuários, com os outros profissionais, com os espaços de cuidado,

enfim, buscava-se revelar para eles mesmos quais representações tinham do próprio

processo de trabalho e cuidado na saúde. Com questões que levavam os participantes a

interrogarem o emaranhado de relações que habitavam o mundo de cada um, aos poucos

se foi revelando o quanto os cenários do trabalho e do cuidado eram plenos de

significados. Independente de qualquer julgamento que pudesse indicar uma atitude

moral frente aos conteúdos que cada um trazia do seu local de trabalho e práticas,

buscava-se sempre pôr em análise pelos próprios participantes os sentidos que os

mesmos imprimiam ao seu próprio núcleo de vivências cotidianas.

organização independente dos coletivos, que elaboram dispositivos próprios para gerenciar suas condições e modos de existência de forma instituinte e não hierárquica.

Page 13: Educação Permanente como Prática

13

O ambiente de aprendizagem era marcado então por movimentos de ida e vinda,

deslocamentos entre equipes dentro dos inúmeros cenários de trabalho, que

expressavam múltiplos encontros, os quais tinham sempre algum efeito entre os que se

encontravam: afecções capazes de deslocar cada um de um fazer autômato que é

imposto pelo ritmo de trabalho na gestão dos serviços. Pretende-se que com as

atividades de EP que vazam para além das oficinas, faça com que o pensamento e o

plano sensível de cada um passe a compor a paisagem dos fazeres na rede de serviços.

Esse exercício foi sendo construído ao longo do tempo e as ferramentas para o

processo de aprendizagem eram expostas conforme demanda das próprias discussões.

Foram usadas:

i) Problematizações sobre os serviços e a relação de cada um com os mesmos, no

plano dos significados. Por exemplo, a pergunta “qual o maior problema no

trabalho na sua unidade?”, feita aos coletivos de trabalhadores em serviço, serve

como disparador para uma infinidade de outras questões e debates sobre os

incômodos presentes, as tensões existentes, e que quase sempre não são

expressas e nem processadas em análise pelos trabalhadores, algo essencial para

a superação. Muitas outras questões deste perfil foram usadas como

disparadoras.

ii) As ferramentas analisadoras dos processos de trabalho - fluxograma

analisador, rede de petição e compromissos, mapas analíticos, (Franco e Merhy,

2003; 2009) - foram utilizadas em vários momentos para auxílio nas análises dos

processos de trabalho das equipes com discussões nas “Oficinas da Rede

Básica”.

iii) Estudos de casos em que os gerentes levantaram previamente junto às suas

equipes, com levantamento de dados e narrativas dos trabalhadores sobre os

mesmos. Os casos são uma fonte muito rica de aprendizagem, pois revelam de

forma viva e a quente o sofrimento do usuário, muitas vezes compartilhado pela

equipe, as angústias do cuidador, suas tensões, dúvidas e os inúmeros processos

que envolvem outros serviços dentro da rede, sejam assistenciais ou na gestão, e

que trazem novos campos de tensionamento para o cuidado.

iv) Conceitos. Inúmeros modos de formular o pensamento sobre os campos que se

cruzam nos cenários de práticas de gestão e cuidado, em forma de micro redes,

rizomáticas18

. Os conceitos são ferramentas com alto poder de intervenção nos

coletivos de trabalhadores e são extraídos da literatura que ajuda a compreender

o que se passa na cena do trabalho, como também são inventados em ato, nas

análises e autoanálises processadas nas oficinas. Qualquer um pode inventar

conceitos e usá-los como instrumentos de construção de novos devires para seu

processo de trabalho e relações constitutivas no ato de cuidar.

18

Redes rizomáticas se refere à cartografia deleuziana expressa no conceito de Rizoma (Deleuze, 1992),

usado por Franco (2006) para caracterizar as redes na micropolítica do processo de trabalho em saúde,

entendendo-as não estruturadas, múltiplas, com alta potência de realização, e que são operadas pelos

próprios trabalhadores no seu cotidiano.

Page 14: Educação Permanente como Prática

14

Com o avanço do trabalho e análise e intervenção na rede básica de saúde

proporcionado pelas oficinas, percebeu-se a necessidade de incorporar toda a rede de

saúde na mesma oficina e esta foi transformada em “Oficina de Redes”. Juntaram-se

então à rede básica, áreas técnicas, saúde mental, serviços especializados, de alta e

média complexidade, urgências e hospitalar. E esse foi um dos momentos preciosos

vividos no processo ao percebermos que os próprios gerentes constatavam em ato a

precariedade das relações de rede existente até então. Muitos gerentes até então

percebiam a rede apenas do seu lugar específico e não conheciam plenamente as ofertas

de outras redes, conversavam protocolarmente, muitas vezes sem a percepção plena de

que no meio de toda esta atividade está o usuário e seu problema de saúde.

