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EDUCAÇÃO NO CÁRCERE, FORMAÇÃO DE PROFESSORES E CONTADORES DE HISTÓRIAS: A DOCENCIA CONSTITUÍDA POR OUTROS OLHARES A contemporaneidade lança inúmeros olhares e desafios à formação de professores, o que exige repensar concepções e práticas pedagógicas, tecendo relações ancoradas nas teorias do campo científico que alicerçam a formação e os saberes pessoais e da experiência, que consolide teoria e prática, de forma imbricada e não dicotômica. Nesta perspectiva, as temáticas aqui assumidas são campos temáticos capazes de explicar consensualidades em relação à docência e a prática pedagógica no cárcere; a professora contadora de história a partir da rememoração de histórias fundantes; e das implicações da pós-graduação lato sensu para a prática docente. É objetivo desta mesa, a partir de três pesquisas, refletir sobre a formação e a atuação docente de professores, as diferenciações que se articulam nos lugares, concepções e sujeitos da educação, estabelecendo (des)semelhanças entre formações e práticas docentes. A discussão sobre a educação no cárcere, analisa os saberes e as práticas pedagógicas no contexto de uma escola prisional, ambiências e entorno, sujeitos que vivenciam o cárcere, especialmente professoras, o ensinar e aprender, saberes e formação, a partir de narrativas. A formação de professores contadores de histórias, defende a tese de que existe um portador de memórias em cada pessoa, que se revela e se constitui em contador(a) de histórias. É possível pensar processos-didáticos na formação desses professores que aguçaram possibilidade de educar pela sensibilidade. A formatividade docente à nível da pós graduação lato sensu, reflete como os professores concebem esta formação e quais implicações denotam a produção do conhecimento e o fazer docente, ressaltando a profissão como um elemento que amalgama a formação, os saberes e a relação teoria- prática. As temáticas apresentadas se mostram capazes de desvelar o modo como os lugares de formação e de atuação dos professores vêm se construindo e se mantendo e as implicações para o exercício docente desses profissionais. Palavras-Chave: Formação Docente, Práticas Pedagógicas, Lugares de Atuação XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 1554 ISSN 2177-336X

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EDUCAÇÃO NO CÁRCERE, FORMAÇÃO DE PROFESSORES E

CONTADORES DE HISTÓRIAS: A DOCENCIA CONSTITUÍDA POR

OUTROS OLHARES

A contemporaneidade lança inúmeros olhares e desafios à formação de professores, o

que exige repensar concepções e práticas pedagógicas, tecendo relações ancoradas nas

teorias do campo científico que alicerçam a formação e os saberes pessoais e da

experiência, que consolide teoria e prática, de forma imbricada e não dicotômica. Nesta

perspectiva, as temáticas aqui assumidas são campos temáticos capazes de explicar

consensualidades em relação à docência e a prática pedagógica no cárcere; a professora

contadora de história a partir da rememoração de histórias fundantes; e das implicações

da pós-graduação lato sensu para a prática docente. É objetivo desta mesa, a partir de

três pesquisas, refletir sobre a formação e a atuação docente de professores, as

diferenciações que se articulam nos lugares, concepções e sujeitos da educação,

estabelecendo (des)semelhanças entre formações e práticas docentes. A discussão sobre

a educação no cárcere, analisa os saberes e as práticas pedagógicas no contexto de uma

escola prisional, ambiências e entorno, sujeitos que vivenciam o cárcere, especialmente

professoras, o ensinar e aprender, saberes e formação, a partir de narrativas. A formação

de professores contadores de histórias, defende a tese de que existe um portador de

memórias em cada pessoa, que se revela e se constitui em contador(a) de histórias. É

possível pensar processos-didáticos na formação desses professores que aguçaram

possibilidade de educar pela sensibilidade. A formatividade docente à nível da pós

graduação lato sensu, reflete como os professores concebem esta formação e quais

implicações denotam a produção do conhecimento e o fazer docente, ressaltando a

profissão como um elemento que amalgama a formação, os saberes e a relação teoria-

prática. As temáticas apresentadas se mostram capazes de desvelar o modo como os

lugares de formação e de atuação dos professores vêm se construindo e se mantendo e

as implicações para o exercício docente desses profissionais.

Palavras-Chave: Formação Docente, Práticas Pedagógicas, Lugares de Atuação

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MUROS SUSPENSOS, CADEADOS ENTREABERTOS: FORMAÇÃO E

PRÁTICA PEDAGÓGICA ENTRE GRADES

Carla Verônica Albuquerque Almeida (UCSAL)

Resumo:

Este texto emerge de um estudo doutoral que discorreu sobre a formação docente, os

saberes e as práticas pedagógicas de um grupo de professoras que atuam em uma escola

prisional, das suas ambiências e do seu entorno, suas interações e relações, na busca de

escutar as práticas pedagógicas, o ensinar e aprender, saberes e formação, a partir das

representações presentes em suas narrativas e formações discussivas. Através dos

relatos e das narrativas analisou-se a formação docente e práticas pedagógicas nesse

contexto, os discursos não-formulados, os fazeres, os sentidos, as astúcias vivenciadas e

experienciadas neste ambiente. O referencial teórico alicerçado nos estudos de Nóvoa,

Tardif e Lessard, busca apresentar um breve contexto da formação, dos saberes da

experiência, das interações e das práticas pedagógicas desenvolvidas em uma escola

para sujeitos privados de liberdade. A tessitura metodológica se fundamenta numa

abordagem qualitativa, utilizando como instrumento de análise de dados a observação e

a entrevista narrativa em profundidade. Os dados são categorizados e analisados pela

vertente da análise do discurso tomando. As narrativas revelam que há uma constante

preocupação do como fazer para atingir o aluno do cárcere com as dificuldades de

relacionamento e de aprendizagem. Salientam que o planejamento das aulas é

primordial mas, que o que foi planejado, pode ser revisto e o deve ser, por

compreenderem que escutar a demanda dos alunos possibilita uma interação e

sentimento de confiança que são fundamentais para a continuidade dos estudos; para

que a educação possa contemplar a real reinserção do sujeito na sociedade extramuros.

Palavras-Chave: Formação docente, prática pedagógica, cárcere

Cada vez fica mais claro que as professoras e os professores,

mulheres e homens inacabados, contraditórios e multifacetados –

com histórias pessoais forjadas nas relações que estabelece com o outro,

a cultura, a natureza e consigo mesmos – fazem escolhas, criam-se e

recriam-se encontrando formas de crescer e de se exercer profissionalmente.

(FURLANETTO, 2003, p .14)

Iniciando a reflexão...

Tornar-se professor não é uma tarefa fácil, por ser uma trajetória profissional

marcada pelas incertezas de quem arrisca-se no desconhecido. Essa carreira não se

sustenta em apenas utilizar os saberes oriundos da prática, mas, também, necessita da

contribuição que os saberes pedagógicos que sua formação proporciona, em uma

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tessitura constante do fazer e desfazer da docência, sempre percorrendo um movimento

de começar e recomeçar.

Ser professor é uma atividade multifacetada e multidimensional, exige

habilidades para articular, simultaneamente, no transcurso da sua prática, uma

infinidade de saberes, competências e especificidades profissionais imprescindíveis para

o ato de ensinar.

Nesta perspectiva, a escuta sensível das narrativas de oito professoras

possibilitou analisar os saberes docentes, a formação e a prática pedagógica para atuar

em uma escola prisional. A presente pesquisa teve como objetivo analisar como tais

professoras resgatam, em suas histórias, as suas vivências e as representações sobre o

ensinar e o aprender; o que está revelado em seus discursos, ou melhor, o que está

(des)velado, subentendido, implícito.

O ambiente prisional, reproduz um discurso político e social degradante sobre os

sujeitos que ali se encontram confinados, e atinge os seus anseios de mudança e

liberdade. Nesse contexto, a formação docente para atuar no referido local torna-se um

elemento fundante, uma vez que, esse espaço “[...] é um marco especialmente árido para

os processos educativos, cuja finalidade, entre outras, é permitir que as pessoas tomem

suas próprias decisões, assumam controle sobre suas próprias vidas” (ONOFRE, 2011,

p. 275). Com isto, a prática docente, neste ambiente, deve estar comprometida com a

mudança de atitudes, além de buscar contribuir para a (re) integração social do sujeito

fora das grades.

O professor necessita de uma formação que lhe ofereça um conjunto de saberes

profissionais para atuar no seu cotidiano, mas é também nesse cotidiano, nas

experiências vivenciadas, que esses saberes são postos em prática, juntamente com

novos saberes que são incorporados aos antigos.

Nesta perspectiva, é de fundamental importância para o campo de pesquisa em

educação, especificamente no contexto da formação e prática docente, conhecer quais as

mudanças, rupturas, sentidos, trajetórias e representações das professoras que atuam em

um ambiente onde as adversidades se entrelaçam como desafios que se constituem entre

grades e muros.

Formação e saberes docentes no Cárcere

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Tardif (2000) compara a atividade profissional do professor à do artesão,

afirmando que os saberes oriundos dessa atividade não são compactos, únicos, mas sim

pragmáticos. Explica que os saberes estão ligados tanto ao trabalho quanto à pessoa do

trabalhador, são saberes sobre o trabalho, intimamente vinculados às funções do

professor, e é na ação docente que eles ganham significados.

Gatti, Barretto e André (2011) afirmam que a formação continuada contribui

para o progresso da formação e do trabalho docente devido ao suporte que oferece ao

desenvolvimento profissional, além de promover um crescimento pessoal e

institucional, colaborando com possíveis mudanças na prática.

Tal posição se coaduna com a de Tardif (2008), que entende que a formação do

professor é um continuum, no qual, em decorrência da carreira docente, as fases de

trabalho se alternam com as de formação contínua, isto é, a formação profissional do

docente vai muito além da formação inicial, ela se aprimora e se cria na formação

contínua e na vivência do professor com seus pares no ambiente de trabalho.

Pensar sua formação significa pensá-la como continuum de formação

inicial e continuada. Entende-se, também, que a formação é, na

verdade autoformação, uma vez que os professores reelaboram os

saberes em confrontos com suas experiências práticas, cotidianamente

vivenciadas nos contextos escolares. (PIMENTA, 2011, p. 29)

Para a autora, formação docente mobiliza vários tipos de saberes, ou seja: a) os

saberes reflexivos, aprendidos pelo professor quando aluno com os professores

significativos etc., assim como o que é produzido na prática num processo de reflexão e

troca com os colegas; b) os saberes que surgem da teoria especializada que abrange a

revisão da função da escola na transmissão dos conhecimentos e as suas especialidades

num contexto contemporâneo; c) os saberes da prática pedagógica que abrange a

questão do conhecimento juntamente com o saber da experiência e dos conteúdos

específicos, que será construído a partir das necessidades pedagógicas reais.

