EDUCAÇÃO PARA O CONSUMO. A EFETIVA TUTELA DOS … · a implantação de uma educação para o...

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1 SUMÁRIO SUMÁRIO ................................................................................................................. 1 INTRODUÇÃO.......................................................................................................... 2 1 DIREITOS FUNDAMENTAIS ........................................................................ 7 1.1 Nomenclatura dos Diretos Fundamentais .............................................. 8 1.2 A História da Positivação dos Direitos Fundamentais ......................... 18 1.3 Fundamento Filosófico: O Princípio da Dignidade Humana ................ 30 1.4 Classificação dos Direitos Fundamentais ............................................ 41 2 A DEFESA DO CONSUMIDOR COMO DIREITO FUNDAMENTAL .......... 47 2.1 O Surgimento da Sociedade de Consumo........................................... 47 2.2 A Relação Jurídica de Consumo .......................................................... 52 2.3 A Previsão Constitucional da Defesa do Consumidor ......................... 61 3 A PRINCIPIOLOGIA DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR ....... 67 3.1 Os Princípios do Código de Defesa do Consumidor ........................... 70 3.2 A Política Nacional de Relações de Consumo .................................... 79 3.3 Objetivos da Política Nacional.............................................................. 84 4 EDUCAÇÃO COMO MEIO DE FORTALECIMENTO DA RELAÇÃO JURÍDICA DE CONSUMO.................................................................................. 88 4.1 A Educação para o Consumo no Mundo Globalizado ......................... 91 4.2 A Previsão Constitucional e Infra-constitucional do Direito a uma Educação-cidadã........................................................................................... 104 4.3 A Formação da Consciência Crítica do Consumidor como uma das Formas de Garantir sua Liberdade de Escolha ............................................ 110 4.4 A Efetivação dos Direitos do Consumifor por Meio da Educação para o Consumo. Ideal x Realidade ......................................................................... 113 CONCLUSÃO ........................................................... Erro! Indicador não definido. BIBLIOGRAFIA ..................................................................................................... 124

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    SUMRIO

    SUMRIO .................................................................................................................1

    INTRODUO..........................................................................................................2

    1 DIREITOS FUNDAMENTAIS ........................................................................7

    1.1 Nomenclatura dos Diretos Fundamentais..............................................8

    1.2 A Histria da Positivao dos Direitos Fundamentais .........................18

    1.3 Fundamento Filosfico: O Princpio da Dignidade Humana................30

    1.4 Classificao dos Direitos Fundamentais ............................................41

    2 A DEFESA DO CONSUMIDOR COMO DIREITO FUNDAMENTAL ..........47

    2.1 O Surgimento da Sociedade de Consumo...........................................47

    2.2 A Relao Jurdica de Consumo..........................................................52

    2.3 A Previso Constitucional da Defesa do Consumidor .........................61

    3 A PRINCIPIOLOGIA DO CDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR .......67

    3.1 Os Princpios do Cdigo de Defesa do Consumidor ...........................70

    3.2 A Poltica Nacional de Relaes de Consumo ....................................79

    3.3 Objetivos da Poltica Nacional..............................................................84

    4 EDUCAO COMO MEIO DE FORTALECIMENTO DA RELAO

    JURDICA DE CONSUMO..................................................................................88

    4.1 A Educao para o Consumo no Mundo Globalizado.........................91

    4.2 A Previso Constitucional e Infra-constitucional do Direito a uma

    Educao-cidad...........................................................................................104

    4.3 A Formao da Conscincia Crtica do Consumidor como uma das

    Formas de Garantir sua Liberdade de Escolha ............................................110

    4.4 A Efetivao dos Direitos do Consumifor por Meio da Educao para o

    Consumo. Ideal x Realidade .........................................................................113

    CONCLUSO ........................................................... Erro! Indicador no definido.

    BIBLIOGRAFIA.....................................................................................................124

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    INTRODUO

    O presente trabalho pretende analisar a presena de uma educao para o

    consumo, garantida na Constituio Federal e prevista como princpio norteador

    do Cdigo de Defesa do Consumidor, enquanto meio de fortalecimento dos

    direitos dos consumidores. Para tanto, pretendemos analisar as dimenses que

    esta educao deve assumir para contribuir na formao de um cidado cnscio

    de seus direitos sociais, capacitado para fazer uma escolha consciente nas

    relaes de consumo e, portanto, um sujeito apto a lutar pela efetivao destes

    direitos.

    Importante, neste passo, situar a defesa do consumidor no contexto dos direitos

    fundamentais, bem como descrever a trajetria percorrida para a regulamentao

    do Cdigo de Defesa do Consumidor, procurando ainda, analisar a importncia dos

    direitos do consumidor nos mbitos jurdico e social.

    Com este propsito, pretendemos iniciar a anlise falando dos direitos

    fundamentais, sua historicidade e fundamento filosfico, estabelecido no princpio

    da dignidade da pessoa humana, para ao final do primeiro captulo classific-los

    em geraes distintas e sucessivas, buscando identificar a defesa do consumidor

    como direito fundamental de terceira gerao.

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    Os fundamentos institudos na Constituio Federal, em 1988, modificaram o

    Direito, brasileiro, vez que estabeleceram parmetros de atuao, limites e

    objetivos que devem ser perseguidos e respeitados pelo Estado, de forma a

    atender ao pressuposto da dignidade humana, da cidadania e da livre iniciativa,

    objetivando a construo de uma sociedade livre, justa e solidria, com reduo

    das desigualdades sociais e erradicao da pobreza, sem olvidar a garantia do

    desenvolvimento nacional.

    Os preceitos da norma mxima, que aparentemente trazem contradies

    insuperveis, demonstram que a pessoa humana o valor fundante do Estado

    Democrtico de Direito Brasileiro, e que os direitos fundamentais institudos, por

    sua vez, conseqncia de uma conquista histrica, representam um novo

    paradigma para toda a sociedade atual, que embora complexa e extenuada,

    admite o nascimento de novos direitos ao indivduo.

    A identificao da defesa do consumidor como direito fundamental, a ser tratado

    no segundo captulo, abre espao para realizarmos um breve estudo do

    surgimento da proteo legal aos direitos do consumidor, contextualizando o

    momento histrico poltico-cultural em que se deu o surgimento destes direitos.

    Vamos notar que, transformaes profundas ocorreram na economia, com a

    sedimentao do modo de produo industrial, causando reflexos diretos e

    definitivos na vida social, seja do sujeito individualmente, ou da coletividade como

    um todo, inseridos que foram na sociedade de massa.

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    O subsistema legal criado pelo Cdigo de Defesa do Consumidor inaugurou uma

    nova filosofia de acesso e regulamentao das relaes jurdicas de consumo,

    aspecto que ser abordado no terceiro captulo, analisando o papel do consumidor

    e do fornecedor, bem como, do objeto desta relao, que a aquisio de bens

    ou a utilizao de servios. Analisar-se- como a implementao de princpios

    prprios relao de consumo visa promover a harmonizao e equalizao desta

    relao, atravs da previso de uma Poltica Nacional de Relaes de Consumo,

    com mecanismos legais e infra-legais destinados a minimizar a polarizao

    existente entre os sujeitos partcipes.

    Ainda no terceiro captulo ser feita uma anlise detalhada dos princpios

    peculiares relao de consumo, para ento, no quarto e ltimo captulos,

    adentrarmos no tema da educao do consumidor, institudo como um dos

    princpios norteadores da Poltica Nacional das Relaes de Consumo (artigo 4 ,

    inciso IV) e como direito bsico do consumidor, Cdigo de Defesa do Consumidor

    (artigo 6, inciso II).

    Procuraremos neste captulo, realizar uma anlise acerca da educao para o

    consumo no mundo globalizado, tendo o cuidado de diferenciar a prtica do

    consumo de uma prtica consumista, eivada de distores scio-culturais, capazes

    de causar um distanciamento valorativo no indivduo, uma vez que sua insero

    no mercado se d, desde cedo, sem nenhuma preocupao com a preservao ou

    a criao de uma postura crtica acerca do processo de consumo, mas to

    somente com o intuito de cristalizar a idia de que ele deve atender aos seus

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    desejos de consumo, custe o que custar, desejos estes despertados pela atuao

    eloqente e eficaz da mdia, que, por sua vez, atua a servio das empresas.

    Mostraremos que a nossa Constituio Federal conjugou de forma expressa, os

    direitos fundamentais, a cidadania e a educao como querendo significar que

    no h garantia dos direitos fundamentais previstos na lei sem o exerccio da

    cidadania, e que no h cidadania sem uma educao adequada que lhe garanta

    o exerccio.

    E ainda, que a mesma importncia dada educao na Constituio Federal foi

    tambm dada educao dos consumidores no Cdigo de Defesa do Consumidor,

    visando torn-los capacitados nas decises de compra. Esta preocupao,

    segundo anlise deste trabalho, implica diretamente no exerccio de cidadania,

    medida que a facilitao das informaes relativas relao de consumo, por

    meio da educao, favorece a apreenso de conhecimentos indispensveis uma

    relao mais igualitria, e portanto, mais justa entre os consumidores e os

    fornecedores.

    A formao da postura crtica do cidado consumidor, como veremos,

    decorrncia de uma educao diferenciada, a educao para o consumo, voltada

    para a tica nas relaes de consumo e destinada preservar a dignidade

    humana salvaguardando a igualdade entre os sujeitos desta relao. Este

    posicionamento, como procuraremos demonstrar, dever se dar atravs do

    envolvimento poltico, no melhor sentido do termo, destes indivduos

    consumidores na sociedade.

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    O trabalho ser finalizado com a apresentao de um conjunto de sugestes para

    a implantao de uma educao para o consumo que preserve e fortalea as

    relaes entre consumidor e fornecedor. Teremos a oportunidade de apresentar

    algumas boas idias j divulgadas e que mostram grande preocupao de alguns

    setores da sociedade civil e de rgos do poder pblico com a educao para o

    consumo.

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    1 DIREITOS FUNDAMENTAIS

    O presente captulo tem como objetivo analisar como se deu a conquista jurdica

    dos direitos fundamentais no decorrer da histria e como esta trajetria

    evidenciou tendncias filosficas que se refletiram em caractersticas dos direitos

    conquistados, ampliando a possibilidade dos direitos humanos se efetivarem.

    A compreenso desta historicidade define uma tendncia filosfica do direito em

    cada poca, e ir permitir a anlise das caractersticas dos direitos do consumidor

    e sua relao com os direitos fundamentais, evidenciando tambm como os

    fundamentos e garantias institudos na Constituio Federal respondem a essa

    tendncia.

    Resultado efetivo desta trajetria de conquistas de direitos humanos observa-se

    na Constituio Federal que construiu um novo Direito, abarcando as no to

    novas preocupaes com os direitos e garantias individuais e coletivos de

    primeira, segunda e terceira geraes, realizando o primeiro grande passo para a

    afirmao destes direitos, que sua positivao.

