Educação Moral em Durkheim-Revista Arquipélago Nº1

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 REVISTA DA UNIVERSIDADE DOS AÇORES ~ ARQUIPELAGO  IÊN I S D EDU ÇÃO  PONTA DELGADA 19 9 6

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REVISTA DA UNIVERSIDADE DOS AÇORES

~

ARQUIPELAGOCIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO

1

PONTA DELGADA .1996

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Direcção

MARIAl\O ALVES

Redacção

JORGE L1~1A

SUZA A CALDEIRA

TEIXEIRA DIAS

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a A RQ U IP ÉLAG O (Ciências da Educação)

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O conteúdo dos artigos

é da inteira responsabilidade dos seus autores

© Universidade dos AçoresPonta Delgada

ISSN: 0873-8165

Depósito Legal N." 112515/97

Capa: Mestre Tornaz Vieira

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NOTA PREAMBULAR . 1 I

ARTIGOS

Nicolau de Almeida Vasconcelos Raposo. O C ON TRIB UTO D A PSIC OLOGIA PARA A F ORM AÇ Ã O D E PROFE SSORE S 17

Ermelindo Manuel B. Peixoto I Luís Joyce-MonizN OV AS LIN H AS D E AC Ç Ã O PARA A IN V E STIGAÇ Ã O N O D OMíNIO D A

M A S TE Ry LE ARN IN G 39

Mariano Teixeira AlvesPERSPE CTIVAS C Rí TIC AS N A AN Á LISE DO PLANEAMEN TO E D AS

PO LÍTIC AS EDUCAm /A S 6S

/

Maria de Lurdes Cabral de SonsaFOREIGN LAN GU AGE LE ARN IN G.· A RE V IE W OF PRO B LE M S AN D

PERSPE CTIVES 8S

Isabel Estrela RegoD E S E N V OLV IM E N TO DO n iizo M ORAL - OS C O N TRI B UT OS D E JE AN

PIAGE T E LA W RE N C E K OH LB E RG 145

Jorge M. Ávila de LimaA EDUCAÇ Ã O M ORAL E M D URK H E IM 169

Teresa MedeirosD IM E N SÃ O PSIC OS SOC lAL DO IN SUC E SSO E SC OLAR N O J . o C IC LO DO

E N SIN O B Á SIC O 187

NORMAS PARA A APRESENTAÇÃO DE ARTIGOS 205

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Revista Arquipélago - Ciências da EducaçãoN.º 1

Dezembro 1996

Jorge M_Ávila de Lima"

A EDUCAÇÃO MORAL EM DURKHEIM

RESUMO

L 'Éducation Morale é uma excelente ilustração da concepção de Durkheimsobre a escola como a agência de socialização mais importante da sociedade mo-

derna. O significado dos ensaios do autor sobre este assunto só pode ser plena-

mente compreendido se os integrarmos na globalidade da sua obra. Durkheim

procurou construir uma ciência dos factos morais, a qual ajudaria a encontrar

uma solução para o problema da manutenção da ordem social, numa época em

que os sistemas sociais tradicionais estavam a atravessar uma série de transfor-

mações radicais. Na sua opinião, a escola era o lugar ideal para a criação nos in-

divíduos do espírito de disciplina, da ligação aos grupos e do sentido da autono-

mia. Hoje, o trabalho de Durkheim nesta área merece relevo, mais pela sua defi-nição de um papel e de uma vocação para a Sociologia, do que pelos seus conteú-

dos específicos, muitos dos quais estão claramente ultrapassados.

"L'Éducation Morale" é a obra menos conhecida de Durkheim. Noentanto, trata-se do melhor exemplo da sua sociologia aplicada. A partirdesta obra, é possível reflectir sobre a relação entre a educação e a moral,especialmente no que se refere ao papel da escola na edificação e reprodu-ção dos quadros normativos que regulam a vida social.

A este respeito, os textos de Durkheim têm um carácter controverso.Mas, mesmo que não sejamos adeptos incondicionais das teses durkheimi-anas, não podemos deixar de reconhecer que a sua obra pode ser um exce-lente ponto de partida para uma discussão do papel da escola na educaçãomoral dos indivíduos.

O principal objectivo deste trabalho é destacar as propostas de Dur-kheim no campo da educação moral, procurando integrá-las no conjunto

* Assistente no Departamento de Ciências da Educação da Universidade dos Açores.

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JORGE M. Á VILA DE LIMA

do seu pensamento, tal como ele surge documentado nos seus principaisescritos publicados e, em particular, na sua concepção sobre a escola en-

quanto instância socializadora.Dividimo-lo em duas partes principais. Na primeira, procuramos en-quadrar as teses de Durkheim no contexto em que foram produzidas e re-lacioná-Ias com as preocupações do pensador. Destacamos em especial asconcepções deste sobre a possível edificação de uma ciência da moral e asimplicações que tal ciência teria na conduta humana.

Na segunda parte, apresentamos os traços essenciais da noção demoral na perspectiva durkheimiana e discutimos o lugar que ele atribuía àescola na empresa da educação moral.

Terminamos com uma apreciação global das questões abordadas, em

termos das suas implicações actuais e da contextualização do pensamentodo autor.

1. CIÊNCIA E MORAL

1.1· A questão moral

Na época de Durkheim, a sociedade francesa era atingida por impor-tantes transformações: a consciência nacional, fortemente abalada pela

derrota de 1870, vivia uma profunda crise, que era agravada por uma forterepressão exercida sobre a classe operária, após a Com una de Paris (Du-vignaud, 1982: I I).

