EDUCAÇÃO, ESCOLA E HABITUS UM ESTUDO DAS PRÁTICAS INFORMAIS NA ESCOLA PÚBLICA

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ FACULDADE DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO BRASILEIRA DORENILDO DOMINGUES MATOS EDUCAÇÃO, ESCOLA E HABITUS: UM ESTUDO DAS PRÁTICAS INFORMAIS NA ESCOLA PÚBLICA FORTALEZA 2013

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEAR FACULDADE DE EDUCAO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO BRASILEIRA

    DORENILDO DOMINGUES MATOS

    EDUCAO, ESCOLA E HABITUS: UM ESTUDO DAS PRTICAS INFORMAIS NA ESCOLA PBLICA

    FORTALEZA 2013

  • DORENILDO DOMINGUES MATOS

    EDUCAO, ESCOLA E HABITUS: UM ESTUDO DAS PRTICAS INFORMAIS NA ESCOLA PBLICA

    Dissertao apresentada Coordenao do Programa de Ps-Graduao em Educao Brasileira da Faculdade de Educao da Universidade Federal do Cear UFC, como requisito parcial para a obteno do grau de Mestre em Educao Brasileira.

    Orientadora: Prof. PhD. Bernadete de Lourdes Ramos Beserra

    FORTALEZA 2013

  • DORENILDO DOMINGUES MATOS

    EDUCAO, ESCOLA E HABITUS: UM ESTUDO DAS PRTICAS INFORMAIS NA ESCOLA PBLICA

    Dissertao apresentada Coordenao do Programa de Ps-Graduao em Educao Brasileira da Faculdade de Educao da Universidade Federal do Cear UFC, como requisito parcial para a obteno do grau de Mestre em Educao Brasileira. rea de concentrao: Antropologia da Educao.

    Aprovada em _____ de _____________ de 2013.

    BANCA EXAMINADORA:

    _______________________________

    Prof. Phd. Bernadete Lourdes de Ramos Beserra (Orientadora) Universidade Federal do Cear UFC

    _______________________________

    Prof. Dr Maria de Ftima Vasconcelos da Costa Universidade Federal do Cear UFC

    _______________________________

    Prof. Dr. Alcides Fernando Gussi Universidade Estadual do Cear UFC

    _______________________________

    Prof. Dr. Marilia de Franceschi Neto Domingos

    Universidade da Integrao Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira UNILAB

  • In memoriam dos meus Pais, Seu Antonio e Dona Francin.

  • AGRADECIMENTOS

    Ao CNPq pelo financiamento pblico da pesquisa.

    A minha instigante orientadora, Bernadete Beserra, que combinando motivao e rigor, permitiu-me realizar um trabalho com independncia, compromisso social e cientfico.

    As professoras membros da banca examinadora: Marilia De Franceschi Neto Domingos, Maria de Ftima Vasconcelos da Costa pela participao anlises e sugestes preciosas na defesa do projeto e na banca final.

    Ao professor Alcides Fernando Gussi por aceitar participar da banca final.

    Aos colegas do grupo de estudos Negritude e Cearensidade, particularmente, o incansvel e laborioso, Diego de Jesus, a extraordinria e intrigante, Silviana Mariz, o resoluto Joamir Brito e a gentil, Cristina Imaculada. E ainda, Ana Iza Ana e Natlia, Valria Cassandra, Phelipe Bezerra e Ana Lcia, que sugeriu o termo estatuto para fins deste trabalho e a Rmi Lavergne pela acolhida e entusiasmo, com a pesquisa.

    A Minha considerao ao eixo Filosofias da Diferena, e Educao, da linha Filosofia e Sociologia da Educao FILOS, sobretudo aos professores Silvio Gadelha e Homero Lima, por apresentar-me com esmero a filosofia de Deleuze e Heidegger, respectivamente, e aos colegas: Cristina Mandau, Alexandre Mouro, Anderson Duarte, Paulo Caldas, Thiago Mota e Andr Magela.

    As minhas sensacionais colegas/amigas: Ana Cludia e Elba Soares pela amizade e sabedoria.

    Aos amigos: Ktia Adriano, Robson Alves e pelo encorajamento a iniciativa de tentar o mestrado.

    Ao Victor Braga, Ribamar Jr, Marcos Lu e Isadora Morais pela convivncia extremamente prazerosa e rica em nossa repblica e coletivo de moradia. A nossos senhorios Raimundo e Raimundo Filho.

  • A Camila Onofre e Ana Bela pela presena e intensidade. E tambm a Silvia Helena, Rayssa Pereira, Nivia Marques, Felipe Canuto, Camila Maciel, Natlia de Andrade, Alana Alencar, Evilsio Oliveira, Glauce Borba, Andr Ramos, Gabriel Neto, Ridson Arajo, Gerson Ledesma e Wilson pelo apoio.

    A Sergiano e Juracy pela reviso tcnica, bem como pela escuta e motivao.

    A Fabiana Alcntara pelo carinho, torcida e pacincia.

    A Cail (Casa de Apoio a Iniciativas Libertria) nas pessoas de Apolo e Mocinha pela gentileza e generosidade.

    A Andr Gonalves, Francisco Freire e Gleiciane pelo carinho e compreenso.

    A minha amada irm Benzinha Matos e minhas sobrinhas Thayanne e Thayn.

    Aos meus amados Irmos Antonio Cludio, Joo Domingues e Paulo Jorge.

    A Madalena Gadelha pela fora e dedicao.

    A minha filha Emely Matos pela energia, esforo e inspirao.

    A toda comunidade escolar da EEFM Grande Bom Jardim.

    A esses vo meus sinceros sentimentos de gratido.

    Dos eventuais mritos deste trabalho compartilham todos, mas os pecados so apenas meus.

  • A educao assim o ponto em que se decide se se ama suficientemente o mundo para assumir responsabilidade por ele e, mais ainda, para o salvar da runa que seria inevitvel sem a renovao, sem a chegada dos novos e dos jovens. A educao tambm o lugar em que se decide se se amam suficientemente as nossas crianas para no as expulsar do nosso mundo deixando-as entregues a si prprias, para no lhes retirar a possibilidade de realizar qualquer coisa de novo, qualquer coisa que no tnhamos previsto, para, ao invs, antecipadamente as preparar para a tarefa de renovao de um mundo comum. (Hannah Arendt)

  • RESUMO

    Trata-se de um estudo sobre prticas informais na escola pblica brasileira, orientado pela teoria do Senso Prtico, de Pierre Bourdieu (2009), pautada na ideia de que lgica social da ao orienta-se por princpios ordenadores, por estruturas estruturantes, no sendo esta um produto nem consciente, nem inconsciente plenamente. Portanto, analisar o cotidiano escolar, significa buscar compreender por quais princpios ordenadores aquele universo especfico rege-se. Tendo por objetivo investigar a relao entre Educao e prticas informais, a pesquisa teve por campo uma instituio pblica de Ensino Fundamental e Mdio, localizada na periferia do municpio de Fortaleza, sendo seu nome preservado para fins deste trabalho cientifico. Neste vis, todos agentes da comunidade escolar gestores, professores, servidores e alunos, so sujeitos desta investigao, que parte das seguintes questes: quais as implicaes das prticas informais no cotidiano de uma escola pblica? Qual o lugar do formal e do informal no debate sobre o carter do brasileiro? Por que prticas informais e no jeito, jeitinho ou jeito? Qual a relao entre Educao e informalidade? Em que contexto histrico e socioeconmico a escola se localiza? Qual a relao entre o entorno, a escola e as prticas informais? O que so prticas informais e qual a sua relao com o conceito de habitus? Em suma: Qual o lugar das prticas informais num instituio formal de ensino pblico brasileiro? A investigao do cotidiano da instituio e de seus agentes indicou uma dependncia crnica de estratgias informais para garantir o funcionamento institucional (administrativo) da escola, bem como de suas atividades ordinrias: as aulas, as atividades culturais, esportivas, as feiras de cincia, aulas de campo. O trabalho, avalia que as prticas informais operam como habitus (2009), uma instituio difusa (DOUGLAS,1998) que ora garante os rituais (MACLAREN,1992) da instituio escolar, ora funcionam como cultura contra-escolar (WILLIS, 1991). A pesquisa foi financiada com recursos pblicos, via CNPq.

    Palavras-chave: Educao. Prticas informais. Informalidade. Habitus.

  • ABSTRACT

    This is a study of informal practices in Brazilian public schools, based on Pierre Bourdieus Theory of Practice (2009), which proposes that the social logic is guided by ordination principles, structuring structures, neither a full conscious product nor an unconscious one. Therefore, analyzing the everyday school means trying to comprehend which are the ordination principles that rule this specific universe. Aiming to investigate the relation between Education and informal practices, this research had as a field a public school of primary and secondary education on the periphery of Fortaleza having in mind the preservation of the institution, its name was omitted in this work. This way, all the agents of school community like directors, teachers, employees and students are subjects in the present investigation, which core is composed by the following questions: Which are the implications of the informal practices on the everyday of a public school? Which is the place of formal and informal on the debate about the Brazilian character? Why informal practices and not jeito, jeitinho or jeito? Which is the relation between Education and informality? Which are the historical, social and economical contexts of the mentioned school? Which is the relation between the surrounding of this institution and the informal practices? What informal practices are and which is their relation with the habitus concept? In sum: Which is the place of the informal practices in a formal institution of public education in Brazil? The investigation of the everyday in the referred school indicated a chronic dependence of informal strategies in order to guarantee the institutional functioning (administration) as well as the ordinary activities, namely: the classes, the cultural and sportive activities, the science fairs, the outdoor classes etc. The present work proposes that the informal practices operate as habitus (2009), it means, a diffuse institution (DOUGLAS,1998) which works both in order to guarantee the rituals (MACLAREN,1992) of the school and to function as a culture against it (WILLIS, 1991). The research was financed by public resources through CNPq.

    Keywords: Education. Informal practices. Informality. Habitus.

  • LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    ABC Projeto Aprender, Brincar e Crescer

    ABVM Associao Beneficente Vida Melhor

    APEOC Sindicato dos Servidores Pblicos Lotados nas Secretarias de Educao e de Cultura do Estado do Cear e nas Secretarias ou Departamentos de Educao e/ou Cultura dos Municpios do Cear

    BJ Bom Jardim

    CAPES AD Centro de Ateno Psicossocial lcool e Drogas

    CCBJ Centro Cultural Bom Jardim

    CCSMPSC Conselho Comunitrio dos Moradores do Parque Santa Ceclia

    CDVHS Centro de Defesa da Vida Herbert de Souza

    CEB Cmara de Educao

    CEDECA Centro de Defesa da Criana e do Adolescente

    CESPE Centro de Seleo e de Promoo de Eventos Universidade de Braslia

    CNE Conselho Nacional de Educao

    CNPJ Cadastro Nacional da Pessoa Jurdica

    CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico

    COMDICA Comisso de Educao da Cmara Municipal de Fortaleza

  • COVIO Laboratrio de Estudos da Conflitualidade

    CRAS Centro de Referencia de Assistncia Social

    EEFM Escola de Ensino Fundamental e Mdio

    FACED Faculdade de Educao

    FUDEB O Fundo de Manuteno e Desenvolvimento da Educao Bsica e de Valorizao dos Profissionais da Educao

    GBJ Grande Bom Jardim

    GPDU Gesto Pblica e Desenvolvimento Urbano (GPDU)

    IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica

    IDEB ndice de Desenvolvimento da Educao Brasileira

    INEP Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Ansio Teixeira

    IPECE Instituto de Pesquisa e Estratgia Econmica do Cear

    LABVIDA Laboratrio de Direitos Humanos, Cidadania e tica

    LDB Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional

    LEV Laboratrio de Estudos da Violncia

    MEC Ministrio da Educao e Cultura

    MSMCBJ Movimento de Sade Mental Comunitria do Bom Jardim

    NSE Nvel socioeconmico

    OAB Ordem dos Advogados do Brasil

    ONG Organizao No Governamental

    PRONASCI Programa Nacional de Segurana Pblica com Cidadania

  • PSB Proteo Social Bsica

    RAC Rede de Arte e Cultura do Bom Jardim

    RDLIS Rede de Desenvolvimento Sustentvel do Grande Bom Jardim

    RREAJAN Rede de Articulao do Jangurussu e Ancuri

    SEDUC Secretaria de Educao

    SER Secretaria Regional

    SINDIUTE Sindicato nico dos Trabalhadores em Educao

    SME Secretaria Municipal de Educao

    SPAECE Sistema Permanente de Avaliao da Educao Bsica do Cear

    SSPDS Secretaria de Segurana Pblica e Defesa Social

    TAF Tempo de Avanar do Ensino Fundamental

    TAM Tempo de Avanar do Ensino Mdio

    UBES Unidade Bsica de Sade

    UECE Universidade Estadual do Cear

    UFC Universidade Federal Cear

  • SUMRIO

    1. INTRODUO: MATIZANDO CONEXES E DESCONTINUIDADES DO ITINERRIO DE PESQUISA .................................................................................... 14

    2. A GNESE DE UM OBJETO ................................................................................ 25

    2.1. A sociologia boudieusiana: mtodo, rigor e heterodoxia ........................ 25

    2.2. O grupo de estudos e pesquisas: Negritude e Cearensidade Identidades tnicas e relaes raciais no Cear .............................................. 34

    2.3. O grupo de estudos sobre instituies do ensino pblico e a ps-graduao na rea da educao brasileira ....................................................... 36

    2.4. Relato de experincia: uma reflexo sobre docncia e informalidade ... 38

    2.5. Relato de experincia: docncia e vinculo formal .................................... 40

    3. A EDUCAO, A CULTURA BRASILEIRA E O DEBATE SOBRE FORMALIDADE E INFORMALIDADE...................................................................... 46

    3.1. A tradio ideolgica da cultura brasileira: liberalismo, teoria emocional da ao e economismo ....................................................................................... 46

    3.2. Uma breve anlise de jeito, jeitinho e jeito .............................................. 50

    3.3. Informalidade e educao: formal, informal e no-formal ....................... 58

    4. O CAMPO: OS NMEROS, A ESCCOLA, O HABITUS E A VIOLNCIA SIMBLICA .............................................................................................................. 65

    4.1. Onde fica a escola?: histria e dados estatsticos do Grande Bom Jardim (GBJ) ........................................................................................................ 65

    4.2. Dramas, ilicitudes e nmeros invisveis .................................................... 74

  • 4.3. Os dados oficiais da escola ou a violncia os nmeros .......................... 80

    4.4. E. E. F. M. Grande Bom Jardim: trajetria, desafios e gestes ................ 86

    4.5. Maria Vitalina Brasil: servidora pblica voluntria, temporria e terceirizada .......................................................................................................... 91

    4.6. Rituais e habitus na escola ......................................................................... 92

    4.7. Instituio, m-f e habitus: o estatuto das prticas informais ............... 97

    5. CONSIDERAES FINAIS ................................................................................ 109

    REFERNCIAS ....................................................................................................... 114

    ANEXO A MAPA DAS REGIONAIS ADMINITRATIVAS DA PREFEITURA DO MUNCIPIO DE FORTALEZA ................................................................................. 123

    ANEXO B PACTO DE RESPONSABILIDADE SOCIAL E PEDAGGICA PELOS ESTUDANTES DA REDE PBLICA DE FORTALEZA ......................................... 124

    ANEXO C OFCIO DO CONSELHO DE EDUCAO - CMARA DE EDUCAO BSICA................................................................................................................... 129

    ANEXO D PARECER DO CNE/CEB N 21/2012 ................................................ 130

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    1. INTRODUO: MATIZANDO CONEXES E DESCONTINUIDADES DO ITINERRIO DE PESQUISA

    Este trabalho um estudo sobre a escola pblica brasileira. Trata-se de uma etnografia orientada pela teoria do Senso Prtico (2009), proposta pelo socilogo Pierre Bourdieu, tendo por foco as prticas informais no cotidiano de uma instituio de Ensino Fundamental e Mdio da Rede Estadual de Ensino Pblica do Cear, localizada numa rea da periferia do municpio de Fortaleza, conhecida pelos altos ndices de violncia e pobreza.

    A gnese deste objeto de pesquisa esta vinculada aos debates no grupo de estudos Antropologia da Educao, coordenado pela professora Bernadete Beserra.1 Foram as leituras e questes suscitadas ali, bem como as dificuldades enfrentadas em sala de aula, que me levaram a refletir detidamente sobre as implicaes das prticas informais no cotidiano de uma instituio escolar.

    A oportunidade de pensar sistematicamente estas questes ocorreu a convite da j referida professora, com quem j havia trabalhado, como bolsista de Iniciao Cientfica, no projeto de pesquisa O negro e o debate sobre o sistema de cotas no Cear2. Em princpio o grupo de estudos de Antropologia da Educao se concentraria na anlise de escolas pblicas de todos os nveis de ensino. Pouco a pouco, porm, passou a concentrar a sua ateno no estudo das instituies de Ensino Pblico Superior a partir de uma reflexo etnogrfica, profunda, sobre o caso da prpria Faculdade de Educao-FACED/UFC.

    Apesar da mudana no foco de interesse do grupo, eu e outros alunos que j estvamos desenvolvendo estudos na Educao Bsica assim 1 O Grupo de Pesquisa Antropologia da Educao: Discursos e Prticas da Diferena na

    Escola Pblica Brasileira Ps LDB 1996 formado por pesquisadores e estudantes de graduao e ps-graduao interessados em compreender o impacto dos discursos e prticas da diferena na cultura escolar a partir das transformaes desencadeadas pela aplicao da Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional de 1996. O grupo coordenado por Bernadete Beserra e Rmi Lavergne. 2 O grupo Negritude e Cearensidade: Identidades tnicas e relaes raciais no Cear,

    liderado pela professora Bernadete Beserra desenvolve estudos histricos e antropolgicos sobre a construo da identidade cearense e das formas como esta repercute nas relaes sociais hoje. Alguns trabalhos produzidos pelo grupo: BESERRA (2012, 2011, 2006, 2003, 2001); MARIZ, (2012, 2011); MATOS (2011, 2009); NASCIMENTO (2011); JESUS, D. & MATOS, D. D. (2010, 2009); OLIVEIRA (2011).

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    continuamos. Permaneci, portanto, com o objetivo inicial de realizar um estudo sobre a escola pblica, a partir da minha prpria experincia docente, mas de acordo com a perspectiva de investigao proposta pelo grupo para o ensino superior. Minha deciso deve-se, em grande parte, leitura sugerida, ainda no primeiro momento, de Aprendendo a ser trabalhador de Paul Willis (1991), uma etnografia escolar realizada numa escola pblica inglesa, entre 1972 e 1975. O trabalho descreve a tenso entre a cultura escolar e a resistncia a esta expressa, no interior da escola, por um grupo informal, os rapazes, estudantes, jovens do sexo masculino, filhos da classe operria.

    A leitura de Willis ajudou-me a estranhar prticas escolares que eu j havia naturalizado. Iniciei observando a relao entre a minha prpria trajetria docente e a informalidade. A carreira docente poderia se pensar marcada pela formalidade, envolvida em trmites burocrticos: mudana de escola mediante transferncia, contratao, aprovao em concurso, etc. Mas refletindo sobre ela, a partir da minha prpria trajetria, tive que reconhecer o contrrio. O meu recente ingresso no magistrio poderia ser uma das explicaes para que no houvesse surgido at ali oportunidades de vnculos formais de emprego, em funo da inexperincia naquele mercado de trabalho.

    Mas, em dilogo com diversos colegas de trabalho em escola pblicas e privadas de educao bsica sobre suas trajetrias docentes, constatei que trabalhar sem vnculo formal era uma experincia comum aos professores em exerccio na rede privada ou pblica, iniciantes ou no, situao na qual o exerccio da docncia submetido, por vias informais, condio de subemprego: desvalorizao salarial, superexplorao e instabilidade financeira e emocional. A constatao de que as relaes de trabalho no universo da educao escolar no eram imunes precariedade das relaes de trabalho em geral no surpreendia. Mas no podia dizer mesmo em relao ao seu grau de incidncia.

    A leitura de Aprendendo a ser trabalhador(1991), de Paul Willis, foi decisiva para pensar o presente trabalho. Na sua etnografia, Willis descreve a tenso entre a cultura escolar e a resistncia de um grupo de estudantes. Uma resistncia que se expressa na pilhria, na agressividade, no machismo, no racismo, na homofobia e na xenofobia. No mundo dos rapazes, o trabalho

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    valorizado em detrimento da escola porque visto como masculino, provedor, associado afetivamente figura do pai, gerando uma identificao grupal, que tende a resistir aos valores escolares, visto como femininos, abstratos, burocrticos e formais. Deste modo, acaba-se constituindo uma cultura contraescolar que produz e reproduz clivagens impeditivas de uma solidariedade de classe mais ampla.

    A leitura de Willis levou-me, pois, a observar o contraste entre as prticas e os discursos discentes. Concentrei esforos na anlise das percepes dos alunos sobre famlia, comunidade e escola. Observei durante as aulas e em outros espaos da escola e tambm apliquei questionrios, no decorrer das aulas, cujas respostas permitiam traar um perfil, ainda que superficial, das turmas em relao s perspectivas de vida dentro e fora da escola. A anlise do material coletado permitiu-me identificar uma frequncia relevante de respostas que reverenciavam a instituio escolar. O que esta incidncia significaria? Seriam apenas respostas mecnicas, mais uma tarefa escolar? Os alunos foram estimulados a escrever o que realmente pensavam. Insisti para que ficassem vontade para serem crticos, pois no seriam identificados, mas mesmo assim suas percepes denotaram em geral uma respeitosa relao com a escola.