    Como afirma Bittar:

    Das conquistas modernas, talvez esta (direitos humanos) seja a de maior valor, na prpria medida em que as Declaraes so afirmativas da necessidade de proteo da dignidade da pessoa humana, da primeira gerao de direitos humanos (direitos individuais), passando pela segunda gerao de direitos humanos (direitos sociais), terceira gerao de direitos humanos (direitos

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    ambientais, direitos difusos) (...) se so historicamente construdos, se foram sistematizados e positivados pelo movimento positivista liberal de direito, se foram trivializados com a paulatina transformao do prprio jusnaturalismo em juspositivismo no constitucionalismo contemporneo, com a conseqente descartabilidade de seus textos, isto no afasta seu carter paradigmtico na busca de solues razoveis para a orientao dos direitos vigentes em sociedade.1

    Neste estudo ser analisada a trajetria histrica dos direitos fundamentais,

    considerando: a nomenclatura utilizada para defini-los; o caminho percorrido para

    sua positivao e; as fases destas conquistas divididas em geraes de direitos

    que o homem lutou para v-los inseridos na sociedade, a ponto de estarem aptos

    a produzir um dever por parte do Estado, em face do indivduo.

    1.1 NOMENCLATURA DOS DIRETOS FUNDAMENTAIS

    O homem sujeito de direitos os quais desconhece e precisa conhecer, para que

    possa ser capaz de interferir positiva e significativamente em sua vida e na vida

    do outro, possibilidade esta, que estar ao alcance de todos, medida que os

    indivduos, organizados, coletivamente, descobrirem-se capazes de desempenhar

    um papel fundamental, na soluo de seus prprios problemas sociais.

    Os estudos das diferentes nomenclaturas recebidas pelos direitos fundamentais e

    seus correlatos, importante, medida que representam as modificaes sofridas

    no evolver dos acontecimentos histricos, que foram delineando a construo dos

    direitos analisados. Certamente que todo termo cunhado revela sua historicidade

    1 BITTAR, Eduardo C.B. O Direito na Ps Modernidade. Forense, RJ, 2005, p. 285.

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    e seus princpios formadores e, o estudo destes facilita a compreenso de seu

    significado.

    O termo fundamental, por si s, j traduz a idia de algo essencial, bsico,

    imprescindvel, sendo este o ponto de partida para a anlise da nomenclatura e

    conceituao recebidas pelos direitos fundamentais.

    Antes de ingressar no conceito de direitos fundamentais, importante trazer

    lume a existncia de muitas denominaes para estes direitos, podendo-se

    identificar alguns aspectos diferentes em cada uma delas.

    Os termos direitos naturais, direitos humanos, direitos da pessoa humana,

    liberdades pblicas, liberdades individuais e direitos fundamentais do homem so

    similares, contudo, possuem algumas diferenciaes que se tentar identific-las.

    A dificuldade em diferenciar uma e outra nomenclatura, se d em funo de que,

    algumas vezes, os termos so usados como sinnimos, e em outras, traduzem

    vises diferentes acerca dos direitos fundamentais.

    Durante o processo de evoluo histrica da afirmao dos direitos fundamentais,

    tratou-se de firmar a escolha natural dos termos e, nas declaraes internacionais

    de direitos, o termo comumente empregado direitos humanos, os quais, por

    sua vez, uma vez incorporados nas Constituies de cada pas, foram introduzidos

    como direitos fundamentais.

    A Declarao Universal dos Direitos Humanos usa as expresses direitos do

    homem e direitos fundamentais do homem, expressando que:

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    [...] na Carta, os povos das Naes Unidas proclamam, de novo,

    sua f nos direitos fundamentais do Homem, na dignidade, e no valor da pessoa humana, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres e se declaram resolvidos a favorecer o progresso social e a instaurar melhores condies de vida dentro de uma liberdade mais ampla, para depois considerar que: ... os Estados-Membros se comprometeram a promover, em cooperao com a Organizao das Naes Unidas, o respeito universal e efetivo dos direitos do Homem e das liberdades fundamentais.

    Portanto, como se pode notar: as expresses utilizadas podem atingir dimenses

    diversas quando utilizadas em contextos distintos, sendo este o parmetro a ser

    utilizado para a correta diferenciao e conceituao dos termos relacionados aos

    direitos fundamentais. Ento, para a compreenso dos diferentes termos faz-se

    necessrio distingu-los dentro dos contextos em que foram cunhados, analisando

    e compreendendo, para tanto, a viso da postura jusnaturalista e da postura

    positivista.

    O pensamento jusnaturalista nasceu na Grcia, de Aristteles, a partir das

    observaes de que o mundo dos corpos no se deve aos Deuses e Mitos, mas

    sim explicada pela cincia, e esta cincia a Fsica.

    A Fsica experimental de Aristteles (cincia dos fenmenos) um magnfico edifcio intelectual completamente prejudicado por erros de fato. Mas seu Fsica Filosfica (cincia do ser mvel como tal) contm os fundamentos e os princpios de toda a verdadeira filosofia da natureza. 2

    Certamente, como conseqncia da influncia do pensamento filosfico dos

    gregos sobre Ccero, o qual era grande admirador de Plato, que este se

    destaca em suas reflexes acerca da existncia de um Direito Natural, baseado

    2 MARITAN, Jacques. Introduo Geral Filosofia, 14 ed. Agir, SP, 1985.

  • 11

    numa Lei Natural, que rege a conduta humana e que sintetiza o nascimento da

    razo, distinguindo o bem do mal.

    Ccero viveu em Roma, fez parte da sociedade romana e suas reflexes sobre a

    origem do Direito Romano, da poca, no se detiveram nas razes culturais ou nos

    elementos puramente prticos daquela formao. A partir de uma postura

    filosfica, introspectiva e reflexiva, fez uma ntida distino entre o Direito Positivo

    e o Direito Natural, pois segundo ele, antes de qualquer conveno dos homens,

    suas virtudes, sua tica e, portanto, sua felicidade, dependia da exata

    compreenso do que a Lei Natural, soberana, anterior, proveniente da Natureza,

    acreditando que: no que diz respeito ao Direito Natural, devemos pensar e falar

    por nossa prpria conta; porm, quando se trata do Direito Romano, temos que

    nos referir aos documentos e s tradies. 3

    Ccero desenvolve e defende a idia de que a lei pr-existe ao homem e o coloca

    da todos em situao de igualdade, mas esta igualdade entre os homens o coloca

    em vantagem em relao aos demais seres, que no possuem a razo, pois a

    razo, segundo ele, que:

    [ ...] conforme a natureza, gravada em todos os coraes, imutvel, eterna, cuja voz ensina e prescreve o bem, afasta o mal que probe e, ora com seus mandados, ora com suas proibies, jamais se dirige inutilmente aos bons, nem fica impotente ante os maus. Essa lei no pode ser contestada, nem derrogada em parte, nem anulada; no podemos ser isentos de seu cumprimento pelo

    3 Cf. Ccero, das Leis, apud de Eduardo C.B. Bittar. Curso de Filosofia do Direito. 3 ed., Atlas Jurdico, SP, 2004.

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    povo nem pelo Senado; no h que procurar para ela outro comentador nem intrprete. 4

    Portanto, desde Ccero, na antiga Roma, os direitos naturais do homem eram

    provenientes da Lei Natural, e a existncia desta poderia ser demonstrada atravs

    da anlise da conduta do prprio homem em relao aos atos criminosos, pois,

    uma conduta humana poderia no estar prevista como crime na lei escrita e

    representar, ao mesmo tempo, afronta Lei Natural, que a todos governa, pois o

    homem tem a noo intuitiva do bem, de acordo com a razo eterna e divina,

    sendo, ento, esta Lei Natural, que deve inspirar o legislador social.

    Depois deste perodo inicial, o pensamento jusnaturalista evoluiu de forma a

    procurar um novo sentido para as questes que regem a sociedade, uma vez que

    a queda do Imprio Romano fez surgir a necessidade de explicar os dogmas

    cristos que amparavam o pensamento filosfico, e que fundamentavam a

    existncia da lei divina a reger o Universo.

    Foi por intermdio da anlise de John Locke5 que surgiu a idia de que os

    homens, embora sujeitos lei da natureza, em seu estado natural, no poderiam

    garantir que todos vivessem em perfeita harmonia e felicidade, pois os princpios

    prprios da sua natureza poderiam ser por eles abandonados, em renncia

    razo e numa forma de transgresso.

    4 Cf. Ccero, Da Repblica, trad., par. XVII, p. 75, apud de Eduardo C.B. Bittar, 3 ed. , Atlas Jurdico, SP, 2004. 5 LOCKE, John. Coleo Os Pensadores. Histria da Filosofia. p. 244

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    Este momento histrico filosfico, representa o rompimento do pensamento

    jusnaturalista com a teocracia e sua aproximao com a razo, eis que conforme

    Locke, na prtica, a evidncia da lei de natureza no previne que ela seja

    ignorada ou desprezada 6, donde decorre a importncia da razo, pois, somente

    o homem que fizer uso de sua razo ir impedir a guerra, respeitando a liberdade

    e os direitos do outro.

    Todavia, parecendo muito difcil exercer este controle da liberdade, do homem

    pelo homem, que ele transfere o poder a um corpo poltico que o ir executar,

    individual ou coletivamente, mas sempre com a finalidade de concentrar o direito

    de punir queles que agem contra a razo instalando o estado de guerra, a fim de

    preservar a paz e a segurana aos membros da sociedade.

    Este pacto firmado que d origem ao Estado Civil, no puro objetivo de garantir a

    vigncia e proteo aos direitos naturais, bom que se diga, no ilimitado, pois

    o Estado/Juiz deve sempre se pautar pela lei da natureza, segundo os

    jusnaturalistas.

    Neste segundo momento do pensamento jusnaturalista prevaleceu a idia de que

    as normas jurdicas, emanadas pela natureza, eram apreendidas pelo homem

    atravs de seu conhecimento racional, sendo estas, sem dvida, as bases para o

    pensamento que impulsionou a Revoluo Francesa, que por sua vez vai romper

    6 LOCKE, John. Ob. cit. p. 244

  • 14

    de modo definitivo e prtico com a teocracia e afirmar de uma vez por todas a

    existncia dos direitos naturais do homem.

    A doutrina jusnaturalista foi sendo desenvolvida ao longo da histria da filosofia

    jurdica e consolidando-se, por sua vez, em distintas perspectivas, o que dificulta a

    definio sinttica acerca dos direitos naturais, sob este ponto de vista.

    Todavia, decorre desta breve sntese do pensamento jursnaturalista, que esta

    doutrina serviu de base para a formao jurdico-filosfica dos direitos humanos,

    medida que consolidou princpios bsicos configurao dos direitos fundamentais

    do homem, como do direito liberdade, o direito vida, o direito propriedade,

    que desde seu nascimento eram opostos a tudo e a todos.

