Educação Infantil e Sociedade

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  • Questes Contemporneas

    Educao Infantil e Sociedade

    Alexandre Fernandez VazCaroline Machado Momm

    (Orgs.)

  • Educao Infantil e Sociedade:questes contemporneas

  • Entidades que realizaram e apoiaram o Curso de Especializaoem Educao Infantil MEC/SEB-UFSC/NDI

    Realizao:

    Governo Federal - Ministrio da Educao (MEC)Secretaria de Educao Bsica (SEB)Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)Centro de Cincias da Educao (CED)Ncleo de Desenvolvimento Infantil (UFSC)

    Apoio:

    Grupo de Estudo sobre Poltica de Educao Especial (GEPEE/UFSC)Grupo de Estudos e Pesquisas Sobre Infncia Educao e Escola

    (GEPIEE/UFSC)Ncleo de Estudos e Pesquisas Educao e Sociedade Contempornea

    (UFSC)Ncleo Infncia, Comunicao e Arte (NICA/UFSC)Ncleo de Estudos e Pesquisas da Educao na Pequena Infncia

    (NUPEIN/UFSC)Grupo de Estudos e Pesquisas sobre a Atividade Pedaggica

    (GEPAPE/FEUSP)Secretaria de Educao da Prefeitura Municipal de Joinville (PMJ)Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS)

  • Educao Infantil e Sociedade:questes contemporneas

    Alexandre Fernandez VazCaroline Machado Momm

    (Orgs.)

    2012

  • Editora Nova Harmonia Ltda. 2012Caixa Postal 6095150-000 Nova Petrpolis/RSwww.editoranovaharmonia.com.br

    Conselho Editorial:Alejandro Serrano Caldera UAM, Nicargualvaro B. Mrquez-Fernndez Maracaibo, VenezuelaAmarildo Luiz Trevisan UFSMAntonio Sidekum PresidenteChristian Muleka Mwewa UNISUL/SCGiovani Meinhardt IEI IvotiJohannes Schelkshorn Uni-Wien, ustriaLindomal dos Santos Ferreira UFPALuiz Carlos Bombassaro UFRGSNadja Hermann PUCRSRal Fornet-Betancourt Aachen, Alemanha

    Editorao: Oikos

    Capa: Juliana Nascimento

    Imagem da capa: Desenho de Gil Ribas, 5 anos, fotografado pela professora PricillaCristine Trierweiller em 2008 no Ncleo de DesenvolvimentoInfantil (NDI/UFSC)

    Reviso: Lus M. Sander

    Arte-final: Jair de Oliveira Carlos

    Impresso: Evangraf

    Educao infantil e sociedade: questes contemporneas / Organi-zadores: Alexandre Fernandez Vaz e Caroline Machado Momm Nova Petrpolis: Nova Harmonia, 2012.

    189 p.; 16 x 23 cm.

    ISBN 978-85-89379-75-5

    1. Educao infantil. 2. Educao infantil Sociedade. 3. Profes-sor Formao Educao infantil. I. Vaz, Alexandre Fernandez.II. Momm, Caroline Machado.

    CDU 37-053.2

    E24

    Catalogao na publicao:Bibliotecria Eliete Mari Doncato Brasil CRB 10/1184

  • Sumrio

    Apresentao: reflexes que vm em boa hora....................................... 7Alexandre Fernandez VazCaroline Machado Momm

    SEO 1 Alguns fundamentos para a Educao Infantil .................... 9

    Captulo 1Infncia como construo social: contribuies do campoda Pedagogia ...................................................................................... 11

    Maria Malta Campos

    Captulo 2Infncia: construo social e histrica ................................................. 21

    Moyss Kuhlmann Jr.Fabiana Silva Fernandes

    Captulo 3Da infncia-criana in-fncia do pensar na relao pedaggica .......... 39

    Pedro Angelo Pagni

    Captulo 4L. S. Vigotski: algumas perguntas, possveis respostas... ....................... 57

    Zoia Prestes

    SEO 2 Educao Infantil: questes da prtica pedaggica ............ 73

    Captulo 5Letramento e alfabetizao na Educao Infantil, ou melhor,formao da atitude leitora e produtora de textos nascrianas pequenas .............................................................................. 75

    Suely Amaral Mello

  • 6Captulo 6A relao com as famlias na Educao Infantil: o desafio daalteridade e do dilogo ........................................................................ 88

    Daniela Guimares

    SEO 3 Relaes tnico-raciais na Educao Infantil .................. 101

    Captulo 7A educao para as relaes tnico-raciais como poltica pblicana Educao Infantil ......................................................................... 103

    Joana Clia dos Passos

    Captulo 8As creches e a iniciao e as relaes tnico-raciais......................... 121

    Anete AbramowiczTatiane Cosentino RodriguesAna Cristina Juvenal da Cruz

    SEO 4 Polticas para a Educao Infantil .................................. 137

    Captulo 9Concepes de formao das professoras de Educao Infantilna produo cientfica brasileira ........................................................ 139

    Marilene Dandolini Raupp

    Captulo 10Avaliao na Educao Infantil: velhas tendncias enovas perspectivas ............................................................................ 157

    Eliana BheringJodete Fllgraf

    Sobre os autores ............................................................................... 187

  • Educao Infantil e Sociedade: questes contemporneas

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    Apresentao: reflexesque vm em boa hora

    Alexandre Fernandez Vaz1

    Caroline Machado Momm2

    Est fora de dvidas a importncia da infncia e sua educao comoparte do projeto moderno, em especial no que se refere aos dispositivos deformao institucionalizada no Ocidente. O Brasil no fica alheio a essemovimento, de forma que temas como a ampliao de vagas em institui-es de atendimento infncia, bem como a qualidade do atendimentoque nelas se oferece, junto com tantas outras questes, ganham a ordem dodia.

    No diferente no Ncleo de Desenvolvimento Infantil (NDI) daUniversidade Federal de Santa Catarina (UFSC), unidade acadmica dedi-cada ao cuidado e educao de crianas de 0 a 5 anos de idade, mas tam-bm pesquisa desse processo. Educao dos pequenos conjugada com ainvestigao de polticas, prticas e concepes sobre a infncia tem deriva-do, alm de importante participao no debate nacional sobre as polticaspara a rea, tambm na formao de professoras que atuam em creches encleos de Educao Infantil em Santa Catarina.

    Na materializao desse esforo, o NDI, por meio de seus profissio-nais, bem como de outros departamentos do Centro de Cincias da Educa-

    1 Doutor pela Leibniz Universitt Hannover, professor dos programas de ps-graduao em Edu-cao e Interdisciplinar em Cincias Humanas da UFSC. Coordenador do Ncleo de Estudose Pesquisas Educao e Sociedade Contempornea (UFSC/CNPq). Pesquisador CNPq.

    2 Doutora em Educao pela Universidade Federal de Santa Catarina, professora do Ncleo deDesenvolvimento Infantil da mesma instituio. Pesquisadora do Ncleo de Estudos e Pesqui-sas Educao e Sociedade Contempornea (UFSC/CNPq).

  • 8o da UFSC, vem desenvolvendo, desde 2010, um curso de Especializa-o em Educao Infantil. Com financiamento do Ministrio da Educa-o, por meio de sua Secretaria de Educao Bsica (SEB), com apoio eacompanhamento da Coordenao Geral de Educao Infantil (COEDI),o curso tem atendido centenas de profissionais que se encontram em servi-o em redes pblicas da Grande Florianpolis, norte e oeste do estado deSanta Catarina.

    A presena do debate de grandes questes da Educao Infantil umdos pontos importantes da formao que vem sendo desenvolvida. Nessecontexto, o curso, em sua primeira edio, promoveu dois seminrios, des-tinados a todos os seus participantes, em que um conjunto de conferncias,mesas de exposio e oficinas foi realizado com importantes pesquisadoresbrasileiros. Este livro uma reunio dessas contribuies, somadas a algu-mas outras que compem o mesmo contexto e tentam abarcar um espectroamplo do debate contemporneo na Educao Infantil. Ele est compostopor dez captulos, divididos em quatro sees. A primeira delas apresentaalguns fundamentos da Educao Infantil, para logo depois ser sucedidapor captulos que se dedicam a questes mais diretamente ligadas prticapedaggica. Um debate especfico sobre questes tnico-raciais e a questodas polticas pblicas para a Educao Infantil completa o livro.

    Ao desejar que a leitura desses textos ajude a seguir pensando sobre aeducao das crianas em seus desafios, lembramos a importncia de docu-mentar esse momento no apenas do curso de Especializao empreendidopelo NDI, mas parte importante do debate contemporneo sobre a Educa-o Infantil.

    Ilha de Santa Catarina, maro de 2012

    VAZ, A. F.; MOMM, C. M. Apresentao: reflexes que vm em boa hora

  • Educao Infantil e Sociedade: questes contemporneas

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    SEO 1

    ALGUNS FUNDAMENTOSPARA A EDUCAO INFANTIL

  • 10

  • Educao Infantil e Sociedade: questes contemporneas

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    C A P T U L O 1

    Infncia como construo social:contribuies do campo da Pedagogia

    Maria Malta Campos

    Penso que o tema que me foi atribudo, por parecer um tanto fcil,apresenta especiais dificuldades, justamente porque s aparentemente b-vio. Na realidade, a proposta deste encontro organizou as apresentaesseguindo a atual configurao do campo do conhecimento: primeiro vie-ram a histria, a filosofia, a psicologia, depois a pedagogia e a antropolo-gia; ficaram de fora a sociologia, a economia, a biologia, a cincia poltica,mas o importante a reter que tal estrutura apresenta esses ramos do co-nhecimento de forma paralela e equivalente.

    Vou comear argumentando que acredito que a pedagogia ocupa umaposio diversa nesse conjunto, pois uma cincia aplicada, que se nutre deconhecimentos desenvolvidos nesses outros campos, mas realiza suas pr-prias snteses, sempre visando a uma prtica, uma interveno no real. Apedagogia vai e vem entre a prtica e as teorias que sustentam essa prtica;por sua vez, essa prtica provoca e questiona continuamente as snteses quea pedagogia elabora a partir das outras cincias.

    Que prtica essa? , ao mesmo tempo, uma interveno na sociali-zao das pessoas e uma das dimenses da construo da vida social, nas

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    sociedades que operaram uma separao entre a formao das novas gera-es e a vida comunitria informal. Com efeito, oportuno frisar que aeducao, objeto da pedagogia, destacou-se como um campo de ao e re-flexo em sociedades providas de uma certa historicidade, nas palavrasde Dubet. Segundo esse autor, uma sociedade de pura reproduo e depura tradio no teria necessidade de escola, os ancios e as famlias seriamsuficientes para dar conta da tarefa de introduzir as crianas no mundo talcomo ele (2011, p. 293). No momento em que surge a necessidade degarantir a identidade comum de um grupo social e um conjunto de valo-res e regras sociais que mantenham esse grupo coeso pois os indivduosj se diferenciam em seus papis, em seu acesso ao poder e riqueza, emseu lugar na hierarquia social , a educao torna-se importante para ogrupo social como um todo e no pode mais ser relegada apenas esferaprivada.