    Os contrastes destas percepes com o conjunto de atitudes, gestos e comportamentos observados nos momentos de aula, levaram-me leitura de trabalhos que abordassem tambm modos de reverncia escola. A busca levou-me a estudos sobre a escola e seus rituais. Mas a noo de ritual parecia-me, num primeiro momento, incompatvel para analisar uma instituio moderna, porque se associava a modos tradicionais de cultura. Sendo os ritos da modernidade des-sacralizados pela razo, seria adequado pensar a escola como uma instituio atravessada pelas tenses entre modernidade e tradio? Esta era uma questo premente, uma vez que tendia a pensar a aula como o ritual central da escola e, neste caso, o discurso de reverncia dos alunos escola estava em flagrante contradio com as suas prticas que, a meu ver, completamente desvalorizavam a aula3.

    3 Nesta ocasio me detive num vo esforo de encontrar definies para aula, queria antes de

    qualific-la, verificar uma possvel conceituao, categorizao, mas no encontrei nenhum

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    O trabalho de Peter McLaren, Rituais na Escola(1992), foi muito importante nesse sentido porque apresenta uma reviso dos estudos clssicos, que teorizaram e/ou recorreram categoria de rito ou ritual. A leitura deste trabalho estimulante proporcionou a anlise dos limites de uma abordagem ancorada estritamente na noo de ritual 4. Os trabalhos de McLaren e de Willis forneceram elementos para me concentrar na dimenso das relaes informais na escola, domnio comum, a ambos os trabalhos, mas, em si, objeto de nenhum deles. Em todo caso, suas respectivas pesquisas me inspiraram enormemente e sugeriram-me o campo e o objeto de anlise.

    Enquanto, de um lado, buscava elementos tericos para refletir sobre os achados empricos na minha escola, os debates no grupo de estudos tenderam a se concentrar na anlise das relaes de poder nas instituies de Ensino Pblico Superior, sobretudo a partir do que observvamos na nossa experincia nesta Faculdade de Educao. Na minha perspectiva, hipottica, eram incalculveis os prejuzos legados pelas prticas informais a esta instituio in totum. Prejuzos produzidos pelo predomnio de alianas constitudas a partir de relaes pessoais que, privadamente, influenciam na distribuio de oportunidades acadmicas e outros recursos da instituio. A dimenso informal era, a meu ver, o elemento comum a todas as pesquisas discutidas no grupo de estudos e a sua compreenso mais profunda demandava uma incurso sobre os debates em torno da cultura e educao brasileiras.

    Nesse sentido, privilegiei a leitura e reviso de clssicos da historiografia sobre o carter, formal e informal, do brasileiro na relao com o pblico e o privado. A noo de jeitinho, tributria aos cnones estudados, emergia como ideia que poderia contemplar a anlise das implicaes das relaes informais e de poder no universo institucional da escola. O que se esboava era uma investigao que articularia a noo de jeitinho, ancorada no

    trabalho desta ordem. Cito o caso, no por mera curiosidade, mas pelo espanto, em no haver nenhuma teorizao estabelecida sobre uma noo to corrente, sendo apenas uma noo intuitiva, um impensado, diria M. Heidegger. 4 Roberto DaMatta, por ocasio do seu Malandros, Carnavais e Heris tambm fez um balano

    de trabalhos sobre rituais, ponderando que, a rigor, o que se pode afirmar que rituais so momentos de intensificao. Pensando assim, a aula poderia ser pensada em termos dum ritual, momento de intensificao do conhecimento. Contudo, a dinmica em sala de aula aconselhava pensar as limitaes de circunscrever a pesquisa ideia de ritual.

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    conceito de habitus, e escola pblica. Mas a leitura de A Ral brasileira(2009), de Jess de Souza, levou-me a rever tal proposta em face do desmonte dos pressupostos epistemolgicos, que claramente explicitou o comprometimento ideolgico dos conceitos de personalismo, homem cordial e patrimonialismo aos quais a noo de jeitinho se filia e atualiza.

    Paralelamente s leituras mencionadas, havia o estudo sistemtico da obra do socilogo Pierre Bourdieu, trabalho bem conhecidos no mundo e no Brasil. Destaco para fins desta pesquisa: A Reproduo(2010) 5, no qual o socilogo formula o conceito de violncia simblica para designar a ao da Instituio Escolar, que legitima uma desigualdade que lhe precede, ao selecionar os j pr-selecionados, conferindo-lhes ttulos, que lhes daro vantagens simblicas, referendando, assim, a clivagem preexistente entre as posies sociais, nunca admitidas, no decorrer do processo escolar. Estudei, especialmente, sua teoria dos trs estados do capital cultural: incorporado, objetivado e institucionalizado; e a obra Senso Prtico, na qual apresenta exaustivamente sua teoria a respeito das lgicas de ao a partir do seu conceito de habitus, um repertrio pr-reflexivo, um banco de predisposies, operando com uma memria antecipatria, seletiva, que orienta a ao dos agentes, despendendo menor gasto de energia, em suma, uma pr-tendncia manifesta na ao dos agentes sociais.

    A teoria do senso prtico permite apreender a dinmica cotidiana da escola a partir de suas prticas, entrevendo a sua lgica de ordenamento. A etnografia amparada na teoria do senso prtico oferece a vantagem epistemolgica de uma descrio densa do campo, dando visibilidade a fenmenos cuja organicidade seria imperceptvel a perspectivas reducionistas: economicismos ou culturalismos. Um rgido controle epistmico, que no se confunde com ecletismo, mas que tem abertura para a criatividade analtica.

    5 Teoria por vezes taxada de reprodutivista por apresentar uma viso fatalista da escola,

    desconsiderando contextos em que se potencialize uma atitude reflexiva que desmascare a prpria violncia simblica que comete. Esta uma percepo empobrecedora do contributo da sociologia bourdiueseana ao campo da educao, haja vista a sua vasta produo posterior, que torna claro que, longe de ser fatalista, reflexiva e situada no social. No sendo algo a priori, a reproduo , portanto uma tendncia da instituio escolar por sua estruturao e dinmica.

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    As instituies no pensam ou so mal-intencionadas? As ideias de Mary Douglas (1998) trouxeram um alento em duas dimenses: terica e metodolgica. Em termos tericos, sua releitura de Durkheim-Fleck, em Como as Instituies Pensam, viabilizou a compreenso da relao entre instituio, cognio e indivduos. Para Douglas, as instituies so constitutivas da formao cognoscvel dos indivduos. Contribuio fundamental para lidar com as dificuldades no campo de pesquisa, sobretudo, no que tange a retratao dos interlocutores, permitindo descrever as aes, mas sem personific-las, considerando, antes sim, o dinamismo entre as instituies e indivduos.

    A partir do terceiro captulo, o campo passa a ser apresentado em camadas. Assim, situa-se a regio em que a escola est inserida, o Grande Bom Jardim (GBJ), a rea mais populosa da cidade, com um grande contingente populacional jovem e um histrico de ausncia ou presena precria e/ou ineficiente de instituies do Estado na oferta de servios pblicos. Esta situao parece ter gerado, em reao, iniciativas da sociedade civil organizada e, por isto, entidades diversas atuam no lugar. Sendo a pauta comum, a reivindicao da presena qualificada do poder pblico na melhoria dos ndices sociais do lugar a partir de equipamentos pblicos voltados para este fim. Persiste, localmente, altos ndices de violncia, misria e pobreza.

    Este contexto sugere o predomnio de regras informais, no cotidiano do lugar, em face da inoperncia das instituies do Estado em oferecer condies efetivas de ingresso na cidadania, viabilizando as condies mnimas de desenvolvimento de uma sociabilidade local, assentada na formalidade, no respeito s leis, s regras institucionais, etiqueta social. Portanto, o territrio em que escola est situada concentra significativamente a ral, no sentido provocativo6, empregado por Jess de Sousa (2009).

    6 O processo de modernizao brasileiro constitui no apenas as novas classes sociais

    modernas que se apropriam diferencialmente dos capitais cultural e econmico. Ele constitui tambm uma classe inteira de indivduos, no s sem capital cultural nem econmico em qualquer medida significativa, mas desprovida, esse o aspecto fundamental, das precondies sociais, morais e culturais que permitem essa apropriao. essa classe social que designamos [...] de ral estrutural, no para ofender essas pessoas j to sofridas e humilhadas, mas para chamar a ateno, provocativamente, para nosso maior conflito social e poltico: o abandono social e poltico, consentido por toda a sociedade, de toda uma classe de indivduos precarizados que se reproduz h geraes enquanto tal. Essa classe social, que sempre esquecida enquanto uma classe com uma gnese e um destino comum, s percebida no debate pblico como um conjunto de indivduos carentes ou perigosos, tratados

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    O referencial terico que embasa este trabalho rejeita a dicotomia entre uma abordagem quantitativa e qualitativa. Isto possibilita alargamento dos limites desta abordagem, que se vale do recurso do contraste, da complementao e da sntese nesta pesquisa. Por isto, antes de adentrar os muros da escola propriamente apresentam-se os dados de avaliaes institucionais com o fim de expor ndices gerais e formais sobre a escola, bem como dados coletados no campo atravs de informaes prestadas pelos gestores, servidores e alunos da escola, em entrevistas semiestruturada, questionrios e conversas informais. O trabalho tem inspirao etnogrfica e lana mo de variados recursos metodolgicos: pesquisa e reviso bibliogrfica, apresentao e anlise de dados estatsticos, tendo por principais estratgias de campo as conversas informais e as entrevistas semiestruturadas. A condio de nativo permitiu uma observao do campo bastante ampla: em reunies, eventos, intervalos, aulas. E atravs de instrumentos, como: questionrios, anotaes, gravaes e dirios de campo. Todo este quadro tem o fim de permitir uma descrio densa e multifacetada do objeto.

    O trabalho apresentado em trs unidades: A primeira delas A gnese de um objeto apresenta a discusso terico metodolgica pelo qual se orientou a pesquisa, a sociologia bourdieusiana (BOURDIEU, 2002), a etnografia (MALINOWSKI, 1984), a noo de instituio (DOUGLAS, 1998), de nativo relativo (VIVEIROS DE CASTRO, 2002) num permanente dilogo com as questes surgidas em campo, particularmente, quanto a desnaturalizao deste.

    Agrega-se a esse dilogo um inventrio de fontes documentais e base de dados estatsticos, que articulados com o trabalho campo, desvelam camadas permitindo gradualmente visualizar com mais nitidez o objeto. A gnese deste por sinal na sequncia exposta atravs de relatos de experincia nos grupos de pesquisa, pois foi, nos debates no interior destes, que emergiu como questo a relao entre educao e informalidade. Nesta

    fragmentariamente por temas de discusso superficiais, dado que nunca chegam sequer a nomear o problema real, tais como violncia, segurana pblica, problema da escola pblica, carncia da sade pblica, combate fome etc (SOUZA, 2009, p.21).