O último quartel do século XIX instaurou em França uma autênticarevolução educacional, com a decisão de oferecer, nas escolas estatais,uma educação moral puramente secular. Na opinião de Durkheim (1925:3), esta mudança estava a perturbar as ideias e os hábitos tradicionais ecolocava uma série de novos problemas.

Neste contexto, Durkheim atribuiu à escola um papel particular-mente importante, manifestando a opinião de que, à excepção dela,

já não existia no país qualquer "sociedade intermédia" entre a famí-lia e o Estado: "Todos os grupos deste tipo, que em tempos iam dasociedade doméstica à sociedade política - província, com una, cor-porações - foram totalmente abolidos, ou, pelo menos, sobrevivemapenas de uma forma muito atenuada. ( ... ) Ora, este estado de coisasconstitui uma crise séria. Para que a moral tenha uma base, o cida-dão deve ter uma inclinação para a vida colectiva" (Durkheim, 1925:232-233).

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A EDUCAÇÃO MORAL EM DURKHEIM

Esta preocupação com as bases da moral e a inclinação para a vidacolectiva é, como veremos, um aspecto central do pensamento de Dur-

kheim. A base de que partem as suas reflexões é a célebre questão de co-mü se forma e se mantém a ordem social. Esta questão havia já sido colo-cada por importantes pensadores, nomeadamente Hobbes e Rousseau, quea procuraram resolver através da noção do "contrato social", isto é, de umacordo voluntário entre os indivíduos, que estaria na base da criação artifi-cial dos grupos (Silva, 1988: 36).

Pode dizer-se que o principal objectivo de Durkheim era contribuirpara a integração moral de que, na sua opinião, carecia a sociedade fran-cesa. Por outras palavras, a sua grande prioridade apontava para a criação

de um consenso moral (E:K: Wilson, in Durkheim, 1925: X). Corno dizA. Santos Silva (1988: 40), o problema moral - ou melhor, o "problema

da ordem social enquanto problema moral" - é o problema por excelên-cia da sociologia durkheimiana.

Nas suas investigações sobre a ordem social, Durkheim definiu co-mü pontos centrais da sua reflexão, ao longo de toda a sua obra, a nature-za dos sistemas sociais e a relação destes com a personalidade dos indiví-

duos (Parsons, 1968: 311). Ele sublinhava frequentemente a natureza in-saciável da sensibilidade humana, considerando que, "em si mesma, e

abstracção feita de qualquer poder exterior que a regule, a nossa sensibili-dade é um abismo sem fim que nada pode saciar" (Durkheim, 1897: 240).

Durkheim (1922: 52) concebia o indivíduo corno um ser essencial-mente egoísta e associa!. Esta natureza essencialmente associal do homemcomportava enormes perigos potenciais, quando assumia uma expressãogrupal desregrada. Na sua opinião, "as fortes forças emocionais geradasna multidão são especialmente intensas. Portanto, elas conduzem rapida-mente a excessos. É necessário um sistema forte e complexo de regulado-res para as enquadrar dentro de limites normais, para se evitar que elas

rompam todos os laços" (Durkheirn, 1925: 150).Deste modo, a limitação das paixões teria de resultar de uma regula-

ção de ordem colectiva: "(.») é necessário que as paixões sejam limitadas.Só, então, poderão estar em harmonia com as possibilidades e, por conse-quência, poderão ser insatisfeitas. Mas, dadü que não há nada no indiví-

duo que lhes possa fixar um limite, para que este exista deve vir necessari-amente de alguma força exterior ao indivíduo, É necessário que uma forçaregularizadora desempenhe em relação às necessidades morais o mesmo

papel que desempenha o organismo em relação às necessidades físicas.

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JORGE M. ÁVILA DE LIMA

Quer isto dizer que esta força só poderá ser moral" (Durkheirn, 1897: 241-242).

Para Durkheim (1897: 242), a sociedade é a única autoridade moralsuperior ao indivíduo, porque só ela tem "a autoridade necessária para es-tabelecer o direito e para fixar o limite para além do qual as paixões nãose devem manifestar".

Em "L'Éducation Morale", Durkheim (1925: 38) defendeu que a in-capacidade de uma pessoa se restringir dentro de certos limites é um "sig-no de doença". Esta ideia já havia transparecido claramente em "Le Suici-

de", obra na qual ele faz uma associação entre a ausência de restrição dosdesejos e a propensão para o suicídio. Na sua opinião, sempre que a socie-dade perde o poder de promover a identificação dos indivíduos com ela, astaxas de suicídio aumentam: "O homem é tanto mais vulnerável à auto-destruição quanto mais ele se separa de qualquer colectividade, quer dizer,quanto mais auto-centrada for a sua vida" (Durkheim, 1925: 68). Uma situ-ação deste tipo seria especialmente provável nos casos em que se verificas-sem perturbações no equilíbrio de uma sociedade (Durkheim, 1897: 246).

Esta problemática das perturbações sociais mereceu de Durkheimuma especial atenção na sua tese. "De la Division du Travail Social". Nes-ta obra, Durkheim propôs dois importantes conceitos: o de solidariedademecânica, que caracterizaria, nas suas palavras, "uma solidariedade social

que resulta de que um certo número de estados de consciência são comunsa todos os membros da mesma sociedade" (citado in Duvignaud, 1982:22); e o de solidariedade orgânica, que designaria a criação de "um elo in-

terno que liga entre si os membros do conjunto humano em virtude dassuas diferenças e não das suas semelhanças" (Duvignaud, 1982: 22).