A autora defende a relevância de superar a fragmentação entre os diferentes

saberes, considerando a prática social como objetivo central, possibilitando assim uma

ressignificação dos saberes na formação dos professores e na prática docente, por

habilitarem os docentes a um saber específico, que os tornará capazes de, em situações

adversas, deliberar as decisões mais adequadas.

A formação que segue uma linha reflexiva, ainda segundo a autora, valoriza o

desenvolvimento pessoal e profissional docente, por pressupor uma formação

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continuada que propicie uma ressignificação da identidade de ser professor, na

perspectiva de “[...] um novo paradigma que abre fundadas esperanças de recuperação

da harmonia perdida [...] essa dimensão inter-relacional, essa convergência harmônica é

a razão de ser do nosso existir” (GUTIÉRREZ; PRADO, 1999, p. 110), o que levaria à

sincronização dos saberes que sustentam a prática docente com a instituição, a

sociedade atual e, num sentido mais amplo, com o mundo.

Cabe lembrar que, os elementos constitutivos do contexto escolar e as interações

pessoais são fundamentais na edificação e na mobilização desses diferentes saberes,

provenientes de fontes diversas, ou seja, vêm das experiências de vida familiar, escolar,

cultural, da formação inicial, dos programas curriculares, da troca entre pares, das

experiências que balizam a trajetória de vida e profissional do professor.

Na interpretação de Tardif (2008) se constitui como um amálgama de diferentes

saberes, que são construídos, relacionados e mobilizados pelos professores de acordo

com as exigências de sua atividade profissional. Neste sentido, tornam-se fundamentais

na sua formação inicial ou contínua, possibilitando, no seu dia a dia, na sua vivência

profissional, articular e construir diferentes conhecimentos em respostas aos desafios

que surgem em sua prática docente.

Cadeados abertos...caminhos percorridos...

Os cadeados se abrem apontando a trilha metodológica da abordagem

qualitativa, uma vez que prioriza a qualidade dos elementos encontrados durante a

coleta de dados e não a quantidade em si. Nesse sentido, justifica-se pelos

encaminhamentos dados para esse estudo, que parte do entendimento que as professoras

têm sobre o trabalho que realizam, suas vivências, seu processo formativo, atitudes e

afetos frente à docência, perpassada por aspectos objetivos e subjetivos, aproximação da

realidade experienciada, o fazer docente no contexto da educação prisional.

Sobre a abordagem qualitativa, Nóvoa (1992, p.71) pontua que esta

“investigação educacional trata de ouvir o que o professor tem para dizer, e respeitar e

tratar rigorosamente os dados que o professor introduz nas narrativas” (NÓVOA, 1992,

p. 71), posto que oportunizará ao docente refletir sobre sua prática, objetivo,

metodologias, relações estabelecidas e saberes adquiridos ao longo da sua trajetória e

que vão constituindo a sua identidade pessoal e profissional.

O estudo de caso como recurso metodológico, permite que “os investigadores

retenham as características holísticas e significativas dos eventos da vida real – como os

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ciclos individuais da vida, o comportamento dos pequenos grupos, os processos

organizacionais, [...] o desempenho escolar [...]” (YIN, 2009, p. 24); o que possibilitou

neste estudo, dialogar com as representações a partir das narrativas de um grupo de oito

professoras que atuam em uma escola prisional situada na cidade de Salvador-Bahia,

(des)velando seus enigmas, suas angústias, suas limitações frente a um contexto

diverso, em que as diferenças deixam as suas marcas, o que me impulsiona a novas

reflexões para aguçar que demarca o lugar e posição do SER PROFESSORA no

cárcere.

Nesta perspectiva, as histórias de formação e os saberes da docência entrelaçam-

se nesse bojo através dos sentidos inerentes dos discursos, quer de forma explícita e/ou

implícita, proporcionados pela linguagem, os quais se (des)velam numa tessitura e

urdidura que imbricam as suas crenças, valores sobre o mundo, a sociedade, a educação,

enfim, sobre si e sobre o outro e o contexto social.

Ensinar e aprender entre muros e grades

A prática pedagógica no cárcere se desenvolve a partir dos desafios, dos limites

e possibilidades com os quais os sujeitos se deparam no seu fazer docente, pelo

processo de escolarização dos alunos, adequação ao currículo, restrição ao uso de

materiais, flexibilidade do planejamento, enfim, questões externas que influenciam e

impactam a prática docente em vários momentos. A prática é concebida como espaço

para que o professor se desenvolva como profissional e utilize a teoria adquirida nos

cursos de formação, redimensionando-a e refletindo sobre ela. Pimenta (2011) ressalta a

importância de se considerar o contexto em seus aspectos históricos, sociais, culturais e

estruturais, com vistas a diminuir as desigualdades sociais e, desta forma, promover a

emancipação dos sujeitos de forma concreta, alinhando o discurso e a ação.

No processo de ensinar e aprender, a escola tem um papel fundamental de

possibilitar uma educação que explore as potencialidades do sujeito, seus desejos e

(in)satisfações frente à realidade “[...] concreta na qual se gera e sobre a qual incide,

para melhor compreendê-la, explicá-la, transformá-la” (FREIRE, 2014, p. 52), na

tentativa de construir uma visão de mundo por meio da reflexão crítica e dialógica, que

possibilite a aluno e professor vivenciar o diálogo, não de forma “[...] invasiva,

manipuladora e sloganizada” (p. 43), mas de maneira interativa, construindo

conhecimento diante do contexto no qual tem origem, posicionando-se frente a ele.

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Nessa perspectiva, a escolarização dos sujeitos privados de liberdade tem um

papel fundamental, já que a escola inserida em um ambiente prisional constitui-se como

a única alternativa “[...] boa que nós temos de ocupar a nossa mente, de dizer o que a

gente pensa, de aprender mais” (ALUNO), e consequentemente de reinserir este sujeito

ao “mundo” do trabalho, à vida extramuros.

Entre as questões elucidadas pelas Professoras, sujeitos da pesquisa, em suas

narrativas, o processo de escolarização dos alunos, no espaço prisional, mesmo com as

dificuldades que o ambiente por si só apresenta, ocupa um lugar de destaque, como

possibilidade de intervir na transformação desses sujeitos, a partir das funções

específicas como ensinar a ler e escrever, ampliar conhecimentos, possibilitar a livre

expressão.

A gente tem que abrir mais ainda essa porta e tem que dar uma

atenção especial a essas pessoas pra que possam, de fato, ser

atendidas em suas necessidades de escolarização. A escola tem

que estar atenta, dar condições, não fechar as portas, pois

muitos são analfabetos, e eles querem aprender a ler e escrever.

(Professora G)

Aqui trabalhamos com adulto, com educação já formada. A

gente não vai educar, ele já traz a educação deles. Eu tenho

alunos aqui que aprenderam a ler e escrever. Estou

alfabetizando, e em pouco tempo de aula tem aluno que já está

fazendo o nome; que não sabia fazer. Vamos começar com a

letra do alfabeto, veja a letra... E ele vai tentando fazer garatuja

e vai fazendo, e a gente consegue. Eu sempre estou encorajando

eles, porque eles são capazes. (Professora C)

É nessa perspectiva que as professoras, têm o compromisso de descortinar o

cenário frio e distante do ambiente prisional, e nesse sentido devem possibilitar aos

alunos otimizar um tempo que para muitos poderia ser considerado como perdido,

resgatado por meio do processo de escolarização em que “a comunicação e a

intercomunicação entre sujeitos, refratários à burocratização de sua mente, abertos à

possibilidade de conhecer e de mais conhecer é indispensável ao conhecimento”

(FREIRE, 2005, p. 80).

A prática pedagógica no espaço escolar de privação de liberdade deve promover

a construção do conhecimento a partir de uma perspectiva dialógica problematizadora,

alicerçada em práticas curriculares formais, de reflexão e formação crítica que

promovam a aquisição mínima de autonomia e melhorias concretas na vida dos alunos.

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Ao se referirem aos conteúdos trabalhados em sala de aula com os alunos, as

professoras evidenciam a questão curricular e revelam a preocupação em propor e/ou

adequar atividades em consonância com a realidade, as necessidades e com o que é

vivido pelo aluno, um conteúdo que “[...] deve ser buscado, conjuntamente, naquela

realidade, naquele mundo que constitui o objeto do conhecimento intersubjetivo”

(SILVA, 2010, p. 61), que se constrói na dialogicidade entre os sujeitos.

Ao narrarem o fazer docente em uma escola prisional, as professoras trazem

explicitamente a implicação do currículo em suas práticas pedagógicas, como podemos

constatar:

O Tempo Formativo tem o currículo já diferenciado, e, dentro

dessa proposta que eu acho que faz sentido, não adianta ensinar

matemática para um aluno privado de sua liberdade dentro dos

moldes da matemática clássica. Eu tenho que trabalhar um

contexto, a questão de muita resolução de problemas, dentro da

realidade dele. (Professora A)

O currículo tem que ser diferenciado, deve se aproximar do

contexto dessas pessoas. Eu trabalho muito com filme e, quando

eu passo o filme, discuto com eles. Eles riam às vezes, a

depender do filme: drama, comédia, mas sempre tinha uma

relação com a realidade, com o trabalho que a gente fazia, com

a temática que estávamos tratando, que fosse produtivo para a

vida deles. (Professora E)

O trabalho pedagógico desenvolvido pelas professoras sofre adequações

concretas em várias situações que se efetivam em sala de aula, o que demanda pensar

um currículo que transponha o formal e o tradicional, que proponha conteúdos que

derivam de outros referenciais para além do relacionado ao campo específico da área

disciplinar; que atenda a demanda específica dos alunos internos, considerando toda

uma dinâmica das relações estabelecidas, voltando o olhar para as idiossincrasias

vivenciadas no cotidiano, posto que nenhum currículo pode fixar-se por muito tempo.

Nesse sentido, Arroyo (2009, p. 110), considera o currículo como “um ambiente

simbólico, material e humano que é constantemente reconstruído. Este processo de

planejamento envolve não apenas o técnico mas o estético, o ético e o político.