    Durante muito tempo, a pedagogia nutriu-se da filosofia se pensa-mos na Grcia antiga, por exemplo e, principalmente, da religio, o queocorre at hoje em muitas partes do mundo. At mesmo quando as cinciasnaturais comearam a se tornar independentes da filosofia e da religio,como aconteceu a partir dos sculos XVII e XVIII na Europa, o pensamen-to pedaggico ocidental continuou a buscar seus fundamentos na religio.Comenius, Froebel, Pestalozzi eram todos homens profundamente religio-sos, mesmo quando procuravam integrar o conhecimento da natureza aoiderio pedaggico que defendiam e praticavam.

    Faz pouco mais de 200 anos que a pedagogia comeou a se libertardessa herana religiosa, sendo a Revoluo Francesa um marco dessa ruptu-ra. Como sugere Dubet (2011), o advento da repblica e da escola pblicalaica substituiu a ideologia religiosa pela ideologia republicana, mas poucomodificou as prticas escolares tradicionais. A histria mostrou que para queuma renovao dessas prticas acontecesse, seria preciso no s uma forteinfluncia das novas cincias a psicologia, a sociologia, a biologia , masprincipalmente a militncia de muitos pedagogos e de seus difusores. MariaMontessori, Freinet, Decroly, Claparde, Dewey, Malaguzzi e tantos outrosno apenas fundamentaram sua pedagogia na cincia e a exercitaram na pr-

    CAMPOS, M. M. Infncia como construo social: contribuies do campo da Pedagogia

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    tica, como tambm se empenharam em divulg-la. Esses pedagogos tiveramseguidores fiis, formaram movimentos e correntes de pensamento que con-formaram o que hoje conhecemos como o campo da pedagogia.

    Muitos dos argumentos que fundamentaram essas inovaes apoia-vam-se em uma nova concepo da infncia e, por que no dizer, em umhumanismo que procurava incluir a criana e suas especificidades na suaconcepo de ser humano. Essa era uma novidade importante: no momen-to em que se passava a dar ateno especificidade da criana, e em suasdiversas etapas de desenvolvimento, toda a pedagogia era colocada em ques-to. Nesse sentido, pode-se considerar que o foco na infncia surgiu histori-camente muito depois da pedagogia enquanto campo de conhecimento eprtica. A criana, o adolescente, o jovem estavam escondidos na figura deum aluno passivo, receptor de conhecimentos e valores, que era entendidoprincipalmente enquanto projeto de futuro adulto.

    As pesquisas histricas, a contribuio de tericos da psicologia, comoPiaget e Vigotski, a psicanlise, as mudanas demogrficas mais recentes nospases industrializados do Ocidente, tudo isso influiu nas tendncias contem-porneas que marcam a pedagogia da infncia e seus projetos educativos.

    Portanto, o tema de hoje sugere vrios vetores entre as diferentes di-menses que cercam as relaes entre a pedagogia e a infncia.

    A primeira coisa que devemos reconhecer sobre a natureza dessasrelaes que elas so tensas e implicam contradies bastante vivas. Comefeito, mesmo quando integra o foco no sujeito aprendente, a educao nodeixa de ser um instrumento de socializao que visa a determinados finsque esto acima desse sujeito.

    Muitos autores tm apontado os riscos trazidos pela crescente com-partimentao do espao social reservado infncia, em especial para ofato de que a institucionalizao da infncia est ingressando em uma fasede acelerao (DAHLBERG e MOSS, 2005, p. 3). Esse processo de insti-tucionalizao, como mostrou Foucault, traz srias implicaes: diversasengrenagens, que visam ao disciplinamento e submisso, so colocadasem marcha, mas de tal forma que parecem naturais, parte integrante dosregimes de verdade, ou discursos dominantes. A pedagogia no escapa

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    desse sistema, antes parte integrante dele, de tal maneira que, sempre queum determinado discurso crtico tenta desconstruir uma proposta pedag-gica, seja ela qual for, identificando-a como integrante de um discurso opres-sor e disciplinador, acaba por correr o risco de negar a legitimidade socialda prpria pedagogia e de seu objeto, a educao.

    Essa contradio , assim, constituinte dessa articulao da pedagogiae do foco na criana enquanto sujeito. Para encontrar algum ponto de equil-brio preciso recuperar algumas das finalidades da educao enquanto prti-ca social. Nesse sentido, preciso considerar a face social do sujeito criana eno apenas sua face de indivduo considerado isoladamente.

    Temos de reconhecer que a pedagogia traz consigo, tambm, um de-sejo de mudana, uma utopia. Os grandes pedagogos foram sempre anima-dos por um desejo de aperfeioamento humano e por projetos de reformasocial. A interveno social que a pedagogia supe pretende sempre incidirno s sobre os educandos individualmente, mas tambm sobre a socieda-de, seja em que direo for, de forma explcita ou implcita. Aps as revolu-es, aps as guerras de libertao dos povos colonizados, aps perodos demudanas sociais intensas, a educao chamada a desempenhar um pa-pel central na construo de um novo projeto de sociedade. Da mesmaforma, nos perodos de retrocesso e de reao a esses movimentos, h sem-pre intervenes no campo educacional.

    Ao lembrar de todos esses liames, que situam a pedagogia nas inter-sees e nas relaes contraditrias entre o respeito criana e o desejo deaperfeioamento das relaes sociais, entre o cuidado com a infncia e aconsiderao do papel que as novas geraes podem assumir no futuro,entre a necessidade de proteger os mais jovens dos riscos que os ameaam ea urgncia de prepar-los para enfrentar essas vicissitudes como adultos, fcil avaliar as dificuldades que qualquer projeto educativo enfrenta paraencontrar sua terra firme.

    Voltando ao tema proposto para esta reflexo, definir qual seria acontribuio da pedagogia para a construo da infncia no , portan-to, algo simples. Deveria a pedagogia necessariamente encolher-se para quea infncia ganhasse primazia? Colocar a criana em destaque significa dei-xar de dar importncia aos objetos com os quais se ocupa a pedagogia? Por

    CAMPOS, M. M. Infncia como construo social: contribuies do campo da Pedagogia

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    exemplo, o currculo, a didtica, o projeto pedaggico e a formao profis-sional dos educadores?

    No existem respostas fceis para esse dilema. Nesse ponto, para si-tuar melhor nossa discusso, seria importante lanar o olhar sobre a peda-gogia que de fato se pratica nas instituies onde cada vez mais crianaspassam parte significativa de suas infncias.

    O que se observa e isso no somente no Brasil que onde apedagogia, enquanto reflexo crtica e atualizada sobre a prtica educativa,encontra-se ausente ou mal entendida, a pedagogia tradicional, justamenteaquela que s enxerga o aluno e raramente a criana na figura do educan-do, que ocupa seu lugar de sempre. Como mostra Jlia Oliveira-Formosi-nho, a recusa de uma gramtica pedaggica com nome uma porta abertapara a adoo, por defeito, da pedagogia sem nome nem rosto do autorannimo do sculo XX3 (2007. p. 33). O ponto de vista que ela defende que preciso ter uma pedagogia, explicitar um modelo pedaggico, o quesupe tambm a adoo de uma gramtica pedaggica capaz de sustentaraquela prxis educativa baseada na concepo de criana competente, querequer uma escuta e condies de aprendizagem que a respeitem enquantosujeito social.

    Para defender essa posio, a autora nos relembra Dewey, que argu-mentava que o debate entre a criana e o currculo no deve levar exclu-so nem da criana, dos seus interesses e motivaes, nem do currculo, noque ele representa de significados, objetivos e valores sociais (Oliveira-Formosinho, 2007, p. 19-20).

    No caso da educao infantil, uma pedagogia que procure favorecero respeito criana pequena encontra-se em construo. As condies quepresidem essa construo no so as mais favorveis para a adoo de pr-ticas que contemplem a concepo contempornea de criana, como aque-la defendida pela sociologia da infncia, por militantes da educao infan-

    3 A autora se refere ao texto de Formosinho e Arajo (2007), na mesma coletnea. O annimodo sculo XX, segundo esses autores, seria a tecnocracia que administra os sistemas educaci-onais de massa, majoritariamente pblicos, seguindo orientaes sem autoria clara, que sereproduzem por meio de mecanismos burocrticos.

  • 16

    til ou por setores da academia que refletem sobre essa realidade. Diversascontingncias ameaam o sucesso desses projetos educativos.

    Uma primeira dificuldade resulta do fato dessa etapa educacional seencontrar de alguma forma subordinada s etapas seguintes. Peter Mossnos fala de um processo de colonizao da educao infantil por parte doensino primrio (2011). A pr-escola, como seu nome sugere, definida emrelao a algo j existente e consolidado, a escola elementar. Mesmo quan-do procura negar algumas caractersticas da escola primria, a pr-escola atem como referncia sempre presente. No Brasil, as professoras so forma-das para a escola primria e, subsidiariamente, para a educao infantil. Aestrutura de suas carreiras toda baseada numa escola organizada em au-las. Os prdios so construdos como uma sucesso de salas de aula. Aarrumao interna das salas comea a ser timidamente modificada muitorecentemente. As rotinas dirias continuam sendo muito parecidas com aescola primria.

    Se pensarmos na creche, a distncia entre o que est envolvido noatendimento de crianas menores de 4 anos e a forma de operar das redesescolares ainda maior. Quando a creche integrada aos sistemas educacio-nais, o contraste entre as necessidades de crianas bem pequenas, de suasfamlias e dos adultos que delas se ocupam em ambientes coletivos e a or-ganizao da gesto pblica na educao, tradicionalmente voltada paraambientes escolares, leva a muitos impasses e dificuldades difceis de supe-rar. As caractersticas da creche de tempo integral clamam por uma pedago-gia muito diferente daquela que os melhores esforos da burocracia educacio-nal ainda no conseguiram, na maioria das vezes, sequer vislumbrar.

    Na mesma poca em que desenvolvia um modelo pedaggico paraos jardins da infncia, Froebel abordava a educao das crianas menorespor meio de cartas com recomendaes s mes, pois no concebia educ-las em outro lugar que no fosse o lar. Esse dado bastante significativo,pois sinaliza o estatuto diferente que a creche ocupa no campo educacio-nal, em comparao com a pr-escola: ela, a creche, foi a ltima a chegar econtinua causando estranhamento aos educadores de hoje.