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    conjuntura de debates sobre educao e instituies de ensino pblico, leituras sobre grupos informais na escola (WILLIS, 1991), estudos sobre a teoria do Senso Prtico (2009) combinada a minhas angstias na carreira docente, marcada por informalidade, orientaram no sentido de um estudo que articulava escola pblica, prticas informais e habitus (BOURDIEU, 2009) no contexto de minha aprovao para o mestrado em Educao Brasileira.

    Na segunda unidade A cultura brasileira e o debate sobre formalidade e informalidade reviso, via Jess de Souza (2009), a historiografia brasileira no que tange o debate sobre o carter formal e informal do brasileiro (FAORO,1985), (FREYRE, 1998) e (HOLANDA, 1995).Nesse sentido considera essa produo uma tradio comprometida epistemologicamente, tendo por suporte a teoria emocional da ao e o economicismo alicerces tericos dos conceitos de personalismo e patrimonialismo, de inspirao weberiana (SOUZA, 1998), (VIANNA, 1999), sendo ideologicamente vinculada ao liberalismo, que se apresenta com um verniz crtico, mas que diviniza o mercado e demoniza o Estado, sendo hegemnica no campo acadmico e no senso comum, infundido uma percepo simplista da sociedade brasileira, cujas clivagens se dariam apenas em funo do acesso diferencial renda e determinadas relaes pessoais.

    Na mesma linha analisa-se a bibliografia sobre as noes de jeito, jeitinho e jeito, herdeiras desta tradio (BARBOSA, 2006), (DAMATTA, 1986 e 1990), (REGA 2000). Reconhecendo que a noo de jeito (OLIVEIRA, 2012) ao menos introduz uma dimenso classista, embora limitada, ao debate sobre a questo do carter nacional. Historiciza-se ainda o conceito de informalidade constatando sua provenincia antropolgica e seu histrico emprego na rea da economia (CALIXTRE, 2011), (HART, 1973), (ILO, 1972). Situa-se o emprego da terminologia formal, no formal e informal no campo da educao (GOHN, 2006), em geral sendo modos de classificao da educao sendo a formal, a que se oferece em instituies prprias a esses fins, tendo regras, normas, currculo, contedos determinados (escolas, universidade, institutos). A no formal, a que se oferece em outros espaos museus, ONGs, sindicatos, movimentos sociais, associaes. A informal, sendo a prpria socializao, ocorrendo de forma difusa em toda interao social.

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    Recupera-se ainda, o importante trabalho de Paul Willis Aprendendo a ser trabalhador (1991), no qual realizou uma pesquisa sobre um grupo informal de jovens estudantes numa escola publica, demonstrando como fatores extras escolares (patriarcado, machismo, racismo, xenofobia) se tornam no contexto escolar numa resistncia, que toma a forma duma contracultura escolar. Assim, os filhos da classe trabalhadora se autoconduzem e se reproduzem segmentadamente, pois antecipam, ainda no perodo de vida escolar, a lgica da diviso social do trabalho: braal (rapazes) e intelectual (c-d-efs). Esta unidade situa a relao entre educao e informalidade em dois planos: o da historiografia e o da educao brasileira, permitindo a compreender a opo pelo uso da categoria, prticas informais. A reviso historiogrfica foi uma demanda para pensar a questo formal e informal nas instituies pblicas brasileiras e foi sugerida pela minha hiptese do predomnio de alianas duradouras ou eventuais com base em relaes interpessoais, no contexto do grupo de pesquisa sobre a Faculdade de Educao-Faced/UFC.

    Na terceira O campo: os nmeros, a escola, o habitus e a violncia simblica apresenta o campo investigado de forma multifacetada, mosaicos, primeiramente a regio e rea em que a escola se situa elencando dados estatsticos socioeconmicos do lugar(IPECE, 2013), (GPDU, 2004), (LABVIDA-UECE, LEV-UFC, COVIO-UECE, 2011) e historicizando sua formao, sua dinmica quanto ocupao, presena do Estado, atuao de movimentos sociais organizados e ndices criminais. Os impactos deste em torno dentro da escola, quanto ilicitude, violncia, e baixa escolaridade das famlias. Na sequncia, os nmeros oficiais da escola em avaliaes externas IDEB, SPAECE. Dados fornecidos pela prpria escola, quanto dinmica de aprovao, reprovao e abandono por perodos e turnos. Em seguida, passa-se histria da escola a partir das gestes, das mudanas de prdio, da luta para escola continuar existindo.

    Perspectiva-se a histria da escola a partir de um pequeno corte biogrfico de uma funcionria que esteve na escola desde a sua fundao em situaes diversas, trajetria nuanada por acordos institucionais informais envolvendo a contratao de servidores terceirizados. Os nmeros e a histria

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    no so ilustraes a trama, a qual a anlise se detm por final, acrescendo ainda documentao s consideraes que faz. Debatendo sobre rituais, instituio, m-f institucional (FREITAS, 2009), habitus e o estatuto das prticas informais na escola pblica e violncia simblica (BOURDIEU, 2010); perspectivando que as prticas informais so uma instituio difusa (DOUGLAS, 1998), um habitus predominante na escola de ensino pblica brasileira. O que, em hiptese, produz, circunstancialmente, uma violncia simblica de um tipo radical.

    Para fins desta pesquisa todos os agentes entrevistados, observados e/ou citados em documentos tero seus nomes verdadeiros mantidos em sigilo, bem como o nome da instituio investigada, a essa sendo atribudo o nome fictcio de EEFM Grande Bom Jardim, em referncia a rea em que est localizada. Sendo uma das escolas pblicas em que fui professor durante o perodo de pesquisa, o estudo parte do reconhecimento de uma relativa autonomia da instituio escolar. Instituio entendida em termos de corpo burocrtico e de um campo com seu habitus correspondente.

    Um estudo dessa ordem localiza e apresenta o espao e os agentes a partir das suas prticas, focalizando de que modo do sentidos e significados aos rituais cotidianos da escola, refletindo sobre o que os orienta e o modo como esses posicionam suas vidas na escola, sabendo que subjazem s falas e aes as condies de possibilidades de escolha dadas nos seus habitus (BOURDIEU, 2010). Orientei-me basicamente pela seguinte questo: quais as implicaes das prticas informais no cotidiano de uma escola pblica? Qual o lugar do formal e do informal no debate sobre o carter do brasileiro?Por que prticas informais e no jeito, jeitinho ou jeito? Qual a relao entre Educao e informalidade? Em que contexto histrico e socioeconmico a escola se localiza? Qual a relao entre o entorno, a escola e as prticas informais? O que so prticas informais e qual a sua relao com o conceito de habitus? Em suma: Qual o lugar das prticas informais num instituio formal de ensino pblico brasileira?

    Meu propsito com esse estudo contribuir para a compreenso de que a instituio escolar pblica deve atentar para o aspecto informal das prticas de todos os agentes envolvidos na promoo de uma educao

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    formal. Deve levar em considerao que as polticas pblicas universalistas para a Educao no esbarram apenas nos limites objetivos de efetivao (infraestrutura fsica, equipamentos) e na resistncia cultural local, mas, na difuso do sentido institucional (DOUGLAS, 1998), um habitus que transversalmente est nos corpos administrativos e em todos os agentes.

    Temos, portanto, uma pesquisa cuja temtica um estudo etnografico das dinmicas das instituies escolares, em sintonia com o Eixo de Estudos em Antropologia da Educao, abrigado na Linha de Pesquisa Filosofia e Sociologia da Educao deste Programa de Ps-graduao. A pesquisa foi financiada com recursos pblicos, atravs de bolsa de estudos do CNPq.

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    2. A GNESE DE UM OBJETO O objetivo desta unidade apresentar as bases tericas e os

    recursos metodolgicos utilizados no decorrer da pesquisa. Discute as dificuldades que surgiram no campo de investigao e as estratgias para enfrent-las. No segundo momento, lista fontes e bases de dados que permitiram o delineamento do campo investigado e, por consequncia, o objeto. Apresenta o espao em que se desenvolveu e o cronograma das etapas da pesquisa. Na sequncia, passa-se aos relatos de experincia que permitem entrever a gnese da emergncia do objeto, no contexto de grupos de estudos, da minha carreira docente e do meu ingresso na ps-graduao.

    2.1 A sociologia bourdieuseana: mtodo, rigor e heterodoxia.

    O presente trabalho estuda as prticas informais na instituio escolar. A sociologia reflexiva, proposta pelo socilogo Pierre Bourdieu, serviu de referncia terica para analisar os problemas suscitados por uma pesquisa que investiga o cotidiano escolar a partir das prticas de seus agentes. Neste sentido, preciso salientar a importncia dos conceitos desenvolvidos por Bourdieu para esta investigao, especialmente em Senso Prtico (2009), no qual define o conceito de habitus do seguinte modo,

    os condicionamentos associados a uma classe particular de condies de existncia produzem habitus, sistemas de disposies durveis e transponveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, ou seja, como princpios geradores e organizadores de prticas e de representaes que podem ser objetivamente adaptadas ao seu objetivo sem supor a inteno consciente de fins e o domnio expresso das operaes necessrias para alcan-los, objetivamente reguladas e regulares sem em nada ser o produto da obedincia a algumas regras e, sendo tudo isso coletivamente orquestradas sem ser o produto da ao organizadora de um maestro (BOURDIEU, 2009, p.87).

    Com o conceito de habitus Bourdieu propunha que a arbitrariedade da ao social fundamenta-se numa lgica e esta tem que ser buscada nas predisposies que orientam as prticas dos agentes, de modo que a ao no acontece aleatoriamente, sendo uma expresso totalizante de um conjunto particular de condicionantes, no podendo ser reduzida a uma nica dimenso ou ordem de fator.

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    A teoria do Senso Prtico (2009) fundamenta-se numa anlise que revisa e debate as insuficincias tericas para o conhecimento sociolgico de tradies intelectuais bem sedimentadas: a sociologia funcionalista Durkheimiana, o Weberianismo, o estruturalismo Lvi-Strausseano, o materialismo histrico, a lingustica de Saussure e o existencialismo de Sartre. Estas tradies percebem a realidade em planos distintos: o objetivo e o subjetivo, elegendo uma ou outra dimenso de uma mesma realidade, residindo ai a insuficincia de sua anlises para a sociologia.

    Para Pierre Bourdieu (2009), essas tradies apresentam uma tica enviesada, pois preocupadas, desde a partida, mais em justificar se o primado que constitui a realidade : (I) de uma ordem fixadora, material, estrutural, objetiva ou (II) se emerge de processos, dialticas, subjetivismos, linguagem e cultura. Ele rejeita a dicotomia entre fatores objetivos e subjetivos, trata os fenmenos sociais como lgicas dinmicas, simultaneamente, semi-reflexa e semi-reflexiva, uma instncia em que se conjuga estruturao, processo, contradio, o habitus, essa dimenso totalizante e aparentemente catica que produz e expressa de modo ordenado a ao, que aparece aos olhos do ordinrio como: determinao, fortuidade ou escolha.