(ARROYO, 2009, p. 110)

Se quisermos que ele responda plenamente tanto ao nível pessoal quanto social,

deve haver um repensar constante sobre sua contemporaneidade, ou seja, sua atualidade

e sua adequação ao que está acontecendo no mundo real.

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Nesse sentido, a Professora A afirma:

Não posso ensinar apenas essa matemática tradicional dos

livros didáticos que é necessária sim, mas misturar com coisas

do dia a dia. Dá uma aula altamente contextualizada para que

faça sentido na vida deles, que os coloque para refletir.

Fica claro na fala da docente, que o currículo formal prescrito não é

descaracterizado; entretanto, ela prioriza o currículo real, que atende a realidade do

aluno, o que realmente acontece nas aulas.

É necessário que as Instituições de Ensino se adéquem para atender os interesses

e as necessidades dos alunos a partir do desenvolvimento de práticas que respondam a

heterogeneidade, valorizem a diversidade e incentivem a autonomia, favorecendo a

aprendizagem de todos. Isso requer uma ressignificação do currículo a partir da seleção

e organização de conteúdos “[...] que garantam um ensino com níveis diversificados e

dê aos alunos de todos os níveis oportunidade de se envolverem de forma positiva nas

atividades da classe” (PORTER, 2000, p. 44). A fala da Professora E se enlaça com a

assertiva do autor ao pontuar que, ao considerar o contexto e a realidade dos alunos, as

aulas são positivas, “[...] porque eles participam e isto me fez ficar mais atenta com as

questões do mundo, as questões práticas, que a gente se perde às vezes, pelo tempo, e

eles ficam muito ligados. Eles tem potenciais, muitas habilidades [...]”.

É imperativo, no contexto da prática pedagógica, oportunizar espaço para a

expressão do sujeito e para a participação de todos, possibilitando uma formação de

acordo com o ritmo e tempo de cada educando, além da construção do conhecimento

não apenas individual, mas coletivo. Um conhecimento mútuo, por meio de um

currículo que contemple a diversidade, considere a existência das diferenças e, mais que

isso, não apenas identifique estas diferenças, mas também dialogue com as mesmas.

A questão do currículo impacta diretamente no planejamento, o que torna

impossível não considerar a relação dialógica e de imbricamento entre ambos. Aspecto

este identificado pelos sujeitos desta pesquisa. Isso impõe aos mesmos, frente a um

espaço com múltiplas e polissêmicas linhas, um olhar e uma escuta atenta a detalhes e

situações evidenciadas no cotidiano, conforme podemos comprovar nos registros

abaixo:

O meu planejamento ao longo do ano sempre muda. Não tem

para onde correr, porque em cada situação que a gente vê, cada

unidade dessa, às vezes obriga a gente a fazer inserção de

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algum conteúdo. Muito do que eu estabeleci como conteúdo pra

ser trabalhado durante o ano, eu tive que suprimir pra

trabalhar higiene, que é uma questão muito séria. Alunos que

você percebe que tem ferimentos provocados por muriçoca. Eles

dizem que à noite são muitas, e eles não conseguem debelar.

Nessas situações, a gente se vê obrigado a fazer ntervenções de

acordo com o que a gente vê na sala de aula. Por isso o

currículo tem que ser diferenciado porque a gente está numa

escola diferenciada, nossos alunos são alunos que requerem

uma atenção diferenciada. (Professora F)

Quando a gente define um projeto aqui dentro, eu acho que flui,

caminha perfeitamente. O nosso planejamento aqui dentro do

sistema prisional, tem que ter essa característica de muita

flexibilidade. Se o planejamento já deve ser flexível, aqui dentro

ele deve ser ainda mais. Eu só entro na minha sala de aula com

o plano A, com o plano B e com o Plano C. O melhor caminho

pedagógico que encontrei aqui foi trabalhando com projeto

(Professora B).

Com efeito, o planejamento é um instrumento norteador da prática pedagógica

que prevê ações previamente elaboradas, as quais serão desenvolvidas ou não em sala

de aula, posto que, pela sua característica de flexibilidade, pode sofrer alterações ou até

mesmo não ser posto em prática.

A fala e a escuta constituem-se neste ambiente, como uma forma de

acolhimento, “[...] uma via para que o ensino-aprendizagem se transforme em

possibilidades da cadeia discursiva entre professor e aluno” (ORNELLAS, 2005, p.

120), o que é imprescindível para perceber as nuances dos entreditos submergidos no

silêncio que se “esconde” detrás da palavra, requisito essencial do saber fazer docente.

A importância de trabalhar com práticas pedagógicas humanizadoras no cárcere,

que motivem e instiguem os alunos, exige um repensar da escola quanto as suas

atividades curriculares. Tal premissa requer uma ressignificação dos objetivos,

conteúdos e metodologias, que atendam as demandas e necessidades dos alunos,

segundo constatado na afirmativa:

Você não está formando aquele aluno apenas para o vestibular,

apenas para um concurso. Tem que ter um algo a mais, e é aqui

nesse espaço. Quando nós adentramos o módulo ou a sala de

aula, eles já estão ali. Então, como você manter uma escola

atrativa para esse aluno? O que esse aluno quer aprender nesse

ambiente? (Professora H)

O trabalho pedagógico desenvolvido em uma escola prisional deve possibilitar a

todos, educandos e educadores, momentos de reflexão e diálogo para oportunizar, tanto

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ao sujeito privado de liberdade quanto aos professores, repensar criticamente seus

percursos, seus valores, suas escolhas, com o propósito de projetarem o estabelecimento

de vínculos adequados à promoção da realização como pessoa humana. Nesse aspecto,

Gadotti (1999, p. 62) salienta a necessidade de trabalhar no educando,

[...] o ato anti-social e as consequências desse ato, os transtornos

legais, as perdas pessoais e o estigma social [...] uma educação

voltada para autonomia intelectual dos alunos, oferecendo

condições de análises e compreensão da realidade prisional,

humana e social em que vivem [...] Educar é Libertar [...] dentro

da prisão, a palavra e o diálogo continuam sendo a principal

chave.

Torna-se fundamental aos educadores, uma reflexão sobre as possibilidades de

desenvolvimento cognitivo a partir da utilização de atividades consideradas

imprescindíveis para a vida do aluno. No caso do professor, o significado é composto

pela finalidade do ato de ensinar, que consiste em garantir ao educando o acesso ao

conhecimento que não está disponível na esfera cotidiana da vida social. A escola

inserida em um espaço prisional precisa ressignificar seu papel e considerar as

possibilidades de relações existentes entre o conhecimento e o ambiente, assim como

estar conectada com o mundo, para que, assim, possa se transformar em um local de

produção de cultura e conhecimento, articulada com o que vem acontecendo ao seu

redor.

Os cadeados semiabertos para o fazer docente anunciam e denunciam

problemáticas que se inscrevem nos limites e possibilidades que interferem

cotidianamente no saber fazer das professoras que atuam em uma escola situada no

cárcere, como representado a seguir:

Uma situação que me indignou foi quando estávamos fazendo o

trabalho do Projeto “A cor da cultura” e passamos do horário

da saída do módulo. Os agentes vieram com toda a fúria e

disseram: O que a senhora estava fazendo até uma hora dessas

lá dentro com os presos? Já passaram do horário, e as regras

têm que ser cumpridas. Quando eu vi aquilo, eu vi perigo; uma

dinamite que vai explodir, perigo, a intenção era essa,

desmotivar pra acabar o trabalho. O clima foi péssimo, mas,

mesmo receosa, eu tinha que priorizar o trabalho dos meninos.

Eles estavam supermotivados. (Professora A)

A narrativa revela ser esse um espaço onde os limites se interpõem no

desenvolvimento do fazer docente, por situações imprevistas, ou pelas normas e regras

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do próprio ambiente. Isso desencadeia um clima de perigo, receio e desmotivação

gerados no ambiente do cárcere, que sem dúvida interferem no fazer pedagógico.

As marcas do espaço prisional são diversas mas, as professoras buscam realizar

um trabalho que atenda as especificidades dos internos e acreditam na necessidade de

fazer o aluno pensar, criticar, avançar sobre suas próprias ideias e ter sua própria

opinião, em um espaço em que, muitas vezes, eles não são donos de suas próprias falas

e de seus comandos.

Muros que se descortinam nas (in)conclusões

Pensar na condição de ser e estar na profissão, requer pensar que as experiências

dos professores podem ser acolhidas, revisitadas, ampliadas e transformadas nos

espaços de formação.

A docência se constitui como uma atividade ambivalente, pois o SER

PROFESSORA no cárcere significa literalmente, trabalhar entremuros, enquanto que no

entre lugar da profissão também é possível se identificar barreiras que limitam o fazer

docente. Entretanto, também pode ser propulsor de uma dinâmica que contempla a

diversidade de ideias e valores, ao mesmo tempo que potencializa identidades.

Nas narrativas, é possível identificar a preocupação com a prática pedagógica

desenvolvida, o que exige uma nova abordagem dos conteúdos e do savoir-faire

docente, que considere a situação real de aprendizagem dos alunos, com suas diferenças

de conhecimento e desempenho, assim como a organização de um ambiente de

aprendizagem adequado ao contexto, que seja desafiador, que estimule a curiosidade,

abrindo janelas para a leitura do cotidiano por meio de conteúdos que sejam da sua

vivência, que interajam com as suas necessidades e transcendam suas expectativas.

Em outras palavras, desenvolver nos educandos a capacidade de pensar, sentir e

fazer responder: quem sou eu, fazendo-os intervir na realidade para que, de posse dessa

ambiência, possam construir sua transformação.

