educação, ecoturismo e cultura em ibero-américa

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1 EDUCAÇÃO, ECOTURISMO E CULTURA EM IBERO-AMÉRICA (eds.) ANGEL B. ESPINA BARRIO LUIZ NILTON CORRÊA TELMO PEDRO VIEIRA

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EDUCAÇÃO, ECOTURISMO E CULTURA EM

IBERO-AMÉRICA

(eds.) ANGEL B. ESPINA BARRIO LUIZ NILTON CORRÊA TELMO PEDRO VIEIRA

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FICHA TÉCNICA

ISBN 978-85-67768-04-5 Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina – IHGSC Editores Angel-B. Espina Barrio Luiz Nilton Corrêa Telmo Pedro Vieira Comissão e Conselho Editorial Angel-B. Espina Barrio Luiz Nilton Corrêa Telmo Pedro Vieira Imágens e Fotografias Luiz Nilton Corrêa

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PREFÁCIO Hace ya unos veintidós años que un pequeño grupo de

profesores de Antropología social aglutinados alrededor del Instituto de Investigaciones Antropológicas de Castilla y León (IIACyL), por entonces recién instituido, y de la Universidad de Salamanca, decidimos poner en marcha un congreso anual dedicado a la exposición de investigaciones de tipo etnológico sobre el área Ibero-americana. El estudio de las culturas latinoamericanas teniendo en cuenta su conexión ibérica era el objetivo de esa convocatoria, deseando incrementar los estudios comparativos y la presencia de la Antropología iberoaméricana en nuestros estudios.

Nadie podía prever que la iniciativa se mantuviera sin interrupción todos los años y fuera incrementándose hasta tener alcance internacional con las siglas CIAI (Congreso Internacional de Antropología de Iberoamérica), y tampoco que fuera siempre objeto de publicación, reuniendo uno de los mayores acervos de trabajos antropológicos del mencionado espacio y constituyéndose en fuente etnográfica de interés para la especialidad. A ello sin duda contribuyó el establecimiento en la U. de Salamanca de un Doctorado y de una Red de igual nombre: Antropología de Iberoamérica, que hoy se ve continuada por un Master de igual denominación en la citada Universidad. Todas estas actividades comenzaron mucho antes que se implementara desde Madrid la AIBR, hoy en día muy conocida e influyente en esta misma temática.

Y precisamente la XXI edición del citado congreso se aprobó para ser desarrollada en Santa Catarina (Brasil) concretamente en el municipio de Sao Jose con apoyo de muchas instituciones pero especialmente de la Cámara y de la Universidad local, la USJ. No era la primera vez que se organizaba en Brasil, antes lo fue en Porto Alegre y en Recife, y tampoco era la primera vez que se trataban trabajos de educación o de turismo, pero la perspectiva se deseaba fuera distinta y actualizada. Nuestra red había considerado la educación desde el punto de la diversidad cultural y especialmente en relación al parentesco (tomo VII); y, asimismo, habíamos tratado el turismo en su conexión con la cultura y el desarrollo de los pueblos (tomo X), pero no tanto el fenómeno educativo en relación a la interculturalidad y al ecoturismo.

Las investigaciones que siguen conforman un texto que, como los anteriores, es de obligada lectura para los que desde la óptica antropológica desean comprender fenómenos socio-culturales actuales, como lo son en gran parte la educación y el turismo, en la zona iberoamericana. Se dan etnografías muy variadas fundamentalmente de Brasil, pero también de España, México o Bolivia, tanto desde perspectivas indigenistas o como desde puntos de vista teóricos y aplicados.

Nuestra gratitud a los autores de todos ellos por el trabajo realizado, y además y especialmente, al Dr. Telmo Pedro Vieira, por la excelente dirección del Congreso y al Dr. Luiz Nilton Correa, por la cuidada edición de los textos.

Afortunadamente es seguro que el Congreso tendrá continuación en 2016 en la ciudad de Fortaleza (Ceará), en una XXII edición dedicada a la Religión, la Tolerancia y la educación Intercultural, que prosiga alentando la labor de pesquisa antropológica que tan poca ayuda recibe de los organismos gubernamentales pero que tan necesaria es para fomentar la convivencia pacífica en nuestros pueblos y con los “otros pueblos”.

Fortaleza, 3 de abril de 2016. Prof. Dr. Ángel-Baldomero Espina Barrio

Universidad de Salamanca-España. Director-Fundador de los Congresos CIAI

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APRESENTAÇÃO

Nos dias 23 a 25 de março de 2015, a cidade de São José/SC - Brasil, historicamente conhecida como São José da Terra Firme, que teve na colonização açoriana, do ano de 1750, sua base de desenvolvimento, passados 265 anos da sua fundação, acolheu os congressistas do XXI Congresso Internacional de Antropologia Ibero-americana: “Educação, Ecoturismo e Cultura. Desafios do Mundo Globalizado”. A organização do congresso contou com o auxílio de diversas Instituições universitárias, de forma pontual, o Centro Universitário de São José - USJ, responsável por acolher o evento e a Universidade de Salamanca- Usal, instituição proponente e responsável pela sua criação.

O Congresso Internacional de Antropologia de Ibero-América é um marco no âmbito de sua especialidade, reunindo profissionais de áreas tão diversas e ao mesmo tempo conexas: sociologia, história, educação, filosofia, comunicação, economia, política, literatura e muitas outras.

Ao longo dos vinte e um anos, esse congresso reuniu centenas de professores e pesquisadores. Por ocasião do seu vigésimo primeiro aniversário, o Congresso Internacional de Antropologia Ibero-América, aconteceu em São José/SC com o mesmo espírito multidisciplinar e de agregação que o faz multi-institucional e integrado à contemporaneidade.

A temática escolhida foi “Educação, ecoturismo e cultura. Desafios do mundo globalizado”. Tal amplitude sinaliza quão variadas podem ser as áreas afins. Desde a antropologia social e cultural à antropologia do turismo e do eco desenvolvimento, da educação à sociologia, tudo envolvido de um modo ou de outro pelo vasto manto da antropologia aplicada.

O congresso contou com a participação de representantes das seguintes instituições: Universidad de Salamanca / USAL – Espanha, Centro Universitário de São José – USJ, Universidade da Beira Interior – Portugal, Universidad Huelga – Espanha, Universidad Autónoma del Estado Hidalgo – Espanha, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, Universidade do Estado de São Paulo - USP, Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC, Escola Superior de Administração e Gerência - ESAG, Universidade do Estado de Santa

Catarina – UDESC, Universidade do Planalto Catarinense – UNIPLAC, Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFGRS, Universidade Federal do Mato Grosso do Sul – UFMS, Centro Integrado de Estudos e Pesquisas do Homem – CIEPH, Universidad de Santiago da Compostela – Espanha, Universidade Tuiuti do Paraná – UTP, Universidade Regional de Blumenal – FURB, Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina – IHGSC, Conselho Estadual de Educação do Estado de Santa Catarina, Secretaria de Educação do Estado de Santa Catarina, Secretaria de Estado de Turismo, Cultura e Esporte, Fundação de Cultura e Turismo do Município de São José, Fundação Franklin Cascaes, Universidade Federal de São Carlos – UFSCAR, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL, Instituto de Investigaciones Antropológicas de Castilla y León – Espanha, Sociedade Ibero-americana de Antropologia Aplicada – SIAA, Master Universitário em Antropologia Ibero-america, Ecouseu Dr. Agobar Fagundes – EDAF, Secretaria de Educação do Município de Florianópolis, Secretaria de Educação do Município de São José, Fundação Educacional do Município de São José – FUNDESJ, Prefeitura Municipal de São José, entre outros.

A presente obra quer deixar registrados os trabalhos, artigos e pesquisas que durante os três dias do congresso foram temas de discussões, debates e reflexões por parte dos congressistas. Por fim, quero agradecer, enquanto Diretor Geral do XXI Congresso Internacional de Antropologia Ibero-americana, a todos que ajudaram a construir esse espaço de conhecimento e de socialização do saber.

Agradeço de forma pontual a presença do Dr. Angel Espina Barrio, representante da Universidade de Salamanca – Espanha, fundador e diretor internacional do Congresso, que sempre agregou experiência, conhecimento e excelência acadêmica ao evento.

Prof. Dr. Telmo Pedro Vieira UFSC/ SC - Brasil

Diretor Geral XXI Congresso Internacional de

Antropologia Ibero-americana

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ANTROPOLOGIA E CULTURA - PERDA DO LEGADO CULTURAL E OS DESAFIOS DO MUNDO GLOBALIZADO

02 FESTAS DO DIVINO - GLOBALIZAÇÃO DE EXPRESSÕES CULTURAIS VIA MIGRAÇÃO Luiz Nilton Corrêa

13 MAÍZ EN LA COSMOVISIÓN MAYA Maria Montserrat Camacho Ángeles 19 AYAHUASCA:ETNOGRAFIADEUMRITUALSAGRADO Regina Clara Aguiar ANTROPOLOGIA E EDUCAÇÃO - ESPAÇO EDUCATIVO. PRODUÇÃO E RESSIGNIFICAÇÃO DOS SABERES 33 FORMAÇÃO DE EDUCADORES: DIÁLOGOS ENTRE AS INFÂNCIAS DOS EDUCADORES E

EDUCADORES DE INFÂNCIA: UM OLHAR LUXUOSO SOBRE AS HISTÓRIAS DE VIDA. Annabel Cristini Feijó Peres / Izabel Cristina Feijó Andrade

42 INTERCULTURALIDADE E FORMAÇÃO DOCENTE: PERSPECTIVA PARA RESSIGNIFICAÇÃO DE EPISTEMETODOLOGIAS EDUCACIONAIS. Adecir Pozzer / Elcio Cecchetti

56 EDUCOMUNICAÇÃO: PRÁTICAS EDUCOMUNICATIVAS NA FORMAÇÃO DE SUJEITOS CRÍTICOS. Wanessa Matos Vieira Wanderléa Pereira Damásio Maurício

73 EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA: AS INTERLOCUÇÕES ENTRE ORIENTADOR E ORIENTANDO NO PROCESSO DE MONOGRAFIA DO CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM MÍDIAS NA EDUCAÇÃO Wanderlea Pereira Damásio / Izabel Cristina Feijó de Andrade

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EDUCAÇÃO PARA SUSTENTABILIDADE E DIVERSIDADE CULTURAL

85 DISCURSO, FORMAÇÃO DE IDENTIDADES E LEGITIMAÇÃO CULTURAL: COLONIALISMO DO PODER, DO SABER E DO SER Valdenésio Aduci Mendes

100 INTERCULTURALIDADE E EDUCAÇÃO INDÍGENA ENTRE O POVO GUARANI DE LARANJEIRA ÑANDERU/MS José Paulo Gutierrez / Antônio Hilário Aguilera Urquiza

111 A EDUCAÇÃO INTERCULTURAL SUPERIOR INDÍGENA: UMA ANÁLISE SOBRE PROJETOS NO BRASIL, MÉXICO E BOLÍVIA. Daniel Valério Martins / Racquel Valério Martins

123 EDUCAÇÃO PARA INTEIREZA E AMBIENTALIZAÇÃO CURRICULAR: PRIMEIROS PASSOS E REFLEXÕES. Marina Patricio de Arruda

A ESCOLA E NOVOS CONCEITOS DE CONHECIMENTO E APENDIZAGEM

133 COMO O CICLO ESTÁ DITO? Marta Nascimento de Oliveira / Celso Kraemer

143 A CULTURA DIGITAL COMO FONTE DO SABER COM O USO DAS TECNOLOGIAS NA SALA DE AULA EM UM CURSO DE PEDAGOGIA Marinez Chiquetti Zambon

156 ARCIMBOLDO: INTER-RELAÇÕES ENTRE ARTE, NATUREZA E SOCIEDADE EM SALA DE AULA Simone Ballmann de Campos / Raysa Serafim Farias POLÍTICAS PÚBLICAS, PROJETOS E PROGRAMAS EDUCATIVOS E DESIGUALDADE SOCIAL

170 EDUCAÇÃO CONTINUADA: UMA POSSIBILIDADE DE UM OLHAR LUXUOSO DOS EDUCADORES DO ENSINO SUPERIOR. Izabel Cristina Feijó Andrade

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188 A RELAÇÃO DA PRÁTICA COM O DISCURSO: UM FAZER PEDAGÓGICO Celso Kraemer / Marta Nascimento de Oliveira

197 EDUCAÇÃO FILOSÓFICA: DA NATUREZA HUMANA – UMA DISCUSSÃO SOBRE O SUICÍDIO. José Antunes de Souza Pomiecinski

ANTROPOLOGIA E EDUCAÇÃO

216 MARGINACIÓN SOCIAL Y REFORMISMO EN ESPAÑA: LA CAUSA DE LOS NIÑOS EXPÓSITOS Emiliano Gonzalez

232 DESAFIOS, TRAJETÓRIAS E PERSPECTIVAS PARA A ESCOLARIZAÇÃO EM TEMPO INTEGRAL Juares da Silva Thiesen / Jéferson Silveira Dantas

244 A EDUCAÇÃO EM SAÚDE E AS SUAS NUANCES ANTROPOLÓGICAS Luciana Maria Masiero

266 ENDOCULTURAÇÃO: UMA ETAPA PEDAGÓGICA FRONTAL PARA REVITALIZAR CULTURAS: POR UMA SAÚDE CULTURAL ONTOANTHROPOS, BIOCRÁTICA E SUSTENTÁVEL. Jaci Rocha Gonçalves

283ANTROPOLOGIAEEDUCAÇÃO:OLHARESCRUZADOSEINTERDISCIPLINARESDonizeteRodrigues EDUCAÇÃO E CULTURA

289 EDUCAÇÃO E PRÁTICAS INTERCULTURAIS NA FRONTEIRA BRASIL-BOLÍVIA Antônio Hilário Aguilera Urquiza 298 A FORMAÇÃO DOCENTE NA EDUCAÇÃO INFANTIL E A PEDAGOGIA INACIANA EM UM COLÉGIO CONFESSIONAL Jeanice Schmidt Bulik / José Carlos da Silva

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TURISMO COMO FENÔMENO SOCIAL E ANTROPOLÓGICO

311 TURISMO RELIGIOSO EM NOVA TRENTO/SC E OS RESIDENTES: UMA ANÁLISE DOS PROCESSOS SÓCIO-CULTURAIS Telmo Pedro Vieira

336 PATRIMÔNIO E MEMÓRIA: CRIVEIRAS, MULHERES DE TRADIÇÃO SECULAR, NA LOCALIDADE DE TIJUQUINHAS, NO MUNICÍPIO DE BIGUAÇU Ana Lúcia Coutinho

344 O ECOTURISMO NA PERSPECTIVA DO “DESENVOLVIMENTO COMO LIBERDADE” DE AMARTYA SEN Antônio Augusto Bonatto Barcellos / Otávio Augusto de Freitas Barcellos

366 RENDANDO AS HISTÓRIAS DO BILRO DE PENICHE Gabriela Poltronieri Lenzi

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ANTROPOLOGIA E CULTURA – PERDA DO LEGADO CULTURAL E OS

DESAFIOS DO MUNDO GLOBALIZADO

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FESTA DO DIVINO: “GLOBALIZAÇÃO” DE EXPRESSÕES CULTURAIS VIA MIGRAÇÃO

LUIZ NILTON CORRÊA1 RESUMO: Dentre os mais diversos aspectos culturais transmitidos através das correntes migratórios, talvez a religiosidade tenham sido os mais íntimos e duradouros nas terras de acolhimento. No caso da diáspora açoriana, este aspecto se reflete através da festa do Divino Espírito Santo, nas mais diversas comunidades formadas por estes açorianos. Seja nos Estados Unidos, Canadá, Brasil ou mesmo em território português, no continente. As festas representam hoje um dos principais aspectos identitários dos açorianos, fora e dentro dos Açores, sendo consideradas muitas vezes as principais festividades étnicas em regiões como Nova Inglaterra, Califórnia ou Sul do Brasil. Nestas regiões, os açorianos e descendentes se reúnem uma vez por ano para celebrarem sua terra natal com os rituais em louvor ao Espírito Santo, seja com a distribuição de sopas ou a coroação de uma criança ou adulto, dependendo da comunidade. PALAVRAS-CHAVE: Festa do Divino, Espírito Santo, Emigração Açoriana.

1 Antropólogo e Historiador. Professor convidado do Programa de doutorado em História Insular e Atlântica da Universidade dos Açores e membro do IHGSC.

Com a emigração de açorianos, desde os primeiros tempos de povoamento dos Açores até os dias de hoje, seja para o novo mundo, do Canadá ao Uruguai, ou mesmo para outras regiões como o próprio Portugal Continental, foram juntos com estes homens e mulheres, a sua cultura, forma de pensar e se alimentar ou mesmo de venerar e expressar suas crenças. Estes açorianos levaram nas ”malas” as festas que cada vez mais lembravam as ilhas de origem, numa forma de manter sua cultura e identidade. No Havaí, EUA, Canadá, Bermudas, e no Brasil, em regiões como São Paulo e no Rio de Janeiro, locais que ao longo do século XIX e XX, receberam milhares de açorianos. Ilhéus que passaram a organizar festas dedicadas ao Espírito Santo, da mesma forma que eram realizadas nos Açores, e que atualmente representam o expoente máximo da cultura dos antepassados nestas novas terras. São centenas as festas promovidas por estes emigrados por toda a América do Norte. Só na Califórnia contabilizam-se mais de duas centenas de Festas do Divino Espírito Santo realizadas anualmente. Na Nova Inglaterra, embora não existam números exatos como na Califórnia, o antropólogo português João Leal, mencionava que em 2007 poderiam contabilizar-se cerca de seis dezenas destas festas e irmandades radicadas nesta região2.

2 Cf. João Leal, Açores, EUA, Brasil: Imigração e Etnicidade, Direcção Regional das Comunidades, Nova Gráfica, Lda. Outubro 2007. P. 28.

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No caso do Havaí, temos relatos do Antropólogo Daniel Malinconico da Brigham Young University, que falam de duas festas ainda existentes. Lá, onde a emigração açoriana dirigiu-se em finais do século XIX e início de XX, ainda podemos encontrar estas festas realizadas em algumas comunidades de origem açoriana.

A Irmandade do Espírito Santo da Santíssima Trindade Punchbowl em 1891, testemunha o significado das expressões tradicionais açorianas da adoraçãoo do Espírito Santo para a memória e a consciência cultural dos descendentes de portugueses do Havaí. A sua sede se localiza no bairro de Punchbowl, região onde se concentra a maior parte de famílias de origem insular atlântica de Honolulu. Essa presençaa portuguesa se manifesta na paisagem urbana, quer pela disposição das casas nas enconstas – lembrando a Madeira e certos bairros de Santos, quer nas designações de ruas, tais como Lusitania ou Azores3.

As Festas do Espírito Santo, para além de preservarem e promoverem a lembrança da terra natal, muitas vezes trazidas por gerações passadas, também preservam as formas da linguagem simbólica comum nas comunidades de origem açoriana em várias regiões do mundo4. São manifestações que

3 Bispo, A. A. (Ed.). “Bandeira e Coroa do Espírito Santo em Honolulu. A Linguagem vistual na manutenção de elos de identidade e na diferenciação cultural: expresses açorianas no Pacífico e no Brasil”. Revista Brasil-Europa 126/3 (2010:4). Disponível em: <www.revista-brasil-europa.eu/126/cultura-acoriana-no-havai.html> Consutado em : 12 jan. 2009. 4 Bispo, A. A. (Ed.). “Bandeira e Coroa do Espírito Santo em Honolulu. Op., cit.

se enquadram como um dos principais marcadores indenitários destes novos açorianos em vários níveis. Um deles, a recriação das festas de acordo com os níveis de ligação à terra de origem numa forma mais específica. A festa é recriada tendo por modelo as festas realizadas na ilha de origem, e as vezes até de acordo com as festas realizadas nas freguesias de origens destas comunidades, ou assimilando características diferentes de ilhas diferentes numa só festa onde participam açorianos de ilhas diferentes, como nas Grandes Festas na Nova Inglaterra, onde se assimilam o Bodo de Leite existente na Ilha Terceira e as Pensões originarias da Ilha de São Miguel5.

(...) o cortejo etnográfico das Grandes Festas sublinha antes do mais a importância que Fall River ocupa como centro simbólico da comunidade luso-americana. Esse estatuto advém-lhe da circunstância de ser a cidade Norte-americana onde a população de origem portuguesa é numérica e sociologicamente mais representativa. Com um total de 92.703 habitantes, Fall River tem de facto uma população de origem portuguesa que se eleva a 50 % da população total, o que a torna na cidade Norte-americana que, tanto em números absolutos, como em números relativos,... Dado o facto da esmagadora maioria dessa população ser claramente açoriana – em particular micaelense6.

Na “diáspora”, a Festa do Divino Espírito Santo ganha força como marco identitário dos açorianos emigrados e de

5 Cf. João Leal, Açores, EUA, Brasil: Imigração e Etnicidade, Direcção Regional das Comunidades, Nova Gráfica, Lda. Outubro 2007. P. 36. 6 Cf. João Leal. Açores, EUA, Brasil: Imigração e Etnicidade, Op., cit., P. 39.

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seus descendentes que vivem naqueles países. Existindo inclusive, nos dias da festa, uma espécie de desfile, que relembram os cortejos do Espírito Santo dos Açores, onde, de acordo com o antropólogo João Leal, tem destaque as alusões étnicas a terra natal e a origem, de forma que em alguns casos, com a mescla da cultura local pré-existente, criou-se uma identidade que já foge um pouco da real identidade açoriana. Em Portugal, as Festas do Espírito Santo acontecem sobretudo no Arquipélago dos Açores. Já no continente, elas se limitam a locais como Tomar, Soure, Faro, São Bartolomeu de Messines ou outras cidades que ainda mantém suas tradições, ou ainda locais onde a comunidade açoriana resgatou ou reintroduziu as festas que a anos não eram realizadas. Uma tendência que tem vindo a se fortalecer no decorrer dos anos, da mesma forma que tem vindo a acontecer no Brasil, Estados Unidos da América e por toda diáspora açoriana espalhada pelo mundo. Hoje, podemos encontrar exemplos do culto do Espírito Santo em todas as ilhas dos Açores, ao ponto de atualmente se transformarem no símbolo de identidade cultural dos açorianos, inclusive dos que saíram dos Açores ao longo dos últimos séculos, transformando em marco diferenciador da “cultura açoriana” dentro de território português e dos próprios açorianos que, por vários motivos seguiram destinos em outras regiões de Portugal, ou países como Estados Unidos da América e Canadá. Nos Açores estas manifestações atingem seu grau máximo em cores e rituais nas ilhas do grupo central do

Arquipélago, sobretudo na Ilha Terceira, onde representam o exemplo cultural mais vivo e rico de todo território português. Porém, sua presença em todas as ilhas demonstram particularidades criadas provavelmente pelo isolamento e pelo tempo, ao ponto de possuírem diferenças facilmente identificáveis, de ilha para ilha. Diferenças que em escala podem atingir o nível local, sendo marcada mesmo entre freguesias diferentes, ou até entre impérios diferentes dentro da mesma freguesia. Exemplo destas diferenciações podem ser vistos não só nas suas cores e formas mas também na sua própria organização, predominantemente executada por irmandades organizadas, seculares nas ilhas que formam o grupo central dos Açores, ou executadas de forma mais espontâneas por gente simples da comunidade, como no caso da Ilha de São Miguel. E mesmo na Ilha de São Miguel podemos encontrar diferenças marcantes entre as festas realizadas dentro de uma ou outra comunidade, ou até nas próprias freguesias como acontece na Freguesia da Relva, entre a festa realizada pelo Império da Trindade e pelo Império da Festa. Onde enquanto uma mantem o ritual do Bodo de Leite ou costuma buscar os barris de vinho de cheiro na própria adega, a outra não possui o bodo de leite e o vinho chega através do transporte fornecido pela própria adega. Entre os estudiosos das Festas do Espírito Santo nos Açores, podemos citar João Leal, cujo doutorado baseou-se nas festas realizadas na Ilha de Santa Maria, seguindo depois estudos mais pormenorizados das festas realizadas no Sul do Brasil e nos Estados Unidos da América, onde o Espírito

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Santo é manifestado também como símbolo identitário das comunidades açorianas residentes naquele país. Um mesmo aspecto encontrado nos Açores, onde a data dedicada ao arquipélago é comemorada no dia de Pentecostes, conhecido como o Dia da Pombinha, transformado em feriado regional desde de 1980. Nos últimos anos esta conotação identitária tem vindo a ser explorada cada vez mais por todo o Arquipélago, havendo uma certa promoção turística voltada aos festejos do Espírito Santo, existindo inclusive uma festa promovida pela Câmara Municipal de Ponta Delgada, onde comparecem representantes das várias comunidades do Concelho e de outras localidades, havendo lugar para um desfile com as respectivas bandeiras e uma grande coroação com coroas vindas até mesmo dos Estados Unidos da América ou Canadá. No Brasil, as primeiras Festas do Divino conhecidas, datam de 1761 em Pindamonhangaba, no estado de São Paulo, ou em 1765, em Salvador, na Bahia7, onde também há uma Irmandade do Divino Espírito Santo, fundada em 17708, no Bairro do Carmo. Porém, é provável que antes destas datas já existissem festas dedicadas a Santíssima Trindade, mesmo celebradas nas comunidades portuguesas que se formavam ao longo do Brasil, deste o século XVI, e que reproduziam a cultura transplantada de Portugal para a nova terra.