    A pretenso do pesquisador de que realiza uma descrio do real, o esquecimento de que realiza, autenticamente, uma descrio cientificamente orientada de um fenmeno que observa regido por pr-noes do campo de conhecimento a que se filia. O intelectualismo est inscrito no fato de introduzir no objeto a relao intelectual com o objeto, de substituir a relao prtica pela relao do objeto que do observado (BOURDIEU, 2009, p.57). Os problemas eleitos so de interesse epistemolgico do campo cientifico. O objeto um arbitrrio do campo cientfico sobre o campo pesquisado e no se deve negligenciar esta ordem na relao (Idem, ibidem). O pesquisador tem,

    (...) o estatuto de expectador, que se retira da situao para observ-la, implica uma ruptura epistemolgica, mas tambm social, que jamais governa de forma to sutil a atividade cientifica seno quando ela para de se mostrar como tal, conduzindo a uma teoria implcita da prtica que correlativa ao esquecimento das condies sociais de possibilidade da atividade cientfica (...) (BOURDIEU, 2009, pp.56-57).

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    Para o autor, a produo do conhecimento exige uma postura reflexiva, que passa por uma rigorosa vigilncia epistemolgica das teorias e mtodos de pesquisa. Nesse sentido, considera fundamental apresentar o processo de constituio do objeto, pois esse deve ser entendido dentro de sua lgica de construo. Isto significa no perder de vista que o pesquisador que elege as questes que so pertinentes a serem pensadas, orientado por teorias e mtodos de um campo de pesquisa dado.

    Na sua sociologia reflexiva, Bourdieu (2002) prope evitar zonas de impensados no processo de construo do conhecimento. Assim, a pesquisa deve estar situada em termos da constituio de um campo. O pesquisador precisa objetivar-se a fim de compreender que condies lhe permitiram constituir dado objeto, matizando o itinerrio da pesquisa. Isto possibilita a compreenso da epistemologia que viabilizou a inteligibilidade do seu objeto. Noutras palavras, preocupa-se sistematicamente em evitar a alienao do trabalho cientifico.

    A recusa de uma perspectiva restrita ao objetivismo ou subjetivismo se expressa nos mtodos. A sociologia bourdieuseana imanente e heterodoxa, vale-se do cruzamento dos mtodos e das tcnicas que com rigor possam acercar o objeto que, uma vez definido, autoriza avanar sobre ele, valendo-se de modos pertinentes e criativos de desvel-lo mais nitidamente:

    (...) a pesquisa uma coisa demasiado sria e demasiado difcil para se poder tomar a liberdade de confundir a rigidez, que o contrrio da inteligncia e da inveno, com o rigor, e se ficar privado deste ou daquele recurso entre os vrios que podem ser oferecidos pelo conjunto das tradies intelectuais da disciplina e das disciplinas vizinhas: etnologia, economia, histria. Apetecia-me dizer: proibido proibir ou Livrai-vos dos ces de guarda metodolgicos (BOURDIEU, 2002, p.26)7.

    A sociologia reflexiva implode o esquematismo dos manuais de metodologia com suas classificaes em abordagens qualitativa ou quantitativa. Deste modo, ao longo deste trabalho empreguei diferentes tcnica, de pesquisa, cada captulo ou seo corresponde a uma ou mais tcnicas utilizadas: a observao participante, a reviso bibliogrfica, a anlise de documentos e o levantamento de dados estatsticos: sociais, econmicos e 7 Cf. BOURDIEU, Pierre. Introduo a uma Sociologia Reflexiva. In: ________. O poder

    Simblico. Rio de 5.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002b. p.17-58.

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    educacionais, segundo uma ordem de disposio que, retirando camada aps camada, aproximam-se do objeto.

    Foi no Ciclo de Seminrios sobre Filosofias da Diferena, Antropologia e Educao8 que ocorreu a minha aproximao com a antropologia. Nessa oportunidade, travei meu primeiro contato com o clssico trabalho de Malinowski. Nessa ocasio, pude perceber que a antropologia a cincia, par excellence, do contexto, e que uma boa descrio, do campo, mais promissora que uma teoria in abstract. Trs princpios norteiam o trabalho etnogrfico, segundo Malinowski (1984): o primeiro relativo a uma autntica inteno cientifica, o que deve estar atrelado ao preparo terico; o segundo diz respeito s condies de trabalho que basicamente significa uma imerso duradora entre os nativos, evitando o contato com eventuais semelhantes (da mesma cultura que o pesquisador); o terceiro, utilizar as tcnicas e procedimentos de coleta adequados dos materiais empricos, sendo importante apresentar as circunstncias e os procedimentos utilizados para obter as informaes no campo.

    Lamentavelmente, onde a apresentao desinteressada dessa informao se torna talvez ainda mais necessria isto nem sempre tem sido devidamente explicitado e muitos autores limitam-se a apresentar os dados adquiridos, fazendo-os emergir, perante ns, a partir da mais completa obscuridade sem qualquer referncia aos processos utilizados para a sua aquisio. (MALINOWSKI, 1984, p.18).

    O trabalho de Malinoswki (1984) foi mais que um manual de consulta para a conduo desta pesquisa, sua sugestes nortearam constantemente meus passos diante dos desafios que se colocavam no campo, e foram muitos, em grande parte por que estava numa posio que o antroplogo desaconselhava, entre os meus pares. Ainda assim, suas orientaes serviram de guia pertinente para uma investigao em campo to familiar. Para Malinowski (1984),

    O tratamento cientfico difere do mero senso comum, em primeiro lugar, porque um investigador ampliar muito mais a perfeio e mincia do inqurito, de forma escrupulosamente metdica e sistemtica; em segundo lugar, porque a sua mente, treinada cientificamente, conduzir a pesquisa atravs de pistas realmente

    8 Palestra dada pela Profa. Bernadete Beserra. Atividade interna do eixo Filosofias da

    Diferena, Antropologia e Educao, da linha Filosofia e Sociologia da Educao FILOS. Realizada entre (14/09, 21/09 e 05/10).

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    pertinentes, a metas de importncia efectiva. De facto, o objetivo do treino cientifico dotar o investimento investigador emprico de um mapa mental pelo qual se possa orientar e definir seu caminho (idem, p.26).

    Sendo o meu lcus a escola em que trabalhava, uma preocupao me angustiava, quase paranoicamente, a de ser visto como um infiltrado, realizando uma espcie de investigao de corregedoria9, polcia da polcia, espcie de agente disfarado, transformando os colegas em informantes inocentes. Esses poderiam se ressentir ao se descobrirem enganados, ao lerem suas prprias declaraes apresentadas de um modo que no considerassem adequado. Essas impresses poderiam ter ganhado uma tonalidade forte, capaz de embotar a viso do campo, mas o socorro veio da teoria.

    J passou o tempo em que podamos tolerar relatos nos quais o nativo nos era apresentado como uma caricatura distorcida e infantil do ser humano (MALINOWSKI, 1984, pp.24-25). preciso ter em vista que os interlocutores no dominam as teorias que orientam o trabalho do pesquisador. Em sociologia (...), uma pesquisa sria leva a reunir o que o vulgo separa ou a distinguir o que o vulgo confunde [...] (BOURDIEU, 1999. p.25)10. Pesquisar o prprio ambiente profissional uma tarefa que impunha uma provao dupla, estar na condio de um nativo e de um pesquisador. A condio de pesquisador e nativo impe desnaturalizar o campo. preciso estranhar o familiar e familiarizar-se com o estranho, na designao de Viveiro de Castro(2002), nessa condio -se um nativo relativo.

    Estudar o prximo ou o Outro estudar a si mesmo, caso se entenda as culturas como expresses possveis da experincia humana. De modo que foi um exerccio de observao e reflexo profundo, no apenas escutar as palavras, mas observar as prticas, sem a pretenso de julgar, de afirmar a contradio, por ela mesma, mas perceber a lgica que subjaz, simultaneamente, discurso e ao; a dinmica que permite a mudana

    9 rgo da justia ou interno da policia, encarregado investigar condutas e atividades suspeitas

    de policiais, recrutando tambm policiais como seus agentes. 10

    Cf. BOURDIEU, P.; CHAMBOREDON, J. C; PASSERON, J. C. A profisso do socilogo: preliminares epistemolgicas. Petrpolis: Vozes, 1999.

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    contnua, sem sobressaltos, sem rupturas, sem a conscincia do processo (BOURDIEU, 2009).

    delicado descrever as aes das pessoas com as quais se convive diariamente, os pares. Isto obriga a ter cuidados e precaues, permanentemente. Ainda assim, motivam incompreenses levando a atitudes de rompimentos interpessoais que podem se manifestar sutilmente ou de forma explicita, agresses verbais ou at mesmo violncia fsica, podendo haver at, eventualmente, medidas judiciais. Este tipo de reao pressiona a tomar cuidados, sem os quais se pode incorrer em excessos, que podem comprometer o desenvolvimento e resultados da pesquisa, apresentando ou uma perspectiva de autocomiserao corporativista ou um criticismo deletrio.

    O trabalho de Mary Douglas (1998)11 proporcionou um pouco de alvio presso de estar escrevendo sobre pessoas com quem convivo todos os dias, permitindo mais clareza para no confundir e tornar pessoal o que social. Na concepo da antroploga, as instituies so constitutivas do indivduo. Deste modo, os indivduos seriam uma expresso particular de um conjunto de instituies que se expressam atravs dele. O indivduo seria, portanto, um feixe de instituies: algumas harmnicas entre si, outras contrastantes do que resultam, de modo particular, suas potencialidades de ao. Assim, a pesquisa no se pauta por investigar a ao desta ou daquela pessoa, mas em problematizar o sentido e o significado que um conjunto de prticas adquire naquele contexto e para tanto era preciso levar em conta que instituies operam ali (DOUGLAS, 1998).

    Obtive o apoio da escola e isso foi importante, mas no implicava em colaborao efetiva, cada informao demandava revisar os termos do acordo, pois o acesso no era irrestrito. Mas isto no assegurava simpatia e cooperao dos colegas professores, gestores, secretrios, coordenadores, 11

    O trabalho de Mary Douglas tendo por desafio pensar a relao entre instituies e cognio, revisa e atualiza o funcionalismo, amortizando o determinismo sociolgico, bem como discute as limitaes e potencialidades da teoria da escolha racional, ao articular Durkheim e Fleck. A concepo da antroploga oferece, num vis limitado, a possibilidade de ser apropriada por ideologias polticas conservadoras, ou ser confundida com incentivo ao pessimismo e ao conformismo. Contudo, deve-se ponderar que, sua perspectiva no determinista, apenas relativiza que a autonomia do individuo no plena, autoconduzida, quanto modernidade celebra o que permite redimensionar quais as possibilidades de uma ao livre. Ver: DOUGLAS, Mary. Como as Instituies Pensam. So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 1998.

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    terceirizados (pessoal da segurana, portaria, cozinha e limpeza) e alunos. Em todo momento possvel, esclareci os propsitos da pesquisa, a fim de que a disposio das pessoas em colaborar no fosse inviabilizada por desconfianas, especulaes, rumores e fofocas, que gerassem atitudes defensivas, evasivas, mesquinhas ou mesmo boicote aberto. A formalizao do apoio da gesto escolar legitimava a ao da pesquisa porque deixava explcita a razo da minha presena noutros horrios da escola fazendo perguntas, anotaes, entrevistas.