    Os direitos naturais, portanto, so aqueles inerentes natureza humana, porm,

    este termo no representa com unanimidade os direitos fundamentais, uma vez

    que esta perspectiva considera a natureza humana abstratamente,

    desconsiderando as diversidades das condies de tempo e de lugar que atuam

    sobre os povos, determinando e influenciando a formao de diferentes estruturas

    jurdicas em diferentes sociedades.

    A evoluo da forma como o homem passou a entender seus direitos, deslocando

    o fundamento dos direitos, ento chamados naturais, da natureza humana, para

    a razo humana, e incluindo uma anlise profunda e verdadeira sobre as

    influncias dos aspectos culturais e histricos das conquistas destes direitos,

    ocasionou o esvaziamento do termo direitos naturais.

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    Realizada a crtica sob este ponto de vista, importante notar, ainda, que aspectos

    da prpria natureza humana deixaram de fazer parte da reflexo dos juristas que

    adotam o termo direitos naturais, eivando de vcios a doutrina, medida que

    desconsidera o verdadeiro carter da natureza humana, a qual se mostra

    7profundamente varivel.

    certo, porm, que existem doutrinadores, notadamente da Universidade de

    Viena, que fazem uma distino entre direitos naturais originrios, como sendo

    aqueles que compreendem princpios morais bsicos e imutveis, e, os direitos

    naturais aplicados, resultantes da combinao dos direitos inatos do homem com

    as circunstncias histricas que variam em razo do lugar e tempo, realizando a

    distino entre as bases dos direitos naturais. 8

    Liberdades fundamentais ou liberdades pbicas so termos tambm utilizados no

    contexto dos direitos fundamentais, porm, possuem vis poltico proeminente,

    que limita seu alcance, restringindo sua definio a uma determinada classe de

    direitos humanos, no se incluindo, conforme Jos Afonso da Silva, os direitos

    econmicos e sociais. 9

    Muitas vezes utilizadas como sinnimos, as noes de liberdade pblica e de

    direitos individuais so provenientes da doutrina liberal, principalmente, da Frana,

    7 MONTORO, Andr Franco. Introduo Cincia do Direito. 25 ed RT/SP, 1999, p. 274 8 RUBIO, Valle Labrada. Introduccion a la teoria de los Derechos Humanos: Fundamento. Histria. Declaracion Universal de 10 de Diciembre de 1948. Ed. Civitas, Madrid. 1998. , p. 22, citando J. Messner, o qual entende por direitos naturais queles que tm seu fundamento na natureza humana e servem de base para os direitos que integram a esfera da liberdade social do homem. 9 DA SILVA, Jos Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo, 23 ed., Malheiros, SP, 2004, p. 178

  • 16

    que prope uma no atuao estatal no tocante s liberdades fundamentais do

    indivduo, assegurando, por exemplo, a liberdade de ir e vir, o direito liberdade

    de expresso, o direito propriedade. Porm, em seu contedo, este termo

    mostrou-se insuficiente para abranger a totalidade dos direitos que o indivduo

    necessita ver assegurados, faltando-lhe exatamente, o aspecto positivo da

    atuao estatal, no sentido da concretizao das liberdades fundamentais, que

    engloba os direitos sociais e econmicos, que so os viabilizadores daquelas.

    As declaraes de direitos dos sculos XVIII e XIX, que possuam este carter

    individualista, tiveram o condo de sacramentar esta primeira etapa de conquistas

    de direitos do homem e por isso no podem ser desprezadas, mas, os termos

    cunhados, neste perodo, carecem, hoje, da amplitude necessariamente adquirida

    pelos direitos fundamentais, e que englobam os direitos sociais e econmicos,

    como: o direito fundamental ao trabalho e educao, que so os fomentadores

    do desenvolvimento do indivduo e, sem os quais, no h como se falar sequer em

    direito vida e dignidade.

    Portanto, a evoluo dos direitos individuais, surgidos nas declaraes de direitos

    e que designavam o dever de no atuao estatal em face do indivduo, rumo a

    uma nova etapa de conquistas e afirmaes, fez surgir a necessidade de nova

    designao mais abrangente e contundente, que englobasse tambm as

    aquisies sociais, sendo que, acima de tudo, como bem observado por Celso

    Bastos, [ ...] a prpria natureza dos direitos protegidos modificou-se. De um lado

  • 17

    porque se passou a reconhecer que muitas vezes necessrio proteger o grupo e

    no o indivduo isoladamente. 10

    Direitos fundamentais, finalmente, a expresso preferida dos juristas

    positivistas, designando no nvel do direito positivo, aquelas prerrogativas e

    instituies que ele concretiza em garantias de uma convivncia digna, livre e

    igual de todas as pessoas. 11

    O termo direitos fundamentais foi inicialmente utilizado na Frana, no final do

    sculo XVIII , proveniente do mbito poltico e jurdico da sociedade da poca e

    que culminou com a Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado, de 1789.

    Este documento, por sua vez, foi o primeiro a positivar os direitos humanos no

    continente europeu, feito esse que traduz a ligao existente entre a denominao

    direitos fundamentais e o reconhecimento destes direitos em textos legais. 12

    Faz-se necessrio, neste contexto de apresentao dos diferentes conceitos e

    nomenclaturas acerca dos direitos fundamentais, realizar uma distino entre

    direitos humanos e direitos fundamentais.

    Do ponto de vista histrico, os direitos fundamentais so, em sua origem, direitos

    humanos. Contudo, pode-se e deve-se estabelecer uma distino entre ambos os

    termos para definir os direitos fundamentais como sendo manifestaes positivas

    10 BASTOS, Celso Ribeiro, Curso de Direito Constitucional, 14 ed., Saraiva, SP, 1992, pg. 158. 11 DA SILVA, op. cit., p. 178 12 RUBIO, op. cit., p. 21

  • 18

    no Direito dos chamados direitos humanos, que, por sua vez, constituem-se

    prerrogativas do indivduo em face do Estado.

    Os direitos humanos so conquistas morais do homem e a repercusso destes no

    mbito jurdico e poltico, com efetiva conquista legal, em nvel nacional e

    supranacional, pode ser traduzida como direitos fundamentais, mantendo estreita

    relao com o modo de vida do homem em sociedade, estabelecendo limites

    legais para a atuao do Estado em relao ao indivduo, e limites nas relaes

    interpessoais.

    1.2 A HISTRIA DA POSITIVAO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

    A histria da sociedade se constri no como uma linha reta, onde so vistos os

    marcos divisrios, estticos e claramente definidos, mas, que se desenvolve por

    idas e vindas contnuas, aonde as diferentes fases evolutivas vo se sobrepondo e

    onde o pensamento humano tambm caminha em avanos e recuos, na tentativa

    de compreender os valores humanos, as formas de organizao do homem em

    sociedade, as formas como os homens se relacionam entre si e o Direito, a justia,

    enfim, na tentativa do homem compreender a si prprio.

    Na histria do homem, os passos de sua conquista por direitos que lhe

    assegurassem uma existncia menos oprimida, menos dependente de interesses

    que no os seus mais legtimos anseios naturais, portanto, com mais dignidade,

    comearam a ser dados por aqueles que possuam na sociedade uma posio

    privilegiada.

  • 19

    Importante considerao a este respeito dada por Jos Afonso da Silva, ao dizer

    que: Mais que conquista, o reconhecimento desses direitos caracteriza-se como

    reconquista de algo que, em termos primitivos, se perdeu, quando a sociedade se

    dividira entre proprietrios e no proprietrios. 13

    Isto porque o homem reconhece na sua mais antiga descendncia, uma luta por

    direitos que lhe garantissem a liberdade, a vida, a dignidade enfim, pertence

    natureza humana o ideal de vida livre, de vida digna, com o mnimo necessrio

    para o desenvolvimento e expanso do exerccio livre de viver.

    Com os filsofos gregos, o homem iniciou a busca por si mesmo, passando pela

    compreenso da alma humana, de sua inteligncia, a origem e destino de suas

    idias, a compreenso e assimilao de seus ideais ticos, sua funo com relao

    ao Estado, abrindo uma via importante para o pensamento humanista, porm, as

    idias no se desenvolveram no sentido de se admitir a igualdade para todos e se

    tornaram frustradas no tocante dignidade humana.

    Ponto marcante e fundamental na histria da humanidade, o Cristianismo, ainda

    que entendido como religio e no como filosofia, teve um papel indiscutivelmente

    renovador e positivo, difundindo princpios morais universais e causando uma

    verdadeira revoluo de valores. A doutrina crist foi a precursora da noo da

    dignidade humana, eis que sempre pretendeu atingir a todos, indistintamente, e

    13 DA SILVA, op. cit., p. 176

  • 20

    sacramentou no ideal humano conceitos de igualdade, caridade e fraternidade

    nunca dantes reconhecidos.

    Importante notar, neste ponto da reflexo, que toda a moral do cristianismo s

    possvel de ser compreendida atravs dos escritos evanglicos, que, por sua vez,

    so interpretaes dadas por seguidores do fundador da doutrina, o qual no

    deixou de prprio punho, texto algum para a humanidade.

    Podemos notar nesta atitude de Cristo, uma prtica da prpria teoria que

    preconizou, uma vez que trouxe a palavra e a exemplificou, deixando aos homens

    a misso de difundir a doutrina com base mais em seus atos que em suas

    palavras. Os princpios de liberdade, de igualdade, fraternidade, amor ao prximo,

    e o perdo s ofensas, que marcaram a curta vida do Cristo, foram expressos nos

    Evangelhos ditados pelos Apstolos e representam uma expresso desta

    liberdade, permitindo a cada historiador, intrprete ou crtico, opinar sobre qual

    teria sido sua verdadeira inteno ao realizar o ato descrito.

    Todavia, esta liberdade certamente resultou em interpretaes indevidas,

    realizadas no intuito de servir a causas particulares, escusas, diversas daquelas

    previstas pelo Messias de Nazar, aspecto que no pode passar desapercebido,

    quando se faz a reflexo sobre a influncia do Cristianismo sobre os direitos

    fundamentais:

    Devem-se diferir os maus usos da doutrina crist, que se fizeram na histria ocidental por algumas ideologias, do que verdadeiramente ela encerra em si como doutrina, como ensinamento, como 0preocupao axiolgica. O Cristianismo

  • 21

    alcanou muitas representaes e interpretaes no tempo, e no espao muitas das quais fidedignas aos mandamentos originrios, outras contraditrias. 14

    Ainda que tenha sido grande a contribuio do Cristianismo para a construo da

    doutrina dos direitos fundamentais, sob o ponto de vista prtico, os homens ainda

    no possuam tais direitos reconhecidos perante o poder institudo, ou seja, o

    Imprio Romano.