A crescente divisão do trabalho social nas sociedades europeias im-plicava, de facto, a passagem de um tipo de solidariedade ao outro. Comoobservou Parsons (1968: 314). "A Solidariedade orgânica é o tipo analíti-co caracterizado pela diferenciação estrutural da divisão do trabalho. A

sociedade moderna representa um caso de solidariedade predominante-mente orgânica. A solidariedade mecânica, por contraste, é caracterizadapela uniformidade e falta de diferenciação."

Na passagem histórica de um tipo de solidariedade ao outro, verifi-cam-se fortes perturbações sociais, nomeadamente: o enfraquecimentodos sentimentos comuns, que constituem a consciência colectiva; o enfra-quecimento do poder integrador da religião; e a irrupção do individualis-mo (Duvignaud, 1982: 23).

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A EDUCAÇÃO MORAL EM DURKHEIM

Nesta problemática, Durkheim concedeu particular relevo ao concei-to de anomia. Este conceito, que ele utilizou para designar um "estado de

desregramento" (Durkheim, 1987: 249), foi fundamental nas suas primei-ras investigações: ele serviu de conceito operatório, tanto em "De la Divi-sion du Travail Social", como em "Le Suicide".

Mas Durkheim não via na anemia o resultado inevitável da diferen-ciação estrutural do sistema social. Como disse Parsons (1968: 316-318),"a anemia pode ser considerada aquele estado de um sistema social quefaz com que uma classe particular de membros considerem o esforço parao sucesso sem sentido, não porque lhes falte capacidade ou oportunidade

para atingir aquilo que é desejado, mas porque eles não dispõem de uma

definição clara daquilo que é desejável". Nesta perspectiva, a anemia éuma "patologia" do sistema normativo colectivo.Para Durkheim (1897: 388-389), a existência de anemia, e a conse-

quente probabilidade de aumento do número de suicídios, deviam-se, nãoa problemas de ordem material ou de morfologia social, mas sim à criaçãode um vazio de referências que originava nos indivíduos um sentimentode ausência de sentido. Por isso, ele destacou como fim permanente deuma educação moral, "em primeiro lugar, determinar a conduta, fixá-Ia,eliminar o elemento da arbitrariedade individual" (Durkheim,I925: 27).

Durkheim era extremamente crítico das formulações spencerianasque defendiam a existência de sistemas concretos de relações contratuais(por exemplo, o mercado). Na sua opinião, uma sociedade que estivessemeramente dominada pela perseguição de interesses pessoais jamais al-cançaria um estado de ordem (Parsons, 1968: 314). Por isso, ele preferiuvalorizar a noção spenceriana dos "elementos não-contratuais do contra-to", ou seja, a existência de normas gerais que não são negociáveis entreos indivíduos (Parsons, 1968: 314). Neste sentido, Durkheim colocou-seabertamente contra o atomismo social e o liberalismo oitocentista (Silva,

1988: 35; Durkheim, 1925: 257-260).Segundo ele (citado por Fauconnet, in Durkheim, 1922: 14), muitospensadores, como Kant, Mill ou Spencer, tinham uma tendência para ver aeducação como uma forma de procurar "realizar, em cada indivíduo, maslevando-os ao seu ponto mais alto de perfeição possível, os atributos cons-titutivos da espécie humana em' geral".

Durkheirn criticou especialmente Kant, por considerar que este viano objectivo da educação o desenvolvimento, em cada indivíduo, da per-feição potencial que o caracterizaria (Fauconnet, in Durkheim, 1922: 42).

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Ora, na perspectiva durkheimiana, a educação é uma coisa eminente-mente social (Debesse, in Durkheim, 1922: 6) e o individualismo exces-

sivo na escola pode conduzir à derrota pessoal e ao caos social CE.K.Wilson, in Durkheim, 1925: XV). Daí que Durkheim (1912: 23) tenhadirigido insistentemente a sua crítica ao individualismo utilitarista, acen-tuando, "na ordem prática, a irredutibilidade do ideal moral ao móbilutilitário, e, na ordem do pensamento, a irredutibilidade da razão à expe-riência individual."

Em resumo, o trabalho teórico de Durkheim caminhou em duas di-recções complementares (Duvignaud, 1982: 10): a) a procura de novosprincípios de integração que restabelecessem o equilíbrio harmónico do

corpo social, afectado pela dissolução dos sistemas de valores estabeleci-dos; e b) a procura de uma explicação sociológica para a mudança das es-truturas sociais.

Vamos aprofundar agora este último aspecto.

1.2 - Um método positivo para o estudo da moral

O tratamento teórico que Durkheim propunha para abordar a questãomoral foi uma forma de ele declarar a sua oposição aberta aos procedi-mentos habituais da filosofia clássica nesta área. Como observou Faucon-net (in Durkheim, 1922: 14), esta menosprezou "o homem real de umtempo e de um país", o único que era realmente observável, para se dedi-car a especulações sobre "uma natureza humana universal, produto arbi-trário de uma abstracção feita, sem método, sobre um número muito res-trito de amostras humanas". A partir deste tipo de especulações, os filóso-fos e pedagogos erguiam os seus edifícios teóricos e avançavam com pro-postas, muitas vezes radicais, de reformas nos sistemas educativos.