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FORMATIVIDADE: NOTAS SOBRE A PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU E A

FORMAÇÃO DOCENTE

Poliana Marina Mascarenhas de Santana Magalhãesi – UNEB/NPGGG

RESUMO: Este artigo, intitulado “formatividade: notas sobre a pós-graduação lato sensu e a

formação docente”, expõe dados de uma pesquisa que pretendeu apreender as representações

sociais de alunas-professoras sobre a pós-graduação lato sensu e suas implicações na produção

do conhecimento e nas práticas docentes. O marco teórico se funda na teoria das representações

sociais, de abordagem processual – Moscovici (1978; 2012) e Jodelet (2001) – E nos autores

que discutem sobre a pós-graduação lato sensu: Pilati (2006) e Oliveira (1995). A formação

docente está fundamentada nas bases da teoria da formatividade (PAREYSON, 1993) e nas

concepções de Honoré (1980) e Ferry (2008). O método trilha pelos caminhos da abordagem

qualitativa e os instrumentos utilizados para a coleta de dados foram a TALP – Técnica de

Associação Livre de Palavras e as rodas de diálogo. O lócusse deu em um núcleo de pós-

graduação ligado à iniciativa privada, situado no município de Feira de Santana-BA. Os sujeitos

foram oito alunas-professoras, com idade entre 23 a 35 anos, licenciadas em áreas diversas, que

estão cursando a primeira pós-graduação lato sensu e que exercem a docência em escolas da

rede pública e/ou privadas. Após a coleta de dados, o material foi analisado à luz da análise do

discurso de vertente francesa, tendo como resultado as representações sociais sobre a pós-

graduação lato sensu, que se ancoram em: Conhecimento, estudo, reflexãoe ressignificação.

Espera-se que esses achados contribuam para se pensar a formação mais referenciada no

professor e que este possa se reconhecer enquanto produtor de conhecimento e

consequentemente, produtor da sua própria profissão.

Palavras-chave: Pós-graduação lato sensu – formação docente - Formatividade

PRIMEIRAS ANOTAÇÕES

Este escrito, que discute a pós-graduação lato sensu e a formação docente, é

fruto de uma pesquisa que pretendeu apreender as representações sociais de alunas-

professorasii sobre a pós-graduação lato sensu e suas implicações na produção do

conhecimento e nas práticas docentes. Nesse sentido, algumas questões

forampresentificadas para contemplar o objeto da pesquisa: Quais as representações

sociais das alunas-professoras sobre a pós-graduação lato sensu? Quais os sentidos da

pós-graduação lato sensu para a produção do conhecimento docente? Existem

reverberações no fazer docente, decorrentes dessa modalidade de formação e das

representações sociais construídas na pós-graduação lato sensu?

Como é um estudo ancorado na teoria das representações sociais, busquei

embasamento teórico nos escritos de Moscovici (1978; 2012) e Jodelet (2001); A

formação veio pensada sobre os aportes da Filosofia da Formatividade de Pareyson

(1993), e das concepções de Honoré (1980) e Ferry (2008).

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Por se tratar da formação, das práticas docentes e das subjetividades que

permeiam esses processos, a realização deste estudo, está apoiada nas bases da pesquisa

qualitativa que dialoga com a abordagem processual do campo das representações

sociais. Para tanto, esta proposta de investigação, no que se refere à coleta de dados,

buscou subsídios nas seguintes fontes de pesquisa: TALP – Técnica de Associação

Livre de Palavras e Rodas de diálogos. A pesquisa escutou oito alunas-professoras da

pós-graduação lato sensu e categorizou e analisou os dados à luz da análise do discurso

de vertente francesa, permitindo assim, que questões subjacentes fossem levadas em

consideração.

O diálogo entre os referenciais teóricos e os achados do campo empírico

revelouo quanto há tensões, diversas intenções e contradições ainda por serem

decifradas em torno dos questionamentos realizados sobre esse objeto de estudo. As

anotações aqui expostas, ainda que de maneira ambivalente, relatam que as alunas-

professoras começam a perceber a formação de outra forma, percebendo-se como

sujeitos do seu processo formativo, e mais, sujeitos da sua professoralidade,

constituindo aos poucos sua formatividade.

PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU E FORMATIVIDADE: UM ENCONTRO DE

POSSIBILIDADES

É possível afirmar que uma boa parte das pós-graduaçõeslato sensu nascem de

uma dinâmica de mercado que preza pela quantidade e pela certificação. Sua crescente,

pelo menos no que diz respeito à área de educação, culmina com a entrada do capital

estrangeiro no Brasil, nas décadas de 50 e 60, e permanece dentro dessa política até os

dias atuais. De lá para cá, muitas foram as tentativas de regulação e normatização que se

equilibram na “corda bamba” entre atender ao caráter da formação elitista e suprir as

necessidades da sociedade industrial.

Existem, nos documentos oficiais, tentativas de regulamentação, mas parecem

ainda insipientes, as propostas que apontam para a garantia de subsídios para o

desenvolvimento profissional, uma vez que, e sem querer defender a fidedignidade das

políticas de avaliação do Estado, continuam a vigorar as velhas premissas do

credenciamento e/ou recredenciamento dos cursos de graduação e dos programas de

mestrado e doutorado. Não há ainda sensibilidade para pensar as finalidades da pós-

graduação lato sensu, principalmente ao que tange à formação continuada de docentes,

com todas as especificidades relacionadas à teoria e prática, à produção do

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conhecimento numa perspectiva profissional e experiencial, ou seja, à própria

professoralidade.

Ferry (2008) concorda com o que foi exposto quando cita que

Los modelos de laformación docente y suas aplicacionescontinúan

regidos por las normas del mundo escolar: laformación se define

casisienpre em términos de programas, de años de escolaridady de

obtención de diplomas. Esto, que es válido para a formación inicial,

tambiénlo es para laformación permanente, la que, donde existe, a

menudo se concibe como complemento de laformación inicial,

yaseaenlaescuelael docente ejerce o em um centro de formación (p.

17).

As tentativas de organizar, avaliar e regulamentar a pós-graduação lato

sensuestão centradas basicamente no que se refere à certificação, com um discurso

vazio de qualidade que se traduz em cargas-horárias, titulação do quadro de formadores,

vinculação desses à Instituição de Ensino, número de alunos matriculados por curso,

entre outras questões que visam controlar informações, apenas. Infelizmente, a

qualidade ainda não é pensada a partir dos objetivos previstos para cada curso, se esses

objetivos estão sendo resguardados, se há de fato cumprimento das normas

estabelecidas.

Diante do exposto, se faz importante pensar sobre o crédito atribuído à pós-

graduação lato sensu em educação, entre-lugar situado, muitas vezes, diante da

graduação e da pós-graduação stricto sensu. O processo de profissionalização e de

construção da identidade profissional do professor perpassa pelo saber especializado

(MENIN, 2009), indício da relevância dos cursos de especialização. Oliveira (1995, p.

22) defende que “O ensino superior tornou-se, inequivocadamente, mais especializado,

sendo a pós-graduação a etapa voltada para proporcionar formação especializada. O

currículo dos cursos de graduação cada vez mais tem se voltado para a formação básica,

generalista”. Isso induz à necessidade de se especializar na área de atuação profissional.

Não é por acaso que

[...] as corporações de trabalhadores e organizações empregadoras tem

visto nessa modalidade de educação, uma alternativa eficiente para se

reconhecer o domínio de uma especialidade ou de atualização dos

profissionais das mais diversas áreas técnicas e acadêmicas,

desvinculada da perspectiva de acesso à pós-graduação stricto sensu e

do engajamento nas estruturas acadêmicas da pesquisa científica e do

ensino. Acrescente-se o caráter temporário, versátil, dinâmico e de

agilidade na resposta a necessidades específicas, o que permite a esses

cursos serem vistos como instrumentos não apenas de formação como

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também de disseminação do conhecimento por organizações,

estudiosos e profissionais (PILATI, 2006, p. 11).

O autor defende a disseminação do conhecimento como característica desta

modalidade de formação continuada, o que permite aos sujeitos se atualizarem e

conviverem com as mudanças a nível prático e teórico.Um outro ponto importante é que

as pós-graduaçõeslato sensu, sendo espaço de formação teórico-prático de professores,

conforme afirma Pilati (2006, p. 21) “[...] serão fundamentais na atualização de

docentes do Ensino Médio, Fundamental e Infantil, bem como, serão indispensáveis no

aprofundamento dos conhecimentos [...]”, é acima de tudo um espaço de produção de

conhecimento, visto que o professor é autor e produtor da sua prática profissional.

Nessa perspectiva, formar-se não está no campo do ensino e da aprendizagem ou

dos métodos exigidos para que estes processos ocorram. O processo de ensinar e aprender,

bem como, os dispositivos para isso estão contidos na formação, mas esta não se reduz a

eles. Ferry (2008) defende que formar-se é adquirir uma forma, um manejo para exercer a

profissão. Já Pareyson (1993) postula a formação é um fazer e um aperfeiçoar, e a prática

revela a própria formação. Ou seja, ao buscar a melhor forma para desempenhar

determinada atividade, o sujeito está no processo de desenvolvimento pessoal,

desenvolvimento este que orienta sua posição profissional.

As ideias de Honoré (1980) coadunam com esta perspectiva. Para ele, a

formatividade é o conjunto de fatos relativos à formação. Esta por sua vez, diz respeito à

função evolutiva do homem. “Es importante señalar que com el concepto de formatividad

designamos el “campo”, cujo reconocimiento se deriva de lareflexión sobre la experiência

de actividades que sondel ordem de laformación” (HONORÉ, 1980, p. 125-126). A

reflexão sobre a experiência das ações formativas gera o campo da formatividade. Este

campo engloba a formação, no sentido de evolução, de descobertas e possibilidades de

fazer a reflexão tornar-se ação.

Na perspectiva de Honoré (1980), a formatividade também é conceituada como o

caráter formativo, como uma condição favorável, uma disposição individual ou coletiva

que favorece o processo da formação. Nesse sentido, a formatividade “Es um lugar de las

teorias posibles de laformación” (HONORÉ, 1980, p. 127) ou “se exerce no campo

específico de outras atividades, sem todavia subordinar-se às suas leis e intenções, mas

antes sobrepondo-se a elas com o próprio intuito exclusivamente formativo [...]”

(PAREYSON, 1993, p. 44). Logo, éum campo interdisciplinar que engloba o sujeito, sua

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história individual e social, e que integra os seus aspectos orgânicos, psiquicos, cognitivos

e afetivos.

É possível perceber que os posicionamentos dos autores convergem para o sentido

do desenvolvimento humano. Embora tratem aparentemente de áreas distintas, concebem a

formatividade como campo de produção do humano, ao mesmo tempo em que se traduz

como espaço de produção de conhecimento, e, é por isso, um espaço singular do sujeito.

Dessa forma, para além dos tempos e espaços determinados para aprender, o sujeito cresce,

reflete, produz formas, forma-se e transforma-se.