    Em segundo lugar, as polticas educacionais tm sido crescentemen-te impactadas pela globalizao da economia e pela intensificao da com-

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  • Educao Infantil e Sociedade: questes contemporneas

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    petio, tanto no plano internacional como no plano nacional, chegandoat a condicionar as relaes interpessoais. No por acaso, a viso econo-micista da educao ganha cada vez mais espao. A busca por eficincia eprodutividade, baseada em clculos de retorno futuro dos investimentosem educao, com apoio nos resultados dos sistemas de avaliao externade aprendizagem, tem trazido consigo o foco na educao infantil, entendidade maneira instrumental: ela considerada importante para reduzir o futurofracasso escolar dos alunos, para produzir cidados capazes de sobreviver nasociedade capitalista, para garantir um mnimo de coeso social.

    At pouco tempo atrs, a educao infantil se encontrava de algumaforma preservada dessa viso; porm, na medida em que ela se expandiu eassumiu um espao mais significativo na sociedade no mercado de traba-lho para os profissionais da educao, nos oramentos pblicos, nas de-mandas sociais por acesso, na oferta de produtos didticos , tambm foitransformada em objeto desse tratamento de cunho mais tecnocrtico porparte de quem toma decises na gesto pblica.

    O terceiro fator a considerar aquele processo que costumamos cha-mar de fracasso escolar. Em nosso pas, os ndices de repetncia e de exclu-so escolar, as deficincias de aprendizagem, a persistncia do analfabetis-mo, a desiluso dos jovens com a escola so questes relevantes a seremconsideradas para superar nosso alto grau de desigualdade social, assimcomo para ampliar e aprofundar nossa incipiente democracia; essas ques-tes no podem ser simplesmente descartadas como algo natural ou en-quanto problemas que s deveriam preocupar os educadores a partir doensino fundamental.

    Outros pases atingiram nveis muito mais altos de escolaridade e deaprendizagem para a maioria de suas populaes em etapas histricas ante-riores expanso da educao infantil, especialmente a creche. Aqui, con-vivemos com desafios de diferentes pocas histricas: em algumas regiesrurais brasileiras, muito pouco mudou nas escolas em mais de meio sculo;em metrpoles industrializadas, os avanos da educao so logo em segui-da desafiados por novos desdobramentos na dinmica social.

    Esse contexto traz interrogaes importantes para uma pedagogia dainfncia ainda em construo, assim como desafia a concepo de criana

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    pequena que se deseja difundir. Os diques e muros que muitos querem erigirpara supostamente proteger a educao infantil dessa realidade conflituosavm se revelando bastante porosos. As famlias e as prprias crianas de-monstram expectativas diferentes e fazem cobranas em relao ao que seusfilhos encontram nas creches e pr-escolas, particularmente as pblicas: que-rem mais sinais exteriores de aprendizagens, em especial sobre a leitura e aescrita; professores disfaram prticas de letramento e pr-alfabetizao nasinstituies onde so orientados a no se ocupar disso. Esses atores parecemsaber exatamente o que espera as crianas de classe popular nos anos seguin-tes e reconhecem que precisam atuar de alguma maneira antes disso.

    Todos esses fatores pressionam o amadurecimento da chamada pe-dagogia da infncia. Com tal bombardeio externo, algo que ainda no estcompletamente elucidado nem verdadeiramente aceito pelos atores sociaisque fazem acontecer a educao no cotidiano enfrenta condies muitodesfavorveis para florescer.

    Qual seria a sada? Dahlberg e Moss, a despeito de sua crtica profun-da a diversos paradigmas pedaggicos, desde os tradicionais at os maiscontemporneos, enunciam o dilema tico que desafia a educao hoje:com a institucionalizao da infncia em processo acelerado, se exige dens como adultos assumir a responsabilidade pelo que colocamos emmovimento (2005, p. 3).

    Como assumir essa responsabilidade, em um contexto onde cons-trangimentos como aqueles apontados acima pressionam fortemente a buscapor pedagogia ou pedagogias da infncia?

    Para isso, seria necessrio, em primeiro lugar, reconhecer que, embo-ra o discurso pedaggico tenha mudado, as prticas adotadas na maioriadas creches e pr-escolas conferem muito pouco espao ao protagonismoinfantil; na realidade, parecem reproduzir as velhas estruturas de uma pe-dagogia arcaica, enraizada em tradies at mesmo anteriores quelas de-nunciadas por pedagogos reconhecidos de sculos atrs. Como constataJlia Oliveira-Formosinho, hoje assistimos a uma quase esquizofreniaeducativa em que se naturalizou a distncia entre as propostas e a realidadepedaggica experienciada por adultos e crianas (2007, p. ix).

    CAMPOS, M. M. Infncia como construo social: contribuies do campo da Pedagogia

  • Educao Infantil e Sociedade: questes contemporneas

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    Se isso verdade, torna-se importante entender os motivos desse des-compasso. Por que parece to difcil transpor ideias, que aparentementeagradam maioria dos educadores, para as prticas efetivamente adotadasjunto s crianas no cotidiano? Como superar essas barreiras?

    Talvez os caminhos possam ser diversos, assim como podem ser mui-to diferentes as estratgias para percorr-los. No caso do Brasil, j conhece-mos muito bem as condies que caracterizam a maior parte do atendi-mento: professores com formao geral e especializada deficiente; condi-es de trabalho precrias; improvisao por parte da gesto das redes mu-nicipais, principais responsveis pela educao infantil; extrema segmenta-o do sistema; prdios, equipamentos e materiais insuficientes, inadequa-dos ou mal aproveitados; os fatores so muitos.

    Porm, h uma dificuldade que nos interessa especialmente focalizarnesta discusso, que a ausncia de propostas curriculares claras, aceitas econhecidas de todos os que atuam nas instituies. O desejo de fomentar aautonomia das equipes pedaggicas nas unidades levou a situaes ondeprofissionais, sem a formao e as referncias necessrias, so levados areinventar uma pedagogia a partir do zero, o que acaba, na prtica, favore-cendo a reproduo daquela mesma pedagogia que se desejava superar.

    A pedagogia da infncia em construo, por ser ainda to incipientee frgil em nosso meio, deveria ser um objeto de trabalho prioritrio entrens, no somente na forma de declarao de princpios, mas traduzida emmodos de fazer inteligveis, que possam ser apropriados pelos educadoresreais e no apenas por alguns profissionais excepcionais e adotados nasinstituies que temos. Realizar essa traduo uma tarefa complexa: elarequer conhecimentos, experincias, pesquisas e investimentos em reasrelativamente pouco exploradas em nosso meio. Essa misso supe umabase fundamentada em conhecimentos atualizados de diversos campos:sociologia, antropologia, psicologia, filosofia, biologia. Mais ainda, ela spode ser construda com coerncia se for capaz de levar em conta nossocontexto social, cultural e educacional, de maneira a no se alienar da di-menso poltica que todas as opes pedaggicas sempre trazem, de formamais ou menos explcita.

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    Essa dimenso poltica (e tica) que toda proposta pedaggica carre-ga consigo est presente no s na valorizao da escuta e da participaoda criana, mas tambm se expressa no compromisso com valores sociaiscomo a igualdade, a justia, a liberdade, a solidariedade. A aproximao dapedagogia com a criana no pode significar, nessa perspectiva, o abando-no da educao como projeto emancipador.

    Referncias

    DAHLBERG, G.; MOSS, P. Ethics and Politics in Early Childhood Education. London/New York: RoutledgeFalmer, 2005.

    DUBET, F. Mutaes cruzadas: a cidadania e a escola. Revista Brasileira de Educa-o, v. 16, n. 47, p. 289-305, ago. 2011.

    FORMOSINHO, J.; ARAJO, J. M. Annimo do sculo XX: a construo dapedagogia burocrtica. In: OLIVEIRA-FORMOSINHO, J.; KISHIMOTO, T. M.;PINAZZA, M. A. (orgs.). Pedagogia(s) da infncia: dialogando com o passado, cons-truindo o futuro. Porto Alegre: Artmed, 2007. p. 293-328.

    MOSS, P. Qual o futuro da relao entre educao infantil e ensino obrigatrio?Cadernos de Pesquisa, v. 41, n. 142, p. 142-159, jan./abr. 2011.

    OLIVEIRA-FORMOSINHO, J.; FORMOSINHO, J. Associao Criana: um con-texto de formao em contexto. Braga: Livraria Minho, s.d.

    OLIVEIRA-FORMOSINHO, J.; KISHIMOTO, T. M.; PINAZZA, M. A. (orgs.).Pedagogia(s) da infncia: dialogando com o passado, construindo o futuro. Porto Ale-gre: Artmed, 2007.

    CAMPOS, M. M. Infncia como construo social: contribuies do campo da Pedagogia

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    C A P T U L O 2

    Infncia: construo social e histrica

    Moyss Kuhlmann Jr.Fabiana Silva Fernandes

    O objetivo deste texto tratar de possveis contribuies das pesqui-sas histricas sobre a infncia para a educao infantil. Pretende-se enfati-zar a necessidade de problematizar conceitos e caracterizaes que tm sidoadotados de forma indiscriminada. Sero feitas consideraes sobre o lugardas crianas em diferentes sociedades e perodos da histria, para em segui-da situar a educao infantil no quadro das instituies escolares e algunsdesdobramentos relacionados ao que se considera uma falsa oposio entreeducao e assistncia.

    As pesquisas sobre a histria da infncia

    Diferentes reas das cincias humanas se apropriaram das interpre-taes de um autor que teve importante papel para o desencadeamento depesquisas sobre a histria da infncia, Philippe Aris, em seu estudo sobre acriana e a vida familiar no Antigo Regime, na Frana, publicado nos anosde 1960. Seu livro foi traduzido para diferentes pases, recebendo no Brasilo nome de Histria social da criana e da famlia. Uma das teses centraisdo autor de que a conscincia da particularidade infantil era inexistente

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    no perodo medieval, o que seria evidenciado, por exemplo, pela ausnciada representao da infncia nas artes plsticas, ou pela sua representaocomo pequenos adultos.

    Essa interpretao passou a legitimar anlises que veem a histriacomo se fosse uma sucesso de passes de mgica, em que se transitaria daindiferena em relao infncia para a capacidade de identificar e com-preender esse perodo da vida, como uma transformao em que se passa-ria da gua ao vinho. Da mesma forma, no que se refere histria da edu-cao infantil, fantasiou-se a transio de um momento em que esta seriaassistencial para depois ser alada categoria de educacional. Essetipo de raciocnio pode ser chamado de fantasioso porque atribui a um pas-sado mais ou menos remoto o lugar do mal, enquanto no presente, ou emoutro momento mais prximo, esse mal teria sido vencido para a chegadado bem. Para Ferreira (2002, p. 167-8), essas interpretaes so feitas por-que gostamos de pensar que somos melhores do que aqueles que nos ante-cederam.