Ora, Durkheim era abertamente contra qualquer concepção pedagó-gica que propusesse reformas radicais nos processos educativos a partir de

reflexões de carácter especulativo. Esta ideia, utilizada para a educaçãoem geral, era igualmente aplicada ao campo da moral. Dizia Durkheim,em "De la Division du Travail Social" Cpp. 57-58): "Nada autoriza a ver

nas aspirações pessoais sentidas por um pensador, por mais reais que pos-sam ser, uma expressão adequada da moral. Elas traduzem necessidadesque não são nunca senão parciais, respondem a algum desideratum parti-cular e determinado que a consciência, por uma ilusão em que é costumei-ra, erige em fim último ou único C.. ) É-nos necessário afastar essas dedu-

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A ED UCAÇÃO M ORAL EM D URKHEIM

ções, que são geralmente empregadas apenas para fazerem as vezes de ar-gumento e justificarem, de seguida, sentimentos pré-concebidos e impres-

sões pessoais".Para Durkheim (1925: 23), a análise dos factos morais não se podiaorientar por "hipóteses subjectivas": ele propunha "olhar para a moral co-mo um facto". Na sua opinião, se a Física, a Biologia e a Psicologia ti-nham acabado por se irnpôr, penetrando em regiões do conhecimento quepareciam anteriormente depender de princípios misteriosos, não havia ra-zões para supor que o mesmo não pudesse acontecer no que se referia aoestudo dos fenómenos morais.

O objectivo de Durkheim (1898: 43) era, pois, a construção de uma

ciência da moral: "Não queremos extrair a moral da ciência, mas fazer aciência da moral, o que é bem diferente. Os factos morais são fenómenoscomo os outros; consistem em regras de acção que se reconhecem por cer-tos caracteres distintivos; deve também ser possível observá-los, classifi-cá-los e procurar as leis que os expliquem."

Assim sendo, compreende-se que Durkheim se propusesse abordaros factor morais segundo o método positivo que ele havia definido para aanálise dos factos sociais, o qual se baseava em três proposições centrais:os factos sociais, devem ser tratados como coisas (Durkheim, 1895: 13);

eles devem ser vistos como exteriores aos indivíduos, ideia que assentaparcialmente no facto de que as gerações se sucedem, enquanto que as so-ciedades mantêm, em traços gerais, a sua estrutura e o seu carácter parti-cular (Durkheirn, 1923: 62); o facto social caracteriza-se pelo constrangi-mento, isto é, pela influência coerciva que ele exerce sobre as consciênci-as particulares (Durkheim, ] 895: 21). Esta última característica ilustra cla-ramente o lugar fundamental que a dimensão normativa da vida socialocupa no pensamento de Durkheim.

Durkheim insistiu veementemente na validade de um "postulado ra-cionalista", segundo o qual nada existiria na realidade que pudesse ser en-carado como estando para além do alcance da razão humana. Ele subli-nhou também que este princípio racionalista não implicava a ideia de umaexaustivação do real por parte da ciência, pois bastava "reconhecer quenão há qualquer ponto preciso no qual o domínio do misterioso, do irraci-onal, começa, um ponto definido perante o qual o pensamento científico éimpotente e não pode passar" (Durkheim, 1925: 265).

Durkheim defendeu que uma educação moral racional não só erapossível, mas que o próprio desenvolvimento histórico a exigia e determi-

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JORGE M. Á VILA DE LIMA

nava. Ele baseava esta afirmação tendo em mente dois argumentos: o deque a secularização da educação tinha vindo a acompanhar o processo his-

tórico; e o de que o próprio Cristianismo (em que o Deus morre para sal-var a Humanidade), o Protestantismo (cujo traço distintivo seria essencial-mente a diminuição da dimensão ritual da vida religiosa) e a filosofia es-piritualista (que admitia a possibilidade de uma moral poder ser edificadasem recurso a qualquer concepção teológica) seriam ilustrações desse pro-cesso histórico (Durkheim, 1925: 5-7).

Em suma, Durkheim (I 925: 11) acentuava a necessidade de a educa-ção fazer sentir na criança a realidade da moral sem ter de recorrer a qual-quer intermediário mitológico. Para ele, como observou Aron (1965: 51),"toda a sociedade necessita de crenças comuns, mas a religião tradicionalnão as pode fornecer, pois a religião não satisfaz os requisitos do espíritocientífico".

No entanto, para Durkheim (1925: 9), para instaurar uma moral raci-onal, não bastava abandonar as noções religiosas, era necessário "procu-rar, no próprio coração das concepções religiosas, aquelas realidades mo-rais que estão (...) perdidas e dissimuladas nele", isto é, "descobrir os

substitutos racionais para aquelas noções religiosas que durante muitotempo serviram como veículo para as ideias morais mais essenciais."

1.3 - Ciência e Conduta Moral

Para Durkheim, o estudo da moral tinha uma importância teórica eprática: teórica, porque ele concebia os sistemas duradouros de relaçõeshumanas como sendo intrinsecamente morais, isto é, como sistemas nosquais as condutas seriam condicionadas por elementos coercivos integra-dos num conjunto de concepções partilhadas acerca do bem e do mal; eprática, porque, como vimos, ele entendia que a principal condição para asobrevivência e para a saúde de urna nação era a existência de uma moral

secular (E.K. Wilson, in Durkheim, 1925: X).Esta dimensão prática do problema indica claramente que, segundo

Durkheim, a ciência podia apontar o sentido em função do qual a nossaconduta deve ser dirigida. Como observou Gurvitch (1968: 200), Durkheimacreditava na "possibilidade de conhecer e de prescrever simultaneamente".Isto é, ele esperava "tirar, de um conhecimento teórico prévio, uma doutri-na moral que imponha objectivos e prescreva regras de conduta".