7 Cf. Eduardo Etzel, Divino: Simbolismo no Folclore e na Arte Popular, Livraria Kosamos Editorial, São Paulo, 1995, P. 43. 8 Cf. Eduardo Etzel. Op., cit., P. 172.

Podemos afirmar sem margem para dúvidas que as Festas do Espírito Santo que existem hoje nos Estados Unidos da América9, Canadá, Bermudas e Havaí tiveram origem nos Açores, e mesmo regiões que não receberam propriamente um fluxo de imigrantes chegados diretamente dos Açores, como no caso de Colorado Springs10, nos Estados Unidos da América, que promovem uma Festa do Espírito que reúne todos os anos a comunidade açoriana da região. Neste caso, não seria incorreto afirmar que os Açorianos levaram a festa consigo para a cidade, mesmo que não tenha existido um fluxo de imigrantes vindo direto dos Açores No Brasil, parte das Festas do Espírito Santo realizadas por todo país pode não ter origem direta nos Açores, uma vez que em Portugal (continente), durante o século XVII, XVIII e XIX, existiam inúmeras Festas do Espírito Santo com coroação, cortejo, bodos e todas as insígnias que encontramos em comum nas Festas do Espírito Santo conhecida na Europa e América. O que também não invalida o fato de terem sido levadas através da emigração. Seja ela de continentais (Portugal Continental), ou açorianos, vindos ou não do outro lado do atlântico. Para além disto, ainda há condicionantes como o fato de encontrarmos Festas do Espírito Santo no Brasil desde o litoral até o interior, desde as praias do Maranhão, ou às pequenas baias de Florianópolis ou em Minas Gerais, Goiânia, e pelo Amazonas, realizadas por gentes de diversas

9 Para saber mais, consultar: João Leal, Açores, EUA, Brasil. Op., cit. 10 Este foi o tema da Reportagem “A Cor da Saudade”, produzido pela RTP Açores e exibido em 13 de Junho de 2006.

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etnias, de descendentes de alemães do Sul do Brasil aos descendentes de africanos no Nordeste ou Centro-Oeste, e mesmo pelos índios, como os Karipuna no interior do Amapá. E mesmo por haver um certo sincretismo com manifestações culturais afro-brasilerias, como no caso dos congados. Sejam descendentes de portugueses ou indígenas, a festa muitas vezes tem os mesmo conjunto de rituais e as insígnias são sobretudo semelhantes. Uma das mais interessantes pode ser talvez a Festa do Divino Espírito Santo dos índios Karipuna no interior do Amapá, praticamente na divisa com a Guiana Francesa. Esta festa tem nove dias de duração e preserva vários símbolos da Festa do Divino Espírito Santo, a bandeira, a coroa, há um novena rezada em latim, foliões e recolha das esmolas11. A festa começa a ser organizada um ano antes da sua realização, e tem seu ponto alto na semana que antecede o Domingo de Pentecostes, e assim, como no Sul do Brasil, os devotos beijam as fitas penduradas na imagem do Espírito Santo, a pombinha, e sua origem12 está associada a um antigo personagem local, o Capitão Teodoro Fortes, quem organizava a festa em sua própria casa. Foi ele que

11 Joi Cletison. Festas do Divino Espírito Santo. Disponível em: < http://www.portaldodivino.com/nea/joi.htm> consultado em: 20 Jun. 2011. 12 Tassinari, Antonella Maria Imperatriz. No bom da festa: o processo de construção cultural das famílias karipuna do Amapá. São Paulo, EDUSP. 2003, p. 413. Disponível em: <http://www.portaldodivino.com/Karipuna/karipuna.htm> Consultado em 22 Mar. 2010.

determinou a construção da primeira capela em louvor ao Divino Espírito Santo na década de 1930, na aldeia onde morava, atualmente chamada de Aldeia do Espírito Santo13. Na cidade de Bocaiúva, em Minas Gerais, durante o mês de Maio é realizada uma outra festa, a Festa do Divino Espírito Santo de Bocaiúva, criada por João Vieira Dias em 1985. Passou a tornar-se um dos pontos fortes da cultura local. O neto de João Dias, Luiz Fernando Dias Leite14, conta que depois da Morte de Sebastião Safaroza, primeiro comandante de um congado na cidade de Bocaiúva, houve uma disputa pela presidência do grupo de congado, seu avô acabou por criar um segundo grupo de congado na cidade e batizou-o com o nome de Congado do Divino Espírito Santo15.

(...) Sebastião Saforoza passou o comando para meu avô, mas apareceu um outro senhor por nome de João Duruno Margues, saudoso João Besouro, que também queria ser o comandante. Quando Sebastião faleceu, João Besouro foi até a casa dele (meu avô), e pegou todos os instrumentos, alegando para a esposa do Sebastião Saforoza, que ele tinha passado o comando para ele,... dai meu avô juntou com alguns amigos e montou outro grupo, mas na cidade só existia uma festa de Nossa Senhora do Rosário, daí os dois grupos tinha o mesmo nome, a festa é realizada no mês de

13 Tassinari, Antonella Maria Imperatriz, Da mudança à tradição: o processo de construção da religiosidade dos índios Karipuna do Amapá/Brasil. Disponível em: <http://www.naya.org.ar/religion/XJornadas/pdf/6/6-Tassinari.PDF> Consultado em 22 Mar. 2010. 14 Luiz Fernando Dias Leite é músico, compositor e presidente da Associação do Grupo de Congado Divino Espírito Santo de Bocaiúva. 15 Entrevista com Luiz Fernando Dias Leite, realizada em 22 de Agosto de 2011.

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Outubro, o grupo que era do Sebastião era de Nossa Senhora do Rosário, devido a divisão, meu avó (João Vieira Dias, saudoso João Pretinho) fundou outro grupo com mesmo nome. No ano de 1985, meu avô registrou o grupo por nome de, Congado do Divino Espírito Santo, assim fundando uma nova festa na cidade, realizada no mês de Maio, na verdade os dois grupos eram de Nossa Senhora do Rosário, dai meu avô fundou a Festa do Divino, e colocou o nome com o Congado do Divino Espírito Santo, mas os dois grupos, participam das mesma festa16.

Esta festa em Bocaiúva, apesar de a princípio não ter ligações com as festas dos Açores, vale ressaltar que guarda algumas características interessantes e similares às realizadas na ilha de São Miguel, como a realização do sorteio que é feito todo ano ao fim da festa onde é escolhido o mordomo do próximo ano, tem os bodos para a comunidade e o cortejo com rei, rainha e a corte, mas não há uma coroação propriamente dita, os participantes do cortejo vestem as roupas especiais e desfilam pela cidade. No Vale do Guaporé, no estado de Rondônia, há uma Festa do Divino Espírito Santo que, segundo os moradores da região, é comemorada desde 1899, introduzida por Manuel Fernandes Coelho17, evoluindo até o que é hoje. Nos meses da festa, entre Abril e Junho, os foliões, remadores e as insígnias do Espírito Santo seguem num batelão, conhecido como 16 Entrevista com Luiz Fernando Dias Leite, realizada em 22 de Agosto de 2011. 17 Quando de sua mudança de residência de Vila Bela do Mato Grosso para a localidade de Ilha das Flores levando consigo os festejos com a coroa e a bandeira do Divino.

Barco do Divino, pelas cidades ribeirinhas, colhendo donativos para os festejos, iniciando sempre na cidade onde foi realizada a festa no ano anterior, e onde o imperador entrega a coroa e a bandeira.

Assim como em outras partes do Brasil, há a presença de um caixeiro que toca acompanhando outros instrumentos próprios durante a aproximação do barco no porto das comunidades onde o barco passa. Também, há os foliões, crianças de oito a quatorze anos que cantam, há o caixeiro, o Encarregado da Coroa que leva a coroa de prata e o Alferes de Bandeira, que carrega consigo a bandeira, além de outros personagens.18

Em Pirenópolis, uma cidade do estado de Goiás, a cerca de cento e cinquenta quilômetros de Brasília, é realizada uma Festa do Divino Espírito Santo, que já possui mais de 200 anos. A cidade foi fundada em inícios do século XVIII, e foi ponto de exploração mineira no auge do ouro no Brasil. A Festa Divino de Pirenópolis é registrada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) como Patrimônio Cultural Brasileiro, e é realizada, segundo Eduardo Etzel19, pelo menos desde 1819, data do primeiros registros de imperadores20.

18 Festa do Divino Espírito Santo, Vale Guaporé. Disponível em: <www.pakaas.net/di1.htm> Consultado em 18 set. 2011. 19 Cf. Eduardo Etzel, Divino: Simbolismo no Folclore e na Arte Popular, Livraria Kosamos Editorial, São Paulo, 1995, P. 96. 20 IPHAN Avaliação Registro Da Festa Em Pirenópolis, Como Patrimônio Cultural Brasileiro. Vnsultado em <www.maxpressnet.com.br/e/iphan/iphan_13-04-10b.html> Consultado em: 20 set. 2011.

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Em Santo Amaro da Imperatriz, uma cidade do Litoral Catarinense, a festa é realizada desde 1854, e segundo consta, originou-se pelo desejo da população maioritariamente de origem açoriana e do consentimento do Padre Macário César de Alexandria e Souza, pároco de São José, na época. Porém, uma vez que, em 1845, a região recebeu a visita do casal imperial Dom Pedro II e Dona Teresa Cristina, é provável que esta visita tenha exercido uma forte influência no desejo da comunidade em realizar a festa. Somente mais tarde, em 1875, foi criada a Irmandade do Divino Espírito Santo de Santo Amaro da Imperatriz.

Toni Vidal Jochem comenta que, em Santo Amaro da Imperatriz, a festa adquiriu suas particularidades com adaptações regionais desde seu início, em Maio de 1854. Uma destas particularidades é o “Enterro dos Ossos”, ritual que não encontramos em nenhum outro lugar estudado, e acontece, de acordo com Toni Jochem, na Segunda-Feira após a festa.

(…) na Segunda-Feira, geralmente a partir das 15 horas. Na tarde deste dia, que se tornou um feriado municipal, as Bandeiras Peditórias, a coroa, o cetro e a espada, são conduzidos em procissão pelas duas famílias imperiais, em trajes menos pomposos, acompanhadas pela banda de música e entregues ao pároco na capela interna da casa paroquial. Em seguida, o festeiro é colocado por populares num caixão de madeira enfeitado com flores e conduzido pelo meio do público, acompanhados pela Banda de Música. Na sequência, outras pessoas se revezam no caixão, inclusive o festeiro do ano seguinte, enquanto o desfile segue por algumas ruas da cidade, caracterizando-se pela distribuição gratuita de chope, levado na carroceria de um caminhão. Além de beber à

vontade, os participantes jogam o chope uns nos outros e nos que passam, numa grande brincadeira. O desfile retorna ao pátio da Igreja Matriz, onde um conjunto musical faz um show de encerramento da Festa21.

Em Florianópolis, as referências mais antigas sobre a realização de Festas do Divino Espírito Santo e das Irmandades do Divino, remontam o ano de 1776. A Irmandade do Divino Espírito Santo da Paróquia de Nossa Senhora do Desterro, por exemplo, tem sua data de fundação no ano de 1773, a primeira coroação só vem a acontecer em 1806. A atualmente, há apenas três irmandades, a da Capela do Divino Espírito Santo da Paróquia de Nossa Senhora do Desterro, a da Paróquia Nossa Senhora da Lapa do Ribeirão da Ilha e da Capela de Nossa Senhora das Necessidades de Santo Antônio de Lisboa22. Ao longo do litoral do estado de Santa Catarina encontramos festas dedicadas a Terceira Pessoa da Santíssima Trindade de Norte a Sul, desde Penha ou Barra Velha até Sombrio, no extremos Sul do estado, estendendo-se por dezenas de municípios no estado do Rio Grande do Sul. E, em Florianópolis, acontecem em quatorze comunidades: na Trindade, em Santo Antônio de Lisboa, em Canasvieiras, em Monte Verde, em São João do Rio Vermelho, na Barra da Lagoa, na Lagoa da Conceição, na Prainha, no Ribeirão da Ilha, no Campeche, na Cachoeira do Rio Tavares, na

21 Entrevista com Toni Jochem em 24 de Julho de 2011 22 Cf. Lélia Pereira da Silva Nunes. Um Olhas Sobre o Espírito Santo em Santa Catarina: O contributo cultural da Diáspora Açoriana. Disponível em: <http://www.comunidadesacorianas.org> Acesso em: 20 Set. 2011.

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Armação, no Pântano do Sul e no bairro do Estreito, que fica na parte continental do município de Florianópolis. Em cada uma delas encontramos particularidades distintas que as diferenciam em pontos particulares, desde em pequenas cerimônias realizadas durante as celebrações religiosas, até em rituais mais marcantes23. Nestas festas, a identidade cultural muitas vezes se confunde com a identidade religiosa, sobretudo quando se trata de Festas do Divino Espírito Santo, em locais e momentos culminantes, onde a manifestação religiosa em louvor ao Divino é praticada como elemento identitário nos locais onde este se faz necessária, sobretudo quando se trata de organizações com caris cultural identitário, ou em regiões onde são reconhecidas as influências identitárias24.

Por fim, torna-se importante ressaltar que, apesar do caráter de marcador cultural que as Festas do Divino Espírito Santo tem vindo a assumir, desde o seu aspecto turístico e inovador, encontrado no Sul do Brasil, até seu caráter alegórico adquirido pelas festas nas comunidades açorianas nos Estados Unidos da América ou mesmo nos Açores, um dos aspectos que permanece inalterado, talvez seja, a forma fiel como os agentes culturais se dedicam à sua organização, em respeito ao Espírito Santo e a sua própria comunidade.

23 Cf. Lélia Pereira da Silva Nunes. Op., cit. 24 Cf. José Reginaldo Santos Gonçalves; Marcia Contins, Entre O Divino E Os Homens: A Arte Nas Festas Do Divino Espírito Santo, Universidade Federal do Rio de Janeiro – Brasil. In: Horizontes Antropológicos, V.14, Nº29, Porto alegre, Janeiro 2008.P. 73.

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Acesso em 22 Nov. 2011.

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EL MAÍZ EN LA COSMOVISIÓN MAYA

María Montserrat Camacho Ángeles25

Con el presente trabajo trataré de dar un acercamiento al pensamiento maya, tanto prehispánico como actual, mostrando la importancia del maíz dentro su cosmovisión. Hacia 1927 aproximadamente, cuando los curadores del museo Smithsoniano de Washington D.C., se enfrentan con una vasta colección etnográfica, a la cual no sabían cómo atribuir. Del problema de no saber cómo organizar el material, surge el concepto de área cultural. Y las áreas culturales justamente como su nombre lo indica, hacen caso omiso a las divisiones geopolíticas contemporáneas. América para su estudio se ha dividido en áreas culturales y una de ellas es Mesoamérica, dentro de ésta se encuentra el área maya. Mesoamérica se divide tradicionalmente en cinco regiones: - Área Maya - Costa del Golfo - Oaxaca - Altiplano Central o Centro de México - Occidente de México

25 Universidad Autonoma del Estado de Hidalgo

Fig. 1 http://www.famsi.org/spanish/maps/

Es Paul Kirchhoff quien en 1943, en un intento de

señalar que tenían en común los pueblos y las culturas de una determinada parte del Continente Americano, crea el concepto de Mesoamérica (Kirchhoff, 2009:15), tendencia de la escuela alemana de geografía. El área geográfica de Mesoamérica comprende la mitad meridional de México, los territorios de Guatemala, El Salvador y Belice, así como el occidente de Honduras, Nicaragua y Costa Rica. ¿Dónde termina Mesoamérica hacia el norte? Donde comienza la carne asada y la tortilla de harina, ya no es Mesoamérica, porque justamente la parte norte que estuvo ocupada por cazadores-recolectores, la tradición culinaria es diferente a la de los pueblos sedentarios mesoamericanos, ya que no

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cultivaban el maíz ¿Dónde termina Mesoamérica en el sur? Llega hasta la península de Nicoya en Costa Rica por el pacifico, no por el Atlántico, porque parte de Honduras ya forma parte de otra área que se denomina intermedia. Mesoamérica termina donde comienza la cultura de la piedra verde, la jadeíta., donde termina esa cultura ya no es Mesoamérica y sabemos que ya no estamos en Mesoamérica cuando comienza la cultura del oro, (Pérez: 2015) 26 la metalurgia mesoamericana apareció repentinamente en el occidente mesoamericano entre los años 600-800 de nuestra era. Esto se produjo después del auge de las grandes civilizaciones del periodo clásico mesoamericano, entre las que se encuentra la maya y la metalurgia en la zona intermedia esta desde 2000 a.C. Tres mil años antes de que los mesoamericanos usaran la metalurgia, los pueblos de la zona intermedia ya la usaban. En Mesoamérica era más importante el valor simbólico de la piedra verde que el del oro. Los españoles no pudieron entender eso, de que a diferencia de Perú donde si era muy importante el oro, aquí lo más preciado era la piedra verde, que se asociaba con la fertilidad y con el maíz. El maíz juega un papel muy importante en la cosmovisión de los pueblos mesoamericanos; ya que constituye el alimento fundamental de Mesoamérica y ocupa un lugar central dentro de su cosmovisión y cosmogonía. Entre los mayas destaca una estrecha relación entre la creación del hombre y el origen del maíz. 26 Comunicación personal Arqlgo. Tomás Pérez, Diplomado los Mayas, Casa de las Humanidades, UNAM (3 Marzo 2015).

La cosmogonía maya la tenemos manifiesta en varias fuentes: “las indígenas, obra plástica, vasijas policromas, muros pintados, estelas y dinteles grabados, estucos y códices” (Nájera, 2002: 115). De principios de la época colonial, textos mayas, escritos en lenguas mayas, traducidos al alfabeto latino, que los mayas aprendieron de los frailes que vinieron a evangelizar. Los indios coloniales conservan sus tradiciones, costumbres, mitos antiguos y entonces aprovecharon y ya con caracteres latinos escribieron libros. Entre ellos está el Popol Vuh, que pertenece a un grupo de mayas quiché de Guatemala, considerado obra maestra de la literatura indígena y con un gran valor histórico. Basándonos en el Popol Vuh, los mayas concebían el origen del mundo relatando que los dioses en un escenario estático de agua, mar y cielo decidieron crear a un ser que los venerara y los alimentara, De este relato, nos podemos cuestionar. ¿Qué son los dioses? Seres incompletos que existen, que son todo poderosos, pero que necesitan de otro ser, que ellos mismos van a crear para que los alimente y los veneré. Entonces se reunieron los dioses y se preguntaron: ¿Cómo vamos a sobrevivir? A lo que respondieron, vamos a crear a los hombres, seres que nos veneren y alimenten. Entonces los dioses crearon a un hombre de barro. El barro es una materia deleznable, se rompe fácilmente, se utiliza para fabricar ollas para comer. El hombre no pudo haber sido creado de dicha materia. Después de crear a esos hombres de barro, según el mito, vino un diluvio terrible que destruyo a esos hombres de barro, porque cuando los dioses les preguntaron ¿quiénes somos nosotros? ¿Nos reconocen? ¿Nos van a venerar? ¿Nos

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van a alimentar? Los hombres de barro no respondieron absolutamente nada, no entendían. Cayó una lluvia y los deshizo como se desintegra una figurilla de barro. Por lo cual son hombres de barro deleznables. Entonces crearon a los hombres de madera, ya una materia más sólida, a los cuáles los dioses preguntaron ¿Quiénes somos nosotros? Y, los hombres de madera no entendían nada, podían multiplicarse, dice el texto, incluso se multiplicaron, caminaban, pero no entendían, no reconocieron a los dioses. No entendían porque no tenían sangre y porque les faltaba humedad, eran secos, entonces cayo un diluvio, los destruyo y se convirtieron en monos. Los monos fueron seres sagrados. Para los mayas, los hombres descienden de esos hombres primitivos que no pudieron reconocer a los dioses, vino un diluvio que aparece representado en la página 53 del Códice Dresde. En la escena aparece el dragón celeste Itzamná, acompañado de la vieja diosa O, ocasionan un diluvio cósmico; el dragón arroja por sus enormes fauces un torrente de agua y la anciana diosa, con garras en vez de manos y pies, huesos cruzados sobre su falda, vacía un cántaro de agua; abajo se observa al Chaac (deidad de la lluvia) negro con un águila sobre su cabeza y portando dardos y lanza, cómo símbolo de destrucción. (Nájera, 2004: 4). Esta página se ha interpretado como la destrucción de uno de los mundos. Seguramente el diluvio que terminó con los hombres de madera. Aquí vemos como se entrelazan ambas tradiciones, las de origen prehispánico, con las coloniales. Ya que el Popol Vuh viene de una tradición muy antigua, y aquí podemos mostrar cómo se manifiesta en las obras plásticas.

Fig. 2 Códice Dresde lámina 53. Representación del diluvio provocado por el dragón celeste. http://www.famsi.org/spanish/research/graz/dresdensis/img_page74.html

Entonces los dioses decidieron buscar otra materia y encontraron el maíz, a través de algunos animales que los guiaron al lugar donde se encontraba el maíz. Molieron la masa de maíz, prepararon bebidas (atole de maíz) y con eso

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mezclado con sangre de tapir y de serpiente formaron un hombre nuevo. Un hombre de maíz, con sangre de animales sagrados, el tapir, símbolo acuático y la serpiente27, símbolo de fertilidad tanto masculina como femenina (símbolos sagrados). Esos hombres aparecieron sobre el mundo y los dioses les preguntaron ¿quiénes somos nosotros? ¿Nos reconocen? Los hombres respondieron, claro que los reconocemos ustedes son los dioses que nos han dado la vida, nos han dado el ser, nosotros les agradecemos profundamente todo lo que han hecho por nosotros, porque somos seres que entendemos todo, conocemos todo, vemos todo lo que hay más allá de las montañas, sabemos todo. Entonces los dioses pensaron, esto está bastante mal porque si estos hombres conocen todo y ven todo, no nos van a venerar, no nos van a alimentar, no necesitan de nosotros. Los dioses decidieron velarles un poco la mirada. Los hombres no pueden ser todo poderosos, no pueden ser perfectos, deben tener una limitación, eso lo sabían los mayas. Los dioses volvieron a dialogar y decidieron quitarles la perfección, ya que así no les servirían les echaron un vaho sobre los ojos para que no vieran más que lo inmediato, les quitaron la perfección. Entonces los hombres resignados perdieron todos esos conocimientos. Estos ya fueron los hombres reales. Los hombres de madera no sirvieron porque no tenían sangre ni humedad, lo cual quiere decir que la sangre es clave para ser humano. Sin la sangre no puede existir un ser humano, sin humedad tampoco, algo seco no es humano. 27 El texto original se encuentra en español, la traducción de Recinos, del Memorial de Sololá. Anales de los cakchiqueles, pp. 47-53.

Cosmología termino que viene del griego también significa orden y estructura del cosmos, cómo está organizado estructuralmente el mundo. Los mayas pensaban que había tres niveles verticales y cuatro niveles horizontales en el cosmos, nivel de la tierra que concebían como una plancha plana cuadrangular, al centro se levantaba la gran ceiba, que llegaba hasta el cielo y sus raíces penetraban al inframundo, el cielo estaba constituido por diferentes estratos trece y debajo de la tierra trece estratos del inframundo, estos eran como una pirámide invertida.