    O Estado Medieval mantinha estruturas de dominao que sufocavam tanto os

    vassalos quanto os bares e os nobres. Estes, por sua vez, sendo detentores de

    algum poder, medida que possuam terras, armas e soldados, organizaram-se e

    passaram a exigir de seus reis: a concesso, o reconhecimento de alguns direitos

    importantes.

    Tais reconhecimentos se deram atravs de pactos, forais e cartas de franquia,

    sendo que o mais famoso destes documentos , sem dvida, a Magna Carta

    Inglesa (1215-1225), documento este que representou um importante marco para

    o nascimento de direitos fundamentais do homem, reconhecido, de forma a

    obrigar o Estado ao respeito e cumprimento das garantias ali depositadas e,

    portanto, representou uma expressiva limitao do poder do monarca.

    Ainda que a Magna Carta Inglesa tivesse por mote o interesse de um determinado

    grupo social, que por sua vez no se interessou em estender as garantias aos

    direitos de liberdade, vida e propriedade para toda a sociedade, funcionou como

    14 DA SILVA, op. cit., p. 175

  • 22

    sementeira frtil para o nascimento de novas declaraes de direitos. Para Jos

    Afonso da Silva, a Carta Inglesa se tornou o smbolo das liberdades pblicas,

    criando o esquema do constitucionalismo e influenciando os juristas da poca, que

    dela tiraram os fundamentos da ordem jurdica democrtica inglesa. 15

    Sem ter a inteno de esgotar o assunto, mas de traar um panorama histrico da

    evoluo do reconhecimento dos direitos fundamentais, importante consignar

    que o sculo XVII foi um perodo de conquistas importantes e definitivas, nesta

    seara, quando na Inglaterra foram firmados pactos importantes, como a Petition

    of Rights, 1628, que era, segundo narrativa de Jos Afonso da Silva:

    Um documento dirigido ao monarca em que os membros do Parlamento de ento pediram o reconhecimento de diversos direitos e liberdades para os sditos de sua majestade. A Petio constituiu um meio de transao entre Parlamento e o rei, que este cedeu, porquanto aquele j detinha o poder financeiro, de sorte que o monarca no poderia gastar dinheiro sem autorizao parlamentar. Ento, precisando de dinheiro, assentiu no pedido, respondendo-o nos termos seguintes: ` Petio que , de fato, tendo sido lida e inteiramente compreendida pelo dito senhor rei foi respondida em Parlamento pleno, isto : Seja feito o direito conforme se deseja` 16 Embora os documentos com as declaraes de direitos denotassem um enfraquecimento do poder real, o efetivo respeito aos direitos, por parte do poder central, foi pouco a pouco se firmando, juntamente com o fortalecimento das instituies do Parlamento e do Judicirio, dentro da estrutura Estatal.

    Portanto, notamos a estreita ligao entre o reconhecimento efetivo dos direitos

    fundamentais com a tripartio dos poderes, pois este mecanismo se consolidou

    como sendo essencial para a imposio de limites ao poder, e limitando o poder

    15 DA SILVA, op. cit., p. 152 16 DA SILVA, op. cit., p. 152

  • 23

    pelo prprio poder, assegurava-se a convivncia harmnica entre eles e evitava-se

    a prtica de abuso por quem o detinha.

    Era a diminuio da atuao do Estado sobre a vida do cidado, pois o Estado j

    no mais podia tudo e assegurava ao cidado o exerccio de direitos mnimos,

    direitos relativos a sua liberdade, ao respeito, a sua propriedade e a sua vida.

    Das declaraes de direitos ingleses, sem contar com o ineditismo da Magna

    Carta, de 1215, a mais importante foi a Bill of Rights, de 1688, que decorreu da

    Revoluo Inglesa, e que consolidou a importncia do Parlamento e a submisso

    do poder real Carta.

    Lanada a semente das cartas de direitos inglesas, viu-se a difuso destas idias

    nas colnias inglesas da Amrica do Norte, onde foram firmados importantes

    documentos, inclusive antes da sua independncia, sendo a mais lembrada pelos

    autores a Declarao da Virgnia, de 1776, onde se pode perceber, alm da

    influncia dos documentos ingleses, a marca do pensamento iluminista francs,

    que extraiu do jusnaturalismo sua base terica de fundamentao, inspiradas na

    crena da existncia de direitos naturais e imprescritveis do homem. 17

    A independncia das Colnias Americanas se deu em 1776, ocasio em que foi

    aprovada a Constituio Americana, na qual, poucos anos depois, foram

    introduzidas emendas, essas sim, contendo uma Carta de Direitos que garantiam

    ao povo americano, direitos fundamentais.

    17 DA SILVA, op. cit., p. 154

  • 24

    Na Frana, a histria se deu de maneira diferente da Inglaterra, pois, na ilha

    inglesa os acontecimentos locais geraram a necessidade da imposio dos

    documentos garantidores de direitos, conforme explica Celso Ribeiro Bastos :

    [ ...] Enquanto as Declaraes anglo-saxnicas apresentavam-se eminentemente vinculadas s circunstncias histricas que as precederam e, por essa razo, se afiguravam como limitadas ao prprio mbito sobre o qual vigiam, a Declarao Francesa se considera vlida para toda a humanidade. O racionalismo prprio do pensamento francs iria emprestar uma base terica de que as proclamaes de direitos ingleses careciam. 18

    A Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado, da Frana de 1789, recebeu

    grande influncia do movimento contratualista, especialmente, da obra de Jean-

    Jacques Rousseau, O Contrato Social, na qual o autor prope uma unio de

    foras contra a tirania, o abuso do poder, os desvios de interesses polticos, ou

    seja, Rousseau explica o nascimento da sociedade pela vontade dos indivduos, e,

    portanto, prope que se use a vontade geral para uma re-fundao da

    organizao social onde haja respeito aos direitos e s liberdades individuais.

    Nas palavras de Eduardo Bittar:

    O contrato aparece como forma de proteo e de garantia de liberdade, e no o contrrio. A unio de foras destina-se realizao de uma utilidade geral, que no se confunde com a utilidade deste ou daquele membro. O que se busca a concretizao do que no seria possvel ou acessvel ao homem em seus estado de natureza, quando as foras particulares agiam desagregadamente. E isso se a vontade particular se destina naturalmente realizao de preferncias, a vontade geral que funda o pacto se destina realizao da igualdade. 19

    18 BASTOS, Celso Ribeiro, Curso de Direito Constitucional, 1992, p . 154 19 BITTAR, Eduardo, Curso de Filosofia do Direito, 2004, p. 240

  • 25

    Em suma, aproveitando o ensinamento de Norberto Bobbio, conclui-se que:

    O que une a doutrina dos direitos do homem e o contratualismo a comum concepo segundo a qual primeiro existe o indivduo singular com seus interesses e com suas carncias, que tomam a forma de direitos em virtude da assuno de uma hipottica lei da natureza, e depois a sociedade, e no vice-versa como sustenta organicismo em todas as suas formas. [...] 20

    O referido texto proclamava, entre tantos outros, os princpios da liberdade, da

    igualdade e da legalidade, fazendo-o de maneira universal eis que (e) estendia os

    direitos a todos os povos e no s aos franceses, sendo outra caracterstica do

    texto francs, o individualismo, pois as garantias eram feitas aos indivduos, na

    preocupao de defend-los contra o Estado, mas no previa a liberdade de

    associao ou de reunio .

    A Declarao de Direitos, francesa, de 1789, criou a tendncia universalista das

    cartas de direitos, caracterstica marcante que j denunciava a necessidade da

    viso global acerca dos direitos do homem, fundamentais e, portanto, atinentes a

    todos os homens e a toda a humanidade.

    A Primeira e, mais intensamente, a Segunda Guerra Mundial foram a gota dagua

    que fez transbordar a conscincia mundial acerca da necessidade de serem

    criados rgos e instituies supra-nacionais de defesa e garantia dos direitos

    fundamentais, j previstos na grande maioria dos pases, em textos nacionais.

    20 BOBBIO, Norberto. Liberalismo e Democracia. 1995, p. 15

  • 26

    O sofrimento e a destruio causados por elas, fizeram surgir, em 1945, a

    Organizao das Naes Unidas, com a Carta de So Francisco, ou Carta da ONU,

    cuja preocupao central era criar uma Declarao Universal dos Direitos do

    Homem, o que fica claro, logo no texto inicial daquela Carta, onde se afirma: a

    f nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e valor da pessoa humana,

    na igualdade dos direitos de homens e mulheres e das naes grandes e

    pequenas.

    Com isso, foi criada uma Comisso dos Direitos do Homem, com a misso de

    formular a Declarao Universal dos Direitos do Homem, documento que foi

    aprovado em 10.12.1948 e que conta com um Prembulo, e trinta artigos.

    Estava consolidada no ideal jurdicopositivo e mundial, a necessidade de

    reconhecimento dos direitos fundamentais, tendo isto ficado expresso desde o

    prembulo do texto da Declarao Universal onde se l que:

    O ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as naes, a fim de que todos os indivduos e todos os rgos da Sociedade, tendo esta Declarao constantemente no esprito, se esforcem, pelo ensinamento e pela educao, a desenvolver o respeito desses direitos e liberdades e assegurar-lhes, por medidas progressivas de ordem nacional e internacional, o reconhecimento e a aplicao universais e efetivos. [...]

    O texto citado possui trinta artigos, sendo que os primeiros vinte artigos

    proclamam os direitos e garantias individuais, procurando assegurar a todos os

    homens, pois universal, garantindo, alm do direito vida, as liberdades

    individuais, a condenao escravido, direito de constituio de famlia, a

  • 27

    presuno de inocncia, o direito plena defesa, entre outros, alm de assegurar

    a proteo aos direitos sociais, dos quais trataremos a seguir.

    Contudo, embora a histria do reconhecimento dos direitos fundamentais deva ser

    vista como uma espiral erguida para o alto, que por vezes se rompeu e foi preciso

    recomear a subida, existe consenso absoluto, atualmente, no sentido de que,

    passada esta primeira fase, necessria agora a luta pela concretizao dos

    direitos alcanados, o que somente se conseguir com a somatria de esforos no

    sentido de atrair mecanismos sociais, polticos e econmicos que viabilizem e

    fiscalizem a real observncia e cumprimento dos direitos fundamentais

    positivados.

    Muito til a classificao dos direitos fundamentais feita pela doutrina em

    direitos de primeira, segunda e terceira gerao, que sugerem que tais direitos

    tenham passado por uma linha evolutiva, atingindo ento, como entendem

    alguns, at uma quarta gerao dos direitos fundamentais. 21

    Tal evoluo, bom que se diga, no indica que os primeiros direitos

    fundamentais reconhecidos, tenham sido superados pelos posteriores, mas que

    novos direitos fundamentais mereceram reconhecimento e acolhimento no mundo

    jurdico, alcanando valores antes no protegidos.

    21 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 9 Ed., Malheiros, So Paulo, 2000, p. 517 e LAFER, Celso. A reconstruo dos Direitos Humanos. Um dilogo com o pensamento de Hannah Arendt. 3 reimpresso. Cia das Letras. So Paulo. 1988.