    No se pretende afirmar, com isso, uma posio oposta e insensvels transformaes que ocorrem ao longo do processo histrico. O capitalis-mo, o desenvolvimento do conhecimento cientfico e a constituio das ins-tituies educacionais so fatores que esto associados chamada infnciamoderna. O que se pretende enfatizar a necessidade de se considerar queo processo histrico bastante complexo e no pode ser simplificado. Atransformao das mentalidades na longa durao histrica no pode serentendida da mesma forma como se analisam as mudanas conjunturais,quando se identificam rupturas polticas e mudanas institucionais em pe-rodos mais curtos. No lugar de postular uma sucesso de fatos que iriamda inexistncia existncia de um sentimento da infncia, acompanhadodo progresso das concepes pedaggicas, a compreenso do passado pre-cisa levar em conta as tenses existentes em torno das relaes sociais queconstituem os processos histricos.

    As pesquisas que se sucederam publicao do trabalho de Aristrouxeram novos elementos para se interpretar a condio das crianas nopassado e as formas como os adultos se relacionaram com elas. ParaHeywood (2004), seria simplista indagar sobre a ausncia ou a presena do

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    sentimento da infncia em um ou outro perodo da histria. O autor consi-dera mais frutfera a busca de diferentes concepes sobre a infncia emdiferentes tempos e lugares e identifica vrias descobertas da infncia:nos sculos VI a VII, nos sculos XII a XIV, nos sculos XVI e XVII, nosculo XVIII e incio do XIX, e no final do XIX e incio do XX. Para ele, ahistria da infncia se move por linhas sinuosas, de modo que a crianapode ter sido considerada impura no incio do sculo XX, como o fora naAlta Idade Mdia. Se h uma mudana de longo prazo em que a progressi-va aceitao da necessidade de uma educao escolar prolonga a infncia ea adolescncia, se h um interesse crescente e uma imagem cada vez maispositiva da infncia, os debates assumem uma forma cclica e no linear. Aambiguidade, nos diferentes momentos, polariza a criana entre a impurezae a inocncia, entre as caractersticas inatas e as adquiridas, entre a indepen-dncia e a dependncia, entre meninos e meninas.

    Uma das questes centrais que sobressai da reflexo crtica sobre ainfncia e a sua histria refere-se s desigualdades e diferenas entre dife-rentes grupos de crianas, o que invalida o sentido unitrio e uniforme atri-budo ao conceito. Em trabalho produzido em conjunto com o saudosoRogrio Fernandes, da Universidade de Lisboa, considerou-se que

    [o]s fatos relativos evoluo da infncia, na pluralidade das suas configu-raes, inscrevem-se em contextos cujas variveis delimitam perfis diferen-ciados. A infncia um discurso histrico cuja significao est consignadaao seu contexto e s variveis de contexto que o definem. Semelhantes con-textos so de natureza econmica, social, poltica, cultural, demogrfica,pedaggica, etc. indispensvel discernir quais dessas variveis so de fatoatuantes em cada conjuntura e so, consequentemente, pertinentes na deli-mitao do territrio em causa. [...]

    A modernidade faz da denominao infncia um guarda-chuva a abrigar umconjunto de distribuies sociais, relacionadas a diferentes condies: as clas-ses sociais, os grupos etrios, os grupos culturais, a raa, o gnero; bemcomo a diferentes situaes: a deficincia, o abandono, a vida no lar, naescola (a criana e o aluno) e na rua (como espao de sobrevivncia e/ou deconvivncia/brincadeira). nessa distribuio que as concepes de infn-cia se amoldam s condies especficas que resultam na incluso e na ex-cluso de sentimentos, valores e direitos (KUHLMANN JR.; FERNAN-DES, 2004).

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    Imagens das crianas na Histria

    Os quadros, esttuas, fotografias e filmagens no so um dado imedi-atamente correspondente realidade. As questes relacionadas histriada arte, os temas e escolas, os conhecimentos tcnicos e recursos materiaisem diferentes pocas precisam ser considerados para que no se interpreteerroneamente o que vemos na iconografia. Assim, o uso de imagens podeser um recurso interessante para se buscar evidncias sobre a infncia nopassado, embora deva ser feito com precauo. A representao de crian-as no passado traz indcios de seu lugar na sociedade, dos sentimentos e darelao entre pais e filhos, dos brinquedos e brincadeiras.

    preciso cautela com a afirmao de que na Idade Mdia as crianasno seriam representadas nas artes plsticas e que, portanto, isso seria umindicador de que no haveria uma conscincia da particularidade infantil.Na arte sacra medieval, nos quadros com o tema da Virgem Maria e seufilho, a representao da criana como pequeno adulto no significarianecessariamente a ausncia de um sentimento da infncia, pois essas pintu-ras estavam associadas interpretao teolgica daquela poca, que enten-dia que Jesus teria nascido falando e ensinando as escrituras sua me e,portanto, no poderia ser representado como um beb (RICH; ALEXAN-DRE-BIDON, 1994).

    Os artistas tinham tcnicas e estilos especficos do seu tempo, como,por exemplo, em relao perspectiva. Por vezes, parece que se espera dosartistas medievais que as suas pinturas devessem apresentar um hiper-rea-lismo na representao das crianas, uma proporo exata nas suas feiese membros, sem que se faa a mesma exigncia em relao aos adultos. Porexemplo, no quadro La vierge lenfant (A virgem e o menino), de autoria deRogier Van der Weyden, pintado em 1464, observa-se a figura de um re-cm-nascido cujos traos faciais poderiam ser definidos como de um adul-to: o nariz possui um dorso proeminente entre os olhos, h olheiras queexprimem cansao e as propores do corpo no so as de um beb. Umainterpretao mais subjetiva poderia sugerir que o sorriso do beb revelauma capacidade muito prematura de controlar suas emoes. Mas, ao ob-servar mais atentamente o quadro, percebe-se que h despropores na fi-

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    gura materna tambm, o que se relaciona com as intenes e recursos daarte medieval. Maria, sentada placidamente, com seu beb no colo, foi pin-tada com uma cabea muito grande em relao ao corpo; seus ombros,muito estreitos; seu queixo praticamente se junta ao pescoo e sua mama vista posiciona-se logo abaixo do pescoo. Alm disso, o beb est nu, dei-tado nos braos de sua me e na iminncia de ser amamentado. O quadrosugere uma compreenso de maternidade, da relao entre me e beb e deinfncia.4

    O tema da maternidade associado amamentao no uma inven-o da arte sacra, pois aparece em diferentes momentos histricos e cultu-ras, como entre os povos Nootka, do Canad, ou os Nsaaponsapo, do Zai-re, dos quais h expressivas esttuas depositadas no Real Museu de BelasArtes da Blgica5. Nessa produo iconogrfica, pode-se inferir a impor-tncia simblica dos bebs para diferentes grupos culturais, como umametfora da reproduo representada por essa relao de maternidade,nutrio e acolhimento das novas geraes.

    Mesmo em imagens muito antigas, podemos encontrar crianas re-presentadas, como nas esculturas de jade, da cultura Valdvia, do Equador,datadas entre os anos de 3500 a 2000 a.C., que parecem retratar adultos ecrianas. So cinco peas em que a maior de todas representaria um ho-mem, outra, menor que a primeira, uma mulher, pois tem seios, e trs me-nores, com tamanhos diferenciados, o que supe a representao de trscrianas, em idades diferentes. Independentemente do sentido que se atri-bua a esse conjunto de esculturas, seja uma famlia ou mesmo a conscinciada reproduo, cabe destacar a presena das crianas.6

    No Museu do Palcio Nacional de Taiwan h muitas imagens inte-ressantes que podem ser visualizadas na pgina da instituio, entre elasuma exposio dedicada s crianas brincando, em diferentes momentosda antiga China imperial.7 Cabe destacar um gnero de pintura que se de-

    4 Disponvel em http://www.opac-fabritius.be/fr/F_database.htm, expresso de consulta: Wayden.5 Disponvel em http://www.opac-fabritius.be/fr/F_database.htm, expresso de consulta: Mater-

    nit.6 Disponvel em http://www.precolumbianjade.com/ecuador.htm.7 http://www.npm.gov.tw/exhbition/bir0401/chi0401/english/introduction.htm.

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    senvolveu durante a dinastia Sung (anos de 960-1279) denominado chil-dren at play (crianas brincando), pois eram trabalhos que buscavamcaptar as atividades e brincadeiras das crianas e suas particularidades fsi-cas e psicolgicas. Os artistas se debruavam sobre o mundo infantil, ex-pressando a forma como a infncia era compreendida naquele momento,como uma fase da vida repleta de curiosidade, vivacidade e alegria.

    Em 1210, o artista Li Song (1190-1264) retratou um vendedor ambu-lante abarrotado de mercadorias, caminhando num ambiente campestre,que se encontra com uma mulher, rodeada de crianas. O trabalho sugereuma cena de movimento: do lado esquerdo da imagem, a mulher, em p,amamenta seu beb, e quatro crianas ao seu redor saltitam excitadas dian-te dos brinquedos que o mascate transporta, como papagaios e um brinque-do de arco e flecha. Uma das crianas tenta subir na pilha de objetos, en-quanto ele, observando esse menino, parece abaixar a vara apoiada em seusombros, que sustenta as mercadorias. Seu olhar no de reprovao; comose a energia dos pequenos o tivesse contagiado. Ao observar-se atentamen-te a pintura, possvel identificar uma quinta criana, do lado direito, qua-se imperceptvel, tentando alcanar algum brinquedo. Essa pintura faz par-te do acervo do Museu do Palcio Nacional e foi elaborada no perodo emque a dinastia Sung do Sul governou a China, conhecida por ter sido derro-tada pelos mongis, liderados por Genghis Khan.8

    Outra pintura da dinastia Sung a obra intitulada Jogos de Crian-as em um Jardim de Outono, de autoria desconhecida. Nesse quadro,podemos observar duas crianas, uma menina e um menino, no canto di-reito, jogando em um ptio, e um gato, um pouco frente das crianas,situado no lado esquerdo. O garoto arrasta uma pena de pavo, amarradaem uma corda, e a menina carrega uma bandeirinha quadriculada, amboscom a inteno de atrair o gato. A posio das crianas em relao ao gatosugere movimento e uma possvel perseguio ao felino. O destaque dados cores das flores das rvores, brancas e vermelhas, e s vestimentas dascrianas sugere um cenrio alegre, festivo e quente.

    8 http://www.npm.gov.tw/exhbition/bir0401/chi0401/english/selections.htm.

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    Exemplares de brinquedos e ilustraes sobre temas relacionados coma criana e seus brinquedos na Antiguidade Clssica fornecem indcios dolugar da criana naquele perodo, entre gregos e romanos. Manson (2002)apresenta fotos de alguns objetos e utenslios: um vaso de cermica, datadoem cerca de 425 a.C., com uma ilustrao dourada de uma criana em seucavalinho de brinquedo e uma taa com fundo branco, de uma criana jo-gando peo (pea do Museu Real de Arte e de Histria de Bruxelas). Htambm uma estela fnebre grega, do sculo IV a.C., em que foi esculpi-da uma menina consagrando seus brinquedos infantis a uma divindade.A menina est com um pato em seus braos, diante da divindade, quesegura uma boneca prxima do rosto, como se quisesse observar melhoro brinquedo. Por fim, observa-se uma boneca articulada grega, do sculoIV a.C.