La cuadruplicidad abarca el cosmos en su totalidad, es decir, se proyecta al cielo y al inframundo, por lo que en sus conceptos cosmológicos hallamos tres símbolos geométricos fundamentales: la cruz, el cuadrado y la pirámide, que fungen como símbolos religiosos en otras cosmologías (De la Garza, 2002: 55).

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Fig. 3 http://www.revista.unam.mx/vol.13/num11/art108/

Sabemos que los cuatro rumbos del plano terrestre

comparten la cuadruplicidad con el cielo y con el inframundo, también hay cuatro partes en el inframundo y cuatro partes en el cielo. Se dividió en cuatro rumbos, entre los mayas los puntos eran intercardinales, no era exactamente en el punto cardinal sino en medio de dos puntos cardinales (donde estaban las esquinas), pensamiento cosmológico principal de los mayas. El árbol cósmico que estaba en el centro del universo y en cada uno de los rumbos cardinales se levantaba también una ceiba del color del rumbo porque eran de cuatro

colores diferentes (blanco, negro, rojo y amarillo). El Chilam Balam dice que ahí se posaba un pájaro del mismo color. La gran madre ceiba que está en el centro del cosmos es verde. Está idea se remonta a los códices mayas como lo podemos ver en las paginas 75-76 del Códice Madrid. Explicar el centro ceiba, bracero las deidades creadoras, no esposa, sino aspecto femenino del mismo dios, todos los dioses tienen sus dos aspectos, masculino y femenino.

Fig. 4 paginas 75-76 Códice Madrid.

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En Palenque, en el Tablero del Templo de la Cruz Foliada, se encuentra grabada como motivo central, una planta de maíz que sale de un mascarón que representa al monstruo de la tierra, identificado por el glifo K´an (Cruz, 1999: 108). La escena de entronización de Kan Balam II, en la que aparece acompañado de su padre Pakal II. Un mascarón muy semejante, también con elementos vegetales se ubica en lo alto de la cruz, de la que cuelgan hojas de maíz. Resulta interesante como la representación de la planta de maíz aparece como axis mundi. La planta que emerge se bifurca en dos extensiones que terminan en mazorcas, que en realidad son los rostros del dios del maíz o dios E. La planta se yergue como un eje del mundo en forma de cruz, y señala asimismo los cuatro rumbos del universo (Ibíd.). Sobre este complejo grabado se posa el pájaro serpiente, imagen del cielo. Por tanto, en esta imagen, se conectan los rumbos del universo con el nivel celeste y terrestre, estos últimos representados por el dragón (De la Garza 1997: 108).

Fig. 5 http://americaindigena.com/thompson/religionmaya01-1.jpg

La cruz foliada que es la planta de maíz, representa la fertilidad de la tierra y de los hombres. Lo comprobamos al mirar el tablero y darnos cuenta de que Pakal, el personaje de la derecha, está parado sobre una planta de maíz. Al estar Pakal parado sobre la planta de maíz, alude a su renacimiento sacralizado, ya que es, a su vez, sostenido por la mano del dios, ratificando su origen divino, su linaje vinculado al mundo de los dioses (Cruz 1999: 109).

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El maíz, encarna las energías de renovación y fecundidad, pues provee de buenas cosechas (Valverde 1990: 113). EL MUNDO DE LOS DIOSES

Para los mayas los dioses eran energías invisibles e impalpables, que podían encarnar en seres naturales por ejemplo, el sol o en la luna. Lo sagrado encarna en el sol y en la luna pero, a su vez, lo sagrado puede encarnar en animales también, puede encarnar en muchos seres de la naturaleza y luego los seres humanos hacen figuras antropomorfas, ya con forma humana que representan a esas deidades.

Al dios del maíz, Schellhas lo identificó como la deidad del maíz y de la agricultura, ya que su cabeza es la representación de una planta (Sotelo 2002: 123) de maíz. El dios del maíz encarna a la planta y al grano, por tanto tierno como seco; al maíz sobre la superficie terrestre como como al que está enterrado en la región subterránea donde va a renacer (Ibíd.: 128). Por lo anterior, concluimos que dentro del pensamiento maya, el maíz forma parte primordial, tanto, que antes de que el hombre fuera creado, éste ya existía. El maíz es la materia sagrada, que mezclada con sangre divina dará por resultado al hombre. Bibliografía Cruz, Cortes Noemí (1999) “Mitos de origen del maíz de los mayas contemporáneos” Tesis para obtener el grado de

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AYAHUASCA:ETNOGRAFIADEUMRITUALSAGRADO.

ReginaclaradeAguiar28RESUMO:Oartigotratadeumestudoetnográficoarespeitodouso ritualístico da mistura psicodélica elaborada com o cipójagube (Banisteriopsis caapi) e folhas da chacrona ou rainha(Psycotriaviridis),quesãocozidasdentrodeumprocessorituale resultam num chá considerado sagrado, conhecido comoayahuasca, ou comoa LuzdoDaime.O tema tem como focoo"Centro de Irradiação Espiritual Casa de Jesus e Lar de FreiManoel". O local é mais conhecido por Barquinha e ficalocalizado na cidade de Ji-Paraná, no estado de Rondônia. Oestudoenvolveosistemadecrençaserituaisdaimista,levaemcontaconceitosdaAntropologia,eofatodequeaBarquinhadeJi-Paraná nunca foi objeto de estudos com especificidade emnenhumainvestigaçãoenvolvendosistemasdecrençaserituaisamazônicos.PALAVRAS-CHAVE: Ayahuasca, Ritual, Religiosidade,Antropologia.Introdução

O seguinte artigo faz parte de um conjunto de informações recolhidas num templo daimista. Aqui são apresentadas as primeiras impressões dessa investigação de cunho etnográfico, realizada no período de outubro de 2014 a março de 2015, no "Centro de Irradiação Espiritual Casa de Jesus e Lar de Frei Manuel". A pesquisa está relacionada a um ritual

28 Jornalista e Doutora em Antropologia de Ibero-América pela Universidade de Salamanca.

dentro de um contexto urbano, com a ingestão do chá da ayahuasca, a substância sagrada dos povos amazônicos, conhecida também como a Luz do Santo Daime. De acordo como define o presidente/dirigente do centro, foco da etnografia, Edilson Fernandes da Silva, “o rito se configura como uma prática religiosa universalista”. Mas de acordo com o que se observou posteriormente, in loco, o rito também possui forte tendência a uma configuração ritualística sincrética e eclética.

Para a pesquisa foram utilizadas ferramentas do método etnográfico como a observação participante direta, além de um registro em imagens, clips de vídeo e entrevistas semiestruturadas, com a devida autorização e orientação do Mestre Espiritual da Casa de Culto. A etnografia foi planejada de forma aleatória e de acordo com o calendário da casa.

Sabemos que muitos campos das ciências vêm se interessando sobre questões relativas ao êxtase e a estudar grupos sociais que vivenciam experiências com motivações de fé no isolamento da sociedade. Além do mais a oportunidade de se fazer essa investigação, representa algo novo em alguns aspectos, e leva a buscar em disciplinas como a antropologia, saúde, comunicação, psicologia social, entre outras, um entendimento cientifico específico, partindo da experiência com o empírico.

Ponto de Partida

Vivendo temporariamente na cidade de Ji-paraná, na

região amazônica rondoniense, em certa ocasião, fui levada a

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visitar o referido Centro daimista onde acontecia um café da manhã estilo colonial, constante no calendário anual de atividades da casa de orações. O local é popularmente mais conhecido por Barquinha, e também Igreja ou Missão. O evento é realizado em função de se prover o caixa para ajudar na manutenção das despesas do Centro que está localizado numa chácara em área urbana, num bairro afastado do município, que é o segundo do estado de Rondônia.

O conhecimento da existência da Barquinha, veio por meio de amigos. Entretanto, na medida em que houve uma aproximação com a casa, com o dirigente e os fiéis participantes, a pesquisa foi sendo formatada, evoluindo para uma etnografia, objetivando se conhecer plenamente e espontaneamente, os procedimentos relacionados à ingestão do chá considerado sagrado. A literatura contemporânea sobre o tema vem mostrando que rituais com a utilização da ayahuasca, realizados dentro de um contexto urbano, adquirem dimensão diferente dos ritos realizados por nossos ancestrais, pajés e xamãs, em meio à floresta.

Por ocasião da primeira visita ao Centro o presidente dirigente fez questão de acompanhar-me e mostrar a propriedade, encravada numa área privada de reserva florestal amazônica. Daí veio o convite para voltar e participar da sessão daimista. Naquela manhã ensolarada de 02 de agosto de 2014, a flor do jagube floria lilás, e se balançava majestosa nos cipós enroscados nas plantas da alameda de entrada. O anfitrião explicou que antes faziam a coleta do cipó de jagube e da folha da chacrona ou rainha, cuja liga destas duas plantas produz a ayahuasca,

diretamente na floresta, in natura, mas hoje contam com uma produção própria que satisfaz a toda a comunidade com cerca de 150 pés de cipó e uns 200 pés da folha da folha da chacrona. Por questões de tempo e outros compromissos o retorno a casa daimista aconteceu exatamente após dois meses, no dia 4 de outubro, data em homenagem a um dos santos católicos da casa, São Francisco das Chagas, e se pode observar que o ritual naquele dia tinha um tom bem especial, já que o santo dentro da simbologia santeira da casa é homenageado com uma celebração denominada de romaria. A partir de então, participei de algumas sessões com o chá da ayahuasca, com duração entre quatro a dez horas, aproximadamente, em ocasiões diferentes. O fato é que há uma curiosidade intensa em se tratando de um universo cosmogônico, que acontece ainda meio que de forma discreta em comparação com outras práticas religiosas consideradas mais comuns no meio social, de certa forma, bastante comum em alguns estados da região amazônica.

A ideia inicial era conhecer plenamente e espontaneamente o procedimento em relação à ingestão do chá sagrado, dentro de um contexto de ritual. E assim compor um quadro da forma como as pessoas se comportam no espaço ritualístico. No caso, a investigação estaria dentro dos parâmetros da antropologia aplicada, mas também tem a ver com religiosidade, oralidade, e “tendo em conta que uma prática antropológica abrange o holístico e interdisciplinar, se pode fazer

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uso de outras disciplinas (2011:36)” 29, no caso, o entrelaçar de outras ciências dá o tom e mescla de originalidade a um aprofundamento do tema. A princípio pude observar que o rito possui uma estrutura liminar, que de certa forma quer romper por meio dos dogmas ensinados, com uma ordem presente na sociedade, transformando culturalmente as performances, assim como o ato ritual, em um evento significativo para o conjunto de trabalhadores da irmandade. Nesse sentido vale levar em conta a ideia de teia cultural de significados que vão se unindo. E como diria Geertz30,

Aindaquecontenhaideias,aculturanãoexistenacabeçadealguém.Aindaquenãosejafísica,nãoéumaentidadeoculta. [...]Umavezquea condutahumanaé vista comoaçãosimbólica[...]perdesentidoaquestãodesaberseacultura é conduta estruturada, ou uma estrutura damente, ou até mesmo as duas coisas juntas, mescladas.(Geertz1990:24,25traduçãodaautora).

O objetivo principal da investigação foi centrado na

observação quanto à ingestão do chá no ritual, uma vez que tem conotação com o sagrado e as diversas formas de atuação do êxtase, que nesse caso é induzido por meio de substância considerada enteógeno. Sabemos que existem numerosas técnicas de indução para se alcançar o estado de êxtase ou percepção alterada, seja por mecanismos puramente de

29De Aquiar, Regina Clara, (2011) Estudo Histórico Antropológico do Mito Sebastianista: A Pedra do Rodeador Como Expressão Simbólica na Interculturalidade Iberoamericana. 30 De Aguiar, Regina Clara, apud GEERTZ, Clifford, (1990) La interpretación de las culturas. Ediciones Gedisa, Barcelona.

manipulação da mente como yoga, meditação, danças, sons percussivos que podem levar a um transe temporário além de drogas psicoativas e psicotrópicas que atuam diretamente no funcionamento do cérebro. Processo Ritualístico A sessão tem início com o toque de um pequeno sino na entrada principal do espaço templo em que se transforma o salão para os trabalhos com o daime ou ayahuasca. O dirigente, chamado por alguns fiéis de padrinho, dar inicio a chamada e explica, que quando se bate a campa é um aviso, é para vibrar.

Tem uma nota musical que vibra e harmoniza o ambiente. Tem três toques, sendo o primeiro para chamar as pessoas a se amalgamarem em volta da vibração. O segundo é para harmonizar as pessoas que vão chegando e o terceiro para manter a vibração constante, “eu bato pammm, o pessoal já silencia, procura o caminho, o segundo tamm, o pessoal tá na fila. O terceiro, eu to avisando que vou distribuir o Daime”31. A bebida que tem uma cor levemente marrom, com sabor forte, é recebida das mãos do dirigente em pequenos copos de plástico, aonde ele vai dosando a quantidade do chá, dependendo de quem vai receber. Os seguidores após ingerirem a beberagem, tem sempre algum bombom à mão,

31 Entrevista realizada na Barquinha de Ji-Paraná ou Centro de Irradiação Casa de Jesus e Lar de Frei Manuel, no dia 08 de março de 2015, com o dirigente da entidade, Edilson Fernandes da Silva.

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que já seguram sem a embalagem, para por na boca e assim cortar um pouco o sabor amargo.

Os participantes vão se aproximando silenciosamente da igreja que tem paredes vazadas para que se aproveite ao máximo do ambiente natural do lugar, circundado pela floresta. Vestem roupa branca e formam filas em duas colunas. Os homens do lado esquerdo e as mulheres do direito, incluindo as crianças que também ingerem a ayahuasca e ficam na frente de todos. O último a beber é o próprio mestre que distribui o daime para todos, deixando para beber ao final.

Esse momento solene da entrega sacramental da

ayahuasca pode ser interpretado como uma espécie de comunhão, a exemplo da prática do rito final da missa no catolicismo. Mas ao contrário da celebração católica, é aí que começa a sessão daimista, no caso específico do ritual do sacramento com a ayahuasca na Barquinha.

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Circulando e observando na vivência e convivência com o grupo daimista, surge uma impressão forte de ligação das dimensões determinantes entre relações do sagrado e profano na cosmovisão do Centro. De certa forma as tarefas espirituais já indicam a dimensão do sagrado. Mas, o grupo também conta com todo um lado de práticas profanas, quando realiza encontros casuais nas residências dos membros da irmandade, além do café colonial aberto ao público em geral. E os intervalos entre a sessão e o bailado, são momentos para se relaxar dos trabalhos pesados com a espiritualidade; e é quando é oferecida uma mesa farta aos crentes, e dependendo da data, também se parabeniza os aniversariantes da ocasião.

Obras de Caridade – é considerada a tarefa mais importante desenvolvida na casa, acontecendo geralmente aos sábados em sessões normais e também em datas comemorativas ou romarias, quando o ritual é dedicado às festividades dos principais patronos: São Sebastião, S. José e São Francisco. Nessas ocasiões o chá é distribuído normalmente, e em seguida os adeptos recebem uma vela e se posicionam em filas na entrada da chácara. Entoando hinos e orações, o santo homenageado é levado num andor, em procissão de luz, até a mesa no formato de cruz, onde é colocado para o inicio do rito.

Os frequentadores nessas reuniões de trabalhos, voltadas à espiritualidade, tem toda uma orientação dos lugares onde deverão sentar. Os homens se posicionam do lado direito e as mulheres do esquerdo, de frente para o altar. O mestre ayahuasqueiro Fernandes, ao ser indagado sobre o

porquê da divisão de gêneros no seio do ritual, faz uma verdadeira digressão do sentido de separar o homem da mulher, ou o trabalhador da trabalhadora, durante os trabalhos no templo, pois nessa relação de significados está contida toda uma simbologia, voltada ao conjunto de dogmas e preceitos que compõem o ato ritualizado. Segundo explica, isso funciona desde a criação do rito nos anos 30, com o mestre Raimundo Irineu Serra, originário do Maranhão, que migrou para o Acre vindo a ser o fundador e conceitualizador da doutrina daimista em religiões não indígenas.

A questão da separação por sexo tem dois sentidos, relacionados com a divisão física entre o cipó e a folha, uma representa a rainha, que é a mãe, que tem o carinho, o respeito, e é a portadora da paz. O homem é o guerreiro portador da mensagem, quem traz a segurança e também a rigidez. Enquanto um é duro, o outro é amoroso, simboliza também a dualidade. O mestre segue com a reflexão,

Tem o lado masculino e o lado feminino, o positivo e o negativo... Porque a divisão? Primeiro prá simbolizar as energias, que são diferentes. Segundo, prá que ninguém, dentro da ritualidade... Isso já é um cuidado moral..., fique acariciando sexualmente uma pessoa, sem necessidade. Porque quando a pessoa tá dentro de um trabalho espiritual..., tem que tá estritamente voltada à espiritualidade. O cipó e a folha... Simbolizam a terra e o céu... Ambos, tanto o cipó como a folha tem o lado masculino e o lado feminino. os quatro

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elementos..., água, terra, fogo e ar. Então, a folha da chacrona e o cipó se fundem, porque tem a parte humana e a parte divina. Tem a parte material e a parte espiritual. Tá fundindo a terra pelo elemento fogo e o elemento água. O elemento água simboliza a mulher, o feminino. O fogo o masculino. (Entrevista com o dirigente da Barquinha Edilson Fernandes da Silva).

Crianças Ayahusqueiras As crianças recebem o Daime na fila, antes dos adultos. Contam com seu próprio espaço na casa, onde se alojam durante a sessão ritualística no salão principal. Após a ingestão do chá elas se recolhem a esse quarto adaptado a uma cosmovisão infantil, com ilustrações nas paredes, estantes contendo em suas prateleiras lápis coloridos e papel, para quem quiser pintar e desenhar; livros e jogos infantis; fantoches para se trabalhar os ensinamentos, dogmas e doutrinas pregados na casa, por meio do teatrinho de bonecos, etc. E é aí onde ficam mais a vontade, sob o efeito da beberagem. Brincam e descarregam a energia “irradiada”, potencializada e sensibilizada com o enteógeno, mas sempre sob os cuidados de um adulto. Quando uma criança tem comportamento hiperativo, o adulto tem que impor a ordem, a disciplina, para não incomodar os trabalhos em desenvolvimento com a espiritualidade. Segundo o orientador espiritual da casa, as crianças não tomam o mesmo Daime dos adultos. O transe ou

êxtase é proporcionado pelo poder das músicas e invocações e do trabalho em que se encontram os adultos sob o efeito do chá, ou seja, é uma espécie de irradiação indireta do Daime dos adultos. A ingestão é mais simbólica com intuito de inseri-los no trabalho, uma vez que estão sempre acompanhados dos pais ou dos responsáveis, e cita a expressão, “meu pai e minha mãe bebem eu também quero beber”. Enquanto isso, no salão da igreja, os adeptos participam, em meio ao silêncio, cantos e orações, do rito sincrético, eclético, universalista. Fernandes afirma categoricamente, “o Daime não é religião, e sim, um instrumento psíquico que ensina”. Neste momento do rito sagrado se pode visualizar como os corpos sentados expressam contornos faciais e movimentos com leves tremores das mãos e pernas, muitas vezes de extrema sutileza, que só os olhos do observador mais atento, podem captar, como a lente da câmera fotográfica; e se relacionam assim, individualmente com o que esse Instrumento ensina, ou seja, a experiência que abre a percepção e proporciona o estado alterado da consciência em profundo êxtase; mesmo sendo uma manifestação experimentada em grupo, o estado mental individualizado dentro do ritual, adquire significados diferenciados, de acordo com a decodificação de cada participante no grupão, coletivamente, dependendo da subjetividade em se lidar com a situação, individualmente, nesses estados de grande concentração. É normal se ouvir após o encerramento da sessão, quando os participantes saem da viagem transcendente do êxtase, comentários como: o Daime estava muito forte hoje..., ufa!

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Nesta intensa entrega dos crentes, vemos de vez em quando uma criança correndo, imbuída do seu próprio êxtase infantil, em busca de um adulto, pai, mãe ou responsável. Podemos observar que seus corpos e mentes em formação, de certa forma funcionam como uma repetição de aparências e posturas dos adultos que convivem no espaço sagrado e sacralizado pela ingestão do Daime.

Bailado - acontece em alguns encontros marcados no calendário da casa, em datas de celebrações festivas, sempre na segunda parte do ritual, após a finalização e encerramento dos trabalhos no salão principal. As pessoas presentes ajudam na adaptação do local quando é encerrada a sessão. Recolhem as cadeiras e afastam a grande mesa central em forma de cruz, transformando assim o espaço, numa metamorfose de “terreiro” ou “parque” para as danças. Nesse sentido identifica-se uma demarcada fronteira entre o sagrado e o profano, já que intermedia a divisão do ato ritualizado. Nesse intervalo os adeptos se encaminham para o salão atrás do ambiente da nave da igreja e ali se deparam com uma mesa posta, rica, com frutas, caldos, bolos, sanduiches, café, sucos, etc. Iguarias que segundo o orientador da casa reduz o efeito do enteógeno, por isso ele fica vigilante e está sempre lembrando as pessoas para não comerem muito. O Daime é distribuído novamente para inicio das danças.

Os pontos entoados aos mais diversos orixás, eres, pretos velhos, botos, sereias, etc., convidam os participantes, que para executarem suas modalidades performáticas junto aos seres invisíveis e encantados, deixarem seus corpos receberem essas irradiações, tem direito a uma segunda dose

do chá, que na ocasião é redistribuído à medida que os fiéis sentem o chamado e a necessidade da substância para abrir o contato e a conexão com o sagrado. A música vai pontuando a entrada das entidades, divindades e santos etc. Nesse momento do rito podemos observar fortes ingredientes das religiões afro-brasileiras, a exemplo da umbanda, levemente misturados com danças meditativas circulares e é quando ocorre a categoria conceituada como miração, que é uma espécie de canal para a comunicação com outros planos no mundo espiritual. É curiosa a participação das crianças nesse espaço considerado parque sagrado das danças, ou seja, na vivencia do “Bailado”, dançando de maneira deslumbrante, misturadas aos adultos na transmutação imaginária da festa espiritualizada. Participam intensamente, brincam, bailam soltas e leves, e até cantam hinos com incrível entusiasmo e energia, ao microfone. Os fieis por meio da música percussiva e sob o efeito do chá, podem ou não vislumbrar a miração. O desenvolvimento performático dos crentes no Bailado vai criando desenhos incríveis no cenário quase circular, dentro do quadrado. Começa a se impor com o ritmo da música percussiva, tambores, guitarras, instrumentos de sopro, flautas, e vozes, muitas são tão estridentes que se confundem com sons da mata que circunda o local. A duração atinge de 4 a 5 horas, quando se pode repetir o consumo da ayahuasca. Dentro desse enfoque a investigação congrega um sentido antropológico que também contém indícios da comunicação não verbal, observada com especificidade no Bailado. E sebusca entender a grande procura por essas casas de culto e

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oraçãoqueusamcomointermediadoraecanaldecomunicaçãocom o sagrado, a ayahuasca, utilizada nos ritos deancestralidadeentreosindígenasdaregiãoamazônica,levandoem conta que no Brasil questões relacionadas à hibridaçãocultural têm revelado um verdadeiro sincretismo religioso,objeto de muitos estudos no campo das Ciências Humanas eSociais. Nesse sentido, a despeito da formação do povobrasileiro, originário segundo Darcy Ribeiro, da mistura dediversas raças e etnias, que foram semisturando ao longo dotempo,desdeospovosindígenasautóctones,aoeuropeu.Eporúltimo, ao africano, trazido à força bruta em navios negreirosparaaservidãoeescravidão.Essefenômenodadiversidadedereligiosidadenopaíssefazlegítimoseobservarmosasdiversasmodalidades referentes às questões da fé que marcarammomentos de conflitos, se hibridando e se manifestando nodecorrer dos séculos, passando pelo descobrimento,colonização,república,atéaosdiasatuais.OfenômenodafénoBrasil tem sido a causa de verdadeiros palcos de lutasrelacionadas com manifestações de crenças e profetas que seautoidentificamsalvadores.Preambulando

A princípio a intenção era simplesmente compreender empiricamente as estruturas imaginárias do rito e o comportamento coletivo das pessoas sob o efeito da ayahuasca que é elaborada a partir da mescla de duas plantas de poder que produzem a liga, considerada pelosetnobotânicosumenteógeno.E sepensou apenasobservar de forma sutil o funcionamento e utilização do chá no ritual de prática ayahuasqueira. Mas foi interessante poder verificar

posteriormente, na imersão da observação direta, alguns efeitos relativos à padronização com relação ao comportamento das pessoas, assim como o sincretismo, ecletismo ou universalismo do rito, que vai desde o catolicismo ao culto pentecostal, passando pela maçonaria, budismo, kardecismo, xamanismo, hinduísmo além de religiões de origem africana, e os salmos que se aproximam aos mantras recitados em religiões de matrizes no oriente.