A pós-graduação lato sensu é apenas a figuração de uma dada matéria, uma

institucionalização do ato formativo, o que lhe concede diferencial, enquanto processo

formativo é a intenção, a energia e a produção do sujeito. E é exatamente aí que os

objetivos da pesquisa se ancoraram, no desejo de apreender se há implicações práticas

decorrente desta modalidade de formação, ou seja, as “intensões das matérias” ou os tais

“conteúdos” das “disciplinas” reverberam nas práticas docentes? Há de fato “formação”?

Os conceitos de formação, na maioria dos casos, se apresentam demasiadamente

com caráter normativo e funcionalista, principalmente, se nos atentarmos ao contexto da

formação de professores atualmente, no nosso país. Pode haver um investimento e até uma

exigência na/com a formação docente, mas nem sempre existe um campo de negociação

entre formação e singularidade do sujeito. Nesse sentido, é possível que a pós-graduação

lato sensu promova uma formação externa ao sujeito. Institucionalmente ele é presente,

passará pelo rito de especializar-se, mas não é capaz de produzir relação com o saber.

No caso específico da pós-graduação lato sensu, atribui-se como causas desse

problema, tanto questões de ordem institucional quanto do próprio sujeito. De como

instituição e sujeito concebem a formação: como algo normativo ou como experiência que

proporciona produção de saber. Por outro lado, a formação pretendida na pós-graduação

lato sensu é um trabalho de intervenção vinculado à uma práxis entre interior e exterior,

sujeito e objeto, entre o individual e social, no qual o papel do formador se materializa na

imprevisibilidade. Não há certezas de como/se os sujeitos estão sendo formados, pois estas

certezas estão ligadas à sua formatividade, uma vez que, o conteúdo da atividade

formativa não são apenas as teorias referentes ao objeto de estudo, mas também a

própria pessoa do professor, suas experiências, seus pensamentos, costumes, sentimento

de pertença à profissão, afetos, crenças e aspirações. Por mais que os processos tentem

forjar essa perspectiva, não há como negar que a implicação do sujeito faz toda a

diferença no resultado alcançado.

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Dessa forma, a formação não corresponde apenas à práticas e/ou situações que

ocorrem a nível do lato sensu ou de qualquer outra modalidade, embora para acontecer

necessite de condições de lugar e de tempo. Mas sim, à atividades que possuem

significâncias sociais e políticas para o sujeito, que tenha relação com a realidade deste.

Pode-se então, defini-la como um processo que engloba a experiência, a elucidação, o

aprofundamento, o confronto, a construção de conceito e o reconhecimento do outro como

par recíproco.

BUSCAS E ACHADOS DO MÉTODO

O diálogo entre os fundamentos teórico-metodológicos da teoria das

representações sociais e a abordagem qualitativa da pesquisa, permitiu apreender os

conhecimentos sobre os saberes partilhados pelos sujeitos no determinado contexto

social. Conforme Jodelet (2001), a representação social: “(...) é uma forma de

conhecimento socialmente elaborada e partilhada, com um objetivo prático, e que

contribui para a construção de uma realidade comum a um conjunto social” (p. 22).

Podemos considerar então, que as representações sociais são importantes na vida

cotidiana, uma vez que não estamos isolados na sociedade, o nosso mundo é cercado de

objetos, pessoas, fatos, informações e ideias que nos servem de base para compreendê-

lo, agir sobre ele e transformá-lo.

A pesquisa foi realizada em uma turma do curso de especialização em

Psicopedagogia de um núcleo de pós-graduação ligado à iniciativa privada, situado no

município de Feira de Santana-Bahia, o qual oferece cursos de pós-graduação lato sensu

presenciais em diversas áreas do conhecimento. Foram escutadas oito alunas-

professoras, com idade entre 23 a 35 anos, licenciadas em áreas diversas, que estão

cursando a primeira pós-graduação lato sensue que exercem a docência em escolas da

rede pública e/ou privadas do mesmo município.

Os instrumentos de coleta de dados foram a TALP – Técnica de associação livre

de palavras e as rodas dialógicas. Após a coleta, os dados foram descritos e organizados

a partir de informações recorrentes sobre o objeto de estudo, e posteriormente,

interpretados. Esse processo se deu à luz da análise do discurso de vertente francesa. Sá

(1998) e Spink (1995) defendem o uso da análise do discurso ao tratar sobre pesquisa

em representação social, visto que, as pesquisas nesta área não devem prezar apenas

pela identificação da representação, mas como aprofundamento sobre suas objetivações

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e ancoragens. Diante da análise dos dados, foi possível construir quatro categorias que

expressam as representações sociais das alunas-professoras sobre a pós-graduação lato

sensu e suas possíveis implicações nas práticas docentes, a saber: Conhecimento,

estudo, reflexão, e ressignificação.

Para as colaboradoras, o conhecimento representa a pós-graduação lato sensu

desde a forma como elas o conceituam até a sua relação com as práticas docentes. Elas

relacionam a pós-graduação lato sensu ao conhecimento, justificando que: “O

conhecimento é o mais importante para mim, pois ninguém pode nos tirar, é o que

adquirimos para sempre” ou ainda: “É um processo de aquisição de conhecimento por

meio da formação continuada”. Pode-se perceber que as alunas-professoras validam a

pós-graduação lato sensu enquanto espaço formativo no qual se “adquire”

conhecimentos, não ficando explicito aí se este conhecimento se relaciona com a

produção de novas formas de praticar a docência.

Por outro lado, a produção do conhecimento é nomeada pelas colaboradoras de

forma ambivalente, se ancorando ora na aplicação ora na relação teoria-prática, como

exposto nos excertos que seguem: “O conhecimento é saber aplicar, é prática, é tornar

real o que estava no campo das ideias (teorias)”; “Produção de conhecimento docente,

para mim, está associada ao desenvolvimento da capacidade de construir, mediar,

repensar conhecimento, além de problematizá-lo”. É possível notar duas formas

distintas de conceber o conhecimento e por consequência, neste caso, a pós-graduação

lato sensu, no primeiro escrito, como possibilidade de “receber” arcabouço teórico para

a aplicabilidade prática, no segundo, como possibilidade dialógica na qual teoria e

prática se condessam na busca de respostas para os problemas do cotidiano da docência.

Para Kretzmann e Behrens (2010, p. 186) o momento de transição no qual

vivemos, “torna-se indispensável os professores e os alunos assumirem o papel de

produtores do conhecimento mais críticos, criativos, autônomos e transformadores da

realidade”. Portanto, faz-se necessário repensar o como ensinar, os formatos e objetivos

dos cursos propostos, já que a pós-graduação lato sensu, configurada como modalidade de

formação continuada torna-se “fator decisivo para a realização de uma nova prática

pedagógica nas instituições de diferentes níveis” (KRETZMANN E BEHRENS, 2010, p.

187). Porque esses professores atuam nos diversos espaços da docência e estando em

atuação, produzem a profissão no cotidiano do seu fazer. É preciso agora levá-los a

perceber que podem produzir conhecimento a partir desse cotidiano, colocando o sujeito

como base e finalidade da construção de conhecimento.

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A categoria denominada de estudorevela não apenas como as alunas-professoras

colocam esta modalidade de formação continuada como condição imprescindível para o

crescimento profissional, mas mostra principalmente, como elas entendem a

necessidade de estarem implicadas no processo formativo, revelando indícios da

constituição da sua formatividade. Dessa forma, para esses sujeitos não basta apenas

possuir a certificação, mas comprometer-se com a formação e consequentemente com a

docência, visto que, não é a especialização que garante o sucesso do processo de ensino-

aprendizagem, e sim, a relação que o sujeito tece com ela: “Para ser um especialista,

faz-se necessário pesquisa e conhecer sobre o objeto de estudo, saber mais sobre aquilo

que lhe inquieta. É construção, aprimoramento do conhecimento”.Assim, a formação é

concebida como uma troca de conhecimentos e experiências, que vão sendo reconstruídas,

revistas, reaproveitadas em outras instâncias e necessidades. É uma simbiose entre o

sujeito e a prática, uma relação que vai sendo construída na tríade sujeito-outro-objeto, e

que só é possível a partir da deliberação do sujeito.

Outra justificativa expõe o estudo como fator preponderante na pós-graduação lato

sensu: “(...) o estudo é um fator extremamente importante. Conhecer, pesquisar, estudar,

aprimorar-se para produzir conhecimento”. Essa justificativacorrobora com o pensamento

dePlacco e Souza (2006) que elegem quatro aspectos importantes para a aprendizagem do

adulto: a experiência, o significativo, o proposital e a deliberação. Estes aspectos estão

incluídos na disposição do professor ao estudar, visto que estes ao fazê-lo, retomam e

refletem sobre suas experiências, selecionam o que é de fato relevante, buscam a superação

de alguma carência e assim, se predispõem a se formar.

As representações ancoradas na reflexão sinalizam um outro olhar para a

formação um tanto quanto marcada pela reprodução, pois modelam um fazer formativo

e profissional baseado nas experiências, no estudo e na produção do conhecimento, a

partir da teorização das práticas.Os sujeitos expressam que sem reflexão não é possível

dar conta de perceber as suas práticas e fazem uma relação estreita entre avaliação e

reflexão: “Ao repensar e avaliar o que produzo, amplio a perspectiva de desenvolver a

aprendizagem dos meus aprendizes e a minha”, a fala revela o quanto a pós-graduação

pode possibilitar, a partir da reflexão, uma ressignificação das práticas docentes. Outro

trecho expõe ainda que “A produção do conhecimento docente acontece na reflexão de

sua prática”. Isso nos faz pensar o quanto a formação é a emergência da condensação

entre os fragmentos particulares da experiência do sujeito com as contradições postas por

sua relação com o objeto. Para Honoré (1980), somente o sujeito é capaz de sintetizar

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22

essas entidades e utilizar ativamente os momentos passivos de sua experiência e observar

passivamente a sua atividade e dos demais, refletir sobre elas, até que essa reflexão torna-

se ato, e assim, sucessivamente.

Correia e Matos (1996, p. 342) defendem que:

O dispositivo de formação não é, nestas circunstâncias, apenas produtor de

competências que se acumulariam a outras já existentes. Ele é gerador de

disposições formativas, isto é, de disposições que não só facilitam a apropriação

de novas competências mas que também são geradoras de transformações nos

mapas cognitivos onde estas competências se integram já não de uma forma

cumulativa, mas estruturante e interrogativa.

Ou seja, os processos formativos como a pós-graduação lato sensu, muitas vezes

podem fazer o sujeito pensar, refletir, criar estratégias de intervenção, e não apenas

acumular conhecimento que não farão parte do repertório de produção da sua profissão

docente.