Por outras palavras, para Durkheim, o fim último da pesquisa cientí-

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A EDUCAÇÃO MORAL EM DURKHEIM

fica devia ser a sua utilidade prática. Esta ideia ficou expressa desde a suaprimeira obra, "De la Division du Travail Social", a qual constituía uma

tentativa para responder às suas preocupações sociais da época.Em suma, o objectivo de Durkheim era construir um sistema norma-

tivo para a acção que se baseasse no racionalismo científico. Vejamos en-tão em que consistia esse sistema.

2 - A EDUCAÇÃO MORAL

2.1 - A moral Durkheimiana

De acordo com a sua posição anti-atornista, Durkheim negou semprea possibilidade de se falar de uma moral individual. Segundo ele, "a mo-ral, em todos os seus graus, nunca se encontra senão no estado de socieda-de, nunca variou senão em função de condições sociais" (Durkheirn,1893, Vol. 2: 197). Para Durkheim, o reino da moral era o reino do social.Esta concepção levou-o a propôr o seguinte princípio geral: "( ...) o domí-nio da vida genuinamente moral só começa onde começa a vida colectivaou, por outras palavras, (...) nós somos seres morais apenas na medida emque somos seres sociais" (Durkheim, 1925: 9).

Compreende-se desta forma as fortes objecções que Durkheim colo-cava ao imperativo categórico de Kant e, de um modo geral, aos moralis-tas utilitaristas (Bentharn, Spencer, Mill), que tinham em comum comaquele o facto de conceberem a moral como uma lei geral que podia seraplicada a todas as situações particulares. A perspectiva do pensador fran-cês era bastante diferente: para ele, "a moral é uma totalidade de regrasdefinidas (...), elas já existem, já estão feitas, elas vivem e operam à nossavolta" (Durkheim, 1925: 25-26), e não têm, pois, de ser construídas emcada momento por dedução em relação a princípios gerais. Por isso, Dur-

kheim entendia que o estudo da moral devia começar por procurar detec-tar empiricamente os traços essenciais desta, tal como ela existia na vidasocial.

Durkheim começou por observar que os comportamentos que tinhamuma avaliação moral positiva nos sistemas sociais se caracterizavam pelasua natureza regular, recorrente e predizível. Nesta perspectiva, todos ospreceitos morais promoveriam a regularidade dos comportamentos (Dur-kheirn, 1925: 27). Em "Les Formes Elementaires de la Vie Religieuse",Durkheim (1912: 3) acentuou a importância desta ideia, ao afirmar que

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JORGE M . Á VILA D E LIMA

um dos principais postulados da sociologia é o de que não há qualquerinstituição humana que assente sobre o erro e sobre a mentira. Esta afir-

mação apontava claramente para a ideia de que os padrões persistentes decomportamento têm conseqüências úteis para os sistemas sociais nos

quais se integram: eles são socialmente funcionais.Para além da regularidade, Durkheim destacou outro importante as-

pecto da moral: a conformidade com regras pré-estabelecidas, a qual fun-damentaria a ideia de que o domínio da moral é o domínio do dever(Durkheim, 1925: 23-24). Para Durkheim (1925: 28-29), para além depromover uma regularidade nos comportamentos, as regras são investi-das de uma determinada autoridade: "Uma regra não é (...) um simplescaso de comportamento habitual: é uma maneira de agir que nós não nossentimos livres de alterar de acordo com o gosto C .. . ) . Nós não determina-mos a sua existência ou a sua natureza. Ela é independente daquilo quenós somos. Em vez de nos exprimir, ela domina-nos. (...) Por autoridade,devemos entender aquela influência que impõe sobre nós todo o podermoral que nós reconhecemos como sendo-nos superior. C . . • ) A moral ( ...)constitui uma categoria de regras em que a ideia de autoridade desempe-nha um papel absolutamente preponderante".

Durkheim (1925: 31) uniu estes dois aspectos da moral - regulari-dade e autoridade - numa ideia mais complexa, que abarcaria ambos: o

conceito de disciplina. Segundo ele, "a disciplina regulariza a conduta.Ela implica um comportamento repetitivo sob determinadas condições.Mas a disciplina não emerge sem a autoridade - uma autoridade regula-dora. Portanto, (...) podemos dizer que o elemento fundamental da moralé o espírito de disciplina".

O segundo elemento central que Durkheim destacou na conduta mo-ral foi o espírito de abnegação em relação ao grupo. Ele classificou osobjectivos perseguidos pelos indivíduos em duas categorias: I) objecti-vos pessoais, que apenas diriam respeito ao indivíduo que os persegue: e

2) objectivos impessoais, isto é, actos que diriam respeito a algo que nãoo indivíduo que age (Durkheim, 1925: 55-56). Na sua opinião, "o com-portamento, qualquer que seja, dirigido exclusivamente para os fins pes-soais do actor, não tem valor moral" (Durkheim, 1925: 57).