    Na Grcia Antiga, um utenslio utilizado nos rituais fnebres era alekythos, um tipo de jarra de cermica com corpo estreito e uma ala presano pescoo longo, que servia para armazenar o leo usado para ungir ocorpo do morto. As lekythoi, encontradas em tmulos, possuem uma decora-o que representa atividades da vida diria, ritos funerrios, ou uma cenaque expressa a perda ou a sensao da partida. No Metropolitan Museumof Art, de Nova Iorque, podem ser encontradas diversas lekythoi, mas umachama a ateno, porque o desenho da pea ilustra a morte de uma criana.Pertencente ao perodo Clssico (1000 a.C.-1 d.C.), datada em 430 a.C., originria da regio de tica e sua autoria foi atribuda ao Pintor de Muni-ch. A jarra mantm a cor de barro na base, o fundo do corpo e o pescooforam pintados com um pigmento preto e a parte central do utenslio, comum pigmento branco. Apesar das muitas manchas escuras, causadas pelotempo, possvel observar, no fundo branco, os contornos, em preto, detrs figuras humanas e o vermelho das roupas: uma mulher, cujo vestido setransformou em uma mancha vermelha mesclada com esboos do seio,ombros e braos, embora se possam ver claramente seus cabelos longos epresos atrs da cabea e seu rosto, desenhado de perfil; um menino nu,desenhado de frente, segurando um brinquedo na mo esquerda, e um ho-mem, vestido de vermelho, dentro de um barco, segurando uma haste com-prida na mo direita. O menino est situado em cima de uma rocha, entre

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    os dois adultos, e seu rosto est voltado para a mulher, sua me, em oposi-o ao homem; seu brao direito se estende em direo a ela e sua mo seabre, num ato de despedida. O brao esquerdo do homem est esticado emdireo ao menino, como se ele o chamasse para entrar no barco. Conside-rando que, na mitologia grega, os mortos eram aguardados por Caronte,nas margens do rio do infortnio, o barqueiro que os transportava para ooutro mundo, essa ilustrao representa esse episdio da vida da criana: omenino recm-falecido se despede de sua me para realizar sua travessia,guiada por Caronte, at as margens do Styx, o rio que percorre o mundo deHades, o Deus dos mortos. A realidade dessa jornada para os antigos gre-gos se reflete nas muitas representaes de Caronte, e o que se observa nes-sa cena o sofrimento de uma me ao despedir-se de seu filho, que deveratender ao chamado dessa figura mtica e, com isso, romper os laos que oprendem a ela9.

    Quanto Roma antiga, o fragmento do sarcfago do menino Corne-lius Satius, um grande retngulo de pedra esculpido em relevo pelas mosdo artista, em que se projetam quatro episdios de sua vida, apresenta al-guns indcios sobre a criana no ambiente familiar e sua relao com ospais. Pertencente ao perodo de 150-60 a.C., o sarcfago foi encomendadopelos pais de Cornelius, em sua memria, como se afirma no epitfio, loca-lizado na sua parte inferior. esquerda, pode-se observar, na primeira ima-gem esculpida, Cornelius ainda beb, nos braos da me, que o amamenta,enquanto seu pai, debruado sobre uma mureta, observa-os com ternura. Asegunda imagem mostra a criana, talvez na idade de iniciar os primeirospassos, no colo de seu pai, segurando um objeto, provavelmente um choca-lho. No centro do sarcfago, observamos o menino maior, com um chicotena mo, conduzindo uma carruagem puxada por uma cabra. Essa carrua-gem era um brinquedo reservado para famlias que tinham posses. Por fim,no canto direito do sarcfago, observa-se uma cena relacionada com a edu-

    9 Disponvel em http://www.metmuseum.org/Collections/search-the-collections/130008656?rpp=20&pg=1&ft=*&what=Lekythoi&who=Munich+2335&pos=2. Sobre estaimagem, veja-se Langmuir, 2006, p. 76-9.

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    cao do menino: o menino, vestido de toga, em p, com um rolo de papirona mo esquerda, parece falar a seu pai, que o escuta atentamente, sentado,com as pernas cruzadas, a mo direita sob o queixo e um rolo de papiro namo direita. Percorrendo as imagens esculpidas na pedra, nota-se o registrode episdios marcantes do desenvolvimento da criana e seu vnculo afeti-vo com seus pais. Tem-se a concepo de que as crianas, na Grcia e Romaantigas, eram criadas pelas mes e, quando atingiam 7 anos, eram entre-gues aos seus pais, que se encarregavam de sua educao. No entanto, essesarcfago explicita um vnculo de afeio entre o pai e seu filho desde tenraidade, aspecto pouco conhecido na histria dessas civilizaes10.

    A meno a essas imagens mostra que a conscincia da particulari-dade infantil pode ser identificada desde a Antiguidade e nas mais diversasculturas. Se procurarmos compreender a vida como um percurso ao longodo tempo at seu final, ento as diferentes idades das pessoas sero umdado prvio para se pensar sobre os lugares e as condies de suas vidas,nos diferentes momentos da histria da humanidade. nessa histria, queno s do Ocidente a se expandir do ncleo europeu, mas de todas asformas de agrupamento humano em ambos os hemisfrios, que as crianasvivem e precisam ser compreendidas11.

    A histria e as instituies de educao infantil

    No se passa de um momento histrico em que a educao ocorra nointerior da famlia para outro em que passe a ocorrer na instituio escolar.Famlia, infncia, escola, pedagogia se produzem por meio de processossociais e de forma interdependente. Aprender, instruir, conhecer a si e aomundo se associam ao processo de crescimento, que ocorre no interior derelaes sociais. Se a infncia refere-se s representaes dos adultos sobre

    10 http://louvre.fr/llv/activite/detail_parcours.jsp?CURRENT_LLV_PARCOURS%3C%3Ecnt_id=10134198674150435&CONTENT%3C%3Ecnt_id=10134198674167607&CURRENT_LLV_CHEMINEMENT%3C%3Ecnt_id=10134198674167607.

    11 Este pargrafo e as prximas duas pginas apoiam-se em trabalho publicado anteriormente(KUHLMANN JR., 2006).

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    as crianas, isso no significa que estas sejam receptores passivos dessasconcepes, que, de algum modo, vo ao encontro de algumas necessida-des infantis.

    Na Didtica Magna, publicada em 1657, Comenius (1996, p. 409-14)relaciona a sua proposta de um sistema educacional distribudo pelos dife-rentes perodos da vida com as relaes etrias existentes nas corporaesde ofcio. Segundo ele, os artesos desenvolviam um programa de liesaos seus aprendizes, com durao de dois a sete anos, de acordo com acomplexidade de sua arte. Aps esse perodo que se tornavam oficiais edepois mestres. O mesmo deveria ser feito nas escolas, desde a infncia at idade viril, ou seja, 24 anos, repartidos em perodos determinados, osquais se devem dividir tomando por guia a natureza. Para tanto, divideesses anos de lento desenvolvimento em quatro partes, cabendo infn-cia a escola materna, puercia, a escola primria, adolescncia, o gin-sio e juventude, a academia.

    Se h um exagero na afirmao da inexistncia de uma conscinciada particularidade infantil, tambm parece exagerado entender que a soci-edade medieval impusesse uma condio idntica do adulto s crianas eaos jovens, devido ao ingresso na sociabilidade, caracterstica daquele tem-po. A entrada da criana aos 7 anos no mundo dos adultos, na sociedademedieval, no seria uma transformao imediata, no significaria que elapassasse a portar as mesmas responsabilidades que os adultos, pois esseingresso nas atividades produtivas ocorria por meio da aprendizagem, pormeio de processos de iniciao, em que o aprendiz necessitava percorrercertas etapas para a obteno de maiores graus de autonomia. Isso inspiroua ideia da organizao da educao escolar por classes de idade.

    A criana, ao nascer, necessariamente ingressa no mundo dos adul-tos, que na realidade um mundo em que existem pessoas de diferentesidades. Se os adultos exercem a hegemonia dos processos sociais, h que sepr em questo os processos pelos quais so recebidos os novos membrosda humanidade na vida social, nos diferentes lugares, momentos, grupossociais, etc. Mas entrar na escola no significa sair da vida social. Se, naIdade Mdia, a criana ingressava no mundo dos adultos para ali fazer a

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    sua aprendizagem, com a modernidade, a defesa da necessidade de umaeducao fundada nas instituies familiar e escolar fez dessas instituieso novo mundo dos adultos pelo qual elas deveriam passar. Com isso, atransformao da criana em aluno seria, ao mesmo tempo, a definio doaluno como a criana, nesse processo em que o critrio etrio se torna orde-nador da composio e da seriao do ensino nas classes escolares (KUHL-MANN JR.; FERNANDES, 2004).

    Ao mesmo tempo, importante lembrar que os diferentes gruposabrigados sob o guarda-chuva da infncia, referido anteriormente, noso como compartimentos estanques, pois as crianas transitam por dife-rentes papis sociais em suas experincias. Por exemplo, quanto ao parcriana-aluno, mesmo que a criana no tenha acesso escola, a existnciadessa instituio e a conscincia de sua excluso dela marcaro a sua vida.Para a criana que vai escola, no se pode pensar que, no interior dainstituio, ela deixe de ser criana para se transformar em aluno, categoriaque simboliza a definio da infncia moderna.

    s vezes, a ligeireza com as questes relacionadas histria, na in-teno de instrument-la para a defesa de concepes do presente, podechegar formulao de equvocos que se propagam com facilidade.

    o que tem acontecido com uma caracterizao da condio de alu-no que tem se difundido de forma irrefletida em eventos destinados for-mao de professores, reproduzida em palestras e cursos, com a finalidadede difundir a ideia de que a criana teria uma luz prpria que seria encober-ta mediante o seu enquadramento na categoria de aluno. Afirma-se que apalavra aluno significa sem luz, uma interpretao equivocada, na me-dida em que a palavra aluno, de origem latina, tem sido compreendidacomo uma palavra composta pelo radical a, entendido como um termode negao, e a palavra lumnos, que significaria luz. Talvez a afirmaotenha se inspirado em anlises semelhantes sobre o termo infncia, quesignifica o que no fala, do latim infans. Mas agora o que se faz umaverdadeira salada etimolgica, bastante indigesta, pois o radical a ex-pressa uma negao no grego, e no no latim, e a palavra luz, em latim,se escreve lumina, e no com i mudo. A etimologia revela, na verdade,

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    um significado muito mais interessante para a reflexo pedaggica, poisremete para a dimenso do cuidado, presente no apenas na educao in-fantil, mas envolvendo o conjunto das instituies escolares: aluno se refere palavra latina alo, que se relaciona ao ato de nutrir-se, de criar comalimento, de sustentar.