  • 28

    Consolidados os direitos fundamentais, chamados de primeira gerao, com a

    universalizao do direito liberdade e aos princpios democrticos, viu-se o

    homem impelido a criar mecanismos que viabilizassem a sua vida atravs da

    positivao de garantias de direitos sociais e econmicos, capazes de salvaguardar

    ao mesmo a fruio dos direitos fundamentais de primeira gerao.

    Nasceram ento, os direitos fundamentais de segunda gerao, os direitos sociais,

    que envolviam a garantia de condies dignas de trabalho, o desenvolvimento de

    sua capacidade intelectual, enfim, eram reconhecidos como fundamentais direitos

    que salvaguardassem a efetivao dos direitos fundamentais, de primeira gerao,

    que preservavam a dignidade do homem atravs de direitos de natureza

    econmica e cultural.

    Nas palavras de Bobbio:

    Em sua dimenso mais ampla, os direitos sociais entraram na histria do constitucionalismo moderno com a Constituio de Weimar. A mais fundamentada razo da sua aparente contradio, mas real complementaridade, com relao aos direitos de liberdade a que v nesses direitos uma integrao dos direitos de liberdade, no sentido de que eles so a prpria condio do seu exerccio efetivo. Os direitos de liberdade s podem ser assegurados garantindo-se a cada um o mnimo de bem estar econmico que permite uma vida digna. 22

    No processo evolutivo da humanidade, percebeu o homem nas sociedades

    industriais, de massa, de economia basicamente liberal, que a liberdade alcanada

    no era suficiente para proporcionar a to almejada dignidade a este, uma vez

    22 BOBBIO, Norberto, A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. 9 ed. Campus, 2004, Rio de Janeiro, p. 227

  • 29

    que cresciam no seio da sociedade, diferenas de classes, de oportunidade,

    surgiam ncleos sociais distanciados entre si, gerando desigualdades e

    discriminaes econmicas e sociais que impediam o avano das liberdades

    individuais.

    A caracterstica da universalidade dos direitos fundamentais, expressa pela

    primeira vez na Declarao de Direitos, francesa, de 1789, foi tomando corpo e

    importncia, medida que estendia a todos, os direitos ali assegurados,

    difundindo-se no mundo pela coerncia com que tratava a questo dos direitos

    do homem.

    Ainda sob a influncia da Carta de Direitos francesa, por sua vez influenciada pelo

    pensamento filosfico da poca, no sculo XX, vamos encontrar a tendncia

    universalista dos direitos fundamentais, alados para os direitos sociais,

    principalmente na Declarao dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado, a

    Revoluo Sovitica, que procurou ser humanista e justa, extinguindo toda forma

    de desigualdade social entre os homens.

    Como bem observou Jos Afonso da Silva:

    [ ...] as declaraes de direitos do sculo XX procuram consubstanciar duas tendncias fundamentais: universalismo, implcito j na Declarao francesa de 1789, e o socialismo (tomada essa expresso em sentido amplo, ligado a social, e no tcnico cientfico), com a extenso do nmero dos direitos reconhecidos, o surgimento dos direitos sociais, uma inclinao ao condicionamento dos direitos de propriedade e dos demais direitos

  • 30

    individuais, propenso que refletiu no Direito Constitucional contemporneo. 23

    Alm da constitucionalizao dos direitos, as tendncias supra mencionadas,

    atingiram tambm as cartas internacionais, a comear pela Declarao Universal

    dos Direitos do Homem, da ONU, surgida no ps-guerra, perodo em que a

    pobreza e a misria j tomavam propores assustadoras, mostrando ao homem

    que eram necessrios, alm dos mecanismos de controle e limitao do poder do

    Estado, a criao de mecanismos de limitao do poder do mercado.

    Portanto, viu-se que a dignidade da pessoa humana s existe na medida em que

    estiverem garantidos direitos que amparem o homem nas suas necessidades

    vitais, e no s na sua liberdade. 24

    1.3 FUNDAMENTO FILOSFICO: O PRINCPIO DA DIGNIDADE HUMANA

    Os direitos fundamentais so uma construo histrica, concreta e positivada, com

    origem filosfica em pensamentos que buscavam a descrio e compreenso do

    homem, num processo que envolveu o surgimento do conceito de pessoa, sujeito

    de direitos e obrigaes e culminou na assertiva filosfica de que esta pessoa

    portadora de dignidade humana e de liberdade, pressupostos e condio da

    sobrevivncia deste ser humano, na vida em sociedade.

    23 DA SILVA, op. cit., p. 162 24 CHIMENTI, Ricardo Cunha. Curso de Direito Constitucional. 2004, p. 107

  • 31

    As dimenses da pessoa humana revelam sua fenomenologia, ou seja, o estudo

    destas dimenses revela a descrio e caractersticas do homem, que por sua vez,

    na viso jusnaturalista, vai embasar os direitos fundamentais, uma vez que estes

    esto ligados ontologia da pessoa, ao seu estatuto, a sua condio humana, e

    no decorrem da experincia que se desenvolve no passar do tempo.

    O grande enigma para toda a humanidade e que proporcionou o nascimento da

    filosofia a busca pelo homem de suas razes. Nesta busca, o indivduo formulou,

    em primeiro lugar, o conceito de pessoa, dissecando suas dimenses e este foi o

    ponto de partida para o nascimento do princpio da dignidade da pessoa humana

    e dos direitos humanos.

    Numa breve sntese da antropologia filosfica, vamos identificar o incio do

    pensamento sobre o homem na obra de Scrates, que dizia que todas as coisas

    que existem no mundo portam a marca da inteligncia, assim como o homem, e

    este, portador e parte integrante da inteligncia universal poder usar esta

    inteligncia para o descobrimento da verdade. Em Scrates, iniciou o homem uma

    busca pelo auto-conhecimento, atravs do imperativo conhece-te a ti mesmo,

    resultando num apelo interioridade e apreciao da alma humana.

    A alma humana, inteligente, possui a dignidade humana, e, foi o magistrio de

    Scrates que direcionou o pensamento grego em direo ao homem e para a

  • 32

    dignidade humana, para o conhecimento de si mesmo e para a vida conforme as

    normas morais que ditavam a razo. 25

    Plato fundou uma filosofia de cunho pedaggico e explicativo, medida que dissecou e ensinou aos homens aspectos fundamentais de sua existncia, deixando um legado de suma importncia que gerou influncias no cristianismo. Plato ensinou os homens a elevar-se at o transcendente. Sua filosofia no era somente uma especulao desinteressada, mas uma explicao da realidade que culminou numa pedagogia, um modo de diferenciar o sensvel e o inteligvel, o alto do baixo, para ali encontrar a felicidade na contemplao da verdade e o amor presente na idia de bem. 26

    O homem atingiu, na doutrina de Plato, uma dimenso moral e transcendental,

    tendo sido difundida a idia da diferenciao de alma e corpo fsico, unidos

    acidentalmente, e a idia de que a tarefa do homem, nesta vida, era preparar-se

    para a definitiva liberao, numa conduta moral que envolve a prtica do bem.

    Todavia, Plato acreditava na superioridade do Estado em relao ao homem e

    sua filosofia poltica caiu em contradies em relao igualdade e liberdade,

    admitindo a escravido.

    Aristteles era discpulo de Plato, mas em virtude de sua potncia intelectual

    desenvolveu pensamentos que pouco se assemelharam aos de seu mestre. Para

    Aristteles a alma e o corpo se unem no acidentalmente, mas substancialmente,

    e como forma de complementao de uma e outra. Porm, a alma, para

    25 VALVERDE, Carlos. Antropologia Filosfica. 2 ed. Edicep, Mxico, Santo Domingo, Valencia p. 47 26 VALVERDE, op. cit., p. 48

  • 33

    Aristteles, possui mxima importncia, pois possui a razo, e a mente humana

    que o diferencia dos demais seres. 27

    Portanto, Aristteles identificou o homem como animal racional e

    fundamentalmente como um animal social por natureza, desaparecendo os

    elementos volitivos e emocionais presentes na doutrina de Plato. Para Aristteles,

    o homem no consegue se realizar a no ser atravs do Estado. Os direitos do

    Estado prevalecem em relao aos direitos do cidado e da famlia e, assim

    explicava e justificava a escravido, afirmando que o Estado possua a

    necessidade de que algum se dedicasse a ele. Era uma filosofia que no admitia

    a dignidade da pessoa humana.

    Com o declnio e a decadncia do mundo grego, com a morte de Alexandre, a

    cultura helnica no desapareceu, ao contrrio, ela se expandiu pelo mundo e

    atingiu Roma. Neste momento, o foco do pensamento passa a ser o homem e sua

    vida interior, sendo que este movimento favoreceu o nascimento da preocupao

    tica de comportamentos.

    Visando uma reflexo acerca da expanso do imprio e da cultura grega, a partir

    das guerras de Alexandre Magno, outra filosofia deve ser apontada como

    colaboradora da evoluo das noes morais que iro permitir o nascimento do

    conceito de pessoa, sendo imprescindvel destacar a filosofia Estica como sendo

    uma filosofia voltada para a tica e princpios de ordem moral.

    27 VALVERDE, op. cit., 48

  • 34

    Este perodo da filosofia denominado Estoicismo e embora tenha adentrado no

    tema da dignidade humana, a verdade que o pensamento soa confuso, pois os

    pensadores j no tm a filosofia como cincia, com seu rigor necessrio, mas

    como uma espcie de religiosidade de circunstncia, adequada para as massas.

    Para os esticos a filosofia passa a ter uma funo diferente, de projeto e modo

    de vida livre e sereno, na busca do sentido do homem, enquanto tal, procurando

    afastar a preocupao terica dos filsofos das fases anteriores.

    Em que pese perda de profundidade do pensamento filosfico, possvel que

    seja este vis intimista e humanista, demonstrado pelos esticos, que deu ensejo

    para o nascimento da preocupao e da afirmao da existncia do princpio da

    dignidade humana.

    No estoicismo, a identificao da Lei Natural ou Universal com a reta-razo, cujo

    autor Deus, criou o conceito de igualdade e fraternidade universais, em virtude

    desta natureza nica de todos os homens, dando origem ao ideal humanitrio,

    gerador do conceito de dignidade da pessoa humana. O ideal de fraternidade

    universal, em decorrncia desta natureza nica do homem, levou o pensamento

    estico quase to longe como o Cristianismo, faltando-lhe apenas distinguir ou

    identificar o porqu desta unicidade entre os homens.

  • 35

    Porm, vale dizer que, o influxo das doutrinas esticas, foi decisivo tanto para a

    formao do Direito Romano como na moral crist que assumiu seno todos, mas

    muitos conceitos esticos. 28

    O conceito de pessoa nasceu com o cristianismo quando ento os autores cristos

    se viram obrigados a explicar a identidade de Deus, revelada por Jesus Cristo,

    desmistificando o Todo-Poderoso. O mistrio, portanto, passou a residir no

    homem. A existncia de um Deus, que se fez homem, na pessoa de Jesus Cristo,

    no s explicou a essncia humana como tambm dignificou toda pessoa humana.