Na opinião de Durkheim, o interesse colectivo seria sempre amoral,se se limitasse a uma soma de interesses pessoais. Para que a sociedadepudesse ser considerada um objecto da conduta moral, seria necessário vernela algo mais do que uma soma de indivíduos (Durkheim, 1925: 60). Em

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A EDUCAÇÃO MORAL EM DURKHEIM

suma, os fins impessoais da acção moral não poderiam ser os de um indi-víduo ou os de muitos; eles teriam de ser supra-individuais (Durkheim,

1925: 59).Vimos já que, para Durkheirn, embora toda a sociedade necessitassede crenças comuns, estas não poderiam ser fornecidas pela religião, poisesta estaria em contradição com os requisitos do espírito científico. Ora,como observou Aron (1965:51), Durkheim solucionou este problema daseguinte forma: a ciência revelaria que, no fundo, a religião não é mais doque uma transfiguração da sociedade.

Esta empresa científica teve o seu momento principal em "Les For-mes Elementaires de la Vie Religieuse", obra na qual Durkheim procurouelaborar uma teoria geral da religião a partir do estudo das instituições re-ligiosas mais simples e primitivas, partindo da ideia básica de que o tote-mismo revelava a essência da religião.

Nesta obra, Durkheim (citado in Aron, 1965: 52) procurou demons-trar que "os interesses religiosos são meramente a forma simbólica dos in-teresses sociais e morais". Segundo ele, "não há dúvida que uma socieda-de inclui tudo o que é preciso para acordar nos espíritos, só pela acção queexerce sobre eles, a sensação do divino, pois é para os seus membros oque Deus é para os seus fiéis" (Durkheim, 1912: 295). Em suma, para ele,"os deuses são os povos pensados simbolicamente" (Durkheim, citado in

Silva, 1988: 39).Logo, em termos de edificação de uma moral racional secular, seria

necessário, na opinião de Durkheim, destacar da autoridade inerente aospreceitos religiosos a sua autoridade propriamente social, através de umprocesso de racionalização daqueles. A sua proposta era, pois, a de expri-mir estas realidades em termos racionais: uma vez que Deus era a socieda-de divinizada, bastava "substituir a concepção de um ser sobrenatural pelaideia empírica de um ser directamente observável, que é a sociedade -desde que não vejamos a sociedade como uma soma aritmética de indiví-

duos, mas como uma nova personalidade distinta das personalidades indi-viduais" (Durkheim, 1925: 104-105).

O terceiro elemento central da moral destacado por Durkheim foi oespírito de autonomia. Para ele, nas sociedades de organização mais sim-ples, o comportamento moral caracterizava-se pela simplicidade e resu-mia-se a um conjunto de hábitos, costumes e tradições que eram aplicadasmecanicamente na vida prática, e que prescindiam da necessidade de raci-ocínio e de questionamento da parte dos indivíduos (Durkheim, 1925: 52).

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JORGE M. Á VILA DE LIMA

Mas, à medida que as sociedades se foram complexificando, teriadeixado de haver a possibilidade de a moral operar enquanto mecanismo

puramente automático, pois que, devido à maior diversidade de situações,se tornava necessária uma moral mais flexível, que fizesse apelo ao racio-cínio, quando se tratava de aplicar as suas regras (Durkheim, 1925: 52).Na sua opinião, as sociedades mais complexas requeriam uma moral quenão poderia nem deveria ser interiorizada à margem de qualquer crítica oureflexão.

Mas aqui parece surgir um dilema: se os dois primeiros elementosdestacados por Durkheim definem o carácter altamente coercivo da moral,como preservar então a autonomia? Durkheim tinha consciência deste pa-

radoxo. Para este dilema, ele propôs a seguinte solução: a autonomia dis-tinguir-se-ia da submissão, pela intervenção da informação e do reconhe-cimento, possibilitados pelo estudo científico dos fenómenos morais: "Pa-ra agir moralmente, não basta - acima de tudo, já não basta - respeitar adisciplina e estar apegado a um grupo. Para além disso, e seja por deferên-cia em relação a uma regra ou por devoção a um ideal colecti vo, devemoster o conhecimento, uma consciência o mais clara e completa das razõesda nossa conduta. Esta consciência confere ao nosso comportamento a au-tonomia que a consciência pública requer a partir de agora de cada ser ge-

nuíno e completamente moral" (Durkheim, 1925: 120).Compreende-se deste modo o lugar de destaque que Durkheim con-cedia ao ensino das ciências naturais na educação moral, de acordo com oprincípios de que "ensinar a moral não é, nem pregar, nem doutrinar, é ex-plicar" (Durkheim, 1925: 120). Segundo ele, a aprendizagem das ciênciasinduziria nas crianças bons hábitos intelectuais de tipo racional, o que asporia a salvo de visões mitológicas da realidade social, predispondo-as pa-ra aceitar em consciência os imperativos de uma moral racional secular.

Em suma, a conduta moral defendida por Durkheim caracterizava-sepor três aspectos principais: a disciplina, o apego ao grupo e o espírito deautonomia. O objectivo da educação moral seria o de criar nas crianças orespeito por estas características morais.

2.2 - A Escola, Lugar por Excelência da Educação Moral

Um problema que naturalmente se colocava era o de determinar o es-paço ideal para que uma educação cujo móbil era o desenvolvimento decondutas de carácter moral produzisse os seus melhores efeitos.