    Conceber a palavra aluno como um atributo negativo, que tornaria acriana um sujeito passivo, revela uma elaborao terica anacrnica e equi-vocada, ao supor que as palavras teriam o poder de produzir a realidade,desconsiderando que os conceitos e definies so resultados das relaessociais e seus significados se modificam ao longo do processo histrico. Emsegundo lugar, esse raciocnio imprudente, pois enuncia um discurso queestimula a dicotomia entre o mundo da criana e o mundo da escola, comose esses espaos fossem contraditrios e como se a condio de aluno ne-gasse a condio de criana. Ao mesmo tempo, estimula o distanciamentoentre a educao infantil e o ensino fundamental, pelo fato de o ensinofundamental ser realizado em instituies escolares, sob os auspcios dosmtodos e processos pedaggicos, o que estaria contraposto aos interesses enecessidades das crianas. J a educao infantil seria provida em institui-es em que se interdita mencionar as palavras escola, ensino, apren-dizagem, entre outras, como se fossem os termos os responsveis por asse-gurar que as crianas tivessem um ambiente adequado a suas necessidades.

    A educao infantil, desde a Constituio Federal de 1988, constitui-se na primeira etapa da educao bsica, o que significa que as instituiesde educao infantil esto integradas aos sistemas de educao nacional. Sea educao no Brasil provida por instituies escolares, no seria lgicochamar as instituies de educao infantil de escolas? Entende-se que o re-ceio de assim denomin-las se deve necessidade que os educadores tm dedestacar as particularidades da educao infantil e aos problemas apresenta-dos pelo modelo escolar brasileiro. No entanto, essa postura cria uma segmen-tao entre a educao infantil e outros nveis da educao bsica e revela umafalta de compromisso com a continuidade da educao dessas crianas.

    Outro aspecto a ser destacado que o princpio constitucional impli-ca o reconhecimento legal do direito da criana pequena educao, o que

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    no significa que, ao longo de sua histria, a educao infantil j no de-sempenhasse um papel educativo. Ao desconsiderar-se a histria da educa-o infantil e ao se fazer uma leitura equivocada de que antes a creche eraassistencial e agora ela educacional, cria-se a falsa oposio entre educa-o e assistncia.

    A creche no nasce como instituio assistencial, porque a crechemanifesta uma poltica assistencial do sculo XIX, que passou a privilegiara oferta de instituies educacionais para o atendimento da populao po-bre e trabalhadora. Nesse sentido, a casa de expostos, que era um internatoque abrigava crianas abandonadas, foi condenada como meio de assistiras crianas pobres, assim como outras instituies com esse perfil, que po-dem ser caracterizadas como instituies totais (GOFFMAN, 1961), aoisolar os internos do convvio em outros ambientes sociais.

    O desenvolvimento da sociedade capitalista levou ao abandono des-se modelo, em que o Estado, ou outro agente, apropriava-se das pessoas,como as workhouses (casas de trabalho), que recolhiam os pobres para colo-c-los ao seu servio. Trata-se agora de investir nas famlias, associadas sinstituies educacionais: as escolas primrias, a economia domstica, aeducao de adultos, o ensino de ofcios e as escolas tcnicas, a creche e ojardim de infncia so alguns dos exemplos difundidos nos congressos in-ternacionais que debatiam propostas para as polticas sociais (KUHLMANNJR., 2001). A mulher, vista como esteio da famlia, tornou-se uma pea-cha-ve, uma aliada para a estruturao desse novo modelo de organizao social.Nesse sentido, a creche se apresentou como uma instituio educacional quepermitiria me ter onde deixar seu filho enquanto trabalhasse, sem precisarabandon-lo na casa dos expostos ou envi-lo para os cuidados de uma amade leite, como se praticava em alguns pases europeus.

    De origem latina, a palavra assistncia significa estar junto a ou es-tar em grupo. uma ao que converge com a educao, na medida em queeducar, muito alm de promover a aquisio de conhecimentos sistemati-zados, promover a socializao, estimular os vnculos sociais, garantirque as novas geraes desenvolvam comportamentos que so prprios desua cultura. A educao um processo coletivo, uma forma de relao so-

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    cial entre geraes de idades diferentes, que no se d em contraposio assistncia. Na verdade, acredita-se que o esforo da educao infantil de-veria ser o de no se distanciar da assistncia, para afirmar seu carter edu-cativo, mas o de promover a ampliao desse vnculo de forma que outrosnveis de ensino tambm fossem imbudos dessa concepo. Acredita-senisso, no somente porque, no ensino fundamental, tambm h crianas as quais muitas vezes so esquecidas por aqueles que tanto defendem aeducao infantil mas porque os jovens tambm precisam do acompa-nhamento das geraes mais velhas e de se sentir acolhidos nos ambientesescolares.

    Cabe destacar que promover o vnculo entre educao e assistnciano significa qualificar a educao infantil de assistencialista. O assistencia-lismo, como termo vulgar, remete a prticas clientelistas e personalistas,em que os direitos sociais so encobertos por polticas que insinuam o valorda retribuio, situando as relaes de ordem pblica na esfera privada, ouseja, uma forma preconceituosa de conceber o atendimento em educaoinfantil, quando se trata do segmento mais pobre da populao. A educa-o assistencialista, assim, aquela que exerce uma pedagogia da submis-so (KUHLMANN JR., 2011).

    A educao infantil, especialmente a creche, busca seu espao dentrodo sistema educacional. at compreensvel que a organizao e o funcio-namento das outras etapas da educao bsica forneam um modelo degesto para a educao infantil, mas no se pode perder de vista que otrabalho das instituies de educao infantil envolve, necessariamente, aarticulao entre cuidado e educao. Dessa forma, a educao infantil ne-cessita de um arranjo organizacional que garanta o atendimento em tempointegral; a organizao adequada do espao fsico, de modo que a crianase sinta acolhida e confortvel; a realizao de um projeto educativo siste-mtico, intencional, que promova o desenvolvimento fsico, afetivo e inte-lectual e a socializao e o dilogo frequente com as famlias.

    Nesse sentido, considera-se que alguns procedimentos organizacio-nais que so prprios das outras etapas da educao bsica so inadequa-dos para a educao infantil, como, por exemplo, a tentativa de implantar

    KUHLMANN Jr., M.; FERNANDES, F. S. Infncia: construo social e histrica

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    as frias coletivas nos sistemas municipais, alegando que as creches soinstituies educativas e que, portanto, devem organizar o seu calendriode modo a garantir as frias escolares. O grande mote que rene umasrie de discursos pedaggicos a favor dessa ideia o de que preciso queos pais convivam mais com seus filhos. Mas considerar que os pais tenhamsuas frias coincidentes com as frias de suas crianas, o que propiciariaesse convvio, uma situao no mais das vezes improvvel.

    Em primeiro lugar, preciso destacar que esse recurso se destina aresolver uma questo econmica e administrativa: as frias coletivas dimi-nuem os custos com a contratao de mais profissionais e simplificam otrabalho administrativo com a organizao dos recursos humanos, assimcomo a manuteno da estrutura fsica. Em segundo lugar, o argumentono considera o destino dessas crianas enquanto a instituio est de frias,e seria contraproducente, para um raciocnio que se afirma pedaggico,afirmar que esse no um problema dos educadores.

    Outra justificativa apresentada para as frias coletivas o fato de ascrianas e os professores necessitarem de descanso, pois, no final do ano, ocansao gera conflitos e desgastes nas relaes entre os profissionais e ascrianas. Com relao a essa afirmao, cabe ressaltar dois pontos impor-tantes. O primeiro refere-se ao fato de que as frias sero para os professo-res e no para as crianas, pois os pais tero que encontrar alguma soluopara no deixar seus filhos sozinhos, enquanto esto trabalhando. O segun-do ponto est relacionado com o fato de a criana, quando se encontra emum ambiente acolhedor e aconchegante, que supre suas necessidades, nosofrer desgaste.

    Cabe uma observao tambm com relao ao desgaste dos profes-sores, pois se acredita que h outros fatores que estejam relacionados comesse problema, como condies de trabalho adversas, a falta de infraestrutu-ra adequada das unidades, relaes por vezes tensas da poltica local com arede de instituies de educao infantil, com a comunidade e os pais, entreoutros aspectos. Nesse sentido, preciso que os profissionais tenham cons-cincia disso, de modo a que as crianas sejam poupadas desse fardo e os pro-fessores tenham mais serenidade no seu relacionamento com os pequenos.

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    Outros argumentos poderiam ser apontados contra o discurso em fa-vor das frias escolares, como, por exemplo, a tomada de decises semcompartilh-la com as famlias. Critica-se a falta de apoio da famlia, mas aela no se recorre quando as decises dizem respeito administrao e organizao do trabalho. Essas atitudes distanciam cada vez mais as famliase criam obstculos para o dilogo. De certo modo, ao afirmar-se como peda-ggica, a medida acaba por repor a educao assistencialista, insinuando queas famlias pobres no teriam discernimento e apego aos seus filhos, pelo fatode elas quererem que suas crianas permaneam na instituio ao longo doano. Por extenso, as frias seriam tambm uma forma de exigir disciplina eresponsabilidade das famlias. Essa postura se contrape luta que os educa-dores tm empreendido para que a educao infantil fosse compreendidacomo uma instituio educativa e democrtica e no como um depsito decrianas. Ao mesmo tempo, traz demandas para a instituio que transcen-dem o seu papel e promovem uma relao autoritria com as famlias.

    Consideraes finais

    Neste texto, foi realizada uma incurso pela histria da infncia demodo a refletir sobre as dificuldades e os limites do conhecimento produzi-do e as leituras equivocadas que distorcem o passado para legitimar o pre-sente. Imaginar uma histria em que o passado evocado como um cen-rio negativo, diante das conquistas do presente, promove no somente odesconhecimento dos fatos de outrora, mas tambm do tempo atual: a in-fncia, a criana, a educao e as instituies no podem ser compreendi-das como descoladas do processo histrico. o caso, por exemplo, do pro-pagado discurso que anuncia as creches de hoje como instituies educati-vas, que se contraporiam s instituies assistencialistas do passado.

    Outra postura equivocada o esquecimento do passado quando seanunciam as conquistas do presente como grandes novidades. No pre-ciso retroceder muito na histria para buscarmos um exemplo: pensa-sena gesto democrtica nas instituies de educao infantil como umaconquista obtida aps a Constituio de 1988, mas se esquece que, na

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    dcada de 1960 e 1970, houve um movimento de luta por creches, em quea participao da comunidade no s era uma reivindicao, mas umaprtica institucional exercida por organizaes populares e movimentossociais.