A última categoria se ancora na ressignificação, e demonstra que, para as

professoras, a pós-graduação lato sensu parece implicar de maneira positiva nas práticas

docentes, demonstrando assim, que a produção de conhecimento acontece a partir desta

modalidade de formação, como exposto no excerto abaixo:

Destaco ressignificação, pois acredito que quando nos especializamos ou nos

aprofundamos em algum estudo ligado à área da nossa graduação, saímos do

nível alagado para o nível afunilado do conhecimento. Podendo assim,

estabelecer relação e resignificar o que já conhecíamos com o que agora

passamos a aprender.

Outra justificativa apresenta uma mudança de postura referente à própria prática

docente, deflagrada a partir da pós-graduação lato sensu:“Os conhecimentos obtidos na

pós-graduação estão resignificando a minha visão sobre a educação, formação e

comportamento do aluno. Isso tem me ajudado a desenvolver uma sensibilidade mais

aguçada na fala, no ouvir e no olhar”. É possível supor, a partir dessas justificativas,

que modos de produzir a profissão vão tomando novos contornos, novas formas,

reverberando nos espaços da sala de aula.

O desejo também está implicado nesse processo formativo, como justificado por

um dos sujeitos quando o assunto posto em discussão foi a motivação para realizar uma

especialização: “A vontade de querer aprender mais a fim de melhorar minhas

práticas”. Nota-se que a melhoria da prática foi condição preponderante para a

realização da formação, dessa forma, o campo da formatividade vai ganhando contornos

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1575ISSN 2177-336X

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que vão além da cognição ou institucionalização da formação, perpassa o desejo e a

necessidade de desenvolver a professoralidade.

Embora não seja possível mensurar o quanto a ressignificação ocorre nas

práticas docentes, a partir do dispositivo da pós-graduação lato sensu, as justificativas

clareiam uma possibilidade de implicações práticas e aproximam essa modalidade de

formação da produção do conhecimento docente, uma vez que “A aprendizagem do

adulto resulta da interação entre adultos, quando experiências são interpretadas,

habilidades e conhecimentos são adquiridos e ações são desencadeadas” (PLACCO E

SOUZA, 2006, p. 17). Ou seja, são as implicações práticas que garantem o sucesso do

processo formativo.

NOTAS (IN)CONCLUSIVAS

Os achados dessa pesquisa e as teorias aqui refletidas permitem elucidar como

os professores concebem a pós-graduação lato sensu, além de demonstrar como esta

suscita a produção do conhecimento docente.Conhecimento, estudo, reflexão e

ressignificação sãorepresentaçõesque parecem indicar o quanto a pós-graduação lato

sensu traz implicações positivas para as práticas docentes, contudo, ainda que

determinem a mesma nomeação para o objeto em questão, suas classificações são um

tanto quanto antagônicas, e carecem de uma análise ainda mais aprofundada.

As palavras expostas pelas alunas-professoras validam a pós-graduação com

espaço de conhecimento, de relação teoria-prática, de reflexão... porém, as justificativas

expostas, denotam, por vezes, uma formação dicotomizada, polarizada entre a teoria

recebida na aula da pós-graduação e a aplicação disso no dia-a-dia da sala de aula,

baseada em uma concepção de conhecimento como algo a ser recebido, além de alguns

indícios de supremacia da prática diante da teoria.

Estas são apenas algumas notas sobre as análises ressaltadas no processo de

pesquisa, e, sinalizam que as professoras, embora ainda muito presas as formas

reprodutivistas com as quais foram formadas ao longo de suas vidas, apontam que

novas configurações para o seu processo formativo começam a emergir, percebendo o

quanto os elementos que constituem a sua docência são preponderantes nesta trajetória

de constituição da sua formatividade.

REFERÊNCIAS

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

1576ISSN 2177-336X

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A EMÍLIA QUE MORA EM CADA UM DE NÓS: CONSTITUIÇÃO DO

“PEDAGOGO-CONTADOR DE HISTÓRIAS

Luciene Souza Santos

Universidade Estadual de Feira de Santana/UEFS

RESUMO

A partir de uma metáfora – a Emília que mora em cada um de nós –, o estudo

empreendido defende a tese de que existe um portador de memórias em cada pessoa,

que pode se revelar e se constituir em contador ou contadora de histórias, se dessa forma

se descobrir. Tomando a Faculdade de Educação da UFBA como lócus da investigação,

de inspiração etnográfica, e estudantes de Pedagogia como sujeitos da pesquisa, o

estudo desenvolveu-se seguindo uma combinação de procedimentos e dispositivos de

produção e coleta de dados e informações, o que compreendeu uma necessária pesquisa

bibliográfica, entrevistas com contadores de histórias contemporâneos, criação e

implementação de uma oficina de contação de histórias para os sujeitos da pesquisa e

realização de um grupo focal. Esse estudo permitiu expressar, um percurso de contação

e escuta de muitas histórias para, ao reaproximar a autora do caminho que a constituiu

como contadora, apresentasse entendimentos sobre os percursos percorridos por

constituintes da arte de narrar, os sujeitos da pesquisa. As questões que nortearam esse

estudo foram: O que fazer para que esses sujeitos descubram a importância de falar de

si, da constituição de sua subjetividade? Como disparar o processo de revelação dos

repertórios de histórias que marcaram sua memória afetiva? O que se pode aprender

revelando as próprias histórias e escutando as dos outros? Que caminhos podem ser

desencadeados para a formação de sujeitos contadores de histórias? Que referências

tomar para isso? Tais questões foram respondidas ou, por vezes, desdobradas em muitas

outras. As reflexões que o estudo produziu como fruto de todo o percurso,

especialmente a partir da interação com os jovens estudantes, autorizam a autora a

reafirmar: o contador de histórias aprende a contar a partir da rememoração das suas

histórias fundantes – memória afetiva.

Palavras-chave: Contação de histórias. Memória afetiva. Formação de Professores.

ERA UMA VEZ: O PREÂMBULO DE UMA HISTÓRIA

Para a compreensão desse estudo será necessário rememorar histórias fundantes

vivenciadas em minha formação como Contadora de Histórias, já que a pesquisa aqui

descrita se entrelaça com a minha história de vida. Começo então com a memória da

década de noventa que faz emergir a riqueza que representaram para mim as oficinas de

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Contação de História dos encontros de leitura promovidos pelo Programa Nacional de

Incentivo à Leitura (PROLER), em parceria com a Universidade Estadual de Feira de

Santana. Aquelas oficinas abriram as portas da minha alma e do meu entendimento para

investigar as narrativas da tradição oral. Organizei um repertório de histórias de épocas

e quadrantes diversos – desde os mais distantes, africanos, portugueses, franceses, até os

mais próximos de nós, brasileiros, nordestinos, baianos – e com elas construí “mil e

uma” aprendizagens, não somente as registradas nos compêndios e livros didáticos,

mas, especialmente, as referentes aos processos de educar pelo sensível: “[...] a

sensibilidade que funda nossa vida consiste num complexo tecido de percepções e

jamais deve ser desprezada em nome de um suposto conhecimento „verdadeiro‟.”

(DUARTE JÚNIOR, 2001, p. 22).

Essa experiência com as narrativas orais, além de impulsionar minha formação

na arte de contar histórias, ajudou no mergulho pessoal pela memória afetiva. Por certo,

ela determinou uma segura disposição para narrar, narrar, narrar sem parar, para amigos,

parentes, alunos, quem quer que fosse que me desse atenção e se mostrasse sensível ao

mundo subjetivo das emoções e aos recursos da linguagem na modalidade oral, que

apelam para a imaginação e para o coração. Foi nessa inclusão cada vez maior de

sujeitos escolhidos para que lhes contasse histórias que agreguei os estudantes de

pedagogia da Faculdade de Educação da UFBA, dessa vez como sujeitos da minha

pesquisa de Doutorado em Educação.

As razões da escolha de estudantes de Pedagogia como sujeitos de minha

investigação precisam ser reveladas para a compreensão de meu caminho metodológico.

Durante o segundo semestre do ano de 2009, atraída pela ementa da disciplina

frequentei as aulas de EDC 236 – Oficina de Literatura: por que ler, disciplina de

natureza optativa da Faculdade de Educação da UFBA. Tal qual Emília, narradora-mor,

em especial de suas reinações, aqueles alunos e alunas retomavam seus percursos

formativos rumo à leitura literária e iam, através das oficinas (formato estabelecido para

as aulas), constituindo, assim como um dia eu fizera, os espaços de desejo a serem

preenchidos pelos livros. Notei, a cada encontro, os estranhamentos do grupo para

vivenciar a proposta lúdica e inusitada da professora, que o desafiava a todo instante

para que efetivasse, através do dialogismo (BAKHTIN, 1981), o seu direito à voz,

direito autoral de quem percebe a importância de suas próprias histórias e se dispõe a

narrá-las. A professora desafiava o grupo para experimentar um jeito inusitado de

ensinar e aprender que perpassava a ideia de conotação defendida por Barthes (1999).

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Sobre a conotação, valho-me das palavras de Beltrão (2005, p. 236), quando,

dialogando com Barthes, diz que:

[...] a conotação é uma determinação, uma anáfora, um traço que tem

o poder de se relacionar com menções anteriores, ulteriores ou

exteriores a outros lugares do texto (ou de outro texto).

Topologicamente, a conotação assegura uma disseminação dos

sentidos, espalhada como palha de oiro sobre a superfície aparente do

texto. Semiologicamente, toda conotação é ponto de partida de um

código (que não será nunca reconstituído), a articulação de uma voz

que está tecida no texto. Dinamicamente, é um domínio a que o texto

está submetido, é a possibilidade de exercer esse domínio a que o

texto está submetido, é a possibilidade de exercer esse domínio.

Foi a partir daí que se revelou a relação estreita entre o comportamento desses

sujeitos nas oficinas e o avanço no traquejo para narrar essas histórias e perceber as

subjetividades que constituíam a própria formação. Eram estudantes prestes a ingressar,

como professores, nas escolas de Ensino Fundamental, e que começavam a ser

instigados a reconhecer seus processos de formação pessoal, social e cultural e o quanto

isso podia acionar os dispositivos necessários ao seu desenvolvimento profissional.

Nesse momento, ao identificar os sujeitos de minha pesquisa, formulei o meu objeto de

estudo.