    A estratgia privilegiada para viabilizar a pesquisa de campo se confunde com o prprio objeto, grande parte das informaes sobre a escola foram coletadas de modo informal, seja nas atividades e debates em sala de aula, seja em conversas informais com membros da comunidade escolar, nas ocasies em que informaes ou dados pertinentes pesquisa surgiam, tratei de anunciar o meu interesse investigativo. A estratgia de atuar numa dimenso informal fazia sentido tendo em vista que suas expresses eram o alvo da investigao, sem perder de vista qual era o meu objetivo. Numa verso atualizada, do que Malinowski indicava:

    Tive de aprender a comportar-me e, at certo ponto, adquiri a sensibilidade" para o que entre os nativos se considerava boas e ms maneiras. Foi graas a isto, e capacidade em apreciar a sua companhia e partilhar alguns dos seus jogos e diverses, que me comecei a sentir em verdadeiro contacto com os nativos. E esta , certamente, a condio prvia para poder levar a cabo com xito o trabalho de campo (Malinowski, 1984, p.23).

    A coleta dos dados foi feita a partir dos seguintes instrumentos: registros de campo, questionrios e entrevistas semiestruturadas. Outras fontes tambm serviram pesquisa: documentos escolares oficiais, emitidos ou recebidos pela escola, tais como: declaraes, autorizaes; ofcios, circulares, convites, convocao, informes. Materiais referentes aos instrumentais didticos, tais como: o P.P.P. (Projeto Poltico Pedaggico), o regulamento de atividades como: Feira Cultural, planejamento mensal, o regulamento da escola. Bem como: cartazes de avisos, banners, faixas elaborados pelas instncias colegiadas da escola (ncleo gestor, unidade executora). ndices nas avaliaes como: IDEB (ndice de Desenvolvimento da Educao Brasileira),

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    SPAECE (Sistema Permanente de Avaliao da Educao Bsica do Cear), Censo escolar. Parte destes disponveis em sites na internet.

    O recurso internet permitiu o acesso sobretudo aos dados estatsticos oficiais e estudos sobre a regio em que a escola est localizada. As informaes colhidas esto disponveis nos respectivos endereos eletrnicos dos seguintes rgos e/ou instituies:

    1) Imprensa: O Povo. Encarte jornalstico "O Povo nos Bairros"- Bom Jardim 42 anos, publicado na data de 3 de dezembro de 1994. Jornais (online): Tema do Dia no O Povo. Nmero de assassinatos no Cear aumenta 24%. Jornal o Povo. 15/05/2012. O Povo nos Bairros. Histria do Bom Jardim marcada por muitas dificuldades Jornal O Povo de 16/05/2013. Revista (online) Segurana Cear: alta de 80% nos homicdios em uma dcada. Revista Veja 04/01/2012.

    2) rgos pblicos: Portal da Secretaria da Segurana Pblica e Ao social- SSPDS, Indicadores Criminais 2012. Instituto de Pesquisa e Estratgia Econmica do Cear IPECE. PERFIL DA JUVENTUDE EM FORTALEZA: aspectos socioeconmicos a partir dos dados do censo 2010. Perfil Municipal de Fortaleza. IPECE Informe - n 57 Abril de 2013. Ministrio Pblico da Justia- Programa Nacional de Segurana Pblica com Cidadania (Pronasci). Centro Drago do Mar de Arte e Cultura, o Centro Cultural Bom Jardim.

    3) Pesquisas acadmicas: pesquisas desenvolvidas por universidades: GPDU/CDVHS. Diagnstico Socio-Participativo do Grande Bom Jardim. Coord. Geovani Jac de Freitas e Joo Bosco dos Santos. Fortaleza. 2003. Mimeo. FREITAS, G. J. de ; BRASIL, Glaucria Mota ; BARREIRA, Csar ; ALMEIDA, R. O. .Cartografia da Criminalidade e da Violncia na Cidade de Fortaleza. RELATRIO DE PESQUISA. Fortaleza, 2010.

    4) Parceria entre rgos Pblicos Municipais e Universidades: Mapa da Criminalidade e da Violncia em Fortaleza- Perfil da SER V. Cartilha da Regional V. Laboratrio de Direitos Humanos, Cidadania e tica da Universidade Estadual do Cear-LabVida-UECE, Laboratrio de Estudos da Conflitualidade da Universidade Estadual do Cear-COVIO-UECE,

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    Laboratrio de Estudos da Violncia da Universidade Federal do Cear-LEV-UFC, 2011.

    5) Organizaes da sociedade civil: Conselho Comunitrio dos Moradores do Parque Santa Ceclia (CCSMPSC); Movimento de Sade Mental Comunitria do Bom Jardim (MSMCBJ); Centro de Defesa da Vida Herbert de Souza (CDVHS); Associao Beneficente Vida Melhor (ABVM ); Sindicato dos Servidores Pblicos Lotados nas Secretarias de Educao e de Cultura do Estado do Cear e nas Secretarias ou Departamentos de Educao e/ou Cultura dos Municpios do Cear (APEOC); Documento para subsidiar e orientar o Encontro de Compromissos entre os candidatos a prefeito de Fortaleza e as Redes DLIS e REAJAN. Rede de Desenvolvimento Sustentvel do Grande Bom Jardim (Re de DLIS) e Rede de Articulao do Jangurussu e Ancuri (REAJAN). Fortaleza, agosto de 2012 e da Arquidiocese de Fortaleza.

    A instituio escolhida para fins deste trabalho ter seu nome preservado, a fim de evitar problemas de ordem tica e profissional. A unidade de pesquisa uma escola pblica de ensino fundamental e mdio pertencente rede estadual de ensino, localizando-se numa regio perifrica da capital, Fortaleza, nos limites com dois outros municpios. Atribu escola um nome fictcio, numa referncia rea em que se localiza: EEFM Grande Bom Jardim.

    A pesquisa foi realizada em quatro etapas, a saber:

    2011. 2- Etapa 1: Elaborao de questionrios sobre questes relacionadas a percepes dos alunos sobre a vida escolar. Principais leituras: Apreendendo a ser trabalhador (1991), Argonautas do Pacifico Ocidental (1984), Escritos de Educao (1988). Reflexo sobre docncia e informalidade.

    2012. 1- Etapa 2: Aplicao de questionrios sobre a relao dos alunos com a escola. Pesquisa documental. Principais leituras: Rituais na Escola (1992), Senso Prtico (2009), A Reproduo (2010). Escrita e Defesa do projeto.

    2012. 2- Etapa 3: Observao e dirio de campo, entrevista semiestruturada. Pesquisa documental e levantamento de dados

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    estatsticos. Principais leituras: Como as instituies Pensam (1998), A ral brasileira (2009).

    2013. 1- Etapa 4: Observao e dirio de campo, entrevistas semiestruturada. Coleta e anlise de dados. Escrita da dissertao. Principal leitura: Homo academicus (2011).

    2.2 O Grupo de estudos e pesquisas: Negritude e Cearensidade - Identidades tnicas e Relaes Raciais no Cear

    A histria desta pesquisa tem suas contingncias. preciso justapor, ainda que brevemente, determinados acontecimentos que permitam entrever um ou outro encadeamento, sem que isso possa ser entendido num espectro linear, mas matizando conexes e descontinuidades. No apenas a fim de evitar uma teleologia do objeto, mas para tratar da epistemologia, preciso se referir s discusses que permitiram conceber e eleger escola e prticas informais como objeto.

    A gnese desta proposta de pesquisa remete, em parte, a uma experincia prvia de pesquisa no campo da Educao: o grupo de estudos e pesquisas Negritude e Cearensidade - Identidades tnicas e Relaes Raciais no Cear12, coordenada por Bernadete Beserra, professora13 de antropologia que fundou o grupo em 200814 a fim de estudar as relaes tnico-raciais no Brasil. O grupo tinha por base materiais recolhidos ao logo das disciplinas que ministrara, desde 2002, ano em que foram adotadas as cotas raciais na universidade pblica brasileira.

    O grupo obteve apoio do programa de bolsas de iniciao cientfica UFC/ CNPq, lanando edital de seleo para duas bolsas. Nessa ocasio, a referida professora divulgou o edital para alunos e ex-alunos que pudessem ter

    12

    Pesquisadores do grupo: Joamir Brito do Nascimento, Silviana Mariz, Diego de Jesus e Cristina Imaculada. 13

    Conheci a professora em 2006, no primeiro semestre do curso de Licenciatura em Histria por ocasio da disciplina de Estudos Scio-Histricos e Culturais da Educao. Informou-nos que vinha coletando dados sobre a questo tnico-racial no Brasil e pediu para que participssemos da sua pesquisa, respondendo a um questionrio. 14

    Retornou dos Estados Unidos depois de realizar seu ps-doutorado com bolsa da Fundao Rockefeller no Programa de Latin American and Latino Studies da University of Illinois, Chicago (2006/2007).

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    interesse pelo tema para participar do grupo e concorrer vaga de bolsista. Era uma tima oportunidade acadmica, pois dava a possibilidade de realizar um estudo que relacionava as reas de Educao e Histria, a partir das categorias de raa e de classe social. Concorri para a vaga de bolsista, sendo aprovado, iniciando as atividades no grupo em agosto de 2008.

    A anlise dos dados coletados demandava revisar estudos sobre a historiografia brasileira relacionada populao negra, em especial a historiografia cearense. Os estudos permitiriam situar-se no campo e buscar o quadro terico adequado anlise dos dados empricos: questionrios, memoriais, entrevistas, discusses e depoimentos em sala de aula. O campo apresentava um arsenal de conceitos e categorias a serem refletidos, tais como: identidade, diferena, etnia e raa.

    A discusso do grupo era centrada no significado da adoo de cotas raciais nas instituies de ensino pblico superior no Brasil. Em especial, o caso da Universidade Federal do Cear, que em 2006, acionada pelo Ministrio Pblico formara uma comisso interna que, aps estudos, elaborou um relatrio favorvel implantao de cotas raciais, proposta no aprovada pelo Conselho de Ensino Pesquisa e Extenso (NASCIMENTO, 2011)15. Inicialmente ramos mais favorveis s cotas raciais, mas logo nos primeiros momentos das discusses, passamos a ter srias dvidas quanto s possibilidades de adoo de critrios eficazes, que garantissem de fato aos segmentos da populao negra, vitimados pelo racismo, os benefcios da poltica de aes afirmativas.

    A persistncia dessa dvida marcar, a meu ver, a perspectiva do grupo. A ttulo de exemplo, posso citar o modo problemtico como setores do Estado brasileiro construram a categoria negro: um somatrio dos grupos preto e pardo (preto + pardo= negro), questo observada pelo grupo. Sendo uma categoria abrangente, que pressupe a noo arbitrria de que todo pardo negro, essa noo ampla, por vezes, aparelhada politicamente por

    15

    Ver. BRITO DO NASCIMENTO, A. Joamir. Cotas raciais na Univesidade Federal do Cear: para quem? Dissertao (mestrado). Universidade Federal do Cear, Fortaleza, 2011.