A utilização da ayahuasca entre os povos tradicionais da Amazônia, não é algo novo. Nesse sentido o trabalho de Wladimir Sena, antropólogo que estudou a Barquinha matriz, com sede na cidade de Rio Branco, capital do estado do Acre, serviu como obra de consulta e suporte para um melhor entendimento sobre o tema. A Barquinha de Ji-Paraná, no entanto, existe desde o dia 13 de fevereiro de 1991 e atualmente conta com cerca de 80 frequentadores assíduos, segundo afirmativa do presidente/dirigente. O funcionamento do Centro em evidencia, conta apenas com 24 anos, enquanto templo de sacramento com a luz daimista.

Hoje, vemos que existe por parte da comunidade científica, uma necessidade de se ampliar as perspectivas sobre fenômenos voltados a questões envolvendo imaginário e sistemas de crenças. Nesta perspectiva, podemos dizer que a pesquisa em tela representa uma articulação no que diz respeito a esses temas muitas vezes polêmicos, mas também uma contribuição especifica no campo cientifico brasileiro. E fica a sugestão para que possa vir a servir de inspiração em outros estudos voltados a temática religiosa, no que diz respeito, tanto ao coletivo quanto ao individual, representado

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pela cotidianidade fora da instituição religiosa, dos participantes. Observamos que essas estruturas sociais enquanto gruposorganizados visam inclusive a contribuir com um trabalho deinclusão social e educação para a inserção no mercado detrabalho. Por exemplo, no caso da “Barquinha” de Ji-Paraná, acasa recebe para participar das sessões ritualísticas e outrasatividades, apenados e egressos presidiários, além de pessoasem plena recuperação de alguma dependência química compsicoativos, para tratamento. Nesse caso pode-se dizer que aentidadeayahuasqueiratambémfuncionacomoumaespéciedehospital.Odirigente explica que a proposta dos trabalhos na casa utilizando a ingestão do Daime está dividida em estruturas - corpo (físico); imaginário mental (lógica); emocional (sentido); sensações, conjunto mental e emocional (espiritual). E dogmas que se referem à ética, educação moral, cívica, religiosa, ordem, leis, condutas, posturas, além de uma busca dos seus fragmentos para retornar a unidade. Sobre o apoio que vem oferecendo a Associação Cultural e de Desenvolvimento do Apenado e Egresso - ACUDA, que faz um trabalho com os apenados em Rondônia, reflete o dirigente espiritual ayahuasqueiro, enfatizando que ele não é propriamente o projeto, mas que faz parte de um projeto na medida em que pode ajudar pessoas à margem da sociedade a ter uma recuperação mais digna e humana e voltar ao convívio social. Conta que há quase três anos atrás, alguns membros da Acuda estiveram na Barquinha,

Vieram aqui, tomaram o Daime duas vezes, e aí viram como é que era a casa. Aí, me perguntaram se eu estava disposto a receber os apenados aqui. Eu prontamente disse, claro... Isso aqui meu filho é uma igreja. A casa aqui é de todos, pode vir quem quiser... Agora em torno de trinta apenados vem aqui. O projeto na Acuda atende cem... Mas não é obrigado a tomar Daime, e nem é obrigado a vir aqui... Na associação tem oficina mecânica, tecelagem, cerâmica, horta comunitária, granja... Além disso... Terapia Ocupacional. Depois tem Reik, constelação familiar... É uma série de coisas. Quando chega aqui... O apenado já chega aqui mansinho..., aceitando a condição dele, a situação dele, e respeitando a doutrina... Evolução? Claro. Até a cor deles muda, a cútis, a pele muda, o olhar deles muda, a postura deles, o comportamento deles. Eles vêm meio arredios, depois vão se libertando, eles vão se soltando, vão relaxando, vão se entrosando... Ficam com todo mundo..., ninguém sabe quem é quem... É isso que eu quero mesmo, que ninguém saiba quem é quem prá ninguém ter preconceito... Todos eles participam..., inclusive a gente os agrega a família... (Entrevista com o dirigente da Barquinha Edilson Fernandes da Silva).

Nesta relação espaço/tempo/cosmovisão há todo um ritual de procedimentos antes e depois dos trabalhos, assim como

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uma divisão das tarefas entre os participantes que atualmente vestem roupas brancas, mas sem serem padronizadas, pois após a ruptura com a casa em Rio Branco-Acre, a Barquinha de Ji-Paraná passou a ter uma maior autonomia e nesse sentido foi desenhada uma nova farda e redistribuídos os símbolos para o fardamento dos fiéis por ocasião das sessões. Mas os crentes vestem o branco espontaneamente, normalmente as mulheres usam saias amplas e confortáveis para o Bailado; e os homens, roupas confeccionadas com tecidos leves e soltos. Sobre esse assunto o dirigente declara que, “a farda existe. Eu não autorizei ainda porque não recebi ordem (da espiritualidade). A ordem que eu tinha, era de confeccionar o simbolismo e as fardas. Foi confeccionada... o projeto está prontinho... Mas eu não tive autorização ainda”. Feitio do chá

A palavra ayahuasca é originária do quéchua e tem o

significado ao pé da letra, de ‘cipó do morto’ ou ‘cipó do espírito’. Recebe também outras denominações tais como: daime auasca, iagê, mariri e uasca. Em entrevista com o presidente/dirigente do referido Centro em tela, foi explicado o ritual e o significado da confecção do Daime. A partir de duas plantas de poder, típicas da região amazônica, é produzida a poção visionária, considerada psicodélica, utilizada há séculos pelos povos amazônicos. A liga consiste numa combinação que une o caule do cipó jagube, (Banisteriopsis caapi) e as folhas da chacrona (Psycotria viridis). Estes vegetais são cozidos dentro de um processo ritual resultando na elaboração do chá sagrado. O dirigente diz que na confecção do chá não se pode incluir outras plantas, por se tratar de uma formula de produção milenar. Afirma que existem algumas religiões daimistas que fazem uso de outras substancias, mas o Conselho Nacional Antidrogas - CONAD

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proíbe. Atualmente a ayahuasca é legitimada apenas para uso dentro de rituais religiosos com a ingestão do chá.

Indagado sobre qual a melhor época da colheita dos vegetais, o presidente Edilson Fernandes esclarece que depende muito do critério do dirigente de cada trabalho, “eu por exemplo, tenho a lua certa para isso. Se eu quero lua pra um tipo de trabalho é lua nova, pra outro tipo de trabalho é lua minguante”. Diz que faz todo o trabalho de colheita e feitio do chá, pelo calendário lunar, produzindo um Daime para cada categoria a ser utilizada. Afirma que para o bailado produz um Daime mais suave. No caso da ingestão em festividades como a romaria, é um Daime que não vai abalar fisicamente a pessoa. Geralmente para a primeira vez oferece apenas um pouquinho do chá, para que não ocorra mal estar, já que a pessoa não conhece a reação física que poderá causar uma ingestão irresponsável, sem critério. Para o feitio do chá há um ritual específico. E toda uma preparação. Tudo é feito no espaço da igreja.

Não é mais necessário ir à floresta para a coleta do cipó e das folhas, já que atualmente o plantio é próprio, no terreno da Barquinha, sendo suficiente, pois na verdade é feita uma quantidade para oferecer às pessoas, não para elas ficarem fora de si, mas para que abra a sensibilidade, para que se possa entender um salmo, um hino, a profundidade da palestra, que saibam que são médiuns de irradiação, que possam receber e trabalhar com as entidades. E ter consciência, porque o que se procura com a ingestão do chá, é o efeito benéfico que o Daime pode produzir. A natureza sacralizou o Daime como um poder, os índios já usavam. A

religião não sacralizou o Daime, muito pelo contrário, ele veio sacralizar a ritualidade. Então o Daime é usado nesse sentido, com o critério de que tenha uma energia positiva que faça com que as pessoas se sintam bem, que possam aprender alguma coisa, abrir os canais, e os chacras espirituais possam oferecer algum beneficio. A ritualidade que se faz é primitiva, antiga, primeiro se pede licença para colher, porque a natureza tem toda uma regência. Os espíritos não são criação, não são imaginação, nem fantasia,

(...) a gente chega e pede licença ao poder, aos seres de luz, a todos os seres que compõem a floresta, porque ali tem energia, tem seres, tem responsáveis, nada é por acaso. A pessoa não pode invadir uma área... Ali tem um dono, tem um responsável. Eu peço permissão... Pego a folha, peço permissão pra folha, vou cozinhar peço licença né, a sinergia, as forças que vão me conduzir... Ingerimos o Daime, pra fazer a colheita, tudo isso com muito carinho, muito cuidado. Batemos... Conversamos assuntos que são coerentes a nossa religião. Ao ferver, ao cozinhar a gente vai orando rezando, pedindo né. Incutindo naquela energia ali, magnetizando naquela energia ali, as nossas intenções de fazer o bem, a caridade, o amor ao próximo né. Então é essa a ritualidade. Claro que nós temos os cânticos, as orações. (Entrevista com o dirigente da Barquinha Edilson Fernandes da Silva).

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Considerações Finais

Quanto ao que foi visto durante a observação direta se

pode constatar que o rito praticado na casa se configura como uma prática religiosa universalista. Mas, se observa também que possui forte tendência a uma configuração ritualística sincrética e eclética. Podemos dizer que essa tendência parte da formação do próprio dirigente que atualmente comanda as atividades do Centro, que explica o seu envolvimento anterior com outros elementos voltados a diversos sistemas de crenças e religiosidade, pois antes de frequentar a Barquinha, estudou teoria filosófica e maçonaria e iniciou o curso de Física, tendo abandonado no quinto período da faculdade. Participou de várias religiões, com passagem pelo budismo, hinduísmo, umbanda, kardecismo, islamismo e outras instituições daimistas como a União do Vegetal-UDV, além do Círculo Exotérico da Comunhão do Pensamento e do Rosa Cruz. A sua identificação com o referido Centro se deu porque pode encontrar o elemento de todos esses movimentos, na Barquinha. Percebemos que a conexão com a visão do grupo, o contexto cultural e visionário da casa, está ligada diretamente a postura do dirigente espiritual. Conversando com alguns frequentadores assíduos, se percebe um discurso construído a partir da cosmovisão pregada no discurso ritualístico. E os trabalhos comunitários de certa forma vão criando laços, além de condicionamentos, com relação a posturas similares e

repetição de pontos de vista. O próprio líder se considera de linha dura e afirma que não admite preconceito nem fanatismo na sua igreja, ou seja, no ambiente da Barquinha, e que muitas vezes o próprio daimista é quem é o mais fanático e crítico, porque não aprendeu a diferenciar a sua espiritualidade e a do outro, da alteridade, e com isso assume ares de etnocentrista. E complementa, “ Eu sou duro, porque, preconceito dentro da religião, não pode...”

Assim foram feitas algumas constatações, por meio de parâmetros legítimos, de como as pessoas circulam, vivenciam, constroem e desconstroem significados a partir do conjunto de dogmas e da ingestão do Daime, com relação a sua cotidianidade no que diz respeito à normalidade de como regem a sua vida fora do contexto da casa. Os estereótipos e hierarquias dos membros que participam do ritual também foram levados em conta, assim como as experiências visionárias com o êxtase, e determinados resultados que podem refletir nas estruturas emocionais individuais e coletivas, criando efeito de mobilizar e mudar o dia a dia do grupo estudado, que será ampliado posteriormente. REFERÊNCIAS: ARAÚJO, Wladimir S. Navegando Sobre as Águas do Mar Sagrado: história, cosmologia e ritual da Barquinha. Campinas: IFCH/UNICAMP, 1997. ELÍADE, Mírcea. El Chamanismo y las técnicas arcaicas del éxtase, México: Ediciones Fondo de Cultura Económica,1976.

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ANTROPOLOGIA E EDUCAÇÃO - ESPAÇO EDUCATIVO.

PRODUÇÃO E RESSIGNIFICAÇÃO DOS

SABERES

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FORMAÇÃO DE EDUCADORES: DIÁLOGOS ENTRE AS INFÂNCIAS DOS EDUCADORES E EDUCADORES DE INFÂNCIA: UM OLHAR LUXUOSO SOBRE AS HISTÓRIAS DE VIDA.

Annabel Cristini Feijó Peres ITINERA/UFSC32 Izabel Cristina Feijó de Andrade PUCRS/USJ33

Resumo: Esta pesquisa teve a intenção de analisar as categorias: da memória, da infância e da autoformação de educadores, para compreender como as experiências e as histórias de vida das infâncias dos alunos do curso de pedagogia podem interferem na dinâmica afetiva e autoformativa desses futuros profissionais. Para tanto, desejamos saber se esse movimento poderia tornar a prática docente, mediada pela memória, um espaço de reflexão e crítica da infância e da educação para a infância. A metodologia adotada se pautou numa abordagem transpessoal de vivências que possibilita a construção de indicadores de análise capazes de iluminar as infâncias 32 Professora da Rede Particular de Ensino, Pesquisadora do grupo ITINERA/UFSC, Especialista em Arteterapia. Pesquisadora na área de histórias de vida e memória. 33 Professora do Curso de Pedagogia do USJ, Doutora em Educação pela PUCRS.

apagadas ou escondidas nas vozes desses futuros educadores. Os dados foram coletados a partir de vivências que foram registradas por meio de narrativas. Palavras-chave: História de Vida; Infâncias; Autoformação.

Esta pesquisa teve a intenção de analisar as categorias: da memória, da infância e da autoformação de educadores, para compreender como as experiências e as histórias de vida das infâncias dos alunos do curso de pedagogia podem interferem na dinâmica afetiva e autoformativa desses futuros profissionais. Para tanto, desejamos saber se esse movimento poderia tornar a prática docente, mediada pela memória, um espaço de reflexão e crítica da infância e da educação para a infância.

Esta perspectiva contempla os questionamentos iniciais sobre a ideia de infância nas diferentes relações que ela estabelece com as representações da criança na concepção dos adultos. Assim, reunimos fragmentos de memórias dos futuros educadores de infância no intuito de compreender como as suas próprias experiências narrativas das infâncias vividas, experienciadas e existenciais poderiam intervir na dinâmica afetiva e autoformativa.

Os estudos de Abrahão (2004), Josso (2004) e Souza (2006) em torno das histórias de vida proporcionaram as ferramentas habilidosas no processo de autoformação das acadêmicas do curso de pedagogia do USJ (Centro Universitário Municipal de São José/SC/Brasil, que vivenciaram na disciplina de Didática três momentos: o campo de observação, as orientações e as vivências

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transpessoais quinzenais do projeto em questão. Os sujeitos envolvidos são 20 acadêmicos do curso de pedagogia que estavam regularmente matriculados na disciplina de didática I e II. A metodologia adotada se pautou numa abordagem transpessoal de vivências que possibilita a construção de indicadores de análise capazes de iluminar as infâncias apagadas ou escondidas nas vozes desses futuros educadores. Os dados foram coletados a partir de vivências que foram registradas por meio de narrativas. Infância em questão: uma busca da história perdida

Quem são as crianças com quem nos deparamos todos os dias ao nos olharmos no espelho? Essa pergunta instigou os participantes a olharem por entre as frestas de um passado vivido, não inventado. Em busca de uma história perdida, de uma história inacabada, para compartilhar a invenção de outros caminhos, como sugere Josso (2004). Esse caminho se dá de forma integral, em que o próprio caminho-caminhante e o caminhado tornam-se um só.

Para isso, foi preciso considerar o eu, o nós e o eles nessa relação, e perceber que os futuros educadores são sujeitos de suas próprias experiências e percepções, na tentativa de trilhar outros caminhos.

Assim, o caminho integralmente informado leva em consideração todas essas dimensões e, portanto, chega a uma abordagem mais abrangente e eficaz – no “eu”, no “nós” e no “ele” – ou no self, na cultura e na natureza. (...) o “eu” (dentro do indivíduo), o “ele” (o fora do indivíduo), o “nós” (dentro

do coletivo e o “eles” (o fora do coletivo). Ou seja, (...) são as quatro perspectivas fundamentais em qualquer ocasião (Wilber, 2006, p. 35-36).

Nesse olhar para o espelho e perceber sua própria

história, resgatar suas memórias, proporcionou a partilha de alguns tesouros escondidos ― falas, palavras e pensamentos experienciados. Percebemos momentos de rendição e admiração que foram inexplicáveis, mas que têm todo sentido e que procuramos socializar. Não desejamos comparar, mas legitimar um fazer transdisciplinar presente nos participantes, incluindo suas diferenças e transcendendo suas experiências passadas, aqui retratadas.

Mas de que passado estamos falando? Que história? Que infância? Que experiências? Nas vivências quinzenais, começamos por recordar diferentes imagens da infância que emergiam das memórias narradas. Queríamos saber que potência é essa que se conserva e se dissipa da infância que permanece constantemente na memória e que mesmo de forma inconsciência influencia as ações e reações no contexto educativo da infância.

É sabido que não existe um modelo para ser criança, como não há um modelo de infância, e por mais que a infância se encontre comprimida frente às políticas que historicamente a tornaram quase invisíveis, as crianças sempre buscaram construir seus espaços e lutam para ter garantidos seus direitos à criatividade, à liberdade, à expressão, à voz e vez. Dessa forma, a autoformação dos futuros educadores para atuar nesse contexto deve estar inserida em uma prática transdisciplinar ou transpessoal que

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inclua a diversidade cultural, social, emocional, intelectual e espiritual das crianças. Boaventura de Souza Santos (2004) nos remete a expressão de “cosmopolitismo infantil” que representa à possibilidade de dar voz e vez às crianças. Essas crianças quando permitido ouvi-las torna nosso olhar mais luxuoso.

Mas, até que ponto falar de um significado para a infância tem importância para a autoformação dos educadores da infância. Por que resgatar a própria infância dos futuros educadores, num movimento de consciência dialógica entre quem sou e como foi minha infância? Nesse mergulho, emerge um labirinto dos sonhos, vontades, desejos reprimidos que revelam e enfrentam um mundo cujos sentidos muitas vezes não fazem sentido. Tem que teorizar, dialogar, incluir conscientemente em nossas vidas e transcender.

Nesse contexto, busco dialogar com a “autoformação, que é um componente da formação considerado como um processo tripolar, pilotado por três princípios: si (autoformação), os outros (heteroformação), as coisas (ecoformação)” (GALVANI, 2002, p. 1) num movimento integral. Assim, o formador precisa considerar a existencialidade no processo de autoformação em uma grande rede cujos aspectos cognitivos, experienciais, práticos, simbólicos, transcendentais e espirituais se interligam em todos os níveis de realidade, compondo uma sinfonia integral. Para Wilber (2007, p. 10), “uma visão integral”

(...) procura levar em conta a matéria, o corpo, a mente, a alma e o espírito, assim como aparecem no ser, na cultura e na natureza. É uma visão que procura ser abrangente, equilibrada e completa. Portanto, é uma visão que abarca a ciência, a arte, e a moral; que inclui disciplinas como a física, a espiritualidade, a biologia, a estética, a sociologia e a oração contemplativa; que se apresenta na forma de uma política integral, uma medicina integral, uma economia integral, uma espiritualidade integral e uma formação de educadores integral (grifo nosso). A autoformação, enquanto dimensão constitutiva do

ser-sendo educador transdisciplinar, produz um sentido coerente ao longo de toda a vida, por meio das múltiplas interações com o outro e que o liga ao seu contexto. Essas múltiplas interações estão presentes também nas dimensões existencial, experimental e didática que compõem a vida do formador transdisciplinar como uma ação reflexiva para a construção do autoconhecimento, conforme afirma Clénet (2006, p. 5):

(...) dimensões existencial, experiencial e didática são fontes de aprendizagem complementares que articulam as necessidades e situações. A autoformação não é uma prática educativa, porque não é uma ação do formador. É definida como uma ação reflexiva sobre o tema da sua formação em uma abordagem abrangente para construir autoconhecimento e desenvolvimento. (CLÉNET, 2006, p. 5). Nessa direção elucidamos que na busca pelo lugar

ocupado pela infância nas memórias dos futuros educadores se revela um lugar onde a imagem da criança se esconde. A

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criança mais do que ninguém conhece seus esconderijos. Não são simplesmente esconderijos o que ela governa no seu admirável mundo de fantasia e faz-de-conta, mas cavernas de sentido onde ela é a guardiã dos nomes que permitem dar vida à matéria. Neste processo a memória traz sorrisos e lágrimas que precisam ser socializados, discutidos e integrados. A maioria dos participantes lembraram de seus esconderijos e dos motivos que eles foram criados, como revelam os depoimentos a seguir:

Eu ficava numa parte alta do guarda roupas, quando os meus pais brigavam. Eu nem respirava”. “Quando eu fazia coisas erradas, eu me escondia lá, para não apanhar”. “Eu ficava debaixo de uma mesa venha num quarto escuro lá de casa e só ficava ouvindo os meus irmãos m chamarem. Eu não respondia”. “Era o meu segredo. Lá tinha alguns pertences e brinquedos. Às vezes, guardava lá comida para prevenir. Não sei exatamente o que, mas guardava.

O convite aos futuros educadores a resolver suas

infâncias representa para nós essa chance de procurar, nos labirintos soterrados por suas memórias, aqueles sentidos de suas existências que ficaram obscurecidos, de alguma forma, por um passado de repressão e violência. Dos depoimentos forma retirados vários palavras que representavam seus medos e violência: “surras, brigas, palavrões, xingamentos, vara par bater, chinelo do meu pai, alcoolismo, pobreza, fome, falta de comida”, entre outras Nesse caminho trilhado

as histórias e as chaves de compreensão deram sentido às experiências revividas. Muitas reinterpretações foram feitas e desejadas. Um alivia ao corações aprisionados.

Esses significados da infância nos revelaram o porquê desses desencontros da infância de nossas lembranças com a infância das nossas experiências. Desencontros que podem nos indicar pistas da negação ou da afirmação das dicotomias que ora fragmentam, ora universalizam significados para a infância.

Buscamos, nesses esconderijos, o quanto a infância pode ser instituinte na prática de autoformação dos educadores de infância. O discurso científico acostumou-nos a um falar e a uma prática em torno do educador que, muitas vezes, nega ou põe em dúvida a participação do acervo imaginário construído por ele ao longo de sua autoformação. Neste sentido, cada acadêmico trouxe fotografias da infância que marcaram e influenciaram sua escolha na profissão:

Por gostar se brincar, me fantasiar, de alegria, tenho certeza que meu lugar é a educação infantil. Esses são indícios de que serei uma professora da educação infantil. Vou me realizar neste ambiente em que o faz-de-conta, as descobertas, os sonhos poderão ser verdadeiros. Acho que voltarei a ser criança de novo.” “Nessa foto estou dando aulas para as minhas bonecas. Colocando-as em filhas e sentadas umas atrás das outras. Aí eu tenho uns seis anos, mais ou menos.” “Sempre fiquei brincando com minhas irmãs que eram mais velhas e que me colocavam como aluna. Eu queria ser a professora. Elas nunca deixavam”.

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“Muitas vezes, eu organizava o meu quarto como se fosse uma escola e tratava as minhas amigas e bonecas como alunas.” “Eu, não lembro de ser professor. Mas eu mandava na turma de amigos e definia o que eles iriam fazer nas brincadeiras. Acho que eu era muito autoritário, pois eles tinham que me obedecer se não eu os tirava das brincadeiras.

Pouco sentido se dá às memórias dos futuros

educadores a partir das figurações de suas infâncias e das construções imagéticas que compõem sua visão da prática pedagógica ao longo de sua formação. Estamos nos referindo às composições que abordam suas percepções sobre sentimentos, desejos, valores e intuições enfim, de modos e códigos culturais construídos e vividos por eles que interferem em suas interpretações de mundo e na própria história de vida. Os depoimentos mencionados revelam um jeito de ser como educador que precisa ser teorizada e pensada.