Compreendendo que as narrativas orais têm papel fundamental na constituição

de subjetividades e na formação inteligível do indivíduo a partir da infância, fica

incompreensível o fato de essas narrativas e o ato de contar histórias não se constituírem

em importantes acontecimentos curriculares no Curso de Pedagogia da Faculdade de

Educação da Universidade Federal da Bahia (Faced, UFBA). E foi exatamente a partir

relação entre minha própria história de contadora e o encontro com as histórias dos

estudantes, na disciplina mencionada, que se deu uma inquietação a qual deu corpo e

sentido ao objeto de estudo: constituição de pedagogos desenvoltos na arte de

narrara partir da relação entre suas narrativas orais fundantes e o

desenvolvimento de práticas formadoras filiadas à contação de histórias. Em outras

palavras: considerando que existe uma Emília lobatiana em cada um de nós, o que fazer

para que essa Emília venha à tona, se mostre e mostre a possibilidade de constituição de

sujeitos preparados para narrar e escutar narrativas próprias e alheias.

Eis aí meu interesse, fruto de minha inquietação: trazer para o espaço da

academia a discussão sobre a formação de pedagogos dispostos a exercer a escuta de si

e do outro a partir das narrativas de tradição oral, considerando a importância dessa

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escuta como ação fundamental na constituição da subjetividade, além de provocadora

do pensamento divergente, da flexibilidade e da fluência linguística.

Como o ser humano é matéria do desejo, peço licença a quem de direito, o leitor,

para expressar quais foram os meus objetivos com este estudo: expressar, em nível de

doutoramento, um percurso de contação e escuta de muitas histórias para, ao me

reaproximar do caminho que me constituiu contadora, apresentar entendimentos sobre

os percursos percorridos por constituintes da arte de narrar, estudantes de Pedagogia da

Faced (UFBA), atores da pesquisa.

E O QUE VEIO DEPOIS?

Considerando o objeto e o objetivo do estudo, um longo percurso de muito

pensar e dialogar foi o caminho encontrado para escolher procedimentos que tornassem

os encontros, na EDCC60, um espaço que resultasse em revelação da Emília que mora

em cada estudante sujeito da pesquisa, ou, pelo menos, alguma parte dela que nele se

esconde. Nesse percurso, algumas questões se impuseram. O que fazer para que esses

sujeitos descubram a importância de falar de si, da constituição de sua subjetividade?

Como disparar o processo de revelação dos repertórios de histórias que marcaram sua

memória afetiva? O que se pode aprender revelando as próprias histórias e escutando a

dos outros? Que caminhos podem ser desencadeados para a formação de sujeitos

contadores de histórias? Que referências tomar para isso?

Dar conta dessas questões foi um caminho sem fim, como o é o das narrativas

orais. Também os caminhos das coisas mais importantes da vida não têm fim. Saber o

que se pretendia, no entanto, foi uma base razoável para dar a partida.

E o ponto de partida foi colocar a cabeça, as mãos e o coração na massa, isto é, a

entrega a um processo de interlocução com os sujeitos da investigação, estudantes de

Pedagogia da Faced (UFBA), na disciplina mencionada, EDCC60, criada e

desenvolvida no segundo semestre de 2011.

Essa disciplina, cujo programa compôs a tese, foi criada por nós, eu e minha

orientadora, para compor o espaço, campo empírico da pesquisa, constituindo-se, desde

já, numa contribuição do nosso percurso no PPGE para a Faculdade de Educação. Desse

modo, através do desenvolvimento dessa disciplina, foi possível disparar o percurso

metodológico de inspiração etnográfica, como havíamos previsto, compondo um

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universo de narrativas de si, escolhas de repertórios e indicações de perspectivas

capazes de fomentar uma discussão sobre questões do estudo e pontos que dele

advieram. Dentre eles, mostrou-se importante demarcar os pontos de relação entre

minha própria história de formação de contadora de histórias com a história de

formação de contadores de histórias, como estudantes de Pedagogia da Faced (UFBA).

É preciso confessar que esse corpus de informações é resultante de um processo

marcado pela mediação de uma pesquisadora visceralmente implicada com seu objeto

de estudo, que o tempo todo busca reconhecer suas singularidades, da mesma forma que

compreende que todos os seres humanos também se expressam num conjunto de

singularidades. Considerando que meu processo de formação continuada de contadora

de histórias vem acontecendo não só em cursos, seminários e encontros, mas também e,

de forma especial, mediando práticas de narração em espaços diversos (hospitais, praças

públicas, bienais e feiras do livro, escolas, igrejas, universidades),tentei possibilitar

práticas semelhantes para que os estudantes, sujeitos da pesquisa, afetados pela

confluência de narrativas ficcionais contextualizadas por si e pelo outro, estabelecessem

uma ação de diálogo com seus ouvintes e com seus colegas, agora contadores de

histórias, em espaços de educação formal e não formal:

[...] a educação é abordada enquanto forma de ensino/aprendizagem

adquirida ao longo da vida dos cidadãos; pela leitura, interpretação e

assimilação dos fatos, eventos e acontecimentos que os indivíduos

fazem, de forma isolada ou em contato com grupos e organizações. A

educação escolar, formal, oficial, desenvolvida nas escolas, ministrada

por entidades públicas ou privadas, é abordada como uma das formas

de educação.

[...] Usualmente se define a educação não-formal por uma ausência,

em comparação ao que há na escola (algo que seria nãointencional,

não planejado, não estruturado). Tomando como único paradigma a

educação formal. (GOHN, 1999, p. 98-100)

Assim como Emília e os demais personagens de Lobato se constituíram em

tecelões do seu texto, procurei dar “linha e tecido”, ou seja, embasamentos teórico-

práticos aos sujeitos-atores dessa pesquisa, para que compusessem uma história de

contadores de histórias, de eternos aprendentes da arte de narrar, na certeza de que os

jeitos de se revelar e de se expor são de cada qual. E foi por isso que os espaços de

liberdade de expressão foram preservados, com a compreensão de que, do mesmo modo

que Emília, cada pessoa tem jeitos de dizer o que tem para dizer: “Não sei se é filosofia

ou não. Só sei que é como sinto e penso e digo.”. (LOBATO, 1984, p. 141) As

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1582ISSN 2177-336X

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Memórias da Emília que mora na pesquisadora e da Emília boneca-gente de Monteiro

Lobato funcionaram como disparadores de memórias, memórias de algumas histórias de

relações afetivas e ficcionais, impressões, referências e descobertas de quem precisa

cada vez mais ser reconhecido como parte importante da história da Faculdade de

Educação da Universidade Federal da Bahia.

Os capítulos que seguem vão dizer ao leitor se esse foi um caminho que

possibilitou o encontro dos sentidos pretendidos. Após o Capítulo 1, destinado a

introdução do trabalho com a contextualização do tema e a apresentação da pesquisa,

seguiram os demais: O segundo capítulo se intitulou Em busca das gênesis da

contação de histórias: testamento da “gente das maravilhas”iii

e consistiu numa,

ainda bastante tênue, discussão histórico-reflexiva sobre os legados deixados pela arte

de narrar e por seus contadores de histórias, ao longo do tempo, no mundo e no Brasil.

A história como fonte de ensinamento e sabedoria e o seu encantamento, a função

terapêutica do conto, a herança africana, indígena, feminina e brasileira foram temas

discutidos no referido capítulo e serviram como disparadores da reflexão, pois nos

fizeram repensar o papel da tradições na formação de novos contadores.

O terceiro capítulo, Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, título

inspirado no primeiro verso de um soneto de Camõesiv

, discutiu o retorno dos

contadores de histórias, bem como socializou resultados do nosso estudo sobre os

contadores de histórias contemporâneos e suas relações de afinidade e diferença com os

contadores de histórias tradicionais, a fim de compreender os laços que unem esses

narradores do presente com os do passado. Apresentamos, ainda, fragmentos de

histórias de alguns contadores contemporâneos, considerando a constituição dos seus

repertórios – consequentemente, da sua formação nessa arte –, substância importante

para mediar à relação entre os jovens contadores, estudantes de pedagogia, e a “gente

das maravilhas”, que já se encontra na estrada há pouco mais de uma década.

No quarto capítulo, A Emília que mora em cada um de nós: a constituição do

pedagogo-contador de histórias, apresentamos o percurso dos estudantes de

pedagogia, sujeitos do nosso estudo, em seu processo de constituição como contadores

de histórias. Na produção desse capítulo, tivemos a preocupação de considerar marcas

que revelaram esses contadores através da memória afetiva, da estética da recepção do

conto oral e da performance.

Por fim, no último capítulo Ensaiando final feliz, foram apresentadas as

considerações finais da tese e retomados os objetivos da pesquisa, no intuito de registrar

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reflexões sobre os desdobramentos deste estudo em outros espaços e outros tempos de

formação.

O CAMINHO BORDADO: SOBRE ESCOLHAS METODOLÓGICAS

[...] pesquisar não é somente produzir conhecimento, é sobretudo aprender

em sentido criativo.

Demo (2001, p. 43)

Sou contadora de histórias com plena consciência de como me constituí como

tal, mas a necessidade de descobrir como outros contadores se formaram foi uma

motivação que se agregou à vontade de saber se as metodologias experimentadas

poderiam constituir um caminho metodológico capaz de formar novos contadores de

histórias. Foi pensando assim que a revisão bibliográfica deste estudo começou a ser

feita no intuito de conhecer o que já existia de discussão sobre a figura do contador.

Nesse período, encontrei os livros de Gislayne Matos, Cléo Busatto e Selso Sisto, com

quem tive contato presencial posteriormente, e que abriram caminhos para outras

referências que foram sendo agregadas em todas as etapas deste estudo.

Para chegar aos “finalmente” desta tese, isto é, fechar a escrita do texto que a

representa, foi necessário bordar um caminho metodológico de inspiração etnográfica

que envolveu três fases: a pesquisa bibliográfica, a entrevista com contadores de

histórias que atuam na formação de outros contadores e a oferta de uma disciplina

optativa, criada por nós, visando a formar novos contadores de histórias, estudantes de

Pedagogia. A coleta de dados durante tais etapas foi realizada através de uma

combinação de procedimentos e dispositivos de coleta diversos, que serão melhor

compreendidos a partir de agora.