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    movimentos negros, caso tambm da noo de afrodescendente (MARIZ, 2012) 16.

    Neste vis, o Estado brasileiro considera que a cor da pele e/ou a auto idenficao so critrios suficientes para categorizar quem ou no negro no Brasil, sem levar em conta as particularidades histricas das populaes locais, nas quais a tez escura tem ascendncia indgena e no africana, bem como simplificando e essencializando um contingente populacional com amplo espectro de cores e inumervel auto classificao, os pardos, grupo mais visivelmente miscigenado da populao brasileira.

    Aps dois anos (2008-2010) de orientao contnua, na condio de bolsista de iniciao cientfica, na rea da Educao, no apenas me sentia mais preparado a desenvolver um projeto nessa rea, como era a contrapartida ao auxilio acadmico e financeiro pesquisa. A experincia com a coleta e compilao de dados, a dinmica de trabalho e postura reflexiva do grupo, as afinidades pessoais me impulsionavam a seguir esse caminho. Mas, j no incio de 2010, a ento coordenadora do grupo, considerava as principais questes que haviam lhe motivado a estudar a histria do negro no Cear, respondidas17. Ao trmino da bolsa em agosto de 2010, continuei em contato com o grupo.

    2.3 O grupo de estudos sobre instituies de ensino pblico e a ps-graduao na rea da educao brasileira

    As discusses realizadas no grupo Negritude e Cearensidade articulavam relaes tnico-raciais e educao, mas aos poucos o interesse por estudar as instituies pblicas de ensino foi ganhando destaque, sobretudo, no vis de uma sociologia do ensino superior. Nos embates do grupo em torno da educao que se encontra a proposta de pesquisar a escola pblica. Sobretudo por que medida que estudvamos a questo racial, 16

    Ver: MARIZ, Silviana F. A produo acadmica sobre as relaes tnico-raciais no Cear: a construo do afrodescendente. Texto Exame Qualificao. Univ Fed Cear, Fortaleza, 2012. 17

    Os resultados dos trabalhos de pesquisa produzidos sero apresentados numa coletnea de ensaios intitulada: Razes e desrazes identitrias: as emergncias tnicas no Cear ps-Durban. Organizada por: Bernadete Beserra, Silviana Mariz e Rmi Lavergne, em elaborao.

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    percebamos que no plano nacional e local, grupos identificados com a defesa das cotas tnico-racial se apropriavam politicamente de espaos na universidade, transformando a atividade acadmica num recrutamento ideolgico, em favor da causa negra. Paralelo a isso, soframos com problemas rotineiros no espao da FACED, falta de papel no banheiro, dificuldades de acesso a determinadas informaes, salas mal cuidadas, morosidade na resoluo dos problemas burocrticos. As rivalidades e disputas entre grupos de professores organizados ou no, em torno de como administrar a Faculdade: se seguindo as normas, caminho isonmico, ou se a partir de interesses particulares de um grupo (e seus aliados), tambm eram (e so) um ingrediente muito importante para contextualizar, o que fez emergir a proposta de um estudo sobre cultura universitria e cultura escolar.

    O debate sobre a adoo de cotas raciais nas universidades pblicas demandava discutir por consequncia a qualidade da educao oferecida pelo Estado atravs no sistema pblico de ensino, uma vez que o estabelecimento de cotas para negros nas universidades pblicas no era apenas o reconhecimento por parte do Estado brasileiro do racismo, mas tambm da sua ineficincia em oferecer populao em geral um ensino pblico capaz de prepar-la para competir de igual para igual com os alunos provenientes da rede privada de ensino. O debate trazia como questo pensar uma educao escolar pblica bsica de qualidade para todos versus uma poltica assistencialista e pontual a garantir o ingresso de um segmento da populao negra no nvel superior.

    Neste contexto, surgiu a proposta de formamos um grupo para estudar a escola pblica, que logo depois, orientou-se para um estudo do ensino superior no Brasil, resultando no projeto de pesquisa sobre o ensino superior a partir de etnografia da FACED, conforme expliquei anteriormente. Desta iniciativa resultou o estmulo e a colaborao para a pesquisa cujos resultados aqui apresento.

    No segundo semestre de 2011, concorri a uma vaga no mestrado do Programa de Ps-graduao desta Faculdade e novamente voltei a trabalhar sob a orientao da professora Bernadete. Foi por sua orientao, que li os seguintes trabalhos: Aprendendo a ser trabalhador: escola, resistncia e

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    reproduo social (WILLIS, 1991), A reproduo: elementos para uma teoria do sistema de ensino (BOURDIEU, 2010) e O senso prtico (BOURDIEU, 2010). A leitura destes trabalhos, os debates em grupo, as orientaes, bem como a reflexo que suscitaram sobre minha experincia docente foram decisivos para pensar um projeto, que articula escola, prticas informais e habitus.

    2.4 Relato de experincia: uma reflexo sobre docncia e informalidade

    Comecei a lecionar efetivamente em 2009, ainda no 5 semestre do curso de licenciatura em Histria, na disciplina de estgio III que, segundo previa sua ementa, deveria ser apenas de observao e elaborao de projeto numa turma de ensino mdio. Naquela ocasio, busquei a escola pblica em que conclu meu ensino mdio para estagiar, pois um dos seus docentes fora um dos responsveis por me inspirar a ser professor de Histria. A ideia de poder acompanh-lo me empolgava. Uma vez em contato com uma das coordenadoras pedaggicas, pedi-lhe permisso para observar as aulas.

    Assisti s suas aulas em duas turmas por apenas dois dias, pois no terceiro dia fui comunicado de que havia turmas sem professor de histria, sendo assim convidado a assumi-las temporariamente. Estava subentendido que a recusa implicaria em dificuldades de relacionamento no presente e no futuro com aquela escola, pois seria deixar a escola na mo. O convite foi aceito porque eu teria muito a perder e, alm disso, era uma oportunidade de dar inicio minha carreira profissional na escola na qual eu sonhava ser professor. Era ideal, pensei. Pois, naquela ocasio, eu estava desempregado, apenas estudando, no tinha uma fonte de renda prpria e, sendo casado e tendo uma filha, necessitava urgentemente conseguir trabalho.

    Assumi as turmas da escola imediatamente. Mas surgiu um problema: o ano letivo estava em andamento e como ainda no era formado e nem havia trabalhado para a secretaria de educao, eu tinha que dar entrada na documentao para abrir um cadastro e ser feito a minha matrcula. Fui alertado pela coordenadora pedaggica que levaria um perodo de pelo menos dois meses para eu receber meus vencimentos, pois a minha documentao seria mandada para anlise com o ano letivo em andamento. Assim, teria que

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    esperar que o meu nome entrasse para a folha de pagamento, aps sair no dirio oficial.

    Contudo, a secretria que cuidava da parte financeira da escola, me disse que poderia ser feito um arranjo, no sendo, portanto, necessrio que ficasse trabalhando sem receber. O arranjo era o seguinte: uma professora que trabalhava no turno da tarde, j formada e com a documentao pronta, emprestaria seu nome e a escola solicitaria a ampliao da sua carga horria para 40hs, sendo as 20hs, do turno da manh, cumpridas por mim, ficando a cargo da secretria de finanas repassar a minha parte do salrio.

    Iniciei minha carreira, portanto, tornando-me um professor extraoficial, de tal modo que no me era exigido assinar os dirios de turma, apenas preencher a parte referente a notas e faltas. Permaneci nessa condio por oito meses, sem existir oficialmente na escola, sem as protees sociais, ainda que precrias, de um professor temporrio e sem acesso ao contracheque, para saber se de fato recebia a minha parte correspondente.

    Num primeiro momento, podia parecer que as relaes entre escola e prticas informais tinham um carter eventual, mas ao longo da minha curta carreira de professor, tenho observado que uma relao mais que persistente.

    Aps o trmino do meu contrato informal com a escola pblica, consegui um emprego em uma escola privada, atravs de um colega de faculdade. Por estar ainda me graduando, eu no tinha disponibilidade no turno da manh. Sendo assim, me apresentei escola com mais outro colega, a fim de que ele trabalhasse no turno da manh e eu no da tarde. Falamos com a coordenadora pedaggica, que aps mencionarmos que ramos alunos da UFC, disse: so muito bons e logo depois nos levou para apresentar e negociar com o diretor nossos vencimentos. Foi ele que nos disse de cara que no queria assinar a carteira, que pagava pouco por hora-aula. Aceitamos as condies, mas no demorou muito para que o meu colega que assumira as aulas da manh abandonasse a escola por no suportar o destrato18 da

    18

    A coordenadora pedaggica da escola entrou na sala de aula aos gritos alegando que ele no tinha moral para ser professor, no tinha domnio de sala, Em pleno decorrer da aula, na frente dos alunos de uma de suas turmas. Ao sair da escola, o professor, me confidenciou

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    coordenadora pedaggica. Logo depois outros conflitos apareceram por ocasio de eventos, avaliaes e sbados letivos que no eram remunerados, bem como o planejamento.

    Sofri trabalhando nessa escola por dois meses, nos quais pude ver uma srie de procedimentos indecorosos a um trabalhador, tais como pssimas condies de trabalho, baixa remunerao, super explorao da mais-valia, atravs da exigncia de cumprimento de atividades fora do horrio e ambiente de trabalho, enfim, inmeras ilegalidades trabalhistas. E quanto legislao referente educao, descumprimento dos 200 dias letivos, preenchimento retroativo de documentos, desrespeito e no remunerao das horas de planejamento.

    Submetidos a muita presso, exigncias da escola, os meus colegas professores se chateavam quando um ou outro, entre ns, reclamava sobre fazer atividades que no fossem dar aula, questionando que, sendo a escola uma empresa privada, deveria nos remunerar por tudo que no fosse hora-aula, como a elaborao de avaliao, desenvolvimento e orientao de projetos cientficos e culturais, concepo e realizao de eventos, reunies e ensaios fora do horrio. Participvamos dessas atividades persuadidos e/ou constrangidos pelo vinculo trabalhista, formal ou informal, conscientes de que no ramos pagos por hora-planejamento, por hora-evento, por hora-pesquisa. Pude notar com essa experincia que o uso de expedientes no formais no ensino privado, como apelo aos deveres cidados do professor, sob a alegao de que extrapolam a esfera do cho econmico (trabalhista), funcionava como uma estratgia efetiva de explorao do trabalho.

    2.5 Relato de experincia: docncia e vinculo formal?

    J estava no penltimo semestre do meu curso de graduao em Histria pela UFC, quando saiu o edital para professor do estado. Resolvi ento me inscrever. O processo seletivo iniciou e decorreu com muitos percalos e criticas, sobretudo ao tratamento dispensado pela instituio responsvel pelo

    que aquele gesto era inaceitvel, na ocasio em que havia sido repreendido os alunos estavam realizando atividade e por isso, naquele contexto, orientava-os apenas em caso de dvida, havendo um clima informal dada s circunstncias de discusso em grupo.