    O maior dogma cristo, de que o homem foi criado por Deus, a sua imagem e

    semelhana, deu a dimenso que faltava a este para atingir a plenitude de sua

    importncia e significao. A realidade de que o homem possui uma alma

    individual e imortal no pode passar desapercebida pela filosofia. A pessoa

    humana tem, portanto, um valor inaprecivel e insubstituvel. 29

    Portanto, o princpio da dignidade da pessoa humana estava implcito na filosofia

    crist, seja na idia de que o homem era a realidade mais elevada, era a criatura

    mais privilegiada e criada imagem e semelhana de Deus (Imago Dei), seja pela

    concluso da decorrente, de que, o Estado existia para o homem e no vice-

    versa. Todavia, como no se pode afirmar a existncia de uma filosofia crist e

    sim de uma doutrina religiosa, o princpio da dignidade da pessoa humana,

    embora proveniente da mensagem crist, somente foi formulado pelo filsofo

    Immanuel Kant.

    28 VALVERDE, op. cit., p. 49 29 RUBIO, op. cit., p. 34

  • 36

    Immanuel Kant nutria grande admirao acerca de Jean Jacques Rousseau, e esta

    admirao o fez tecer a anlise de certos pontos do comportamento humano,

    seguindo uma linha de raciocnio bastante peculiar. Kant julga importante, mais do

    que analisar os contedos dogmticos de uma cincia, conhecer e levar em conta

    a idia inicial que pautou o desenvolvimento daquela cincia, pois conhecendo a

    idia oculta que fomentou a construo daquele conhecimento que saberemos se

    nos distanciamos ou nos aproximamos da proposta inicial, podendo realizar uma

    crtica sincera e completa acerca do sistema de conhecimento construdo.

    O fundamento do pensamento rousseauniano, que parte da compreenso dos

    ditames do bom convvio social entre os indivduos, com uma viso humanista da

    formao de um estado justo e igualitrio, foi inspirador para Kant, que percebeu

    a exata sintonia entre idia e construo das teses de Rousseau.

    O pensamento rousseauniano foi inspirador no somente para Kant, mas para

    todos os contratualistas que vieram depois dele, pois sua proposta era de refundar

    os ditames do convvio social, como resposta e crtica aos desmandos do poder,

    ao caos social instalado, falta de tica generalizada, e, traz uma nova

    perspectiva de justia, com base num pacto social que tem como fundamento a

    vontade soberana do povo, expressa atravs da lei, criando os limites da liberdade

    de cada um.

    A obra de Kant teve como fundamento a reflexo sobre o conhecimento humano,

    levantando questes que fizeram uma crtica inteligente e profunda metafsica,

    contrapondo-a ao ceticismo. O filsofo levava em conta, inicialmente, que as

  • 37

    cincias naturais eram possveis enquanto que comprovadamente reais como a

    Matemtica e a Fsica, levantando a questo do surgimento, a priori, de partes do

    conhecimento humano, representado pelo conhecimento que nasce com o

    homem, como as cincias naturais.

    O conhecimento a posterior ou sinttico, ser representado por tudo aquilo que o

    homem adquire atravs de sua experincia sensvel, ou seja, decorre da

    percepo do objeto estudado, percepo esta que se forma pela prpria

    experincia do estudo, e que leva em conta as sensaes e sentimentos,

    envolvidas na prtica desenvolvida.

    A moral humana seguia para Kant a mesma lgica racional de seus pensamentos

    acerca do conhecimento humano. Segundo ele, para que se chegue a um

    consenso absoluto acerca do que vem a ser a conduta moral, deve ser observada

    a forma como esta conduta se vislumbra. A razo cria o mundo moral, pois a

    razo que utiliza os conhecimentos a priori para estabelecer, atravs das

    experincias sensoriais, conhecimentos a posteriori. esta razo que ir

    estabelecer o mundo moral.

    A lei moral para Kant, tambm apriorstica e definida atravs de um imperativo

    categrico, ou seja, a de que se deve agir de tal modo que a mxima da tua

    vontade possa valer sempre ao mesmo tempo como princpio de uma legislao

    universal. nesta parte do pensamento filosfico de Kant que o Direito, mais

    especificamente, os direitos da pessoa, passam a ser visto sob um prisma

    diferenciado, tico, medida que na descoberta de valores o homem ser nico

  • 38

    dotado de vontade , de agir livremente, ele legisla os valores universalmente e se

    submete como sujeito a eles .30

    Portanto, na filosofia de Kant, o conceito de pessoa e de dignidade da pessoa

    humana toma vulto, sendo importante ressaltar seu papel nesta etapa histrica de

    afirmao dos direitos humanos, pois ao afirmar que todo homem tem dignidade e

    no um preo, conforme Fabio Konder Comparato cita, produziu um grande

    distanciamento entre a pessoa e a coisa, transformando definitivamente a

    dicotomia herdada do Direito Romano entre personae e res.

    Com a matriz surgida no pensamento cristo, sintetizada e refletida no

    pensamento de Kant, o homem passa a ser visto individualmente, como sujeito de

    direitos e dignidade, dada a transcendncia, a importncia da razo humana, pois,

    para o filsofo, o homem um ser dotado de dignidade em virtude de sua

    natureza racional. Esta natureza racional da qual o homem portador, segundo

    Kant, que lhe garante uma escolha livre do que fazer. Em Crtica da Razo

    Prtica ele afirma que a moralidade a relao das aes com a autonomia da

    vontade e..., portanto, que a liberdade humana equivale plena autonomia da

    razo e que fica sem referncias objetivas na conduta humana. 31

    Ou seja, para Kant a moral uma idia sinteticamente a priori, que se impe sem

    questionamento, sem contedo, dever pelo dever, o bem pelo bem, sendo o

    fundamento de sua moral, o dever, formulado tambm no imperativo categrico:

    30 COMPARATO, Fabio Konder. A afirmao histrica dos direitos humanos. 3 ed., Saraiva, SP, 2003. 31 RUBIO, op. cit., p. 36

  • 39

    Age de tal modo a tratar a humanidade, na tua pessoa como na dos outros , como

    um fim e no como meio , postulado este identificado como a sntese do

    princpio da dignidade humana.

    O racionalismo de Kant, contudo, por seu nvel de abstrao, deu lugar a um forte

    distanciamento ente filosofia e realidade, sendo que no decorrer do sculo XIX e

    at no sculo XX, vamos encontrar correntes que representavam o pensamento da

    poca, que foi a consagrao da modernidade jurdica, com importante

    desenvolvimento da cincia jurdica atravs, principalmente, do positivismo.

    Neste momento, vamos identificar manifestaes jurdicas no sentido de dissociar

    totalmente o direito, da moral, como feito por Hans Kelsen, em sua Teoria Pura

    do Direito, forjando um conceito de Direito, sem qualquer valor moral ou

    qualquer apelo da tica entre os homens, e, recortando o objeto do direito de

    forma a deixar a ele somente a preocupao com a norma jurdica e remetendo

    discusso sobre justia e moral, por exemplo, filosofia. Esta concepo de

    direito, de cunho estritamente formalista, produz uma ambigidade na sua teoria,

    uma vez que sistemtica, mas, vazia de contedo, no possuindo uma eticidade

    mnima a amparar a noo de Direito.

    O Direito o regulador da vida em sociedade, e seu carter neutro e estvel

    descrito pelos racionalistas mostrou-se insuficiente para proporcionar a pacificao

    social. A sociedade se mostrou uma realidade instvel, com o estouro de duas

    grandes guerras. A razo se transformou num veculo contrrio racionalidade e

  • 40

    potencializadora da violncia, e a idia de que pela razo se poderia concretizar a

    liberdade se converteu numa iluso.

    Aps a 2 Guerra Mundial, a dor e o sofrimento causaram impacto definitivo em

    todo o mundo, refletindo no campo do saber uma reao de necessidade de

    retorno ao jusnaturalismo, no sentido de se buscar o retorno tica. A dignidade

    da pessoa humana passou a ser, com a Declarao Universal dos Direitos dos

    Homens, de 1948, o fundamento e princpio de todos os textos jurdicos e se

    transforma em matriz axiolgica de onde se extrai os demais direitos do homem.

    A dignidade da pessoa humana comea a aparecer no sculo XX como referncia de todo princpio de estimativa jurdica, ou valorao do Direito. No se trata de um conceito novo, mas com diferentes matizes, uma idia presente ao largo da histria do pensamento. A novidade est em proporcionar um desenvolvimento filosfico da idia de dignidade humana, que fugisse dos confins religiosos para converter-se em um postulado bsico da cultura ocidental ao menos, se no pode s-lo da universal. 32

    No Brasil, a Constituio Federal, de 1988, foi um marco decisivo para o processo

    de institucionalizao dos direitos fundamentais e, logo em seu artigo 1 , erigiu a

    dignidade da pessoa humana, como princpio fundamental e fundamento

    democrtico.

    Portanto, a notcia da historicidade dos direitos naturais, primeiramente, seguida

    da anlise do conceito de pessoa, redundando da afirmao histrica do princpio

    da dignidade da pessoa humana, fazem parte do trajeto traado pelos direitos

    32 RUBIO, op. cit., p. 48

  • 41

    humanos, com o qual passou o indivduo a contar com uma proteo irrestrita em

    face da atuao estatal, em todas as esferas do poder.

    1.4 CLASSIFICAO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

    Uma vez conquistados e positivados os direitos fundamentais, cuja matriz repousa

    na proteo da dignidade humana, a completa compreenso do tema passa

    necessariamente pela classificao dos direitos tratados, ordenando-os a partir dos

    valores protegidos pelos mesmos.