A pesquisa bibliográfica

A pesquisa de campo e a bibliográfica se deram concomitantemente, mas o

ponto de partida da última foram obras de autores que discutem a formação do contador

de histórias e a valorização das narrativas orais. Valemo-nos, também, dos documentos

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

1584ISSN 2177-336X

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encontrados no site da Casa da Leitura da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e em

páginas de artigos científicos, a exemplo do SciELO - Scientific Electronic Library

Online.

O estudo bibliográfico alimentou principalmente, o primeiro capítulo – Em

busca das gênesis da contação de histórias: testamento da “gente das maravilhas” –,

espaço dedicado à reconstituição de alguns dos principais legados deixados pelos

contadores de histórias tradicionais no Brasil e no mundo. Para melhor compreensão do

leitor, cada legado foi sustentado por um argumento, seguido por uma rápida discussão

e, por fim, por uma ementa que ensaiou sintetizar o argumento de cada legado. Foram

oito legados: o primeiro, relacionado à sabedoria e a tradição; o segundo referente a

Sahrazadv e a sua capacidade de postergar a morte (as narrativas da tradição oral nos

salvam); o terceiro defendendo a ideia de que contar histórias é sempre a arte de contá-

la muitas e muitas vezes; o quarto, trazendo os narradores tradicionais da África; o

quinto, as narrativas indígenas; o sexto, a contextualização das narrativas bíblicas no

âmbito dos contos da tradição oral; o sétimo, a figura da mulher como importante

responsável pela preservação do texto de tradição oral; e o oitavo, o legado dos

folcloristas, compiladores, pesquisadores e contadores de histórias tradicionais do

Brasil.

A entrevista

Paralelamente ao estudo bibliográfico que deu origem aos legados, fomos

organizando o roteiro de entrevista, instrumento utilizado para compreender a

constituição do acervo de contadores de histórias que hoje promovem a formação de

outros contadores. Convidamos cinco profissionais da área, sendo dois homens e três

mulheres, quatro moradores da Bahia e uma residente em São Paulo. Dois deles

participaram também da “oficina”, espaço empírico deste estudo. O critério de escolha

se deu pela relação que esses profissionais têm com as áreas de arte – pois se

apresentam como contadores de histórias – e de educação, já que são acadêmicos e

trabalham com a formação de professores. Todos estão no mercado de trabalho há

pouco mais de dez anos e já possuem certo reconhecimento em suas comunidades, dado

o montante de eventos e formações que efetivam a cada ano. Ao serem convidados,

estabeleceram um dia e horário para um encontro e se dispuseram a gravar as suas

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entrevistas, que revelaram, entre outras coisas, repertórios e um processo minucioso da

própria formação.

Pesquisa de campo: a oficina

Por fim, estruturamos a “EDCC60 – Vamos contar outra vez? Oficina de

contação de história” como espaço empírico desta pesquisa. Com o olhar atento sobre o

objeto, a tese e o objetivo deste estudo, foi possível definir um planejamento

pedagógico e, ao mesmo tempo, uma abordagem metodológica que, juntos, foram

capazes de revelar indicadores importantes para a construção do texto da tese. O

programa da oficina foi estruturado em torno da seguinte temática: A tradição oral e o

conto de tradição oral; a estética do texto oral; a arte de contar história; memória e

repertório do contador de história. Essa oficina, hoje componente curricular do curso de

Pedagogia da UFBA, teve a duração de 68 horas, com trinta e três alunos matriculados,

sendo um do sexo masculino e os demais do feminino. As razões que os levaram à

escolha dessa optativa foram diversas e se revelaram no primeiro grupo de discussão

realizado na aula 1, do dia 16.08.2011, expostas no Capítulo 3, deste estudo. Desse

universo, apenas duas alunas desistiram.

Toda a oficina foi desenvolvida a partir de reminiscências dos constituintes do

grupo e de sua crescente compreensão do significado das narrativas orais como fonte de

afetividade, de constituição de subjetividades e de descoberta de estilos de contação de

histórias. Nesse sentido, o movimento dela se constituía de processos de escuta e

reflexão, de discussão sobre temáticas ligadas à formação do contador de histórias, de

aquecimento e atividades de corpo; de rodas de contação com experimentação de modos

diversos de narrar.

Para acrescer novas experiências de recepção e estética, alguns convidados

vieram partilhar o seu conhecimento e deixaram as suas marcas. Keu Apoema,

contadora de histórias e formadora de contadores, contribuiu, especialmente, para os

entendimentos da turma sobre a tradição oral como patrimônio da humanidade e

ferramenta de aproximação e diálogo entre tempos e pessoas. O músico e professor

Eudes Cunha e a artista plástica Marciela Paula promoveram a inserção de elementos

externos à arte de contar histórias e, com seus instrumentos e tapetes, mostraram ao

grupo outras formas de explorar a narrativa oral. O professor brincante e contador de

histórias, Pinduka trouxe importantes informações sobre as paisagens sonoras dos

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ambientes urbanos, a sala de aula inclusive, e sua relação com os processos narrativos.

No total, foram dezessete encontros de quatro horas, sendo três deles fora dos espaços

da Universidade. Nos encontros em sala de aula, houve oportunidade de estudo de

autores, compiladores e folcloristas que defendem a bandeira da Literatura Oral.

Das três atividades de campo, a primeira se desenvolveu através da contação de

histórias em espaços de educação escolar e não escolar: creches, escolas, asilos, praças e

igrejas. Apesar de terem ido a campo em duplas ou em trios, o desafio foi contar

individualmente uma história. Após a atividade, registrada em fotos, vídeos e textos, o

grupo apresentou, na sala, os efeitos de sentido dessa experiência e revelou, entre outras

coisas, a emoção de interagir com outras pessoas pela via das histórias.

A segunda experiência de campo foi uma visita à Biblioteca Monteiro Lobato,

onde o grupo se preparou para realizar uma roda de histórias. Lá, eles fizeram uma

visita monitorada para se apropriar da estrutura e concepção de uma biblioteca infantil e

fizeram os ensaios de palco para a realização da roda. E a terceira atividade de campo

foi à roda de histórias realizada no evento do Grupo de Pesquisa Educação e Linguagem

(GELING), intitulado Uma vez todo mês1. Além da exposição dos seus modos de narrar,

os atores desta pesquisa vivenciaram outro grupo de discussão, ao final do semestre, em

13.12.2011, onde tematizaram, entre outras questões, a importância da formação de

professores como contadores de histórias.

Com as falas dos estudantes sujeitos da pesquisa, eclodidas dos grupos de

discussão, e com sua experiência performática nas rodas de contação, foi possível

alimentar o terceiro capítulo da tese, que apresenta uma discussão sobre a formação do

contador de histórias no curso de Pedagogia, e uma reflexão sobre o ato de educar pela

via do afeto e da sensibilidade. Para estruturar a análise dos dados colhidos com nossos

estudantes, sujeitos deste estudo, escolhemos três categorias de análise que nos

ajudaram a revelar o objeto deste estudo: constituição de pedagogos desenvoltos na arte

de narrar a partir da relação entre suas narrativas orais fundantes e o desenvolvimento

de práticas formadoras filiadas à contação de histórias.

A primeira categoria foi a memória afetiva, revelada pelo grupo de discussão

realizado no início do semestre letivo, através da qual os estudantes experimentaram

falar de si e ouvir o outro, nesse mesmo movimento gerador de aprendizagem e do

1 Mesmo sendo esse um evento que costuma ocorrer sempre na última segunda-feira de cada mês, para adaptar-se a realidade do grupo, que tinha aula às terças-feiras, o GELING promoveu a atividade no dia 29/11/2013.

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desejo de narrar. A segunda categoria foi o estudo do conto de tradição oral e a recepção

desse gênero pelos contadores em formação, quando os atores da pesquisa

experimentaram a escuta e a leitura de contos tradicionais para, posteriormente

convertê-los em novas narrativas orais. E a terceira categoria foi a performance, em que

a análise ultrapassou o conteúdo textual e perpassou também os gestos e outros seis

elementos, responsáveis pelas “boas práticas da contação de histórias”, expressão usada

por Matos (2005) para falar de ritmo, energia, expressão, poder, memorização e

improviso.

A experiência benfazeja do nosso estudo nos dá vontade de começar de novo e

incluir outros dispositivos tanto de coleta quanto de registro de dados. Gostaríamos, por

exemplo, de incluir a escuta dos ouvintes das histórias de nossos estudantes.

Gostaríamos também de construir a tese fazendo uso do aparato tecnológico (vídeo,

podcast, gravações), o que ajudaria o leitor a ver a performance dos jovens contadores

de histórias aqui descritos.

Mas isso já seria outro movimento, similar ao de Sahrazad, que, em suas Mil e

uma noites, entrou e saiu de histórias numa tentativa de prolongar a vida e as

narrativas...

REFERÊNCIAS

DUARTE JÚNIOR, João-Francisco. O sentido dos sentidos: a educação (do) sensível.

Curitiba: Edições, 2001.

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1981.

BARTHES, Roland. S/Z. Tradução de Maria de Santa Cruz e Ana Mafalda Leite.

Lisboa: Edições 70, 1999.

BELTRÃO, Lícia Maria Freire. A Escrita do Outro: anúncio de uma alegria possível

(tese). Tese doutorado. Salvador: PPGE/UFBA, 2006.

GOHN, Maria da Glória. Educação não-formal e cultura política: impactos sobre o

associativismo do terceiro setor. São Paulo: Cortez, 1999.

LOBATO, Monteiro. Mundo da lua e miscelânea. São Paulo: Brasiliense, 1984. v. 10.

(Obras completas de Monteiro Lobato)

MATOS, Gislayne Avelar. A palavra do contador de histórias: sua dimensão

educativa na contemporaneidade. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

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iPedagoga, Mestre e Doutoranda em Educação – Universidade Estadual da Bahia – UNEB, Programa de

Pós-graduação em Educação e Contemporaneidade. Pesquisadora do Grupo de Estudos em Psicanálise,

Educação e Representação Social - GEPE-RS. Coordenadora do Núcleo de Pós-Graduação Gastão

Guimarães - NPGGG/ Fundação Visconde De Cairu. Contato: [email protected] ii Alunas da pós-graduação lato sensu que produzem a profissão docente no âmbito da Educação Básica.

iii Expressão de origem árabe, usada por Gislayne Matos (2005) em seu livro A palavra do contador de

histórias e que se refere ao contador de histórias, aquele que semeia sonhos. iv Primeiro verso do Soneto 45 de Luís de Camões (1963, p. 284).

v Forma gráfica para a protagonista das Mil e uma noites, Sherazade.

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