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    concurso, o CESPE, (Centro de Seleo e de Promoo de Eventos Universidade de Braslia) que agia de modo confuso e grosseiro com os candidatos. A histria desse concurso vai ser marcada por tenses que envolveram reclamaes a respeito do tratamento dispensado aos potenciais servidores pblicos, professores19.

    Na segunda fase do concurso, a da prova prtica, por exemplo, a banca era formada por trs avaliadores, sem que soubssemos os critrios baseados nos quais eles eram escolhidos. Muito se comentava que havia bancas formadas somente de professores universitrios, sem experincia nenhuma com o nvel mdio, o que gerava uma enorme angstia e insegurana na hora de dar aula: devia-se dar aula de acordo com a experincia e formao da banca ou no nvel do que o concurso previa? Os atrasos em relao ao horrio previsto e o fato de estar sendo filmado tornava o desafio ainda mais difcil.

    A terceira etapa foi apelidada ironicamente de pede pra sair20. O curso de formao foi realizado em escolas consideradas insalubres, de difcil acesso, em reas conhecidas pela violncia, com tutores despreparados (por vezes), com horrios extenuantes (sexta-feira noite, sbados e domingos, manh e tarde). Enfim, fui aprovado. No dia da lotao, a minha preocupao era de que s restassem escolas em reas muito afastadas e perigosas ou em interiores longnquos. Depois de uma manh de espera finalmente chegara a hora. Eu tinha uma lista com o nome de todas as escolas da capital e grifadas as que me interessavam, gentileza de dois amigos que tambm estavam ali tambm para assumir vaga em alguma escola.

    Contudo, quando somos chamados para nos lotarmos, a presso parecida com a de montar um quebra cabea, mas com contagem de tempo, porque no havia escolas com 200 horas disponveis. Era preciso, portanto, ficar em mais de uma escola, talvez mais de duas! No meu caso parecia

    19

    O descontentamento era enorme, logo uma comunidade foi formada na rede social o Orkut, o que deu suporte a troca de informaes (como os gabaritos dos exerccios on line) e queixas sobre o concurso Ver: comunidade dos Professores do Cear. Disponvel em: . Acesso em: 05/04/2013 20

    Referncia ao filme: Tropa de Elite I, sucesso poca que retrata em parte a rigidez do curso de formao do BOPE, tropa de elite da policia militar do Rio de Janeiro.

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    impossvel encontrar uma composio de horrios vivel porque havia 2 horas numa escola em um lado da cidade, 3 horas do lado oposto e 1 hora em outro municpio! Estava difcil.

    A funcionria que estava me atendendo tratou de excluir algumas escolas, me falando, informalmente, que eram to perigosas que todos devolviam ou desistiam de suas cargas horrias. Citou o caso de uma escola no bairro Mucuripe. Continuou olhando no sistema at que surgiu uma escola na regio do grande Bom Jardim. Logo uma amiga que me acompanhava disse que conhecia uma professora, tambm nossa amiga, que j havia trabalhado naquela escola; ligamos para ela, que recomendou a instituio, alegando que o pessoal da gesto era muito bom. Desse modo, aceitei me lotar com 100 horas naquela escola, que parecia a nica alternativa vivel naquele momento.

    Na cerimnia de posse. O discurso proferido pela Secretria de Educao diante de mais de 2.000 professores presentes foi vexatrio no s pela notria improvisao da sua fala, mas pela tentativa mal sucedida de fazer elogios ao governador, que naquele momento estava em campanha para reeleio, o que lhe rendeu vaias em plena cerimnia de posse. Senti-me duplamente constrangido naquela ocasio.

    A nfase da presena do informal nessa breve narrativa da minha trajetria docente s foi possvel luz de reflexo posterior. poca desses episdios, a relao entre escola e prticas informais no se colocava como questo, era vista apenas segundo seus efeitos imediatos. Ora como mera geradora de situaes embaraosas, constrangedoras e/ou bizarras; ora como fonte de injustias, de abusos e de atitudes antiticas; noutras ganhava uma conotao positivada, vantajosa e desejosa. Em todo caso, passava sem uma reflexo e debate sistemtico. Naturalizada, a dimenso informal internaliza-se, despertando reaes segundo seus efeitos, que, at ento, eu no percebia to sistemticos, duradouros e problemticos.

    Tinha a expectativa de, uma vez sendo professor com vnculo formal, enfrentaria, sobretudo, problemas de ordem burocrtica, meio institucional de presso poltica no cotidiano da escola. Considerando que a

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    tarefa de educar como sendo de ordem, sobretudo poltica21, o ensino se tornaria mais efetivo medida que eu conseguisse realizar uma abordagem politizada da Histria; sabia que no seria uma tarefa fcil, mas mantinha confiana. Contudo, na prtica tornei-me um educador mais preocupado com a efetividade didtica das minhas aulas do que com os grandes ideais que me norteavam; no que os perdesse totalmente de vista, mas no me sentia capaz de defender a revoluo social, se no conseguia ensinar sequer questes elementares no ensino de Histria, como a importncia do tempo.

    Primeiro tendi a pensar, que isso se devia s minhas aulas que, apesar de serem criticas no contedo, seriam tradicionais na forma: centradas na exposio, pouca criativas na utilizao dos recursos didticos disponveis, o quadro branco e o livro didtico. Atribua isso, em parte, minha inexperincia na utilizao de uma metodologia que utilizasse fontes histricas em sala de aula, tornando o processo mais contextualizado. Mas a forte resistncia dos alunos em tornar as aulas mais participativas, politizadas e contextualizadas me angustiava: como posso ensin-los se no permitem?

    A inquietao s aumentava ao observar as respostas dos alunos perguntas sobre suas concepes e objetivos com e na escola (pblica); chamou minha ateno uma quantidade expressiva de respostas que apresentavam imagens positivas da escola, embora fosse patente a defasagem entre os interesses imediatos dos estudantes e suas prticas na escola. O

    21

    Tendo uma formao intelectual pr-acadmica influenciada pelo marxismo e pelo anarquismo, eu poderia encontrar fcil uma resposta na ideia de desigualdade entre as classes e na ao do Estado. Contudo, no que pese o potencial explicativo para se pensar contextos particulares como uma escola, essas macro categorias tornam-se pouco efetivas, ou franca ideologizao do conhecimento. A minha relao com a temtica escolar precede a vida acadmica, o debate sobre educao e escola fazia parte das discusses no meio libertrio, eu mesmo tendo me engajado junto com um companheiro anarquista, numa campanha denominada No deixe a escola atrapalhar seus estudos (2004), essa campanha denunciava a escola como instituio infensa a liberdade e princpios horizontais. A campanha inicialmente se resumia a agitao e propaganda em sala de aula, depois a campanha se reduziu basicamente, a distribuio de panfletos e debates espordicos. Em 2004, eu e outros companheiros fundamos uma ONG, a C.A.I.L (Casa de Apoio a Iniciativas Libertria), cuja finalidade era reunir, organizar e promover as mais diversas atividades poltico-culturais de cunho pedaggico-libertrio a partir de um espao e princpios comuns. A iniciativa acabou no sendo bem sucedida no que tange s suas ambies mais amplas, mas sua produo audiovisual assegurou a sua existncia at os dias presentes. Em todo caso, a educao, o ensino, a aprendizagem e a escola s passaram a ser um objeto de reflexo mais sistemtico a partir do momento que optei pela ps-graduao na rea de educao. Essa opo foi orientada pela minha trajetria intelectual, acadmica e profissional.

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    desinteresse pelos estudos muitas vezes aparecia nos escritos dos alunos com a alegao de que o ensino escolar dissocia teoria e prtica: a gente num faz nada, s l e escreve. Nessa perspectiva, os exerccios de escrita e leitura no eram visto como prticas. Outra alegao corrente para o desestmulo era a ideia de num ter nada a ver o que se v na escola com a vida. Em outras palavras, o ensino descontextualizado, por isso no se entende nada.

    Isso me intrigava, pois a cada vez que tentava fazer uma aula diferente dos moldes tradicionais esbarrava na resistncia dos alunos. Passei a observar e pensar seriamente sobre suas aes no contexto das aulas que, a meu ver, entravam em contradio com a positivao que faziam em seus escritos sobre a escola, o que motivava uma inclinao para pesquisa sobre culturas escolares. Era profundo o meu sentimento de angstia e decepo com o meu prprio desempenho como professor, lamentavelmente muito aqum das minhas expectativas mais modestas. No s em termos de limitao didtica, mas de engajamento crtico, participativo. Tornei-me professor em grande parte por acreditar que isso era o melhor que eu podia fazer, no s para garantir a minha sobrevivncia econmica, mas tambm pelos ideais polticos, ocupando um espao pblico privilegiado e com audincia garantida.

    Pensei estar ciente das limitaes que o dia-a-dia escolar impunha a formas alternativas de abordar os temas, os contedos de Histria. Confesso arrasado que subestimei as dificuldades, e mais, imerso na dinmica escolar, fiquei atnito, deixando inexploradas possibilidades; sem ousar, sem experimentar. Problemas de duas ordens distintas, e talvez, complementares me afligiam. O primeiro se refere s dificuldades referentes didtica: como tornar a aula uma experincia pedaggica efetiva no que se refere aos contedos propostos? O segundo, de carter tico: como fazer uma abordagem que no declinasse para a despolitizao ou para o doutrinarismo?

    A experincia docente me fez perceber limites e vivenciar dilemas de um modo intenso, o desafio de ser um educador anti-hegemnico, contraideolgico, libertrio, esbarrava primariamente na minha capacidade didtica e no dilema tico de no apelar para o doutrinarismo. Passei a perceber que entrava numa arena perigosa, apelando para uma aula mais

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    informal, com linguagem coloquial e grias a fim de chamar ateno e contextualizar os assuntos, percebia que era atrativo aos alunos, mas desconfiei: comeava a operar na ordem do senso prtico, cometendo pela via informal, outra dimenso de violncia simblica?

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    3. A EDUCAO, A CULTURA BRASILEIRA E O DEBATE SOBRE FORMALIDADE E INFORMALIDADE.

    Este captulo dedicado a apresentar o debate sobre formalidade e informalidade na historiografia brasileira bem a identificar a provenincia e os usos dos respectivos termos na rea da Educao. Objetiva tambm justificar a opo pela categoria das prticas informais em face da teoria do senso prtico (2009) e da fragilidade epistmica dos pressupostos e comprometimento ideolgico de conceitos hegemnicos sobre a interpretao da cultura brasileira.

    3.1 A tradio ideolgica da cultura brasileira: liberalismo, teoria emocional da ao e economicismo

    Em A ral brasileira (2009) Jess de Souza, apresenta uma perspectiva das classes sociais, ancorada na teoria do habitus, permitindo que se perceba como classe, pela sua gnese e destino co