    A valorizao do brincar e do brinquedo tambm permite refletir queno se inventa a roda nos tempos atuais, pois tanto nas creches francesasquanto nos jardins de infncia do sculo XIX encontram-se manifestaesrelacionadas a essa questo. Brinquedos, alis, j aparecem em imagens todistantes da Grcia e da Roma antigas.

    Em relao s instituies de educao infantil, procurou-se apre-sentar algumas formas de apropriao do passado nos discursos con-temporneos, com o propsito de legitimar conceitos, posturas e polti-cas para a educao infantil. Aproveitou-se a oportunidade tambm paratocar em alguns pontos de tenso na educao infantil que necessitamde maior discusso na rea, como a busca por um espao no sistemaeducacional brasileiro, em que as especificidades da educao infantilestejam bem definidas, bem como seu papel como a primeira etapa daeducao bsica.

    Neste texto, falou-se de histria, mas tambm, em todo momento, deeducao, de pedagogia. O estudo do passado pode proporcionar um senti-do mais profundo de pertencimento humanidade, bem como provocar einquietar a formulao de propostas e de prticas que desafiem o presente esuas contradies. Os elementos de tenso, as concepes e prticas querepresentam maus-tratos ou cuidados atenciosos, que favorecem ou queminimizam as potencialidades e as capacidades dos pequenos, que discri-minam ou que lutam pela igualdade social no so categorias estanques, detempos longnquos, mas esto presentes nas relaes entre os grupos etriosao longo da histria.12

    12 A pgina Histria da Educao e da Infncia, no portal da Fundao Carlos Chagas, umlocal interessante para quem queira conhecer importantes documentos histricos digitaliza-dos, assim como ter acesso a teses e artigos, bem como indicaes de outras pginas interes-santes, no Brasil e no mundo. Ela est localizada no endereo: http://www.fcc.org.br/pesqui-sa/jsp/educacaoInfancia/index.jsp.

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    Referncias

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    KUHLMANN Jr., M.; FERNANDES, F. S. Infncia: construo social e histrica

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    Da infncia-criana in-fncia do pensar na relao pedaggica

    Pedro Angelo Pagni

    Em seu uso corrente, a palavra infncia utilizada como um subs-tantivo que designa uma etapa do desenvolvimento humano que vai donascimento puberdade e adolescncia ou, ento, como um adjetivo quecaracteriza um estado de ingenuidade ou de simplicidade que independeda idade cronolgica. Esse duplo sentido, atribudo noo de infncia emvrias lnguas encontra-se inter-relacionado e articulado origem etimol-gica da palavra infantia, proveniente do latim: do verbo fari, falar especifi-camente, de seu particpio presente fan, falante e de sua negao in. Oinfans aquele que, como diz Gagnebin, ainda no adquiriu o meio deexpresso prprio de sua espcie: a linguagem articulada (1997, p. 87). Oprefixo in da palavra infncia sugere ainda algo da ordem do no expri-mvel, do no tratvel discursivamente; mais do que uma ausncia, umacondio dessa linguagem e desse discurso, o germe do pensamento queainda no se encontra pronto nem acabado, que ainda no se pode expres-sar ou comunicar em termos lgicos, lingusticos ou pragmticos. Assim,em sua origem etimolgica, a infncia consiste no silncio que precede aemisso das palavras e a enunciao do discurso, designando uma condi-

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    o da linguagem e do pensamento com a qual o ser humano se defronta aolongo de sua vida, mas, com maior frequncia, em uma idade especfica,diferenciada da adulta, na qual ainda no ingressou no mundo pblico.

    Em seu desenvolvimento subsequente, semanticamente, essa catego-ria passa a ser utilizada para designar essa idade, quase que exclusivamente,sendo utilizada como sinnimo de criana e, enquanto tal, como uma faseda vida humana prxima da natureza, a ser esquadrinhada e cultivada paraque o homem a em germe, por meio da ao de outros homens e da trans-misso/apropriao da cultura, se forme e ingresse no mundo existente.Na medida em que essa formao se restringe a uma tcnica e o ingresso nomundo desses seres nascentes consiste em um mero assujeitamento ao exis-tente, porm, a exigncia de sua regulamentao por saberes e de sua do-mesticao por prticas exercidas pelos homens mais velhos, que assumemessa funo em diversas instituies modernas, dentre as quais a escola,concorre para uma sobrevalorizao da infncia como idade especfica, di-ferenciada do adulto, autonomizando-a de seu sentido original. Concomi-tantemente ao abandono do aprimoramento moral e intelectual, como aprincipal finalidade inerente formao humana, assim, ocorre certo es-quecimento de que o cuidado com a infncia, e o seu governo na arte peda-ggica, implicaria tambm o seu sentido original, qual seja: o de ser umacondio da linguagem e uma possibilidade do pensar que irrompe na vida,ao no se restringir a uma de suas fases, e a altera em seu curso, mediante asua transformao.

    Neste captulo, recuperaremos esse sentido original da infncia como intuito de evidenciar seu potencial crtico na ao docente na medida emque convidaria os educadores a cuidarem de sua prpria infncia antes depostularem o seu governo pela arte pedaggica. Para tanto, reconstruireibrevemente a gnese e o desenvolvimento da noo de infncia-criana emduas vertentes emergentes no pensamento filosfico que se consolidaramna modernidade para, ento, problematiz-las a partir da noo de in-fn-cia do pensar defendida por alguns filsofos contemporneos e propor al-gumas implicaes desta ltima para a educao. Assim, esperamos ofere-cer algumas pistas para que, como educadores, pensemos a infncia no

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    como um objeto a ser governado, tampouco um sujeito a governar, mascomo um outro de ns mesmos a ser cuidado para que nos relacionemos deforma mais franca com outrem, na relao pedaggica, promovendo, seno a alteridade necessria ao trabalho docente, ao menos uma maior fa-miliaridade com aqueles com quem nos relacionamos.

    Da gnese da infncia-crianaao seu desenvolvimento moderno

    Os primeiros indcios de certa diferenciao entre as crianas e osadultos aparecem nos sculos XVI e XVII, segundo Aris (1978), manifes-tando-se como um sentimento de infncia, isto , como uma espcie deconscincia da particularidade infantil. Em princpio, como denunciado nosEnsaios de Montaigne, essa particularizao e esses cuidados resultaramem alguns excessos sentimentais, paparicaes e mimos, que satisfaziammais o adulto do que as crianas, tornando-se meios para sua diverso, eque necessitavam ser corrigidos no sentido de conhec-las mais e de torn-las pessoas honradas, probas, racionais. A denncia de Montaigne foi se-guida de uma interpretao de que tal particularizao deveria ser objetode estudos, utilizados com a finalidade de ajustar os mtodos pedaggicosao desenvolvimento infantil, sendo que tais procedimentos em relao infncia deveriam estar associados disciplina e racionalidade dos costu-mes, necessrias para a formao moral. Ao considerar as crianas criatu-ras frgeis de Deus, os filsofos, os moralistas e os educadores do sculoXVI e XVII teriam almejado fazer delas, mesmo que tivessem uma razoincipiente, homens cristos e racionais, ainda que para isso fosse precisocerta austeridade em relao aos pequenos (ARIS, 1981, p. 163-164).

    Se o problema das particularidades da infncia, colocado pelos fil-sofos, moralistas e educadores nesse perodo, implica saber como domesti-c-las, mediante aquelas prticas, nele ressoa um problema filosfico maisantigo sobre as possibilidades da formao humana, a saber: se as crianasesto mais prximas da natureza, necessitando que o seu esprito humanolhes seja formado para que se tornem homens racionais e honrados, no h

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    possibilidade de ascender a essa reforma espiritual e de se formar cultural-mente sem as disposies naturais e as faculdades com as quais nascem.Tendo em vista tal problema, Lyotard resumiu do seguinte modo o dilemacom o qual se defrontou a filosofia em sua associao com a formao dohomem, ao longo de sua histria: se o esprito dos homens no lhes dadocomo preciso, e deve ser re-formado, o monstro dos filsofos a infn-cia, mas tambm a sua cmplice na medida em que diz-lhes que o esp-rito no dado, mas que possvel (1993, p. 119-120).

    Esse paradoxo da infncia fez com que filsofos, moralistas e educa-dores a vissem como algo que os assombra e, ao mesmo tempo, que osmove no sentido da reforma do esprito daqueles a quem suas prticas esaberes se destinam. Este paradoxo comea a ser evidenciado no nascimen-to da prpria filosofia ocidental, e no a partir da modernidade. Desde aproposio do ideal de uma Paidia Justa por Plato at o Emlio de JeanJacques Rousseau, segundo Gagnebin (1997, p. 87-91), o que se nota nafilosofia so tentativas de solucionar esse problema no sentido de submeteressa natureza, na qual o homem est imerso desde o nascimento e por todaa infncia, cultura do esprito. Supe-se que assim seria formado moral eracionalmente, libertando-se do jugo de seu nascimento, daquilo que o apro-xima dos animais, para se tornar humano. A condio da infncia seria ade pertencer a esse estado de natureza a ser negado pela formao humanasob os argumentos de que seria o momento: da emergncia dos vcios de-correntes dos apetites do corpo e das partes interiores da alma, como sus-tenta o Plato; da proximidade do pecado e da expresso da maldade origi-nria, como postula o Santo Agostinho; da imerso no erro e nos precon-ceitos caractersticos dessa idade especfica, como assinala o Descartes.

    Com o pensamento de Rousseau, na segunda metade do sculo XVIII,nota-se uma inverso nessa forma de conceber a infncia e tambm a edu-cao. Contrariamente perspectiva filosfica precedente, a idade da in-fncia concebida como um bem em si, como uma condio necessria aolivre desenvolvimento das faculdades naturais ao homem. Para Rousseau,o julgamento moral somente possvel com a constituio da conscincia,e esta seria autntica na medida em que se guiasse por aquilo que dado aohomem por natureza, a liberdade da vontade, e fosse empreendida segundo

    PAGNI, P. A. Da infncia-criana in-fncia do pensar na relao pedaggica

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    uma razo sensvel, cabendo educao desenvolv-la naturalmente, semintersees que impliquem a heteronomia. Se o homem agisse segundo asua vontade prpria e uma conscincia moral formada autonomamente, deacordo com Rousseau (1995), o homem no se dobraria s convenes so-ciais estabelecidas e s palavras sedutoras, responsveis pela corrupo danatureza originariamente boa. A pureza originria da infncia seria, assim,um estado a ser preservado e cuidado, pois consistiria em um momento emque as disposies do carter se formam em conformidade com essa mes-ma natureza, nutrida pelo amor prprio e pelo amor ao prximo que nas-cem com o homem e o guiam em seus primeiros anos de vida13.