A “Oficina de Redes” proporcionou um conhecimento mútuo, compartilhado, de

muitas ofertas da rede de saúde. Casos foram discutidos entre redes diferentes,

pactuações e novas possibilidades de intervenção se abriram formando uma composição

mais potente para o trabalho. As tensões continuam operando no cenário como um

analisador permanente a instigar e provocar desacomodações. Uma delas se refere à

baixa participação da rede hospitalar nestas oficinas; outra, à dificuldade de estabelecer

relações consistentes inter-redes que operam como rotinas no cotidiano dos serviços; e

ainda a falta de certos recursos. A “Oficina de Redes” é um lugar privilegiado de

processamento de todas estas questões, em uma permanente aposta de produção,

autoprodução e reprodução de sentidos para o cuidado em saúde. A reprodução que

significa o retorno a velhos paradigmas é uma ameaça constante. É preciso sempre uma

atenção sobre os movimentos na rede, os enunciados que dão sentidos ao que se faz no

cotidiano e um permanente processo de análise e autoanálise, que ajudam a revelar as

baixas potências que retornam à cena vez ou outra.

A gestão da saúde em Volta Redonda usa a Educação Permanente como um

dispositivo, algo que tem força para desacomodar o parado, quebrar o cristalizado,

desterritorializar o fixado, enfim, um amálgama de discursos, relações, micro-poderes,

afecções, capazes de disparar novos e diferentes processos de intervenção na rede SUS.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo fala de um plano de construção das políticas de saúde, o do cotidiano,

nos seus fazeres miúdos, e ao mesmo tempo monumentais, que sustentam no plano

concreto a produção do cuidado. O lugar do qual falamos é o da micropolítica, ponto de

encontro entre os que produzem saúde, sejam trabalhadores ou usuários, e, portanto

lugar de intensidades, dinâmico, e de extrema complexidade na medida em que os que

se encontram são igualmente sujeitos com capacidades de produzir aquele momento.

Um projeto de mudança de paradigmas no funcionamento dos serviços de saúde

requer como pressuposto que haja a produção de um novo sujeito, capaz de romper com

os velhos modelos de cuidado, construindo para si possibilidades novas e diferentes no

trabalho em saúde. E a construção de sujeitos está diretamente relacionada à educação.

É no cenário de trabalho associado a propostas de mudança que surge a Educação

Permanente. Sua potência se encontra justamente no fato de que, ao usar os cenários de

trabalho e práticas como insumo para o processo de ensino, a EP abre a possibilidade de

Page 15: Educação Permanente como Prática

15

aprendizagem com o próprio trabalho, utilizando de pedagogias ativas, a

problematização frequente das práticas e, sobretudo, a ideia de aprendizagem

significativa. Entendemos que a EP se arma de um arsenal volumoso de conceitos com

alto poder de intervenção para operar uma proposta educacional com alto poder de

produção de novos sujeitos, novas práticas, e habilidade para implementar processos de

mudança no âmbito das políticas.

Uma última questão importante é que a EP pode ser apropriada para qualquer

fim, ou seja, como recurso de maior controle e apropriação do trabalho; ou, ao contrário,

como dispositivo de mudança dos sujeitos para o exercício de maior liberdade, criação,

requisitos para um processo educacional altamente produtivo, e que ao se produzir

intervém na construção do mundo e de novas políticas. A EP necessita que o seu

significado seja explícito, qualificado, para que fique claro o uso que está sendo feito

desta proposta, ao mesmo tempo em que se deve expressar seu grande potencial

instituinte. É nisto que este texto aposta: no uso da EP para a produção de um novo

sujeito, pelo seu método e sua capacidade em operar processos de produção de

conhecimento, associados à produção de uma nova subjetividade. Essas duas dimensões

devem caminhar juntas para mudar os sujeitos e, com eles, seu processo de trabalho e as

práticas de cuidado. Só um processo pedagógico que toma os cenários do cotidiano e

seus protagonistas como objetos de análise consegue caminhar nessa direção.

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