    A classificao proposta leva em considerao, necessariamente, o momento

    histrico-poltico que envolveu o processo de conquista e afirmao destes direitos

    fundamentais que, portanto, resultaram numa construo jurdico-filosfica

    sedimentada em fases sucessivas. Da porque falar-se em geraes de direitos

    fundamentais, sem que a fase seguinte significasse a supresso da primeira, mas

    ao contrrio, significando o amadurecimento dos direitos anteriores, atravs de

    mecanismos constitucionais de garantia de sua observncia e existncia.

    importante que se diga que o lema revolucionrio francs, do sculo XVII I,

    esculpido na trade Liberdade, Igualdade e Fraternidade, iria representar, talvez

    at de maneira inconsciente, o caminho a ser percorrido pelos direitos

    fundamentais, seu reconhecimento e constitucionalizao. Porm, de qualquer

    forma, a distino destas fases do processo histrico de institucionalizao dos

    direitos fundamentais importante para a completa compreenso deste fenmeno

    jurdico, e, conforme observa Paulo Bonavides esta manifestao em geraes

  • 42

    distintas e sucessivas dos direitos fundamentais (...) traduzem sem dvida um

    processo cumulativo e qualitativo, o qual, segundo faz prever, tem por bssola

    uma nova universalidade: a universalidade material e concreta, em substituio da

    universalidade abstrata e, de certo modo, metafsica daqueles direitos, contida no

    jusnaturalismo do sculo XVIII. 33

    Os direitos fundamentais de primeira gerao nasceram com o movimento

    constitucionalista ocidental, juntamente com as primeiras declaraes de direitos,

    onde se propagou e se consolidou, ento, o direito de liberdade do indivduo,

    sendo a primeira conquista fundamental dos povos, representando, desde o incio,

    uma forma concreta de limitao Estatal. So direitos civis e polticos, inerentes ao

    indivduo, relativos liberdade de ir e vir, liberdade religiosa, liberdade de

    opinio, propriedade, representando, nas palavras de Celso Lafer:

    [ ...] a emancipao do poder poltico das tradicionais peias do poder religioso e atravs da liberdade de iniciativa econmica a emancipao do poder econmico dos indivduos do jugo e do arbtrio do poder poltico. 34

    Estes direitos que possuem como titular o indivduo requerem uma no atuao

    do Estado, impem um no fazer por parte dos governantes, no sentido dos

    mesmos observarem e respeitarem os direitos dos governados, tendo sido esta a

    primeira e essencial fase de conquista e afirmao dos direitos fundamentais,

    seguida, dos direitos fundamentais de segunda gerao, que nasceram

    33 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 9 Ed., Malheiros, So Paulo, 2000, p. 517

    34 LAFER, Celso. A reconstruo dos Direitos Humanos. Um dilogo com o pensamento de Hannah Arendt. 3 reimpresso. Cia das Letras. So Paulo. 1988.

  • 43

    abraados ao princpio da igualdade , conforme Paulo Bonavides, que tutelam

    direitos sociais, culturais e econmicos, com vistas a proporcionar o exerccio dos

    direitos de primeira gerao, por parte do indivduo.

    O surgimento dos direitos fundamentais de segunda gerao tambm se deu a

    partir de formulaes poltico-filosficas, que resultaram numa positivao

    posterior e num reconhecimento forado pelas circunstncias histricas do

    momento, sempre visando o bem estar do indivduo, que j era titular do direito

    de liberdade, em sentido amplo, mas que necessitava do apoio do Estado para o

    exerccio efetivo das garantias obtidas. Tais direitos como: direito ao trabalho,

    sade, educao, previdncia social, reclamam uma atuao positiva do

    Estado, no sentido de criar as condies para o pleno exerccio dos direitos de

    primeira gerao.

    Neste movimento de reconhecimento dos direitos fundamentais de segunda

    gerao cria-se a noo de que, somente atravs da valorao das instituies

    sociais bsicas ao indivduo, os direitos fundamentais de primeira e de segunda

    gerao estariam garantidos.

    Os direitos sociais fizeram nascer a conscincia de que to importante quanto salvaguardar o indivduo, conforme ocorreria na concepo clssica dos direitos de liberdade, era proteger a instituio, uma realidade social muito mais rica e aberta participao criativa e valorao da personalidade que o quadro tradicional da solido individualista, onde se formara o culto liberal do homem abstrato e insulado, sem a densidade dos

  • 44

    valores existenciais, aqueles que unicamente o social proporciona em toda a plenitude. 35

    Trata-se de implementar garantias institucionais, constitucionalmente, a rgos

    que so os mecanismos essenciais ao exerccio dos direitos sociais, como por

    exemplo ao magistrio, de forma a garantir o exerccio livre de arbitrariedades do

    direito educao.

    Estes mecanismos essenciais de exigncia das garantias institucionais, a nvel

    constitucional, foram descobertos e difundidos a partir dos direitos fundamentais

    de segunda gerao, ressaltando neste seu carter objetivo de prestao e de

    organizao em busca de um fim especfico so: o bem estar do indivduo, o

    exerccio pleno do direito vida, do direito liberdade, do direito de expresso,

    etc.

    Se na fase da primeira gerao os direitos fundamentais consistiam essencialmente no estabelecimento das garantias fundamentais da liberdade, a partir da segunda gerao tais direitos passaram a compreender, alm daquelas garantias, tambm os critrios objetivos de valores, bem como os princpios bsicos que animam a lei maior, projetando-lhe a unidade e fazendo a congruncia fundamentais de suas regras. 36

    Assegurados sociedade os direitos mnimos para a vida digna, envolvendo alm

    dos aspectos subjetivos, de sua vida privada, as garantias ao desenvolvimento do

    indivduo no plano social e cultural, esta sociedade mostrou-se sob uma nova face,

    apresenta-se agora como titular de direitos, enquanto sociedade, no sendo

    possvel identificar o titular do direito fundamental de terceira gerao no

    35 BONAVIDES, op. cit., p. 519 36 BONAVIDES, op. cit., p. 522

  • 45

    indivduo considerado, isoladamente, ou num determinado grupo dentro de um

    Estado, mas, todo o gnero humano titular do direito fundamental de terceira

    gerao.

    A sociedade, globalmente considerada, que transita entre Estados desenvolvidos,

    subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, que caminha cada vez mais no sentido

    de possuir uma conscincia de seu valor existencial, necessita agora da proteo

    ao direito fundamental, ao meio ambiente, ecologicamente equilibrado, tpico

    direito fundamental de terceira gerao, ou seja, a sociedade global tem direito ao

    desenvolvimento, tem direito paz, tem direito a que o Estado tutele as relaes

    de consumo, que so direitos de titularidade difusa.

    No processo de evoluo dos direitos fundamentais, alguns autores identificam

    ainda, direitos de quarta gerao, como sendo: direito democracia, direito ao

    pluralismo, direito paz, direito ao desenvolvimento. Paulo Bonavides os identifica

    como anncio de uma pretendida globalizao poltica que avana lenta, mas

    paralelamente globalizao econmica, fruto do neoliberalismo, e que

    representa o anseio atual e legtimo do povo em ver institudos e universalizados

    os direitos das geraes anteriores. Manifestam-se pela busca de uma cidadania

    global, representada atravs de conceitos ticos que devem estar presentes no

    Estado e da sociedade contempornea.

    Por fim, quanto aos direitos fundamentais classificados em geraes distintas,

    ainda que tais fases representem a manifestao de anseios da sociedade, esta,

    cada vez mais complexa, subsidiar, necessariamente, o nascimento de novos

  • 46

    direitos, como um processo sem fim, em resposta ao desenvolvimento do ser

    humano e harmonizao deste, na vida em sociedade. Nas palavras de Norberto

    Bobbio:

    [...] O elenco dos direitos do homem se modificou, e continua a se modificar, com a mudana das condies histricas, ou seja, dos carecimentos e dos interesses, das classes no poder, dos meios disponveis para a realizao dos mesmos, das transformaes tcnicas, etc. Direitos que foram declarados absolutos no final do sculo XVII I , como a propriedade sacre et inviolable , foram submetidos a radicais limitaes nas declaraes contemporneas; direitos que as declaraes do sculo XVII I nem sequer mencionavam , como os direitos sociais, so agora proclamados com grande ostentao nas recentes declaraes. No difcil prever que, no futuro, podero emergir novas pretenses que no momento nem sequer podemos imaginar [...] 37

    37 BOBBIO, Norberto. Era dos Direitos. 9 ed., Elsevier, RJ, 2004, p. 38

  • 47

    2 A DEFESA DO CONSUMIDOR COMO DIREITO FUNDAMENTAL

    A era moderna representou para a humanidade uma era de grandes avanos

    tecnolgicos, progresso e mudanas paradigmticas em todos os aspectos da vida

    em sociedade. Os direitos humanos tiveram seus pilares erguidos ao longo da

    histria, mas, vieram a ser sedimentados na era moderna, atravs do processo de

    universalizao destes direitos, iniciados na Revoluo Francesa, seguido da

    Declarao de Direitos, daquele pas e sedimentado com a Declarao Universal

    dos Direitos Humanos, da ONU, em 1948. Neste sentido, notamos a confirmao

    da supracitada assertiva de Bobbio, que ressalta a importncia do aspecto

    histrico, poltico e social no surgimento dos direitos, de onde localizamos o

    surgimento dos direitos dos consumidores.

    Para se iniciar uma compreenso acerca das caractersticas da atual sociedade, do

    ponto de vista jusfilosfico, com o objetivo de justificar a criao de um micro

    sistema legal, novo, regulador de uma realidade scio-econmica, precisamos

    partir do aspecto social histrico.

    2.1 O SURGIMENTO DA SOCIEDADE DE CONSUMO

    Aps uma primeira grande modificao na sociedade, notada pela transmutao

    do modo de vida e produo agrrio para o urbano/ industrial, no sculo XIX,

    parece que as novas organizaes tomaram vida prpria e iniciaram uma dinmica

  • 48

    corrida para novas conquistas, ampliando o poder de influncia e transformao

    seja no indivduo seja nas organizaes.

    Os mecanismos de produo em massa atingiram uma proporo tamanha, que

    transferiu ao indivduo consumidor esta nsia pela amplitude de resultados,

    fazendo com que todo o organismo social abarcasse as conseqncias da

    produo em srie, em massa, passando a ser sentida a conseqncia desta

    transformao na viso, agora recorrente, de que o consumo, mais do que o

    trabalho, passou a ser um dos pontos de anlise dos comportamentos sociais do

    homem, individualmente considerado ou no. Todavia no so poucos os

    impactos sentidos pela sociedade industrial, cujo processo trouxe novas

    perspectivas e esperanas, mas, que acarretou ao indivduo uma srie de

    armadilhas, apresentadas agora como conseqncias incontornveis, e que so na

    verdade o resultado de um descaso com aspectos fundamentais da formao da

    sociedade, como: a preocupao com a educao de qualidade do indivduo, a

    moralizao das instituies, a luta contra a banalizao dos direitos humanos, ou

    mesmo, da subestimao da fora e das conseqncias das transformaes

    tecnolgicas trazidas no bojo do processo.

    A Revoluo Industrial, iniciada na Inglaterra, ensejou a substituio das

    ferramentas pelas mquinas, da energia humana pela energia motriz e do modo

    de produo domstico pelo sistema fabril, gerando conseqncias incontornveis

    ao modo de vida do indivduo.