    Ainda no sculo XVIII, um dos desdobramentos do embate entreessas tendncias acerca de como deveriam ser os cuidados com a infncia ea sua boa educao resultou em uma concepo de pedagogia nos termosdesenvolvidos por Kant (1995), que tornou mais radical a reflexo sobre oproblema da formao da conscincia moral enunciado por Rousseau; po-rm, ela o pensa segundo os critrios de uma razo transcendental e deuma racionalidade prtica. Para a pedagogia kantiana14, o que deve ser ob-

    13 J que esses sentimentos no podem ser traduzidos completamente em uma linguagem articu-lada, a infncia se constitui na origem do prprio pensamento, a condio de sua emergnciaem um momento em que ainda no se traduz em palavras e em discurso lgico. O critrio deverdade desse pensamento diz respeito a uma sensibilidade racional a partir da qual avalia averacidade das coisas e a justeza de seus atos. Tal pensamento pode continuar indizvel, semque isso implique um erro lgico, mas apenas um reconhecimento de seus prprios limitespara designar essas coisas e atos, com os quais o ser humano se relaciona em seu ntimo. Se ainfncia parece ser o momento em que o pensamento comea a se desenvolver, desse modo, apedagogia rousseauniana prope-se consistir em um meio de seu nascimento, que propicia aohomem julgar as suas convices e deliberar conscientemente sobre suas aes, graas con-sulta ao qual o remete: a uma consulta ntima, pessoal, ao seu corao para saber se assente aelas ou no, ouvindo a voz de sua prpria natureza.

    14 As reflexes de Kant (1995) sobre a pedagogia concordam com Rousseau no que se refere sinclinaes liberdade da natureza humana e concepo de que, embora nasa inclinado afazer o bem, o homem s se torna moral quando se conscientiza do dever e da lei. Kant (1995,p.107) considera, porm, que as inclinaes e a conscincia no nascem prontas: necessitamser formadas racionalmente e ser direcionadas constituio de uma moralidade autnoma.Embora nasam com as inclinaes e as potencialidades para a formao da conscincia,segundo ele, no processo educativo as crianas e jovens deveriam, num primeiro momento, sersubjugados por tutores e obedecer enquanto no so capazes de julgar moralmente, para, numsegundo momento, exercer a sua liberdade moral, segundo as leis racionais e a razo prtica.Diferentemente do cultivo das faculdades inferiores em si mesmas propostos por Rousseau,

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    jeto de correo na infncia no ela em si mesma, mas a experincia quea caracteriza e, com ela, a sensibilidade, a memria e a imaginao consti-tutivas das faculdades inferiores que as desviam de agir conforme essa ra-zo legisladora e o princpio da moralidade. Kant reconhece que essa expe-rincia e faculdades inferiores deveriam ser submetidas ao entendimento e razo, gradativamente, mesmo na maturidade, acompanhando toda a exis-tncia humana. Isso permite que as entendamos como um estado de meno-ridade ao qual o prprio homem est submetido, devendo dele se livrar e seemancipar no sentido de exercer plenamente sua liberdade e concorrer parao progresso da humanidade em direo sua verdadeira dignidade. A pro-posta de abandono da experincia da infncia, do uso das faculdades infe-riores para o julgamento moral e de sada do estado de inaptido e de inca-pacidade racional, por meio de uma pedagogia da razo e de uma educa-o da moralidade, complementar ao Iluminismo (Aufklrung), nos ter-mos definidos por Kant em seu famoso ensaio sobre o assunto.

    Nesse sentido, o termo infncia parece se ampliar com o pensa-mento de Kant, no se restringindo a uma idade especfica, mas a um esta-do de incapacidade, de ingenuidade e de ignorncia daqueles que necessi-tam de cuidados, de tratamento, de leis e de governo porque possuem umavida sem razo, conscincia e moralidade, devendo dele ser emancipadospara alcanar a verdadeira liberdade. Entre os sculos XIX e XX, uma boaparte das teorias pedaggicas se fundamentou nesse ideal moderno de eman-cipao. Porm, nos limiares da contemporaneidade, tal ideal, a racionali-dade tcnica, o pensamento identificante e a destituio da vida resultantesdo Aufklrung15, aparece sob suspeita no pensamento de alguns filsofos.

    Kant prope que elas sejam cultivadas tendo em vista o desenvolvimento das faculdades supe-riores, tomando-os como a finalidade da razo e compreendendo-as como a sua forma maisalta: a razo prtica responsvel por legislar sobre a moralidade.

    15 Nos desdobramentos da pedagogia do Aufklrung, a infncia foi abordada como uma experi-ncia singular a ser corrigida no processo formativo, submetida a uma racionalidade subjetiva,por intermdio da disciplina e do trabalho de autoridade empreendido pelo educador. Foitambm objeto de estudos, que procuraram desvendar os seus mistrios e o que caracteriza odesenvolvimento psicolgico da infncia ou no que consistiria o abandono do ser egosta emque se funda esse estado para se converter em ser social e se socializar em conformidade comas necessidades da sociedade moderna, no mbito sociolgico. Assim, por um lado, a diferen-

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    Alm de problematizar as repercusses desse movimento, tais filsofos re-tomam a infncia como uma condio ou limite do pensamento, de umatica e de uma esttica transcendentais que confrontam a finitude humana.Ao mesmo tempo, consideram-na como o seu lcus produtivo, eticamenteimanente e esteticamente sublime em relao existncia, tornando-a afir-mativa, diferente, em si mesma, produtora de uma descontinuidade com ahistria. Isso no significa que os pensamentos produzidos por eles propo-nham uma retomada da imagem de uma infncia paradisaca nem de umapedagogia que almeje um retorno natureza, nos termos postulados porRousseau, at porque os discursos propagados nesses termos, historicamente,serviram apenas para reafirmar o individualismo burgus e, no limite, parajustificar certas formas de totalitarismo. Nesse sentido seria anacrnico,para no dizer nostlgico, retomar essas concepes modernas de infn-cia para estabelec-las em termos educativos; entretanto, mediados pordiferentes tendncias na psicologia, justamente nelas que as prticas eos saberes pedaggicos majoritariamente se apoiam na atualidade, sem seinterrogar acerca de sua historicidade, tampouco o seu potencial de resis-tncia s formas de governo e de governana presentes na arte pedaggi-ca, como apontei em outro ensaio (PAGNI, 2010b). Por esse motivo, pa-rece-me interessante contrast-lo com outra tendncia filosfica no senti-

    ciao para com os adultos e os cuidados pedaggicos com a infncia, com esse influxo dacincia, tornaram-se tcnicas que se exercem sobre ela: a esquadrinham, quando no paradenegar a experincia que da provm e o olhar diverso do institudo, ao menos para enqua-dr-la nos mecanismos de sujeio, de interdio, de silenciamento. Por outro lado, a imagemda infncia como anloga menoridade tambm tratada pelas cincias sociais como umobjeto a ser esquadrinhado. Embora signo da ingenuidade e da ignorncia, a populao consi-derada menor pelos tutores se subleva, se no por palavras e por meio de uma linguagemarticulada, ao menos por gestos, contra a ordem civil. A desordem desse pensamento e gestosde rebeldia, manifestos por essa populao, tornaram-se objetos de controle do Estado e de suaspolticas pblicas, legitimado pela cincia do social, buscando um regulamento superior para avida social, racional, cientfico, indubitvel. Infncia e menoridade constituem-se no caos e nadesordem, aquilo que no se pode controlar por completo nem por um sentimento de infncia,nem por cuidados especiais, nem por polticas pblicas. So partes de uma experincia com omundo e consigo mesmo que a racionalidade tcnica desencadeada pelo iluminismo tenta inter-ditar no processo de escolarizao e de participao na vida pblica, onde somente a palavraarticulada, o logos, e o cidado emancipado, mas ordeiro, tm seu lugar garantido.

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    do de reverter esse modo de conceber a infncia por parte dessa tendnciamajoritria da pedagogia e dos educadores.

    Outro olhar filosfico educacional e suas variaes:a in-fncia do pensar

    Um dos precursores dessa outra tendncia do pensamento em rela-o infncia, na contemporaneidade, foi Friedrich Nietzsche. Em sua fa-mosa passagem sobre as Trs Metamorfoses, contida em seu Zaratustra,ao descrever as transformaes do esprito de camelo em leo, de leo emcriana, e ao se perguntar por que essa ltima mudana ocorreria, ele serefere metaforicamente infncia dizendo: A criana inocncia e esque-cimento, um comear de novo, um jogo, uma roda que gira por si prpria,um primeiro movimento, um sagrado dizer que sim (NIETZSCHE, 1998,p. 30). Com esse carter afirmativo da metfora infantil, como figura docomeo, o esprito desejaria o seu prprio desejo; aquele que se perdeu parao mundo conquistaria, assim, o seu prprio mundo. Para ele, por um lado,a infncia traz em si no as potncias de uma memria sincronizada com oesprito do tempo, mas as foras produtoras de um esquecimento capaz deproduzir um anacronismo em relao a ele, potencializando a vida queprocura destituir e abrindo perspectivas de sua afirmao no e pelo presen-te. Por outro lado, a infncia seria inocncia, pois nela o esprito ainda noteria conseguido se ajustar s leis e moral institudas, e o ressentimentopor ter que negar as foras potencializadoras da vida e a m conscincia deque no se conseguiria isso por completo, caractersticas do niilismo, aindano teriam se instaurado. Assim, a figura da criana vista por Nietzschecomo um devir da transformao do esprito, como um esquecimento ne-cessrio sua descontinuidade em relao ao passado e, ao mesmo tempo,como o retorno inocncia capaz de promover a sua recriao no presente.

    Se Nietzsche concebe a infncia como portadora do esquecimentoe da inocncia, Benjamin a concebe como uma experincia que poderiaser recuperada pela memria, com vistas a encontrar nela um outro olharsobre a histria, capaz de produzir novas narrativa no presente. Isso por-

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    que, em sua poca, Benjamin diagnostica o empobrecimento da experin-cia por meio de sua reduo ao emprico, produzida pela racionalizaoda existncia, desenvolvida pela aplicao da cincia e da tcnica vida,ao ponto de destituir a sua aura, como ocorreu com a arte. Benjamin(1984, p. 23-25) enuncia esse empobrecimento no que denomina ser amscara do adulto, isto , uma experincia em que as esperanas, ossonhos, a indeterminao e a fantasias infantis e juvenis vo sendo grada-tivamente expropriadas pela brutalidade e a vulgaridade da vida moder-na. O esprito expropriado dessa experincia serviria de consolo para queos adultos se dirigissem aos mais jovens com a autoridade de quem nadamais teria a experimentar, j que, supostamente, teria vivido coisas seme-lhantes em sua juventude e, tal como se passara com eles, os mais jovensdeveriam ser tirados desses devaneios pueris para qu