Desse modo, a buscar, nas histórias de vida dos futuros educadores de infância, os lugares habitados pela infância e que podem ter impregnado suas formas de pensar e agir no contexto de suas práticas educativas procuramos identificar alguns dos possíveis significados da infância. Queríamos ir mais adiante, nos perguntando: O que há de diferente nos modos de ser da infância que nos impulsiona a investigá-la? Seria sua pluralidade de sentidos? Que tipo de relação vivemos com a infância? Que tipo de diálogo estabelecemos com ela? Que rastros de infâncias marcaram as nossas vidas? Percebemos que entre os futuros educadores que alguns

apagaram de suas memórias o que a escola despertou em sua infância. Como é possível perceber no relato a seguir:

Não me lembro de nada de minha infância. Não tem significado para mim., isso. Não vejo sentido resgatar a minha infância. Já trabalho com as crianças. Auxiliando numa escola” “Acho que não me lembro de nada. O resgate da infância não é fácil, pois a não tive infância. Sempre trabalhei ajudando em casa. Tinha várias tarefas de casa para fazer.

Sem julgamentos precipitados, podemos dizer que esse esquecimento foi o que nos exigiram para nos tornarmos educadores e adquirirmos um saber sobre o ensino e o processo de escolarização no sentido de os desenvolvermos dentro de critérios racionais e objetivos, almejando, de um lado, dominarmos o conhecimento a ser transmitido aos nossos alunos e, de outro, sermos justos e imparciais no julgamento de seus atos, e, sobretudo, na mudança de comportamento que deles esperamos. (Pagni, 2004, p. 31).

Para Pagni (2004) é fundamental conhecer a forma como os futuros educadores se relacionavam com suas histórias de vida e qual a importância que eles atribuíram a essas memórias, já que acreditamos que esse movimento de rememoração-construção, de idas e vindas, que conjugam presente e passado, se refletem no desejo e na realização da ideia de futuros possíveis que se encontram adormecidos dentro desses educadores.

Acreditamos na necessidade de resolver esse terreno chamado memória, de encontrar nele o “sonhos de criança” escondidos, interrompidos e bem sucedidos dos futuros

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educadores, e mesmo, os futuros possíveis que eles não conseguiram “dizer” sozinhos; O que revelou uma consciência das práticas nos estágios vivenciados, como podemos perceber nos depoimentos a seguir:

Depois que tivemos essa prática aqui na aula de didática, pude perceber que alguns pontos eu preciso melhorar enquanto educadora de crianças. Um desses se refere a minha dificuldade em contar histórias. Não lembro de alguém contando-as para mim”. “Eu já tenho um prazer imenso em contar histórias, pois na minha infância a minha avó ficava nos encantando com suas histórias de “copo de leite” e os contos de fadas. Hoje acho que vou me aperfeiçoar nisso, quero encantar as crianças como fui encantada”. “Nunca tinha pensado na minha infância, e pensado na possibilidade de entender o que fizeram de minha infância e agora, decidir o que vou fazer para resgatá-la. Uma das possibilidades seria eu trabalhar na educação infantil e fazer tudo de bom para os meus pequenos, proporcionar-lhes alegrias, sonhos, fantasias, brincadeiras.

Nesse movimento vivido na pesquisa e na disciplina de didática podemos afirmar que as estruturas curriculares dos cursos de formação dos educadores da infância não deixam a experiência humana ser valorizada, o que leva à impossibilidade de sua anunciada universalização. Neste contexto questionamos quem é o formador dos educadores de infância? Como é que podemos produzir uma autoformação significativa consistente, ao longo da vida por meio das múltiplas interações marcadas por desencontros e encontros que nos ligam ao nosso contexto existencial?

Os desencontros e os encontros que surgiram com as memórias de infâncias dos futuros educadores, trouxeram-

nos a possibilidade de conhecer, por meio das histórias de vida narradas a estreita relação que guardaram as diferentes histórias da infância da humanidade e as coincidentes histórias da infância em seus cotidianos. Também abriram diálogos para o questionamento do lugar da infância e das histórias de vida no contexto de suas práticas autoformativas e educativas. Sem perder de vista a ideia de identificar alguns dos possíveis significados da infância na sociedade contemporânea, queremos ir mais adiante, nos perguntando: Quem são as crianças com quem nos deparamos todos os dias ao nos olharmos no espelho? Essa foi uma das práticas transpessoais utilizadas na pesquisa que revelaram tesouros ainda não evidenciados pelos participantes e que puderem ser sistematizados por nós:

Nessa técnica, pude perceber o quanto foi difícil para mim, me reconhecer e reconhecer a minha infância. Em alguns dias, nem consegui ver nada, pensar em nada. Era um vazio que tomou conta de mim. Aos poucos, fui percebendo a clareza de meus pensamentos, de meus sonhos e desejos. Quando me olhei no espelho, vi uma criança recolhida ou encolhida dentro de mim e que precisava ser acordada. Tinha dentro de mim, um potencial criativo, imaginativo potente e que me ajudaria a me tornar uma educadora encantadora de crianças. Acredito que mudei muito.”

Às vezes, é difícil. Olhamos muitas as nossas falhas e dificuldades. Parece ser mais fácil assim... e aos poucos, fui percebendo meu próprio potencial. Acreditar que sou capaz de fazer a diferença na educação infância. Essa descoberta foi a melhor!!!

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Diante dos achados e descobertas da pesquisa,

podemos afirmar que o formador precisa considerar a existencialidade no processo de formação numa grande cadeia em que aspectos cognitivo, experienciais, prático, simbólico, transcendental e espiritual se integram em todos os níveis de realidade na busca da transcendência. E, assim, é fundamental pensar o currículo como expressão da vida, o que significa dizer que as diferentes experiências, vivências e nível de consciência são importantes para a produção do conhecimento e para as interrelações estabelecidas no interior da própria instituição formativa. No currículo tudo necessita estar interrelacionado, recursivamente interconectado, em processo de transformação mediante diálogos que se transformam e se reinventam.

Podemos considerar, então que os fragmentos da sua própria história de vida se entrecruzam com as reflexões teóricas e metodológicas da abordagem autobiográfica o que pode influenciar diretamente na formação das futuras educadoras de infância.

Para Josso (2004), formar-se é “integrar-se numa prática o saber-fazer e os conhecimentos, na pluralidade de registros” (p. 39), sendo estes: o psicológico, o psicossociológico, o sociológico, o político, o cultural e o econômico. Registros colocados em evidência a partir da construção, pelo sujeito, da narrativa de sua história de vida, uma vez que tal construção se constitui como um recurso importante para evocar as “recordações-referências”; recordações que contam o que se aprendeu com a própria

vida. Em outras palavras, é narrar para si à própria história: “a narrativa de formação obriga também a um balanço contábil do que é que se fez nos dias, meses e anos relatados, ela nos permite tomar consciência da fragilidade das intencionalidades e da inconstância dos nossos desejos” (p. 45).

Podemos considerar que as histórias de vida tocam as fronteiras do racional e do imaginário; uma vez que leva “o indivíduo a compor uma visão imaginária de si mesmo” (Josso, 2004, p. 263). Dimensões estas esquecidas num mundo globalizado, que tem exigido uma educação e uma formação cada vez mais aligeirada, mercantilizada, marcada pelo supérfluo e pela aparência. Assim, voltar-se para si, formar-se, na concepção defendida nesta obra, significa uma ruptura com estes modelos de educação e de formação. Significa redescobrir essas dimensões esquecidas, acreditando que elas ainda estão vivas dentro de nós, sendo, portanto, mola propulsora para que possamos nos colocar numa relação renovada conosco. Mas como nos encontrar a nós mesmos, educadoras de infância? Como o educador pode se conhecer?

Josso (2004) nos apresenta um caminho possível quando diz que é preciso repensar as práticas de formação continuada que acontecem no interior das instituições formativas, afinal: é possível o uso da metodologia das histórias de vida num espaço onde muitas vezes a formação é imposta, sem que haja abertura e disponibilidade por parte de alguns educadores? Como equacionar aí os tempos cronológicos, institucionalmente definidos, com os tempos

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internos, para que haja a apropriação pelo sujeito de sua própria história? Considerações finais

Fica aqui então um convite a todos aqueles que, sem desconsiderar a importância das dimensões técnicas e tecnológicas da formação, buscam resgatar no humano aquilo que lhe é peculiar, a sua humanidade. Nessa mesma direção, a imagem da criança como potência, da infância que institui, é a imagem da experiência, da linguagem como um exemplo da experiência vivida. Elas não representam apenas um sentido físico, um sentido material para aquilo que pretendem designar. Não são palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou mentiras, qualidades boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis ou desgradáveis etc. A palavra está impregnada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial.

Ao viajar nas memórias de sua infância das futuras educadoras é buscar a recuperação do mundo da cultura de seus pais; e nesse caminho, nessa viagem no tempo, refletir sobre os modos de ver da criança, sua sensibilidade e seus valores, estética e historicamente.

As críticas feitas à formação clássica decorrem geralmente do fato desta se constituir em pedagogias que não conseguem ativar todos os aspectos humanos e não são operacionalizadas na perspectiva da complexidade. Os processos formativos clássicos geralmente não dispõem de vivências articuladas entre teoria e prática, e nem se orientam

para a compreensão da complexidade humana, mas sim para a compartimentalização dos saberes.

A complexidade tem nos levado a buscar saídas para uma existencialidade pautada em novos valores e modos de pensar, agir e ser, pois os momentos vivenciados de incertezas, dúvidas, avanços tecnológicos e globalização vêm exigindo outro olhar sobre si e sobre a própria vida. O que percebemos, é que o mundo vem se transformando a partir de questionamentos e desdobramentos do pensamento moderno e pós-moderno, consolidados nas visões de mundo atuais. É com base nesta ótica, que nos propomos a abordar a autoformação, como eixo paradigmático por valorizar os aspectos humanos da existencialidade do ser. Entender que modo buscar a autoformação indica um ressignificar do seu ser, uma construção da autonomia que emerge como uma propriedade auto-organizativa. A autoformação é um eixo hoje reconhecido como central na formação do homem-educador. Para continuarmos o aprofundamento no debate sobre a autoformação do homem-educador é necessário um diálogo reflexivo sobre os conceitos de “formação” e de “autoformação” e neste sentido, é preciso dizer que o respeito pela disciplina e à lógica da tolerância e do diálogo se mostram coerentes na visão transdisciplinar.

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INTERCULTURALIDADE E FORMAÇÃO DOCENTE: PERSPECTIVAS PARA RESSIGNIFICAÇÃO DE EPISTE(ME)TODOLOGIAS EDUCACIONAIS

Adecir Pozzer34 Elcio Cecchetti35

Resumo O processo colonizador na América Latina se desenvolveu com base na negação da dignidade e diversidade cultural dos povos indígenas e afro-americanos. Ao longo de cinco séculos, os empreendimentos educativos promovidos pelos colonizadores intentaram legitimar a subalternização das epistemologias, saberes, linguagens, valores e práticas sociais das culturas dominadas. Na atualidade, o paradigma educacional colonizador vigente nas sociedades latino-34 Mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Membro do Grupo de Pesquisa Ethos, Alteridade e Desenvolvimento (GPEAD/FURB). Assistente técnico-pedagógico da Secretaria de Estado da Educação de Santa Catarina (SED) e Professor substituto do Centro Universitário Municipal São José (USJ). Contato: [email protected] 35 Doutorando em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). No momento, realiza doutorado sanduíche na Universidad de Salamanca (USAL), com Bolsa PDSE do MEC/CAPES (Processo BEX 6465/14-5). Membro do Grupo de Pesquisa Ethos, Alteridade e Desenvolvimento (GPEAD/FURB) e do Grupo de Estudos e Pesquisas em História da Educação e Instituições Escolares de Santa Catarina (GEPHIESC/UFSC). Contato: [email protected]

americanas, notadamente no Brasil, intenta homogeneizar corpos, culturas, saberes e subjetividades, por meio da perpetuação de currículos formadores de docentes pautados em paradigmas monoculturais, cientificistas e normalizadores das diferenças e dos diferentes. Para fazer frente a este movimento, faz-se necessária a construção de propostas de formação docente diferenciadas, de perspectiva intercultural, que integrem a complexidade das culturas e conduzam a ressignificação das episte(me)todologias historicamente colonizadoras e negadoras da dignidade humana. Neste sentido, a Interculturalidade é um dos paradigmas emergentes que tem possibilitado novas formas de relacionamento entre sujeitos e grupos culturalmente distintos, abrindo possiblidades para a elaboração de outras episte(me)todologias educacionais com vistas a configurar outros percursos formativos, que se relacionem de forma adequada com os diferentes e as diferenças. 1 Considerações Iniciais

A diversidade cultural é uma das expressões que

identifica, caracteriza e desafia as sociedades latino-americanas de maneira intensa e peculiar. Essa pluralidade de culturas é inicialmente originária da multiplicidade de etnias indígenas que habitavam o território36. No século XVI, com o início do processo de colonização empreendido por nações

36 Alguns autores estimam que a população indígena no século XVI, somente no território brasileiro, era entre 2 e 4 milhões de pessoas, pertencentes a mais de 1.000 povos diferentes (Cf. Azevedo, 2000).

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europeias, milhares de pessoas deste continente migraram para as colônias da América. Posteriormente, para fazer prosperar o projeto colonialista explorador, ocorreu a desterritorialização37 forçada de milhões de africanos, para servirem como mão de obra escrava38. Ao longo dos séculos XIX e XX, o continente continuou recebendo intensos fluxos migratórios de populações provenientes da Europa, Ásia e Oriente Médio, resultando na configuração de um tecido social formado por diferentes rostos, que portam em seu seio distintas cosmovisões e, portanto, variadas formas de conceber e concretizar processos sociais, políticos, econômicos e educativos.

Do ponto de vista antropológico, a Educação constitui um dos meios mais eficazes de transmissão e aprendizado dos elementos culturais, linguísticos, comportamentais, laborais e ético/morais pelos quais cada coletividade, povo ou etnia comunica, perpetua e desenvolve seu saber-fazer em relação à vida, ao Outro39, à natureza e a sociedade. Uma comunidade não sobrevive se sua cosmovisão não é transmitida, apropriada e transformada de geração em geração. Como aponta Geertz (1989), se as culturas são 37 Para Haesbaert (2006), desterritorializar significa exclusão, privação e/ou precarização do território enquanto recurso material e simbólico indispensável à participação efetiva como membro de uma sociedade. 38 Ao longo de 350 anos, cerca de 12,5 milhões de pessoas foram retiradas à força da África. Caribe e América do Sul receberam 95% dos escravos que chegaram às Américas (Cf. Eltis & Richardson, 2010). 39 O termo Outro (com a inicial em maiúsculo) quer representar os Outros e Outras (plural e feminino) que, segundo Levinas (2005), representa aquele que não pode ser reduzido a um conceito; é rosto, presença viva que interpela, convoca, desafia e constrói.

conjuntos de elementos simbólicos que fornecem o vínculo entre o que os humanos são capazes de se tornar e o que eles realmente se tornam, a educação é o mecanismo de (re)produção dos padrões culturais e sistemas de significados historicamente construídos que dão forma, objetivo e direção aos processos identitários de cada um.

A variedade de identidades culturais representa que existem possibilidades de nos constituirmos como humanos de modos diversos, assim como, de encontrar caminhos diferentes para solucionar problemáticas similares que afligem a humanidade em distintos tempos e espaços. De acordo com Langon (2003), a supressão da diversidade cultural significaria o desaparecimento da capacidade humana de dar respostas variadas ao novo. Representaria o empobrecimento da humanidade porque fecharia caminhos e restringiria possibilidades de vir a ser de modo distinto, diferente.

A existência da diversidade assegura o desenvolvimento de relações e aprendizagens recíprocas entre eu e o Outro, nós e eles, já que nenhuma cultura é autossuficiente e isoladamente jamais resolverá os dilemas do mundo. Ao contrário, todas as sociedades fazem parte de uma realidade complexa e interdependente e, portanto, precisam reconhecer que muito podem apreender uma das outras (Panikkar, 1993).

Em contextos de intensa diversidade sociocultural, como é o caso latino-americano, naturalmente poderia coexistir, lado a lado, uma complexa variedade de culturas, traduzidas em um número ilimitado de etnias, línguas,

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crenças, valores, religiosidades, epistemologias e modos distintos de organização política, econômica e educativa. Relacionando-se umas com as outras, múltiplos intercâmbios e hibridações poderiam ser realizados, resultando em construções e (re)criações inusitadas que ampliariam horizontes e sentidos.

Mas a história revela que não foi exatamente assim que se deram os encontros culturais. Estes se instituíram, na maioria das vezes, como desencontros – embora não se possa desconsiderar que isoladamente ocorreram alguns processos de interação e aprendizagem intercultural. No que tange ao contexto latino-americano, Fleuri (2013, p. 59) propõe desafiar a imaginação para vislumbrar,

[...] o quanto teriam aprendido as culturas europeias se, em vez de conquistar, tivessem realizado um diálogo intercultural com os povos ancestrais ameríndios! Se tivessem aprendido a cuidar da natureza como os povos aborígines cuidam! Se tivessem compreendido suas culturas e suas visões religiosas! Certamente as gerações seguintes não teriam a situação catastrófica em que hoje nos encontramos em termos de sustentabilidade da vida e da convivência em nosso planeta!

Apesar de existirem relatos de conflitos entre populações indígenas anteriores ao processo colonial, com a vinda dos colonizadores, a história da Abya Ayla 40 foi 40 Abya Yala, na língua do povo Kuna, significa Terra madura, Terra Viva ou Terra em florescimento e é sinônimo de América. A expressão vem sendo usado como uma autodesignação dos povos originários do continente em oposição a “América”, termo que se só consagrou a partir do final do século XVIII, quando as elites crioulas a utilizaram durante o processo de

atravessada por inúmeras violências, genocídios, epistemicídios41 e culturicídios42. Ao longo de cinco séculos, a diversidade cultural foi combatida, perseguida e invisibilizada em nome de um processo colonizador calcado na supremacia e universalidade da cultura europeia. Pela aliança entre a cruz (poder religioso) e a espada (poder político-mercantil), as culturas, saberes, religiosidades e valores indígenas, africanos e de diferentes minorias étnicas foram considerados elementos a serem combatidos, convertidos e negados em nome de um ideal civilizatório exclusivista.

As características e tradições culturais europeias foram elevadas à condição de superiores enquanto que os elementos simbólicos e identitários das culturas dominadas foram relegadas à condição de subalternas, e sistematicamente

independência para se oporem aos conquistadores europeus. Embora os diferentes povos originários atribuíssem nomes próprios às regiões que ocupavam – Tawantinsuyu, Anauhuac, Pindorama –, a expressão Abya Yala vem sendo cada vez mais usada por estes povos, objetivando construir um sentimento de unidade e pertencimento (Porto-Gonçalves, 2009).

41 Entende-se por epistemicídios o processo decorrente da negação das diferentes epistemes dos povos indígenas e afro-americanos que foram subalternizadas e até extintas durante o processo de colonização do ser, saber e viver. Para maior aprofundamento, consultar Fleuri, Azibeiro e Coppete (2009). 42 Miguel González Arroyo, durante a palestra de abertura do II Seminário Internacional Culturas e Desenvolvimento (SICDES), ocorrido entre os dias 14 a 16 de maio de 2014, em Chapecó/SC, define culturicídio como homicídio de culturas. Segundo o autor, “nunca houve diálogos interculturais em nossa história. A nossa história foi de dominação, subalternização, genocídios e culturicídios” (Gravação e transcrição dos autores).

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silenciadas, invisibilizadas ou forçadas a desaparecer. Esta lógica impregnou as epistemologias, metodologias, sistemas e práticas educacionais. Por isso, o modelo educativo adotado no período colonial até nossos dias, principalmente em sua forma escolarizada, tende a ser homogeneizante e colonizador, na medida em que privilegia uma única forma de saber e um padrão organizativo que deslegitima a variedade de identidades culturais (Méndez, 2009).

Em vista disso e, tomando por base os pressupostos da Interculturalidade, este trabalho objetiva problematizar o sistema escolarizador-universalizante e seu respectivo modelo de formação docente, com o intuito de ressignificar episte(me)todologias educacionais para que passem a acolher a diversidade de identidades culturais em suas múltiplas possibilidades de ser, pensar, agir e viver.

Neste sentido, no primeiro momento, busca-se historicizar as origens e intencionalidades do paradigma educacional colonizador, que desde uma perspectiva monocultural e homogeneizadora dos diferentes e das diferenças, subalternizaram as linguagens, epistemes, saberes, valores e práticas sociais das culturas indígenas e afro-americanas.

Para fazer frente a isso, no segundo momento, propõe-se a construção de propostas e práticas de formação docente diferenciadas, de perspectiva intercultural, que integrem a complexidade das culturas e conduzam a ressignificação das episte(me)todologias historicamente colonizadoras e negadoras da dignidade humana.

Concluiu-se que a formação docente embasado em pressupostos monoculturais sustentam concepções e práticas que inferiorizam, invizibilizam e desconsideram a diversidade de epistemologias e metodologias educacionais, dificultando, quando não inviabilizando, a criação de outros desenhos curriculares de formação de educadores em perspectivas interculturais, dialógicas e libertárias. 2 COLONIALIDADE DO SABER, MONOCULTURALIDADE E A FORMAÇÃO DOCENTE

Os empreendimentos educativos promovidos pelos colonizadores intentaram, desde o início, subalternizar as linguagens, epistemes, saberes, valores e práticas sociais das culturas indígenas e afro-americanas, bem como, de todas aquelas coletividades que se distinguiam do modelo civilizatório europeu.

Na atualidade, o paradigma educacional colonizador ainda encontra-se vigente nas sociedades da Abya Ayla, notadamente no Brasil, por conta da existência de um sistema de escolarização universalizante, que se sobrepõe sobre outras concepções educativas, e que busca promover a homogeneização de corpos, culturas, saberes e subjetividades. Para reproduzir-se, este sistema conta com o auxílio das Instituições de Ensino Superior, nas quais currículos pautados em paradigmas monoculturais, cientificistas e normalizadores das diferenças e dos diferentes servem de base dos processos formativos de professores e demais profissionais da educação.

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Este modelo educativo escolarizador remonta ao início da Modernidade e incorporou as intencionalidades da burguesia europeia afoita em adestrar trabalhadores que se submetessem a longas jornadas de trabalho degradante. O objetivo do ensino elementar, até então restrito aos filhos da nobreza e aos clérigos, passou a ser o de adequar às gerações mais jovens à constante necessidade da indústria de mão de obra barata, obediente e disciplinada. Para tanto, as gerações mais jovens precisavam dominar certa quantidade de conhecimentos e habilidades para desenvolver os trabalhos demandados por uma classe empresarial, capitalista e urbanizada (Enguita, 1989).

Este sistema educativo é partícipe dos processos colonizadores e excludentes de grandes contingentes humanos, tanto por sua estrutura interna, quanto pelas políticas e critérios de valoração de elementos simbólico-culturais dos grupos majoritários. Por outra parte, o racionalismo cartesiano-positivista forneceu as bases para a hierarquização e fragmentação do conhecimento, divisão do tempo, organização dos programas e superioridade do saber científico43.

A valorização da disciplina converteu as escolas em algo muito parecido com os quartéis e mosteiros religiosos.

43 Oliveira, Kreuz e Wartha (2014), na obra Educação, história e cultura indígena: desafios e perspectivas no Vale do Itajaí denunciam que as identidades, idiomas, saberes, valores, crenças e religiosidades do povo indígena Xokleng Laklãnõ vem sendo sistematicamente invisibilizado, negado e exotizado pela sociedade envolvente e pelos currículos das escolas do Vale do Itajaí/SC.

Além da semelhança da estrutura física44, a ordem disciplinar embasou os modos de organização do tempo, dos ritmos e ritos escolares, bem como dos corpos e movimentos dos estudantes45. Valorizava-se o silêncio, a ordem dos materiais e das salas, a limpeza e os tratos de higiene. Pouco a pouco, a escola acabou incorporando a rotina da indústria: controle de frequência, obsessão pela pontualidade e trabalho eficiente.