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A EDUCAÇÃO MORAL EM DURKHEIM

Neste sentido, Durkheim procurou hierarquizar os diversos grupossociais aos quais os indivíduos estavam ligados, em termos da sua maiorou menor adequação a uma conduta moral. Ele destacou essencialmentetrês grupos: a família, a nação (ou sociedade política) e a humanidade. Nasua opinião, não existia qualquer incompatibilidade na lealdade simultâ-nea a estes três grupos, pois cada um deles constituía um objectivo válidoda conduta moral. No entanto, ele hierarquizou-os em termos do seu valormoral.

Nesta ordem de ideias, Durkheim (1925: 74) começou por afirmarque os objectivos familiares se deviam subordinar sempre aos objectivosnacionais. Por outras palavras, ele considerava que a família devia ocuparum lugar subordinado na hierarquia dos grupos sociais, em termos do seuvalor moral. Era verdade que a família fornecia aos indivíduos o apoioemocional e a libertação da tensão de que eles necessitavam. Mas, paraDurkheim, existia uma forte incompatibilidade entre a indulgência dos la-ços afectivos familiares e as rigorosas exigências da moral idade, pelo quea família não era o espaço mais adequado para a promoção da ideia abs-tracta do dever (E.K. Wilson, in Durkheim, 1925: 74).

Por outro lado, Durkheim (1925: 75) considerava que o próprio de-senvolvimento das sociedades estava a afastar progressivamente a pessoado meio familiar e a entregá-la cada vez mais nas mãos do Estado. Por is-

so, para Durkheim, a associação que representava por excelência a metada conduta moral era a sociedade política, isto é, a nação. Esta devia gozarde uma primazia moral sobre as outras, mas, no entanto, apenas na condi-ção de ser concebida como "uma corporização parcial da ideia de humani-dade" (Durkheim, 1925: 80).

Ora, se como vimos, Durkheim excluía a família como objecto prin-cipal de conduta moral, ele não lhe podia atribuir, evidentemente, a tarefacrucia1 da educação moral. Da mesma forma, pelas razões também já ex-postas, esta educação não poderia ser deixada a cargo da Igreja. Enfim,dada a crescente preponderância do Estado na vida pública, só uma insti-tuição parecia estar em condições de promover a moral racional secular: aescola pública. Daí que Durkheim (1925: 19) a considerasse "o locus, porexcelência, do desenvolvimento moral".

A escola seria, por exemplo, mais indicada do que a família para de-senvolver nas crianças o espírito da disciplina: "A família é, especialmen-te hoje, um grupo muito pequeno de pessoas que se conhecem intimamen-te e que estão constantemente em contacto umas com as outras. Como re-

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JORGE M. ÁVILA DE LIMA

sultado, as suas relações não estão sujeitas a qualquer regulação geral, im-pessoal, imutável" (Durkheim, 1925: 146-147).

Na família, as relações interindividuais basear-se-iam numa acomo-dação das diferenças de personalidade às circunstâncias do quotidiano, en-quanto que na escola existiriam mais condições para a criança sentir a im-parcialidade de um sistema de regras (vir regularmente às aulas, chegar ahoras e ficar num lugar determinado, ter uma atitude apropriada, não per-turbar a aula, fazer os trabalhos de acordo com os requisitos, etc.) que pre-determinam a sua conduta (Durkheim, 1925: 147-148).

Quanto ao segundo elemento da moral, o apego aos grupos sociais,Durkheim (1925: 228-230) achava que "devemos dar à criança a ideia omais possivelmente clara dos grupos sociais aos quais ela pertence", demodo a alargar gradualmente a sua consciência dos grupos sociais aosquais pertence ou pertencerá, "ligando estas ideias intimamente, atravésda repetição, com o maior número possível de outras ideias e sentimentos,de modo a que aquelas sejam constantemente recordadas e venham ocuparum lugar tão importante na mente da criança que esta resista ao seu enfra-quecimento; comunicando-as com tal calor e sinceridade que o seu poderemotivo se torne uma força activa, desenvolvendo esse poder de acçãoatravés do exercício - tal é o método geral que devemos seguir para em-penhar a criança nas metas colectivas que devemos perseguir."

No entendimento de Durkheim, este método poderia ser aplicado naescola através de dois veículos: o próprio ambiente escolar, a cujas caracte-rísticas já fizémos referência; e os conteúdos do ensino. Na verdade, se aescola era capaz de induzir na criança os hábitos da vida grupal e a necessi-dade de se ligar às "forças colecti vas" (Durkheim, 1925: 249), o papel docurriculum escolar não seria menos importante. Ele permitiria, aliás, de-monstrar a contribuição da escola para o desenvolvimento na criança doterceiro elemento da moralidade, o espírito de autonomia. A este respeito,como já referimos, Durkheim concedeu um lugar de destaque ao ensino das

ciências. Este teria a vantagem de, simultaneamente, desenvolver na crian-ça uma ideia exacta da complexidade do real, evitando que ela visse na so-ciedade uma mera soma de indivíduos e promovendo, por isso, o espírito deligação aos grupos sociais; e o conhecimento racional, considerado porDurkheim o elemento fundamental de uma conduta moral autónoma.

No domínio dos conteúdos curriculares, Durkheim também davagrande importância ao ensino da História, o qual promoveria a ligação dacriança aos grupos históricos, dando-lhe simultaneamente um sentido de

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A EDUCAÇÃO MORAL EM DURKHEIM

pertença e de identidade que lhe permitiriam mais tarde, enquanto adulto,agir em função do interesse colectivo, isto é, agir moralmente.