  • 49

    As famlias que haviam deixado de viver no campo e se espremiam nas grandes

    cidades, concentrando-se em fbricas e transformando definitivamente o carter

    do trabalho humano, impondo uma dicotomia insupervel entre capital e meios de

    produo (instalaes, mquinas, matria-prima) e o trabalho. Os operrios

    passaram a ser assalariados dos capitalistas (donos do capital) e os artesos,

    acostumados a controlar o ritmo de seu trabalho, agora tinham de submeter-se

    disciplina da fbrica, passando inclusive a sofrer a concorrncia de mulheres e

    crianas. Esta concorrncia, bom que se diga, era desleal e desumana, posto

    que, a mo de obra de mulheres e crianas era tida como subproduto, sendo

    exploradas e mal remuneradas. Concomitante a este quadro, notava-se a total

    falta de garantias trabalhistas relativas segurana e sade do trabalhador, sendo

    constantes os acidentes sem a conseqente indenizao.

    A mecanizao desqualificava o trabalho e resultava numa reduo do salrio.

    Eram freqentes as paradas da produo, provocando desemprego. Nas novas

    condies, caam os rendimentos, contribuindo para reduzir a mdia de vida. Aos

    poucos, os operrios organizaram-se, inicialmente conquistando a proibio do

    trabalho infantil, a limitao do trabalho feminino, e, o direito de greve.

    Estes primeiros movimentos trabalhistas foram o germe do nascimento do

    movimento consumerista, agora, com a conscincia de quais direitos lutavam por

    proteger, conforme Jos Geraldo Brito Filomeno:

    Entretanto, embora coevos, os movimentos trabalhistas e consumerista acabaram por cindir-se, mais precisamente pela criao da denominada Consumer s Legue , em 1891, tendo

  • 50

    evoludo posteriormente para o que hoje a poderosa e temida Consumers Union dos Estados Unidos. A referida entidade, dentre outras atividades de conscientizao dos consumidores, promoo de aes judiciais etc., chega a adquirir quase todos os produtos que so lanados no mercado norte-americano para anlise e, em seguida, por intermdio de sua revista Conmumers Report, aponta vantagens e desvantagens do produto dissecado. 38

    Esta unio pode ser compreendida atravs da anlise dos estreitos laos que

    unem a produo e o consumo, sendo um fenmeno determinante do outro e

    assim sempre foi, tendo sido desde logo notado por Marx, que descreve esta

    sinergia desta forma:

    [ ...] A produo engendra o consumo: - fornecendo-lhe o material; - determinando o modo de consumo; - gerando no consumidor a necessidade dos produtos, que, de incio, foram postos por ela como objeto. Produz, pois, o objeto do consumo, o impulso do consumo. De igual modo o consumo engendra a disposio do produtor, solicitando-lhe a finalidade da produo sob a forma de uma necessidade determinante. 39

    A sociedade industrial, modificada pelas novas tcnicas de produo em massa,

    assistiu, tambm, ao desenvolvimento das tcnicas de publicidade, ao

    recrudescimento do sistema de crdito, ao aprimoramento dos sistemas de

    comunicao e transportes e aos avanos tecnolgicos, cada vez mais

    surpreendentes, sendo todos eles motivos determinantes para um novo modelo de

    convvio humano. A produo em massa exigia tambm o consumo em massa, e a

    fora do capital passou a direcionar e at criar nos indivduos novas necessidades,

    artificiais e descartveis, proporcionando mudanas e implementando o

    38 FILOMENO, Jos Geraldo Brito. Manual de Direitos do Consumidor. 8 ed., Atlas, So Paulo, 2005. 39 MARX, Karl. Crtica da Economia Poltica. Coleo os Pensadores, Nova Cultural, SP, 1999, p. 32

  • 51

    surgimento de hbitos, tudo por conta das novssimas tcnicas de convencimento

    desenvolvidas pela publicidade e que restringiam as escolhas do consumidor.

    No tardaram a aparecer as marcantes assimetrias nas relaes jurdicas destes

    novos atores econmicos: o fornecedor, como controlador dos bens de produo,

    pde, desde ento, impor seus interesses aos consumidores e ditar as regras das

    relaes entre ambos. Aos consumidores pouca liberdade resta, eis que os

    empresrios definem: quanto, como, onde, o qu produzir, alm de definir qual

    ser sua margem de lucro, restando apenas o limitado direito de adquirir ou

    recusar o bem ofertado. Notamos, neste momento histrico, a exemplificao

    clara da anlise feita por Norberto Bobbio, em A Era dos Direitos , quando afirma

    que Quanto mais aumentam os poderes dos indivduos, tanto mais diminuem as

    liberdades dos mesmos indivduos. As novas formas de produo e distribuio

    de bens proporcionaram melhoras na vida do homem, medida que ele passou a

    desfrutar de mais conforto, maior acesso tecnologia e cultura, longevidade

    ampliada, etc. Todavia, os diferentes vnculos jurdicos, que surgiram como os

    contratos de massa, se traduziram em mecanismos de limitao da liberdade de

    escolha, do indivduo consumidor.

    As clusulas gerais pr-definidas dos contratos de massa j no eram alcanadas

    pelo direito tradicional, fundado na teoria da autonomia da vontade, que se

    mostrou ineficaz na proteo da parte mais fraca da relao de consumo. Diante

    deste quadro, que resultou em prticas abusivas, a exemplo das clusulas de no

    indenizar ou limitativas da responsabilidade, bem como, de tentativas de controle

  • 52

    do mercado, ou de eliminao da concorrncia, foi preciso haver uma reao

    social no sentido de buscar uma tutela especfica para o consumidor, que

    significasse um avano efetivo desta realidade scio-jurdica, carente de regulao

    e de harmonizao.

    Foi neste contexto que surgiu e consolidou-se o Direito do Consumidor como um

    sistema legal, novo, apto a realizar a ponte necessria entre fornecedores e

    consumidores, buscando diminuir as desigualdades desta relao, atravs de

    mecanismos de cunho protecionista, inseridos na prpria lei e, ainda, atravs de

    uma efetiva mudana de viso que este novo sistema busca proporcionar,

    medida que insere no Estado Social de Direito, a preocupao com a educao

    deste indivduo consumidor, uma educao com vistas a introduzir nele a

    conscincia acerca de seus direitos elementares, e, com isso, favorecer alguma

    autonomia, deste, dentro da relao de consumo.

    2.2 A RELAO JURDICA DE CONSUMO

    No cenrio, acima descrito, surgiu a relao jurdica de consumo, que, como toda

    relao jurdica, envolve necessariamente duas partes, assumindo cada uma a

    posio de sujeito ativo e sujeito passivo da relao. O fato das partes estarem

    em situao de desigualdade real que ensejou sua regulamentao atravs do

    Cdigo de Defesa do Consumidor.

  • 53

    Portanto, uma anlise singela dos sujeitos desta relao, assim como dos possveis

    objetos desta, importante para se permitir uma completa reflexo acerca do

    tema.

    Embora sem definio no Cdigo de Defesa do Consumidor, a relao jurdica de

    consumo pode ser conceituada como sendo aquela realizada entre consumidor e

    fornecedor, havendo por parte do primeiro a aquisio de bens ou produtos ou a

    utilizao de servios fornecidos ou prestados pelo segundo.

    Segundo ensina Nelson Nery Junior:

    So elementos da relao de consumo, segundo o CDC: a) como sujeitos, o fornecedor e o consumidor; b) como objeto, os produtos e servios; c) como finalidade, caracterizando-se como elemento teleolgico das relaes de consumo serem elas celebradas para que o consumidor adquira produto ou se utilize de servio como destinatrio final.40

    Dos elementos do conceito lanado acima, tem-se que o consumidor , conforme

    definio legal do artigo 2 do Cdigo de Defesa do Consumidor: toda pessoa

    fsica ou jurdica que adquire ou utiliza produto ou servio como destinatrio final.

    H, ainda, no Pargrafo nico do artigo 2 do CDC a seguinte noo: Equipara-se

    a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indeterminveis, que haja

    intervindo nas relaes de consumo.

    40 NERY JR, Nelson. Cdigo Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado pelos autores do anteprojeto. Coord. Ada Pellegrini Grinover et alli. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2005, 8 ed., p. 494

  • 54

    Nos termos da lei, o conceito de consumidor amplo, equiparando ao consumidor

    destinatrio final, que, definitivamente, retirou o bem do mercado, a outros

    sujeitos que participem, ainda que indiretamente, da relao de consumo.

    Para o doutrinador Jos Geraldo Brito Filomeno:

    O trao marcante da conceituao de consumidor, no nosso entender, est na perspectiva que se deve adotar, ou seja, no sentido de se o considerar como vulnervel, no sendo, alis, por acaso, que o mencionado movimento consumerista apareceu ao mesmo tempo em que o sindicalista, principalmente a partir da segunda metade do sculo XIX em que se reivindicaram melhores condies de trabalho e melhoria da qualidade de vida, e, pois, em plena sintonia com o binmio poder aquisitivo/aquisio de mais e melhores bens e servios. 41

    Os consumidores, sob o ponto de vista sociolgico, so considerados os novos

    atores sociais, ao lado dos Estados, governos, sindicatos, partidos polticos,

    movimentos sociais, cidados, etc, que atua no mais de maneira passiva frente

    ao mercado , mas agora de maneira criativa que lhe permite apoderar-se das

    atenes das atividades culturais.

    Conforme anlise de Ftima Portilho:

    Os consumidores, ao contrrio do que correntemente percebido, no so atores sociais privilegiados na mudana da sociedade em direo sustentabilidade. Tambm no so vtimas passivas e manipuladas das foras dominantes de produo. Mas, se considerarmos que a mudana social no se d apenas de forma radical e grandiosa, poderemos considerar o campo do consumo

    41 FILOMENO, Jos Geraldo Brito. Cdigo de Defesa do Consumidor Comentado pelos Autores do Anteprojeto. 8 ed., Forense Universitria, RJ, 2005, p. 31

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    como uma necessria extenso das novas prticas polticas que surgem no centro da modernidade contempornea. 42

    Sob o ponto de vista psicolgico, considera-se consumidor o sujeito sobre o qual

    se estudam as reaes a fim de se individualizar os critrios para a produo e as

    motivaes internas que o levam ao consumo, 43 ressaltando Jos G. Brito

    Filomeno que esta espcie de anlise do consumidor procura levar em

    considerao as circunstncias subjetivas que levam o indivduo a ter preferncia

    por determinado tipo de produto ou servio, partindo da influncia exercida sobre

    ele ou sobre o grupo, pela cincia do marketing e da publicidade.

    A teoria de Freud criou os conceitos de inconsciente e do mecanismo de

    represso, para quem Certas idias seriam to prejudiciais segurana e sade

    do sujeito que seriam reprimidas da conscincia, tornando-se inconscientes.

    Como, porm, tinham uma carga energtica, continuavam fazendo presso para

    surgir na conscincia, obtendo seu acesso por meio de sonhos, atos falhos e

    outros caminhos tortuosos. 44 Portanto, para este pensador, como interpretao a

    partir de sua doutrina, j que o prprio no escreveu sobre o consumo, o

    consumidor seria aquele sujeito que atua de forma a ceder s satisfaes dos seus

    desejos inconscientes atravs do ato de consumo.

    Esta perspectiva permite, ainda, uma anli