Os sistemas escolares não só favoreceram a formação de grupos dominantes e dominados, mas contribuíram para manter o monopólio do saber científico nas mãos das classes dirigentes, por conta da dualidade da oferta educativa: escolas privadas bem aparelhadas para os filhos da elite e escolas públicas com parcos recursos para atender os filhos dos trabalhadores (Baudelot & Establet, 1986). Em uma sociedade em que o domínio do conhecimento técnico-científico era chave para ascensão social, a dualidade deste sistema reproduzia os processos de exclusão e desigualdades existentes na esfera pública. 44 A arquitetura do prédio escolar geralmente tem forma de um “U” ou de um retângulo, modelo que se assemelha-se ao esquema do Panóptico de Bentham descrito por Foucault (2006), no qual havia uma construção em círculo e no centro uma torre vazada por largas janelas. A construção periférica era divida em celas, cada uma com duas janelas, uma para o interior, visível ao observador do alto da torre, e outra para o exterior, para facilitar o controle e a vigilância. 45 É inegável a contribuição de Michel Foucault na compreensão de como as instituições sociais, dentre elas as escolas, criaram uma parafernália de normas, regras e mecanismos de controle destinados a sufocar a iniciativa e a individualidade individual. A vigilância panóptica, a organização serial do espaço, a economia do tempo, a codificação dos movimentos, a normalização dos sujeitos e de seus comportamentos eram algumas das estratégias utilizadas (Cf. Foucault, 2006).

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A colonialidade incidente sobre a escola revela-se também na adoção de um corpus de saberes propedêutico, que veicula conhecimentos abstratos aptos a serem memorizados, por meio do ensino fragmentado em disciplinas ministradas em horários rígidos, bem como, em metodologias centradas na figura do professor-transmissor. Em distintos contextos, ainda hoje, estudantes de distintas culturas e realidades são confrontados com as mesmas disciplinas, e submetidos a programas de ensino que apresentam conteúdos padronizados descontextualizados. Dada a falta de significação para grande parte dos estudantes, tais conteúdos não são assimiláveis da maneira esperada pelo sistema, produzindo o fenômeno da reprovação e do insucesso escolar. Na opinião de Lobrot (1992, p. 77), “este sistema supostamente democrático é, na realidade, o mais antidemocrático possível, o mais seletivo. É ele que cria as diferenças de origem social que se manifestam quando o processo termina. É ele que classifica e que hierarquiza a futura vida social”.

Os sujeitos que chegam à escola são profundamente diferentes: são provenientes de realidades distintas, possuem referências identitárias, interesses e necessidades diferenciadas. O ensino teórico, universal e padronizado para todos, reforça o processo de diferenciação social, ao produzir duas categorias de aluno: os bons, que fazem as aquisições previstas, e os maus, que não atingem os resultados esperados. Desconsiderando as singularidades identitárias dos estudantes, ao longo de séculos, milhões de crianças foram expostas ao mesmo tipo de tratamento, ritmo e regime,

e a conjuntos padronizados de conhecimentos, diferenciando-se apenas em função de seu trabalho ou de seu rendimento/aproveitamento escolar (Lobrot, 1992).

O ensino teórico, padronizado e monocultural produziu resultados diversos, dentre eles a seleção de elementos identitários potencialmente desejáveis. Para isso, uma grande parte do tempo escolar é empregado para estabelecer rotinas, manter a ordem e o controle, modelar não só as dimensões cognitivas, mas também os comportamentos, atitudes e relações com seu(s) corpo(s), pares e entornos (Cecchetti, 2008).

Intrínseco e primordial para pôr em prática este regime educativo monocultural-escolarizador, organizou-se um modelo de formação docente cuja episte(me)dologia centra-se na transmissão de verdades supostamente universais, por meio da abstração genérica e do monólogo. Em detrimento das alteridades e singularidades, este sistema menospreza o caráter relacional da formação humana, que ocorre em diálogos vivenciais e contextuais, pelos quais a vida se recria e as identidades se ressignificam (Pérez-Estévez, 2013). Este modelo histórico de formação docente está centrado na mesmidade e na visão colonialista de superioridade da cultura ocidental branca, masculina, elitista e judaico-cristã, que se expressa e reproduz em modelos educativos assentados na fé na ciência e na razão, como únicos instrumentos explicativos da realidade.

Diante disso, faz-se necessário e indispensável suspeitar de discursos e práticas acadêmico-educacionais legitimadas historicamente como verdades naturalizadas,

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para enfrentar a colonialidade epistêmica nos processos de formação docente 46 . Até porque, de acordo com Pérez-Estévez (2013, p. 141), “o mundo ocidental produziu filosofias da linguagem, mas jamais produziu filosofias da escuta ou do silêncio; produziu filosofias do Eu e da dominação, mas tem sido incapaz de produzir filosofias da alteridade e da humildade”.

É ilusório pensar a formação docente de forma ampla, significativa e libertária a partir de perspectivas monoculturais, especialmente em contextos em que o privilégio à cultura escrita, à rigidez científica e à fragmentação do conhecimento servem apenas para reproduzir padrões normalizadores estabelecidos enquanto mecanismos que qualificam ou desqualificam identidades com base em interesses e critérios colonialistas. Grosso modo, o pensamento Ocidental fundamentou e ainda embasa uma formação docente reduzida à interpretação de escritos e discursos, ao gerenciamento de normativas morais e à transmissão/reprodução de conhecimentos de uma única base identitária, inviabilizando interações e diálogos com o mundo da vida, marcado pela diversidade de concepções, experiências, práticas e perspectivas. Não se trata de

46 Fernandes, Roberto e Oliveira (2015) desvelam o quanto a ideologia racista se mantém viva na atualidade através de presenças (cultura do colonizador) e ausências curriculares (cultura dos colonizados). Corajosamente denunciam como currículos e práticas pedagógicas de um número expressivo de estudantes, professores e profissionais de escolas públicas têm contribuído para (re)produção de invisibilizações, silenciamentos e exclusões das culturas, histórias, literaturas, expressões artísticas e religiosidades de origem africana e afro-brasileira.

desprestigiar as tradições filosóficas e pedagógicas, mas de (re)criar e desenvolver episte(me)todologias que reconheçam outras lógicas, saberes, tempos e identidades.

De modo a reproduzir o modelo escolar homogeneizante, a formação docente foi pensada e organizada estrategicamente de forma fragmentada e uniformizante. O estabelecimento de rotinas de manutenção da ordem e do controle, a ênfase exclusiva à dimensão cognitiva, a aprendizagem de conhecimentos fragmentados, genéricos e abstratos, frequentemente distanciados em relação ao cotidiano escolar, a inculcação da centralidade da figura do professor no processo de ensino, dificultam, quando não impedem a adoção de outras episte(me)todologias que reconheçam os saberes dos sujeito e suas experiências profundamente articuladas com o cotidiano, as quais ocorrem permanentemente em espaços não formais de aprendizagem47.

Propor outra formação docente, que considere a diversidade de modelos educativos dos povos da Abya Ayla, implica valorizar e criar outras episte(me)todologias, com base nas fontes pedagógicas e filosóficas latino-americanas. De acordo com Leopoldo Zea 48 (1912-2004), o modelo historicamente adotado incorporou o padrão monocultural-47 O conceito de fruição vem ao encontro desta perspectiva, “pois compreende a construção da identidade com base nas relações que se estabelece com o mundo, que se dá primeiramente por meio da corporeidade e da sensibilidade, antes mesmo do surgimento do Eu como consciência” (Pozzer, 2013, p. 107). 48 Pode-se saber mais sobre as concepções educativas de Leopoldo Zea na obra organizada por Streck (2010).

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colonialista, e configurou uma formação docente voltada à manutenção da dominação e à transmissão de elementos culturais eurocêntricos. Privilegiar as relações humanas nos percursos formativos, reconhecer que cada sujeito tem saberes e experiências a serem compartilhadas, considerar que a aprendizagem se dá em rede, em interações dinâmicas, em diálogos existenciais e em processos flexíveis, não-disciplinares e não-autoritários, configuram saídas possíveis para superação do modelo vigente (Pozzer, 2013).

É pelo diálogo que se estabelece o mútuo reconhecimento das diferentes identidades, a partir das convergências e divergências de cunho ideológico, político, filosófico e sociocultural, o que necessariamente exige abertura, acolhimento e reconhecimento das diferenças. De acordo com Levinas (1997, p. 210), o ser humano não se constitui sem o Outro, pois precisa da relação inter-humana para se desenvolver e se definir: o “homem é uma realidade dialógica, encarnada e esta abertura ao Outro o constitui e o define”.

Neste sentido, as múltiplas formas de resistência empreendida por sujeitos, etnias e movimentos sociais pela afirmação e reconhecimento de suas identidades historicamente inferiorizadas, aliadas a continuidade crescente do processo de diversificação sociocultural, reclamam a gestação de outro modelo de formação docente, que reconheça e incorpore outras episte(me)todologias, nas quais, distintas concepções, saberes, fazeres e valores sejam considerados legítimos. Tal reivindicação requer e desafia a construção de outros desenhos curriculares para a formação de

educadores, cujas episte(me)todologias possibilitem estabelecer uma relação dialógica entre as culturas e favorecer a construção de modelos sustentáveis de interação dos seres humanos entre si e com a natureza (Fleuri, 2013).

Partindo de tais premissas, os processos de formação docente poderiam mobilizar, incorporar e promover uma educação com outros olhares, leituras e tessituras curriculares que reconheçam a diversidade cultural no cotidiano escolar. Processos estes apoiados em episte(me)todologias que, ao acolherem as diferenças, questionem os imperativos de uniformização cultural, alertem para os perigos de uma história única e contribuam para a diminuição das violências, desigualdades e exclusões que vicejam na atualidade.

Deste modo, processos de formação docente centrados em padrões identitários monoculturais; rotinas, calendários e currículos fragmentados e descontextualizados; tempos/aulas limítrofes; ditames economicistas, cientificistas e colonialistas, entre outros, se contrapõem à episte(me)todologias que procuram reconhecer o Outro em sua singularidade, e que procuram identificar e situar as diferenças que inferiorizam daquelas que não inferiorizam, no contexto social de desigualdade e de exclusões no qual coexistem (Sousa Santos, 1999). O desafio, em suma, é construir outros modelos de formação docente que abram possibilidades para diálogos e interações, rompendo conceitos cristalizados e práticas estigmatizadoras em relação à diversidade cultural.

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3 INTERCULTURALIDADE E A RESSIGNIFICAÇÃO DAS EPISTE(ME)TODOLOGIAS EDUCACIONAIS

Paralelo ao longo processo de colonização da Abya

Ayla, há uma história de resistências e de práticas educativas de diferentes matrizes, que subsistem e se constituem como alternativas ao modelo universalizante-escolarizador vigente na contemporaneidade. Genuínas alternativas educativas podem ser encontradas nas etnias indígenas que lutaram para manterem seus elementos culturais após o desencontro com a cultura europeia. Além destes, inúmeros movimentos sociais, como o Movimento dos Trabalhos Sem Terra (MST), estruturaram modelos educativos alternativos, os quais expõem os limites da perspectiva colonialista que inferioriza as epistemologias e subjetividades daqueles que não se deixam assimilar pelo modelo civilizatório que intenta se impor a todos.

Destes movimentos historicamente emergiram vozes que denunciaram o caráter etnocêntrico do sistema escolarizador moderno, tais como José Martí, Aníbal Quijano, Paulo Freire, Darcy Ribeiro, Leopoldo Zea, Raúl Fornet-Betancourt, Enrique Dussel, Catherine Walsh, Silvia Ribeira Cusicanqui, entre outros. 49 Estes sujeitos estão inter-relacionados ao movimento filosófico, teológico e antropológico de “pensamento libertador latino-americano”,

49 Na conferência de abertura da 10ª edição da ANPEd-Sul, realizada no dia 26 de outubro de 2014, em Florianópolis/SC, o professor Danilo R. Streck alertou para que “não se dê as costas à nossa própria história, sob o risco de perdermos nossas raízes identitárias”.

que desde a década de 1970 vai se gestando e desenvolvendo, a partir das reivindicações políticas, culturais e religiosas dos povos indígenas e afro-americanos, no contexto do conflito de interpretações do significado da programada “comemoração dos 500 anos” de América Latina (1492-1992). Este pensamento libertador pretendeu realizar um “giro metodológico e hermenêutico” com vistas à superação da hegemonia do eurocentrismo, enquanto condição para a possibilidade de recuperar e assumir uma “consciência e memória próprias”, de “construir identidade lendo a historia por si mesmo, começando pela história própria, e projetando-se desde sua memória com autenticidade” (Fornet-Betancourt, 2014, p. 77).

É neste movimento de resistência e emancipação, que a Interculturalidade ganhou corpo no pensamento latino-americano, assumindo sua condição periférica e se constituindo, ao lado de outros movimentos similares, como um projeto dos pobres e oprimidos, realizando uma análise da história por meio de referenciais próprios para articular uma memória de esperança e libertação. Esta proposta, segundo Fornet-Betancourt (2014, p. 83), incorporou um “[...] pensamento contextualmente comprometido cuja aspiração orientadora é a de contribuir que a América Latina se interprete a si mesma e se transforme segundo um projeto próprio que tome a memória libertadora latente como horizonte de esperança na história de seu povo”.

Neste sentido, definir o que é interculturalidade e intercultural não é tarefa fácil. Fornet-Betancourt (2001) inclusive alerta sobre essa problemática, destacando que a

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busca objetiva pela definição e classificação das coisas não é universal, senão própria da lógica cultural e científica do Ocidente. Além disso, o ato de conceituar alguma coisa é sempre impróprio, porque as palavras não expressam tudo o que se pretende dizer. Na definição conceitual, ao invés de demarcar limites e fronteiras, as palavras devem ser entendias como janelas que permitem ver somente a parte do espaço na direção que estão abertas.

Com estas ressalvas, o autor (2001) compreende interculturalidade como projeto político alternativo que visa à reorganização das relações internacionais vigentes, para corrigir a assimetria de poder existente na contemporaneidade, e como um projeto cultural compartido, que busca recriar as culturas a partir da vivencia concreta do principio de reconhecimento recíproco. Em consequência, entende o intercultural como um espaço que se vai criando mediante o diálogo e comunicação entre as culturas. Em síntese, compreende,

[…] o intercultural como metodologia que nos permite estudar, descrever e analisar as dinâmicas de interação entre diferentes culturas e que vê a interculturalidade como uma nova interdisciplina, com a compreensão do intercultural como um processo real de vida, como uma forma de vida consciente na qual se vai forjando uma tomada de posição ética a favor da convivência com as diferencias (Fornet-Betancourt, 2001, p. 160) (grifos nossos).

Viver, pensar e agir interculturalmente significa, de princípio, reconhecer nosso analfabetismo intercultural com o intento de cultivar uma predisposição para aprendizagem de leituras de mundo e da história a partir das leituras de

distintos outros analfabetos, de outras tradições culturais. Desta maneira,

[...] a ‘alfabetização’ da escola do dialogo intercultural seria a aprendizagem necessária para fazermos assumir que os nomes que nomeamos as coisas desde nossas tradições culturais de origem são nomes contextuais, que necessitam ser redimensionados desde as perspectivas que se abrem dos nomes de outras tradições culturais (Fornet-Betancourt, 2001, p. 159).

Na medida em que os sujeitos se liberam de posturas etnocêntricas, ou que vão se desarmando culturalmente (Panikkar, 1993) 50 , vai se configurando uma episte(me)todologia de convivência e de enriquecimento mútuo, tanto em nível teórico como prático, para gerar processos de transformação cultural dos sujeitos em diálogo. Neste sentido, o intercultural se instituiu no e a partir do exercício do diálogo envolvente e corresponsável, condição indispensável para superar assimetrias de poder existentes entre sujeitos e culturas, as quais legitimam processos de colonização do ser, saber e do viver. Este processo inclui um desarme tanto na esfera individual quanto na coletiva. Assim, a interculturalidade designa,

50 O autor compreende desarme cultural como o “abandono das trincheiras”, especialmente da cultura moderna de origem ocidental, com seus valores inegociáveis de progresso, tecnologia, ciência, democracia, mercado econômico mundial, entre outros. Para Panikkar (1993, p. 62), este desarme é “uma condição para poder estabelecer um diálogo em igualdade de condições com as demais culturas da terra”.

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[...] aquela postura ou disposição pela qual o ser humano se capacita para, e se habitua a viver ‘suas’ referências identitárias em relação com os chamados ‘outros’ [...] se trata de uma atitude que abre o ser humano e o impulsiona a um processo de reaprendizagem e recolocação cultural e contextual [...] É o reconhecimento da necessidade de que uma dimensão fundamental na prática da cultura que temos como ‘própria’ tem de ser a da tradução dos ‘nomes próprios’ que consolidam sua tradição [...] Não há prática intercultural sem vontade nem exercício de tradução (Fornet-Betancourt, 2007, p. 13-14).

As relações interculturais, portanto, se constituem em relações entre os diferentes e as diferenças, o que nem sempre é algo cômodo e tranquilo para todos. Elas ocorrem na medida em que os (des)encontros geram possibilidades de abertura ao diálogo, enquanto caminho autêntico de aproximação e reconhecimento. O diálogo, na perspectiva da interculturalidade é existencial, e requer um desarme do si próprio ou das próprias bases identitárias, para poder apreender, em mesmo nível de legitimidade, o enunciado do Outro. Portanto, se os encontros, confrontos e desencontros entre sujeitos e culturas são inevitáveis na atualidade, é imprescindível uma responsabilidade ética diante do estranhamento ao diferente, para que as inter-relações se construam enquanto experiências libertárias e não de dominação, superposição e negação.

A história aponta o preço pago pelo não reconhecimento da alteridade: guerras, genocídios, epistemicídios, culturícidios, escravidão, exclusão e dominação. Desenvolver relações interculturais torna-se

condição para compreender e desconstruir as lógicas que conduzem à sujeição mútua e, além do mais, para descobrir as possibilidades criativas e as aprendizagens recíprocas decorrentes do diálogo entre sujeitos, grupos e contextos culturais diferentes.

Deste modo, a ressignificação de episte(me)todologias educacionais, com base nos pressupostos da interculturalidade, implica um posicionamento crítico, ético e político, empenhado em assegurar a dignidade humana e a liberdade de cada sujeito/grupo se desenvolver de maneira autônoma. Isso exige a configuração de outro processo de formação de docentes, que supere mecanismos que forjam identidades e diferenças sob um único modelo de ser, saber, falar, agir e viver, enfrentando paradigmas homogêneos e monoculturais para (re)conhecer e produzir epistemes, relações, saberes e metodologias nas quais a diversidade de identidades culturais não sejam vistas como ameaças, mas como parte estruturante dos processos educativos.

Enquanto as episte(me)todologias que embasam os processo de formação docente nas Instituições de Ensino Superior e nos sistemas de ensino centrarem-se na transmissão de um conjunto de conhecimentos fragmentados, desarticulados da vida social e escolar, dificilmente se desenvolverá uma educação que capacite os sujeitos a compreenderem o humano e a natureza em sua integridade.

Faz-se necessário, portanto, desenvolver episte(me)todologias diferenciadas que respeitem e (re)conheçam às identidades na alteridade, proporcionando descobertas de afinidades entre os diferentes, e despertando a auto-percepção de que cada sujeito é um ser diferente em um universo de diferentes.

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Nos exercícios de formação docente intercultural, tem-se a possibilidade de construir coletiva e dialeticamente possibilidades históricas de mudança nos sistemas educativos considerando a diversidade de saberes, experiências, conhecimentos, concepções e distintos modos de organização social.

Uma formação docente que intente ressignificar os fundamentos dos processos formativos precisa recolocar a educação a serviço da vida. Desta maneira, abre-se possibilidade para que outras episte(me)todologias gerem e sustentem projetos alternativas de educação, que integrem a diversidade de culturas em suas múltiplas possibilidades e conhecimentos, articulando diálogos que rompam conceitos cristalizados e práticas homogeneizadoras, proporcionando ensaiar a superação do pensamento que legitima a exclusão e a desigualdade em suas múltiplas faces. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O legado do processo colonizador europeu realizado na Abya Ayla persiste na atualidade por meio de processos de exclusões e desigualdades que discriminam e inferiorizam muitas culturas e identidades - todas aquelas que não se encaixam no padrão civilizatório eurocêntrico difundido ao longo de cinco séculos. Por conta disso, a diversidade cultural foi combatida, perseguida e invisibilizada em nome da suposta supremacia e universalidade da cultura moderna europeia. Culturas, saberes, religiosidades e valores dos povos originários, afro-americanos e de outras minorias étnicas foram subalternizadas e invisibilizadas, sobretudo

pela imposição de um corpus de conhecimentos tidos como universais, de caráter monocultural, que desconsidera a legitimidade de cosmovisões, saberes, valores e práticas sociais dos outros povos.

Esta lógica colonialista notadamente difundiu-se por um sistema educativo centrado em epistemologias e metodologias escolarizantes e homogeneizadoras, que legitimaram cotidianamente em larga escala, um tipo específico de saber, o racional-científico, o qual goza de um status de verdade universal.

Deste modo, perpetua-se a colonialidade do saber, que consiste na deslegitimação e repressão histórica dos modos de produção de conhecimentos que se diferenciam da epistemologia cientificista eurocêntrica. A violência desta colonialidade se manifesta no sistema escolar, através de uma hierarquia de saberes que inculca nos grupos subalternizados a ideia de que estes naturalmente são inferiores, incultos e incivilizados. A colonialidade do saber desarticula a consciência crítica identitária e impulsiona os sujeitos a criarem auto-representações negativas de si mesmas, para que neguem suas próprias raízes e incorporem os valores dos grupos dominantes.

Tal processo se reproduz, dentre outras maneiras, por meio de um modelo de formação de docentes embasado em pressupostos monoculturais, reduzido, de um lado, à apreensão de cânon de conhecimentos genéricos, abstratos e fragmentados, e de outro, pela aprendizagem de metodologias necessárias para manutenção da ordem e do controle, na qual o professor desempenha o papel central.

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É imprescindível a ressignificação destas episte(me)todologias para dar lugar a outras que reconheçam as identidades dos sujeitos e suas experiências de vida, assim como, acolham a diversidade de concepções, saberes e fazeres. Efetivamente, isso implica na construção de outros desenhos curriculares para a formação de educadores, cujas episte(me)todologias possibilitem estabelecer uma relação dialógica com o Outro - condição necessária para desconstruir processos que conduzem à sujeição mútua –, contribuindo para a superação de violências decorrentes do encontro assimétrico das culturas e identidades. REFERÊNCIAS AZEVEDO, M. Quantos eram? Quantos serão? Povos indígenas no Brasil. 2000. Disponível em <http://pib.socioambiental.org/pt/c/no-brasil-atual/quantos-sao/quantos-eram-quantos-serao> Acesso em 20 mar. 2015. BAUDELOT, C. & ESTABLET, R. La escuela capitalista. México: Siglo Veintiuno, 1986. CECCHETTI, E. Diversidade cultural religiosa na cultura da escola. (Dissertação de Mestrado em Educação). Programa de Pós-Graduação em Educação. Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2008. ELTIS, D. & RICHARDSON, D. Atlas of the transatlantic slave trade. New Haven/EUA: Yale University Press, 2010. ENQUITA, M. F. A face oculta da escola: educação e trabalho no capitalismo. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989.

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EDUCOMUNICAÇÃO: PRÁTICAS EDUCOMUNICATIVAS NA FORMAÇÃO DE SUJEITOS CRÍTICOS

Wanessa Matos Vieira51

Wanderléa Pereira Damásio Maurício52 Resumo: O objetivo deste trabalho é refletir acerca dos desdobramentos pedagógicos das atividades educomunicativas na escola, principalmente pela inovação que propõe na transposição didática dos conteúdos curriculares. As TIC fazem parte do nosso dia a dia, estando frequentemente inseridas em todas as atividades que desenvolvemos, inclusive no ambiente educacional e tecnologia por si só, em relação à escola, não trás nenhum benefício se não estiver contextualizada em seu caráter transformador, buscando desenvolver cada vez mais a criticidade do educando. Por isso a Educomunicação, além de produzir um espaço de ressignificação dos conteúdos, deve 51 Pedagoga pelo Centro Universitário Municipal de São José - USJ, Mestranda em Educação – PPGE/UDESC. 52Graduação em Pedagogia das Séries Iniciais - UDESC, Graduação em Orientação Educacional (UDESC); Especialização em Psicopedagogia pela Faculdade de Ouro Fino - MG, Especialização em Gestão Escolar- UDESC, Especialização em Tecnologias da Educação - PUC- Pontifícia Universidade Católica/RJ; Mestrado em Educação e Cultura (UDESC); Doutora em Educação, Desenvolvimento e Tecnologias pela UNISINOS/RS

estimular a co-gestão no processo educacional, com espaço para o diálogo, estabelecendo uma relação intencionalmente horizontal, onde o indivíduo torna-se sujeito da sua caminhada acadêmica, com autonomia para questionar e propor as atividades pedagógicas, compreendendo seu papel no processo educativo. Evidentemente, o professor é o legítimo mediador dessa dinâmica, e para tal deve qualificar-se, ampliando suas vivências e sua formação docente. Em consequência, produz-se um ambiente escolar educomunicativo, onde o diálogo é a essência nas metodologias de ensino e a liberdade e autonomia são inerentes na postura ético-político-pedagógica da instituição. Palavras-chave: Educomunicação. Escola. Metodologia inovadora. Formação continuada. Sujeitos Críticos.