CONCLUSÃO

o trabalho teórico de Durkheim foi uma forma de ele procurar man-

ter e solidificar a coesão do sistema de valores de uma sociedade que esta-va a conhecer importantes transformações estruturais.

Apesar do seu carácter historicamente localizado, a obra de Dur-kheim abriu às ciências sociais inúmeros domínios e em todos eles o autordeixou a sua marca pessoal. A autonomização de um discurso científico

sobre o social, a desnaturalização das instituições e a secularização dosmétodos educativos, são algumas das principais realizações às quais o seunome permanecerá para sempre ligado. O conceito de anomia, por exem-plo, é hoje um dos poucos conceitos verdadeiramente centrais nas ciênciassociais (Parsons, 1968: 316).

Durkheim foi também um importante fundador da teoria sociológicado conhecimento, situando-se ao mesmo nível de um Karl Manheim. Hámesmo quem sustente que, tanto em termos históricos como pedagógicos,o contributo das abordagens pedagógicas de Durkheim está ao mesmo ní-

vel do contributo trazido à Psicologia pela psicanálise de Freud.É verdade que acusar Durkheim de reificar a sociedade é simplista,pois é como que acusar Marx de ter uma concepção de unicausalidade en-tre a infraestrutura e a superestrutura (E.K. Wilson, in Durkheim, 1925:XXV). Também é verdade que ele não sobrevalorizava as virtudes da soli-dariedade, como o demonstram as suas análises do suicídio altruísta, nemconcebia uma ausência de limites para a necessidade da disciplina escolar.

Por outro lado, na sua análise histórica da evolução dos sistemaseducativos, ele demonstrou não ter sido alheio ao fenómeno do conflito, o

que de certo modo nos leva a rejeitar a sua designação como "sociólogodo consenso". Na verdade, ele elaborou análises sócio-históricas dos siste-mas educacionais que demonstram as lutas verificadas na esfera políticapara monopolizar o ensino e, neste sentido, desenvolveu uma teoria doconflito no campo educativo (Cherkaoui, 1977: 564).

Enfim, Fauconnet (in Durkheim, 1922: 16-17) foi mesmo ao pontode considerar que, por mais paradoxal que possa parecer, a doutrina moralde Durkheim era individualista, no sentido em que ele afirmava ser possí-vel "individualizar socializando".

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Mas a verdade é que estas não são questões de fundo. A influênciacontemporânea de Durkheim está bastante atenuada. Uma boa parte do

seu pensamento exprime o espírito da época: o seu evolucionismo revela aforte influência de Spencer; as suas reticências perante a Psicologia, hojecompletamente anacrónicas, foram em boa parte herdadas de Com te. Po-demos, pois, dizer que o que hoje subsiste da sua obra é, fundamental-mente, uma definição e uma conceptualização prática sobre a vocação au-tónoma da sociologia (Duvignaud, 1968: 42). Quanto ao resto, ele viveusempre um intenso conflito interior entra as tendências positivistas e asmetafísicas, o que fez com que a sua teoria da moral fosse uma semi-soci-ologia, serni-rnetaffsica (Gurvitch, 1968: 200).

Aliás, pensamos que a própria definição de moral que ele utiliza é

problemática. Para ele, a moralidade de um acto era avaliada em termos

do valor moral do objecto desse acto. Ora, como disse Aron (1965: 103),o que torna um acto moral é o seu sentido, não o seu objecto.

Por outro lado, como salientou Gurvitch (J968, vol. 2; 217-221), a

definição que Durkheim propôs de moral é, simultaneamente, demasiadorestrita e demasiado ampla: demasiado restrita, porque reduz a condutamoral a laços, hábitos e comportamentos consonantes com regras pré-es-tabelecidas, quando na verdade ela é muitas vezes um esforço de inovaçãoe de revolta contra aquilo que está regularmente estabelecido; e demasia-

do ampla, porque o facto moral acaba por não se distinguir do facto jurídi-co ou do facto religioso.

Em conclusão, pensamos que os trabalhos de Durkheim sobre a edu-

cação moral, com o importante lugar que ele concede à escola nessa em-presa, valem sobretudo como um excelente exemplo da forma como a es-cola foi concebida enquanto instituição socializadora por excelência nassociedades modernas e contemporâneas. Nos tempos actuais, de incontidaproliferação de novos referentes morais, de carácter crescentemente multi-cultural das relações interindividuais e de desarticulação dos grandes sis-

temas de valores à escala nacional, pensamos que a questão do lugar daescola na educação moral deve deslocar-se da esfera da procura de valorescomuns, para a da criação de condições de um convívio das diferençasculturais na sua diversidade, o que faz com que a questão da educaçãomoral deva ser colocada em novos termos, centrada em torno da proble-mática das possibilidades de criação de uma pedagogia intercultural.

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A EDUCAÇÃO MORAL EM DURKHEIM

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ABSTRACT

L'Éducatioll Morale is an excelent ilustration of Durkheim's con-ception of the school as modern society's main socialization agency. Themeaning of the author's essays on the subject can only be fully understoodby integrating them in his global work. Durkheim tried to build a scienceof social facts, which would help provide a solution for the problem of themaintenance of social order, in a time when the traditional social systemswere going through a series of radical transformations. In his opinion, theschool was the ideal place for the creation of the individuals' spirit of dis-cipline, attachment to social groups, and sense of autonomy. Today, Dur-kheirri's work stands out for its definition of a role and a vocation for So-ciology, rather than for its specific contents, most of which are c1earlyoutdated.

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