EDUCOMUNICAÇÃO: QUAL SEU SIGNIFICADO PARA A EDUCAÇÃO?

De acordo com o Manual de Educomunicação, documento formulado pelo Ministério da Educação, no ano de 2006, com a presença cada vez maior dos meios de comunicação na vida dos alunos, fica evidente que a educação já não é mais um processo exclusivo da escola. O conjunto dos meios de comunicação e a mídia passaram a exercer um papel fundamental na formação de conhecimentos e valores dos estudantes.

Quando se fala em Educomunicação, Soares (1999) é um autor que traz considerações importantes para compreender este conceito. Segundo Soares (1999),

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Educomunicação pode ser definida como “[...] toda ação comunicativa no espaço educativo, realizada com o objetivo de produzir e desenvolver ecossistemas comunicativos”. Através da citação do autor, entende-se a relação entre essas duas palavras que, juntas, formam o neologismo Educomunicação, utilizado na década de 1980 pela Unesco e que significava “educação para recepção crítica”.

De acordo com Soares (1999), ignorar os meios de comunicação é reforçar o tradicionalismo e excluir um instrumento que pode facilitar e favorecer o processo de ensino aprendizagem do aluno. As pesquisas e os projetos feitos acerca da temática Educomunicação são justificáveis pela importância dos meios de comunicação na vida diária dos estudantes.

Outra definição acerca da Educomunicação é a do autor Donizete Soares (2006) que, em um de seus artigos, afirma que:

Investigar os fundamentos desse campo, discutir as inter-relações dos vários tipos de saberes que se fundem na Educação e na Comunicação constitui os principais objetivos teóricos desse novo campo. O que sentem e pensam as pessoas de si mesmas, dos outros e do mundo que as rodeia, não importando idade, sexo, credo ou condição social, por sua vez, são os conteúdos trabalhados na Educomunicação. [...]. Se entendermos por fim algo sobre o qual se tem clareza, então, alterar a realidade em que se vive é o objetivo principal da Educomunicação. (SOARES, 2006, p.1).

Se antes Educação e Comunicação eram consideradas

duas áreas diferentes, com papéis e funções diferentes, hoje,

um campo razoavelmente novo de pesquisa e atuação surgiu com a união dessas duas palavras.

Para entender o conceito de Educomunicação é necessário definir os conceitos das duas palavras que formam esse neologismo. Libâneo (2005, p.26) diz que a educação é definida como “[...] fenômeno plurifacetado, ocorrendo em muitos lugares, institucionalizado ou não, sob várias modalidades”. Para Libâneo (2005), a educação associa-se a processos de comunicação e interação pelos quais os membros de uma sociedade assimilam saberes, habilidades, técnicas, atitudes, valores existentes no meio culturalmente organizado e, com isso, ganham o patamar necessário para produzir outros saberes, técnicas, valores, etc.

Para Freire (1996, p. 21), “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua construção”. Freire também define comunicação, assim, segundo ele:

Comunicação é a coparticipação dos sujeitos no ato de pensar (...) comunicação é diálogo na medida em que não é transferência de saber, mas um encontro de Sujeitos interlocutores que buscam a significação dos significados. (FREIRE, 1971, p.67-9). Diante dessas definições, entende-se que, apesar de

terem dois conceitos distintos, Educação e Comunicação têm mais aspectos que os une do que aspectos que os separa. Com Freire e Libâneo, entende-se que, no processo de educação, a comunicação está intrínseca. Mas o que significa fazer Educomunicação na prática?

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No mesmo artigo, Donizete Soares (2006) define o que significa Educomunicação na prática:

Entendemos que fazer Educomunicação ou realizar práticas educomunicativas, na medida em que isto quer dizer construir um novo discurso é experimentar outra forma de convivência social. Aliás, a Educomunicação, do nosso ponto de vista, é, antes e tudo, uma proposta de organização social essencialmente diferente dessa em que estamos inseridos. (SOARES, 2006, p.7) O autor citado defende a ideia de que Educomunicação

não pode ser tratada como uma novidade passageira ou um modismo. Tampouco pode ser confundida com a simples inserção de tecnologia nas salas de aula. Educomunicação é muito mais do que uma maneira de melhorar a educação ou de lidar com as novas tecnologias. Deve ser tratada como uma afirmação de liberdade, igualdade de direitos e confirmação do aluno com um ser ativo na construção do conhecimento.

Ainda de acordo com Soares (2006), Educomunicação também não é algo que possa surgir magicamente. Busca desconstruir pré-conceitos, pré-julgamentos, ações autoritárias. Estabelece uma relação intencionalmente horizontal, que estimula a formação de alunos ativos. Um dos princípios da Educomunicação é a cogestão, a possibilidade do aluno tornar-se autor de sua caminhada acadêmica, que não seja conformista. Buscar formar um sujeito autônomo, que entenda e questione o motivo das verdades e não apenas aceite-as, é a intenção das práticas educomunicativas.

Usa-se, aqui, a palavra sujeito, e não pessoa, pois se entende, assim como Moretto (2007), que:

Este conceito de sujeito tem como consequência o fato de que a história de cada indivíduo é única, o que nos leva a concluir que a estrutura cognitiva de cada sujeito é também única, ou seja, cada sujeito cognoscente é único. (MORETTO, 2007, p.15) Diante deste conceito do autor, compreende-se sujeito

como um ser único, com uma histórica única, conceito que vem ao encontro do que propõe a Educomunicação.

Ainda segundo Moretto (2007), a palavra pessoa “é utilizada no senso comum, para indicar alguém, sem maior caracterização” (p.18), por isso, este significado não é interessante para o presente trabalho, já que se busca entender o ser humano como um sujeito único.

O Manual de Educomunicação, formulado pelo Ministério da Educação, na II Conferência Nacional Infanto-juvenil pelo Meio Ambiente, em 2006, é um documento de suma importância e sua leitura é fundamental para que se possa compreender a dimensão Educomunicação na vida escolar e fora dela. De acordo com o Manual de Educomunicação:

Quando Educação e Comunicação se cruzam, realiza-se o que propões a Educomunicação. Isto é, a formação de jovens para que usem a comunicação como uma ferramenta poderosa para transformar sonhos em realidade, para que cresçam altivos, autônomos, com capacidade de transformação, intervindo diretamente na realidade em que vivem. (BRASIL, 2006, p.4)

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Este documento é voltado para a relação educação e comunicação, que se justifica pelo valor simbólico dos meios de comunicação na vivência diária de crianças e adolescentes em processo de desenvolvimento.

Diante desses conceitos, qual seria a relação da Educomunicação com a mídia?

RELAÇÃO DA MÍDIA COM A ESCOLA: SIGNIFICADOS COMPARTILHADOS PARA A EDUCOMUNICAÇÃO

Se a Educomunicação trabalha com as inter-relações entre Educação e Comunicação, a mídia é um fator determinante para o desenvolvimento de projetos educomuncativos. Conforme Silverstone (1999), os cidadãos são educados por meio de imagens, sons, movimentos e muitos outros fatores provindos da cultura midiática. Silverstone (1999) define que:

Mídia é, se nada mais, cotidiana, uma presença constante em nossa vida diária, enquanto ligamos e desligamos, indo de um espaço, de uma conexão midiática, para outro. Do rádio para o jornal, para o telefone. Da televisão para o aparelho de som, para a Internet. Em público e privadamente, sozinhos ou com outros. É no mundo mundano que a mídia opera de maneira mais significativa. Ela filtra e molda realidades cotidianas, por meio de suas representações singulares e múltiplas, fornecendo critérios, referências para a condução da vida diária. (SILVERSTONE, 1999, p.20)

Diante da ideia do autor, entende-se mídia como algo

inerente à vida das pessoas. Ela está presente desde o

momento em que a TV é ligada até o momento em que uma pesquisa é feita em determinado site da internet.

Considera-se indispensável trazer também o conceito de Freire (1970) sobre o diálogo. Segundo ele:

Somente o diálogo, que implica em um pensar crítico, é capaz, também, de gerá-lo. Sem ele, não há comunicação e sem esta, não há verdadeira educação (...). A educação autêntica não se faz de A para B ou de A sobre B, mas de A com B, mediatizados pelo mundo. (FREIRE, 1970, p.98). Freire (1970) faz relação entre o diálogo e a educação,

como uma ferramenta de suma importância para que a educação não se torne algo vertical, em que somente o professor tem voz e o aluno é um sujeito passivo, incapaz.

Para o professor, para o aluno, enfim, para o sujeito pertencente à sociedade é importante entender como este veículo funciona. Entender e perceber a intencionalidade por trás dos discursos lidos, ouvidos, perceber que a mídia não é neutra, afinal, como disse Uebel53 (2010), “cada proprietário de veículo de comunicação, de editora ou de gravadora deve ter liberdade para escolher os conteúdos que estejam mais bem alinhados com os seus propósitos, desde que, evidentemente, sejam respeitadas as leis locais”.

Sobre o estudo da mídia, Silverstone (1999) afirma que se deve estudá-la como dimensão social e cultural, mas também política e econômica do mundo moderno. Algo que

53 Disponível em: http://blogdomonjn.blogspot.com.br/2010/03/liberdade-na-midia-privada-e-que-o.html

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contribui para a variável capacidade do homem de compreender o mundo. O autor explica a relevância de estudar mídia nas escolas, justamente pelo fato de que se entende por mídia ou mídias os vários veículos que possibilitam a informação e a comunicação, e se essa comunicação for mal interpretada ou não interpretada de forma alguma, o aluno está apenas reproduzindo informação, não está analisando ou criando suas próprias ideias e construções.

Sendo assim, a educação para mídias traz diversos benefícios, não somente para a formação acadêmica do aluno, mas para a sua autonomia e criticidade como indivíduo.

Porém, há a necessidade de compreender a mídia em seu aspecto negativo. Silverstone (1999) faz a relação da mídia com a política e a função social que existe por trás dela. No seu entendimento:

A mídia, como força cultural, é, de modo semelhante, política: sujeita a conflitos, em torno de acesso e participação; em torno do direito de propriedade e representação; e sempre vulnerável às incertezas e às consequências imprevistas de todo e qualquer ato de comunicação. (SILVERSTONE, 1999, p.268)

Silverstone (1999) fala da mídia no processo político,

em democracias e também em tiranias, pois de acordo com ele, “a disseminação e administração da informação são, por sua vez, parte crucial da administração de um Estado nacional”.

De acordo com o autor, entendem-se os perigos que a mídia pode trazer ao manipular informações ou informar uma notícia pela metade, passando ao telespectador um falso conhecimento. Além disso, é muito fácil encontrar notícias sensacionalistas divulgadas pela mídia. Por isso é importante considerá-la uma aliada na educação, mas sem esquecer seu lado negativo.

CONCEITO DE TECNOLOGIA E SUAS RELAÇÕES COM A ESCOLA

Inclui-se na relação mídias e comunicação um terceiro elemento: a tecnologia. É importante diferenciar e entender esses conceitos para, assim, poder estabelecer a relação entre eles.

A mudança tecnológica produz consequências no mundo em que se vive. Cada tecnologia, nova ou não, muda as maneiras de administrar e comunicar informações. Mas o que significa o termo tecnologia? E o termo novas tecnologias? Qual a sua relação com a escola?

Para Kenski (2007), tecnologia é uma palavra muito simples de ser entendida, pois convivemos com ela diariamente. Segundo a autora:

Ela está em todo o lugar, já faz parte de nossas vidas. As nossas atividades cotidianas mais comuns - como dormir, comer, trabalhar, nos deslocarmos para diferentes lugares, ler, conversar e os divertirmos – são possíveis graças às tecnologias a que temos acesso [...] Tecnologia que resultaram, por exemplo, em lápis, cadernos, caneta, lousas, giz e muitos outros produtos, equipamentos e processos que

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foram planejados e construídos para que possamos ler, escrever, ensinar e aprender. (KENSKI, 2007, p.24) A autora nos remete a acontecimentos passados,

quando o uso de tecnologias formou o que se percebe hoje. A tecnologia faz parte do dia-a-dia da população, e apesar de algumas pessoas resistirem a ela, a citação da autora mostra que a rádio que sintonizamos, a TV que assistimos, o computador que usamos para pesquisar, todos esses aparelhos são tecnologias e foram criados para suprir uma necessidade humana.

Mas tecnologia não está ligada somente com hardwares ou softwares, a vacina contra H1N1 54 é uma tecnologia também, ou seja, neste caso, a tecnologia é usada para salvar vidas. Muitas vezes a sociedade teme o que é novo e até luta contra ele, por desconhecê-lo.

Além de definir e exemplificar o que é tecnologia, a autora também define as novas tecnologias, termo tão ouvido e que causa dúvidas em muitas pessoas. A autora explica:

Ao se falar em novas tecnologias, na atualidade, estamos nos referindo principalmente, aos processos e produtos relacionados com os conhecimentos provenientes da eletrônica, da microeletrônica e das telecomunicações. Essas

54 De acordo com o Ministério da Saúde (disponível em: http://portalsaude.saude.gov.br/) H1N1 é o vírus Influenza. Existem três tipos de vírus influenza: A, B e C. O vírus influenza C causa apenas infecções respiratórias brandas, não possui impacto na saúde pública e não está relacionado com epidemias. O vírus influenza A e B são responsáveis por epidemias sazonais, sendo o vírus influenza A responsável pelas grandes pandemias.

tecnologias caracterizam-se por serem evolutivas, ou seja, estão em permanente transformação. (KENSKI, 2007, p.25)

Em seu livro, Kenski (2007) também fala sobre a

dificuldade de se estipular o que é novo e o que não é, a partir de qual ano, de qual data pode-se dizer que determinada tecnologia é nova. Exemplos de novas tecnologias são os computadores pessoais, a lousa digital, entre outros. A imensa maioria se caracteriza por agilizar e tornar menos palpável o conteúdo da comunicação, por meio da digitalização e da comunicação em redes para a captação, transmissão e distribuição das informações.

Considera-se que o advento destas novas tecnologias (e a forma como foram utilizadas por governos, empresas, indivíduos e setores sociais) possibilitou o surgimento da "sociedade da informação” 55.

Para definir a tecnologia, ninguém melhor do que Álvaro Vieira Pinto (2005), um autor importante que ajuda a entender este conceito. Segundo ele:

De acordo com o primeiro significado etimológico, a “tecnologia” tem de ser a teoria, a ciência, o estudo, a discussão da técnica, abrangidas nesta última noção as artes,

55 De acordo com Jorge Werthein PhD em educação com master em comunicação pela Universidade de Stanford a expressão “sociedade da informação passou a ser utilizada, nos últimos anos desse século, como substituto para o conceito complexo de sociedade pós-industrial e como forma de transmitir o conteúdo específico do novo paradigma técnico-econômico”. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ci/v29n2/a09v29n2.pdf>

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as habilidades do fazer, as profissões e, generalizadamente, os modos de produzir alguma coisa. (PINTO, 2005, p.119) Ainda definindo o termo tecnologia, o autor traz o

significado desta palavra em relação à pura e simples técnica. Em seguida, ele traz o conceito de tecnologia como o conjunto de todas as técnicas de que dispõe uma determinada sociedade, em qualquer fase histórica de seu desenvolvimento. Por fim, o autor conceitua tecnologia como a idealização da técnica.

Diante desses conceitos, qual seria a relação estabelecida entre tecnologia e as escolas?

Voltando a citar Kenski (2007), para a autora, a relação da tecnologia com a escola se dá da seguinte forma:

As novas tecnologias de comunicação (TIC’S), sobretudo a televisão e o computador, movimentaram a educação e provocaram novas mediações entre a abordagem do professor, a compreensão do aluno e o conteúdo veiculado. A imagem, o som, e o movimento oferecem informações mais realistas em relação ao que está sendo ensinado [...] Vídeos, programas educativos na televisão e no computador, sites educacionais, softwares diferenciados transformam a realidade da aula tradicional, dinamizam o espaço de ensino aprendizagem, onde anteriormente, predominam a lousa, o giz, o livro e a voz do professor. (KENSKI, 2007, p. 45-46)

A citação da autora ressalta os benefícios que a

tecnologia pode trazer quando bem utilizada. O professor encontra na tecnologia um novo recurso para dinamizar, tornar a aula atual, mais dinâmica, com mais objetos agregados ao conhecimento e à criticidade.

É fácil perceber os benefícios trazidos pela tecnologia em relação à escola, mas também é preciso perceber que a tecnologia, por si só, não traz benefício algum. O que o professor ensina em uma lousa pode ser ensinado em um quadro digital. E o que mudou? Nada, o conteúdo é o mesmo, somente a ferramenta foi alterada. É claro que para o aluno é muito mais atrativo ver o conteúdo em uma lousa digital ao invés de vê-lo em um quadro negro, mas a tecnologia deve vir com mudanças significativas e não se deve apenas usá-la por usar.

O professor pode surpreender o aluno ao utilizar a tecnologia como meio para provocá-lo a refletir e desenvolver sua criticidade, aprimorando e ampliando seus conhecimentos. Nesse sentido, para uma integração inovadora das tecnologias, Moran et al explicam sobre esse aprender:

Aprendemos quando relacionamos, integramos. Uma parte importante da aprendizagem acontece quando conseguimos integrar todas as tecnologias, as telemáticas, as audiovisuais, as textuais, as orais, musicais, lúdicas, corporais (MORAN et al 2000, p. 32). A Educomunicação também trata disso. Não é apenas

inserir tecnologia nas salas de aula, sem contextualizá-las, sem ter uso transformador.

Diante desta ideia de educação, quais os conceitos de educação ingênua e crítica?

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CONCEPÇÃO INGÊNUA E CONCEPÇÃO CRÍTICA DA EDUCAÇÃO: A INFLUÊNCIA DA EDUCOMUNICAÇÃO

NA VIDA DOS ESTUDANTES

De acordo com Soares (1999), a Educomunicação busca

garantir a autenticidade, a autonomia e a criticidade. Mas para compreender a concepção crítica de educação é necessário entender antes qual o conceito de educação e qual o conceito de concepção ingênua. Segundo Pinto (1982):

A educação é o processo pelo qual a sociedade forma seus membros a sua imagem e em função de seus interesses. [...]. Por consequência, educação é formação do homem pela sociedade, ou seja, o processo pelo qual a sociedade atua constantemente sobre o desenvolvimento do ser humano no intento de integrá-lo no modo de ser social vigente e de conduzi-lo a aceitar e buscar fins coletivos. (PINTO, 1982, p. 29-30)

Ainda de acordo com este autor, a educação é um

processo, ou seja, um fato histórico, é um fato existencial, refere-se ao modo como o homem se faz ser homem. Também é um fato social, refere-se à sociedade, é um fenômeno cultural, é uma atividade teológica, a formação do indivíduo sempre visa a um fim. Entende-se, com o conceito do autor, que a educação é um processo, que ela transforma as condições de cada ser humano, daí a importância de estudá-la, compreendê-la e, mais importante, contextualizá-la. Na percepção de Pinto:

A concepção ingênua da educação é a educação como transferência de um conhecimento finito. Esta ingenuidade se refere à noção de conteúdo e forma de educação. Supõe que o professor é apenas o transmissor de uma mensagem definitivamente escrita, de um conjunto de noções, de acordo com determinado método e que essa mensagem não se modifica com as condições de tempo e lugar, com os interesses do educador e com o mesmo ato de ser transmitido. (PINTO, 1982, p.61-62) O autor conceitua a educação ingênua como algo

pronto e acabado, sem espaço para o diálogo, uma educação vertical, em que o aluno (sem luz) é passivo, alienado. Este conceito de educação não é contextualizado, não se altera. A educação ingênua não é politizada, não é transformadora, e é esse tipo de educação que a Educomunicação repudia.

Já a concepção crítica da educação é apresentada por Pinto (1982) da seguinte forma:

A concepção crítica é a única que está dotada da verdadeira funcionalidade e utilidade, pois conduz à mudança da situação do homem e da realidade a qual pertence, em virtude de ser a única que é capaz de oferecer o conteúdo e o método mais eficaz para a instrução (alfabetização, escola secundária, universidade) da criança e do adulto, tendo em conta aquelas finalidades [...] A educação é um diálogo amistoso entre dois sujeitos. A rigor, deve-se dizer que a educação não tem objeto, e sim somente objetivo. (PINTO, 1982, p. 63-64). É perceptível a diferença entre os dois conceitos de

educação formulados pelo autor. Ao definir a concepção crítica da educação, o autor mostra que nesta educação o aluno é ativo, e a educação transforma a situação e a

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realidade do homem. Além disso, o aluno é respeitado, não é entendido com um ser raso e sim inserido em um contexto, em um processo de aprendizagem eterno. Professor e aluno têm voz, por isso dialogam, questionam. E é este tipo de educação que a Educomunicação busca, uma educação transformadora, real, contextualizada, que mude a realidade do aluno e o torne cogestor, ativo, crítico.

Em relação ao saber, Pinto (1982) o define, para a consciência ingênua, como “o saber que se apresenta como um conjunto de conhecimentos absolutos, abstratos, a-históricos”. Já para a consciência crítica “o saber é o produto da existência real objetiva, concreta, material do homem em seu mundo, racional”. (1982, p.65)

Diante desta afirmação do autor fica evidente a diferença entre os dois saberes. Enquanto um diminui, aliena o homem, o outro liberta e o transforma.

Quando se fala em criticidade na educação é indispensável pensar em Paulo Freire. O autor tornou sua prática pedagógica um ato político, e para ele o ato de ensinar deve ser, sobretudo, uma comunicação, um diálogo. Ao falar na importância do diálogo, Freire (1986) diz:

O diálogo é uma espécie de postura necessária, na medida em que os seres humanos se transformam cada vez mais em seres criticamente comunicativos. O diálogo é o momento em que os humanos se encontram para refletir sobre sua realidade tal como a fazem e refazem. (1986, p.74)

O diálogo é um componente importante da

Educomunicação para a provocação à criticidade. Refletir

sobre a sua realidade, ainda segundo Freire, é a melhor forma de poder transformá-la. O diálogo na educação é fundamental e necessário.

Em suas obras, Paulo Freire fala em criticidade, autonomia, e em seu livro ‘Pedagogia da Autonomia’, o autor provoca seu leitor a pensar quando salienta:

Dizer que o aluno é um ser inacabado significa reconhecer que ele está em contínua fase de construção, num permanente processo de busca, pois esta inconclusão é própria do ser humano e consiste na expressão da autonomia, na liberdade que ele tem de ser curioso, instigador e crítico. É ela que nos torna protagonistas de nossa história, diferentes dos outros seres, de modo a intervir no mundo lutando para “não ser apenas objeto, mas sujeito também da História”. (FREIRE, 1996, p.60). Esta contínua fase de construção é o direito do sujeito

de ser crítico, questionado. E Freire, mais do que ninguém, é um autor que luta por esse direito. Ele relaciona o ser humano crítico à escola, escola, por sinal, como um espaço de crescimento, de transformação da realidade. O autor afirma a função transformadora da escola. A educação que vise formar para a autonomia deve fomentar nos educandos a curiosidade e a criticidade. A Educomunicação compartilha com Freire a ideia de educação crítica, transformadora, ativa, dialogada.

Mas qual seria o papel do professor nessa mediação? Qual a importância da prática e da formação pedagógica para atividades educomunicativas?

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O PAPEL DO PROFESSOR E A RELEVÂNCIA DA PRÁTICA EDUCATIVA

Para a realização de práticas educomunicativas é indispensável a mediação do professor. Mas qual seria a função do professor? E quanto à formação docente, ela interfere na prática pedagógica? Qual a relevância da mesma?

Antes é necessário compreender termos ligados à pedagogia, e que são de grande ajuda para compreender o papel do professor na relação ensino/aprendizagem.

A informação, o conhecimento e o saber estão ligados ao processo realizado nas salas de aula e é importante conhecer os conceitos para estabelecer a relação entre eles. Segundo Moretto (2007), a informação é definida como um conjunto de dados relacionados logicamente, de forma a dar sentido à sentença. Já o conhecimento pode ser entendido da seguinte forma:

Chamamos conhecimento às informações interiorizadas pelo sujeito cognoscente, que tomam sentido em sua estrutura cognitiva, ou seja, essas informações, junto às demais existentes, numa rede de informações lógica e significativamente relacionadas, passam a ter significado novo, no contexto dessa rede. (MORETTO, 2007, p.42).

Percebe-se que a palavra ‘significativo’ não é usada

para definir a palavra informação, diferentemente da definição do conhecimento. A partir da definição de Moretto (2007), entende-se que o conhecimento é mais complexo, requer mais análises do que as informações. Estas estão na

TV, no jornal, estão em todos os lugares, mas o conhecimento ocorre quando essas informações são significativas para o sujeito, e dessa forma, ele as interioriza. Sendo assim, o saber é definido por Charlot (2000) como:

A relação com o saber é a relação com o mundo, com o outro, e com ele mesmo, de um sujeito confrontado com a necessidade de aprender. [..]. E o conjunto (organizado) das relações que um sujeito mantém com tudo quanto estiver relacionado ao aprender e o saber. (CHARLOT, 2000, p. 80) Nesse sentido, entende-se o saber como uma relação,

um diálogo do sujeito com ele mesmo, a sua vontade de aprender. Relação presente na Educomunicação, em que o sujeito é ativo, questionador e crítico.

É possível relacionar as palavras já conceituadas com ‘aprender’ e ‘ensinar’, já que conhecimento, informação e saber são conceitos utilizados na teoria e na prática, dentro e fora das escolas. Mas é preciso definir o que significa aprender e ensinar.

Na visão de Moretto (2007) aprender é construir significado, então:

Se aprender é construir significado, ensinar é mediar esta construção. O que estamos afirmando, e queremos enfatizar, é que oportunizar aos alunos a construção de conhecimento não é apenas transmitir-lhes informações. (MORETTO, 2007, p.50) Quando define ensinar e aprender, Freire (1996, p.31)

afirma que “ensinar, aprender e pesquisar lidam com dois

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momentos: o momento em que se aprende o conhecimento já existente e o momento em que se trabalha a produção do conhecimento existente. ”

Ao analisar as definições desses dois autores, percebe-se que em ambas se relacionam o ensinar com construção, e não com transferência de informações, como se pensava na educação bancária (FREIRE, 2005). Os autores trazem a ideia de ensinar como uma mediação, e ainda trazem esta ideia ligada ao conhecimento, e não a informações, já que, como visto anteriormente, informações não precisam ser necessariamente significativas, ao passo que o conhecimento deve ser.

Levando em conta os conceitos apresentados é indispensável pensar no papel do professor mediante a mediação, e para isso, Freire (1996) traz conceitos importantes para se pensar na figura do professor. Nas palavras deste autor:

Não há docência sem discência, as duas se explicam, e seus sujeitos, apesar das diferencias que os conotam, não se reduzem a condição, de objeto um do outro. Quem ensina aprende ao ensinar, e quem aprende ensina ao aprender. (FREIRE, 1996, p. 23)

Freire (1996) entende educação como um diálogo, uma

troca. Não existiria professor sem aluno e, diferentemente do que se pensava antes, ambos aprendem. Ao ensinar, ao trocar, ao mediar o professor aprende junto com o aluno, reelabora suas ideias, reconstrói conceitos, enfim, atualiza-se. Com essa afirmação Freire (ano) reforça a ideia da Educomunicação,

segundo a qual a educação deve ser feita na base de trocas, de conversas, de perguntas, ou seja, na base da comunicação e da problematização.

Ao falar do papel do professor, Freire (1996) afirma que formar é muito mais do que puramente treinar o educando no desempenho de destrezas, e a partir disso, entende-se que a profissão docente vai além de treinar o aluno, é muito mais do que lhe passar informações, mas com o conhecimento que ele traz poderá construir novos conhecimentos.

Para contrapor esta ideia, Freire (1996, p.96) afirma que “o bom professor é o que consegue, enquanto fala trazer o aluno até a intimidade do movimento do seu pensamento. Sua aula é assim um desafio e não uma cantiga de ninar. ” O referido autor afirma, com esta ideia, que o professor deve envolver seu aluno, através de discussões, argumentos, atividades, enfim, propostas significativas, o que é diferente de passar informação. Passar, neste caso, constitui uma ideia de distância, do professor longe do aluno, e não interagindo, estando junto. O autor ainda afirma:

Sou professor a favor da boniteza de minha própria prática, boniteza que dela some se não cuido do saber que devo ensinar, se não brigo por este saber, se não luto pelas condições materiais necessárias sem as quais meu corpo, descuidado, corre o risco de se amofinar e de já não ser o testemunho que deve ser de lutador pertinaz, que cansa, mas não desiste. Boniteza que se esvai de minha prática se, cheio de mim mesmo, arrogante e desdenhoso dos alunos, não canso de me admirar. (FREIRE, 1996, p.103)

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Considerando a ideia de Freire (1996), entende-se que o professor deve gostar da sua profissão e deve defendê-la. Deve ver beleza em sua prática diária, deve lutar pelo seu direito de mediar o conhecimento para e com o aluno e, além disso, deve ser humilde para perceber, para notar seu aluno, deve enxergar este aluno como um sujeito que possui uma história, e deve, acima de tudo, respeitá-lo durante sua prática. Nota-se que o autor defende a ideia do professor defendendo sua docência, mas com humildade.

A prática educativa faz parte da profissão docente, e é importante analisá-la para propor práticas educomunicativas.

Conforme diz Zabala (1998), é importante que o professor entenda os fatores que influenciam sua prática para poder tornar-se um profissional melhor. São suas palavras:

Um dos objetivos de qualquer bom profissional consiste em ser cada vez mais competente em seu ofício. Geralmente se consegue esta melhora profissional mediante o conhecimento e a experiência: o conhecimento das variáveis que intervêm na prática e a experiência para dominá-las. A experiência, a nossa e a dos outros professores. O conhecimento, que provém da investigação, das experiências dos outros e de modelos, exemplos e propostas. (ZABALA, 1998, p.13).

O autor defende que, para tornar-se um bom

profissional, o professor deverá ter conhecimento sobre a sua prática, o que intervém ou não nela e, além disso, ter experiência ou aprender com a experiência de outros professores. Um professor que entende como funciona sua prática diária, que compreende como funciona a escola na qual trabalha, torna-se ativo, traz propostas reais para

determinada comunidade na qual está inserido. Outro fator que o autor defende é que a experiência é importante para o professor, mas observar seus colegas de profissão, conversar sobre seu planejamento, sobre suas atividades também traz experiência, afinal, a escola não é feita de um professor apenas e sim de um grupo docente e discente.

Continuando a falar sobre a prática educativa, Zabala (1998) afirma:

A estrutura da prática obedece a múltiplos determinantes, tem sua justificação em parâmetros institucionais, organizativos, tradições metodológicas, possibilidades reais dos professores, dos meios e condições físicas existentes, etc. Mas a prática é algo fluido, fugidio, difícil de limitar com coordenadas simples e, além do mais, complexa, já que nela se expressam múltiplos fatores, ideias, valores, hábitos pedagógicos etc. (ZABALA, 1998, p.16). Aqui, o autor traz a ideia da prática educativa como

uma algo difícil de definir ou delimitar, já que existem muitas variáveis que a influenciam. Além dos parâmetros institucionais, as metodologias e até as condições físicas da escola induzem à prática educativa, por isso é difícil achar uma definição. A prática educativa é complexa, justamente porque múltiplos fatores a influenciam.

Conforme as ideias de Zabala (1998) sobre a Prática Educativa, o planejamento e a avaliação dos processos educacionais são parte inseparável da atuação docente. Percebe-se a importância do planejamento e da avaliação para o sucesso da atuação docente. Planejando, o professor é capaz de trazer intencionalidade em suas propostas, tornar sua aula

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mais significativa, com sentido. Estando preparado, o professor se sentirá mais seguro e, consequentemente, seus alunos perceberão nele um profissional comprometido.

Com o intuito de explicar melhor o significado de planejamento, Moretto (2007, p.100) o define como um “roteiro de saída, sem certeza dos pontos de chegada. Por esta razão todo planejamento busca estabelecer a relação entre previsibilidade e a surpresa. ”.

Para ajudar o processo ensino/aprendizagem do aluno, Zabala (1998) propõe o uso de atividades na prática educativa:

Assim, podemos considerar atividades, por exemplo: uma exposição, um debate, uma leitura, uma pesquisa bibliográfica, tomar notas, uma ação motivadora, uma observação, uma aplicação, um exercício, o estudo, etc. Desta maneira, podemos definir as atividades ou tarefas como uma unidade básica do processo de ensino/aprendizagem. (ZABALA, 1998, p. 17)

Tendo em vista a explicação do autor, entende-se que

as atividades ou tarefas são parte importante do processo ensino/aprendizagem do aluno. Ao exemplificar estas atividades como um debate, uma exposição, uma ação motivadora, o autor deixa claro sua ideia de educação como uma afirmação de liberdade, princípio presente na Educomunicação. A autonomia que o aluno sente ao poder debater, expor sua ideia, questionar, pesquisar algo real, algo presente em sua vida, faz dele um sujeito ativo, crítico e comunicativo.

Para pensar em sua prática educativa, o professor, antes de tudo, deve ter formação para se qualificar em suas atuações pedagógicas, deve fundamentar sua prática em estudos significativos. Por isso é importante pensar: qual a relevância da formação docente para o sucesso da profissão?

A FORMAÇÃO DOCENTE E O PERFIL: EDUCOMUNICADOR X PROFESSOR

Alguns autores são importantes para se pensar na formação docente, e entre eles, Nóvoa (2011) é um autor que traz considerações relevantes acerca desta temática. Segundo ele:

Ser professor é compreender os sentidos da instituição escolar, integrar-se numa profissão, aprender com os colegas mais experientes. É na escola e no diálogo com os outros professores que se aprende a profissão. O registo das práticas, a reflexão sobre o trabalho e o exercício da avaliação são elementos centrais para o aperfeiçoamento e a inovação. São estas rotinas que fazem avançar a profissão. (NÓVOA, 2011, p. 49) A ideia de Nóvoa (2011) vai ao encontro da ideia de

Zabala (1998), ao afirmar que a experiência com outros professores, o diálogo, o registro e a reflexão da prática engrandecem o docente e o fazem repensar e inovar, assim, o referido autor reforça as ideias de Zabala (1998).

Quando fala em formação docente, Nóvoa (2011) afirma que a formação de professores deve assumir um forte componente para a práxis, ou seja, o entrelaçamento da teoria

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com a prática, a entrada na aprendizagem dos alunos e no estudo de casos concretos, tendo como referência o trabalho escolar. Analisando esta afirmação, entende-se que o autor defende uma formação prática voltada para a aprendizagem através do concreto, do real.

Percebe-se aqui, que o autor defende a formação docente pensando no aluno real, e não no aluno idealizado nos textos teóricos que são trabalhados nas formações de professores. Perceber o sujeito real, com suas capacidades e dificuldades, de acordo com o autor, é a melhor forma de preparar o professor para sua profissão docente.

Além disso, Nóvoa (2011) ainda afirma que a formação de professores deve estar marcada por um princípio de responsabilidade social, favorecendo a comunicação pública e a participação profissional no espaço público da educação. Percebe-se que, com esta afirmação, o autor propõe a formação docente fazendo ligação com a responsabilidade social do professor.

É imprescindível que o docente entenda sua importância para a sociedade. O autor também defende a formação voltada para a comunicação pública, ou seja, para estar em contato com a comunidade além dos portões da escola. O professor deve envolver os pais, responsáveis, a comunidade em suas propostas, já que a educação deve ser uma parceria entre a escola e a família.

Nóvoa (2011) afirma também que a formação de professores deve valorizar o trabalho em equipe e o exercício coletivo da profissão, reforçando a importância dos projetos educativos de escola.

A partir da ideia do autor percebe-se a relevância de valorizar o trabalho em equipe na formação docente. É importante que o professor pense de forma coletiva, sabendo conversar, pedir ajudar, conhecendo outras metodologias diferentes da sua, enfim, durante a formação do professor é importante que ele perceba que o trabalho docente é coletivo, é feito em grupo.

Sendo assim, após pensar no papel do professor, na sua prática educativa e na relevância de sua formação, é crucial pensar no perfil deste novo profissional: o Educomunicador.

O Prof. Pier Cesare Rivotella, em um Congresso Internacional de Faculdades de Comunicação das Universidades Católicas, em 2002, tomou a iniciativa de referir-se à Educomunicação e ao profissional desta área do seguinte modo:

O conceito de Educomunicação deve ser entendido como uma prática de mediação cultural, cabendo ao educomunicador transformar-se num profissional em condições de ser uma presença significativa na vida de novas gerações. [...]. Um profissional que conhece profundamente os campos da comunicação e da educação, maneja as tecnologias da informação e mantém-se aberto a um constante diálogo intercultural com as novas gerações, associando-se a elas na promoção de espaços de produção de cultura. (RIVOTELLA, 2002, p. 41). A partir da ideia de Rivotella (2002) é possível

entender o perfil do profissional da Educomunicação, um profissional que conheça os campos da comunicação, ou seja,

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que saiba falar com seu ouvinte (aluno), que acima de tudo respeite a ideia do diálogo, que entenda e valorize a voz ativa de seu aluno. Além de saber manejar as tecnologias digitais e usá-las a favor da educação, deve saber utilizá-la com um propósito, com uma intencionalidade. É necessário que o profissional da Educomunicação seja mediador, para a aprendizagem dos educandos, que esteja aberto ao diálogo com as novas gerações, abrindo espaço para que esta geração tenha voz e consiga dizer seus medos e desejos. E acima de tudo, este profissional deve perceber a mudança que existe de geração em geração e adaptar sua aula junto com essa mudança, deve deixar espaço para seu aluno criar, produzir, expressar-se, afinal de contas, a afirmação da liberdade traz autonomia para este aluno, tornando-o seguro e independente.

Para continuar discutindo sobre o perfil do Educomunicador, Soares (2011) pensa na prática educomunicativa como um espaço para o diálogo. O autor assim se expressa:

A educomunicação, como uma maneira própria de relacionamento, faz sua opção pela construção de modalidades abertas e criativas de relacionamento, contribuindo, dessa maneira, para que normas que regem o convívio passem a reconhecer a legitimidade do diálogo com a metodologia de ensino, aprendizagem e convivência. A partir dessa perspectiva, entende-se que a relação dialógica não é dada pela tecnologia adotada, mais ou menos amigável, mas essencialmente pela adoção por um tipo de convívio humano. Trata-se de uma decisão ético-político-pedagógica, que necessita naturalmente ser circundada pela definição de

tecnologias de auxílio. Um ambiente escolar educomunicativo caracteriza-se, justamente, pela opção de seus construtores pela abertura à participação, garantindo não apenas a boa convivência entre as pessoas (direção-docente-estudantes), mas, simultaneamente, um efetivo diálogo sobre as práticas educativas (interdisciplinaridade, multidisciplinaridade, pedagogia de projetos), elementos que conformam a pedagogia da comunicação (SOARES, 2011, P. 45).

Ao afirmar que a Educomunicação legitima o diálogo

na metodologia de ensino, na aprendizagem e na convivência, o autor mostra ao leitor que o perfil do Educomunicador deve seguir a seguinte ideologia: o diálogo na prática educativa. Além disso, o autor diz que essa decisão é ético-político-pedagógica, ou seja, o profissional que atua nesta área deverá acreditar no propósito do diálogo, da liberdade, da autonomia, além de politicamente e pedagogicamente também. Através da descrição de um ambiente escolar educomunicativo, feita por Soares (2011), compreende-se que, para a escola possuir uma boa convivência, um efetivo diálogo, também é importante que o professor que leciona nesta escola entenda esses conceitos e os respeite.

Este é, portanto, o perfil do Educomunicador, de um profissional que entenda que as mudanças existentes fora da sala de aula interferem dentro dela. A diferença de um professor para um Educomunicador é que, diferentemente do professor, que muitas vezes enfatiza apenas a transmissão de conteúdo, o profissional de Educomunicação busca formar cidadãos críticos, para que estes compreendam e interfiram

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na realidade social, tornando-se sujeitos ativos e participativos na sociedade. Abstract: The objective of this work is to reflect about the educational developments of educomunicativas activities at school, mainly by innovation which proposes the didactic transposition of curriculum content. The TIC are part of our daily lives, often they are inserted in all the activities we develop, including in the educational environment and technology alone, compared to school, does not bring any benefit if it is not contextualized in its transforming character seeking to develop increasingly critical of the student. So the Educomunicação produce a redefinition of space of the contents, should stimulate co-management in the educational process, with space for dialogue, establishing an intentionally horizontal relationship where the individual becomes subject of his academic hike, with autonomy to question and propose educational activities, including its role in the educational process. Of course, the teacher is the legitimate mediator of this dynamic, and this should qualify, broadening their experiences and their teacher training. Consequently, it produces an environment educational educomunicativo, where dialogue is the essence of the teaching methodologies and the freedom and autonomy inherent in the ethical-political-pedagogical posture of the institution. REFERÊNCIAS CHARLOT, Bernard. Da relação com o saber: elementos para uma teoria. Porto Alegre : Artes Médicas Sul, 2000.

FREIRE, Paulo. Medo e ousadia: o cotidiano do professor. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. ______. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. ______. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Revista Paz e Terra, 1970. GADOTTI, Moacir. Escola Cidadã. 13. ed. São Paulo: Cortez, 2010. HERNÁNDEZ, Fernando. O diálogo como mediador da aprendizagem com o sujeito na sala de aula. Revista Pátio, Ano VI, n. 22, jul/ago. 2002. KENSKI, Vani Moreira. Educação e Tecnologias: O novo ritmo da informação. Campinas, SP: Papirus 2007. LIBÂNEO, José Carlos. Pedagogia e Pedagogos para quê? São Paulo. Editora Cortez, 2005. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Manual de Educomunicação. Luziânia, GO, 2006. MORAN, José Manuel. Novas tecnologia e mediação pedagógica / José Manuel Moran. Marcos T. Masetto, Marilda Aparecida Behrens. – Campinas, SP: Papirus, 2000. MORAN, José Manuel; MASETTO, Marcos ; BEHRENS, Marilda. Novas tecnologias e mediação pedagógica. 13. ed. São Paulo: Papirus, 2007. NÓVOA, Antônio. O regresso dos professores. Pinhais: Melo, 2011. PINTO, Álvaro Vieira. O conceito de tecnologia: volume 1. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005. PINTO, Álvaro Vieira. Sete lições sobre educação de adultos. São Paulo, Autores Associados/Cortez, 1982.

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SILVERSTONE, Roger. Por que estudar a mídia? São Paulo: Edições Loyola, 2002. SOARES, Donizete. EDUCOMUNICAÇÃO - O QUE É ISTO? São Paulo: Gens Instituto de Educação e Cultura, 2006. SOARES, Ismar de Oliveira. Comunicação/Educação, a emergência de um novo campo e o perfil de seus profissionais. In: Contato, Revista Brasileira de Comunicação, Arte e Educação, Brasília, ano 1, n. 2, jan/mar. 1999. ______. Educomunicação: o conceito, o profissional, a aplicação: contribuições para a reforma do Ensino Médio. São Paulo: Paulinas, 2011. ______. Quando o Educador do Ano é um educomunicador: o papel da USP na legitimação do conceito. Coordenação do Núcleo de Comunicação e Educação da USP, São Paulo, 2008, v. 13. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/comueduc/article/view/43268/46892 >. Acesso em: 21 ago. 2014. ______. Metodologias da Educação para Comunicação e Gestão Comunicativa no Brasil e na América Latina. In: BACCEGA, M. A. (Org.). Gestão de Processos Comunicacionais. São Paulo: Atlas, 2002. ZABALA, Antoni. A prática educativa: como ensinar. Porto Alegre: Artmed, 1998.

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EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA: AS INTERLOCUÇÕES ENTRE ORIENTADOR E ORIENTANDO NO PROCESSO DE MONOGRAFIA DO CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM MÍDIAS NA EDUCAÇÃO

Wanderlea Pereira Damási Maurício –USJ/UNISINOS. Izabel Cristina Feijó de Andrade – UNIPLAC/PUCRS.

Resumo: Com a intenção de analisar com mais profundidade ,a orientação do trabalho de Monografia a distância no Curso de Mídias na Educação ofertado pela Universidade do Rio Grande em Parceria com a Secretaria de Estado da Educação e Universidade Aberta do Brasil, este artigo tem como objetivo refletir o processo de orientação de Monografia em Educação a Distância. Trabalhou-se com os seguintes referenciais: Castells (1999),Paloff (2004); Freire (2001); Ruhe(2013); Vieira Pinto (2001); Moore (2001), Souza Santos (2005),entre outros. Como metodologia, optou-se em utilizar o Estudo de Caso como possibilidade de sistematização dos dados e resultados. O Estudo de caso é uma metodologia de pesquisa em que se aborda um problema do cotidiano, mas que exige um empenho do aluno para identificá-lo analisando as evidências. Construímos uma dinâmica relacional: 1)

Orientador-interação-diálogos-ferramentas virtuais; 2) Orientando: participação e Feedbacks – avaliação do percurso; 3) Ambiente virtual-produções parciais – produção final. Essa dinâmica proporcionou uma avaliação do processo vivido e que incluíram um alto grau de interação entre os participantes, o que nos aproximou do modelo avaliativo de framework que se compõe como uma matriz progressiva e emancipatória. Isso significa que todas as facetas estão interligadas e sobrepõem-se entre si, formando uma rede complexa e interdependente, numa totalidade que tem força unificadora de desempenho. E temos a convicção de que o sucesso dessas orientações se deve à aplicação de alguns elementos necessários durante o percurso: conhecer um pouco da história de vida dos alunos; delinear todo o percurso das orientações com datas previstas dos retornos das atividades; ter consciência da forte influência das tecnologias digitais nas produções; a superação das inseguranças e dúvidas em um curto espaço de tempo; e a motivação para a continuidade dos trabalhos.

Palavras-chave:Educação a Distância. Orientação de Monografia. Avaliação. CONTEXTUALIZANDO

Essa pesquisa explora o campo da Monografia como um trabalho “que consiste no tratamento escrito de um tema específico” (Alves, 2003, p. 31) exigido ao final do Curso de Especialização em Mídias na Educação a distância ofertado

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pela Universidade do Rio Grande (FURG/RS – Universidade Aberta do Brasil - UAB), em parceria com a Secretaria de Estado da Educação/SC no Município de Chapecó,que teve como propósito aproximar os professores das escolas públicas com as práticas pedagógicas, apropriando-se das mídias como instrumentos pedagógicos no processo de aprendizagem dos educandos.

No entanto, o foco dessa investigação é analisar os processos de orientação à distância do referido curso, sinalizando os elementos que foram necessários para o sucesso de conclusão da Monografia. No percurso das orientações, com prazo de seis meses, todo o processo de orientação aconteceu por email e apenas dois encontros foram presenciais: um encontro inicial do curso e outro na apresentação dos trabalhos por meio de uma banca composta por renomados convidados que apresentam titulação de Mestre e Doutor.

Essa experiência mostra que o professor orientador em EAD precisa se dispora realizar um trabalho rigoroso e contextualizado nas experiências dos próprios alunos porque, quando as vivências se fazem conhecer, se consegue a façanha de produzir uma ação na reflexão da ação e sistematizar de forma didática, experiencial e existencial o que se viu, pensou e vivenciou.

Assim, tem-se a preocupação com as metodologias e estratégias usadas em EAD que garantam a adequação emotivação dos alunos para a realização do curso de Especialização.

1 EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA: CENÁRIOS E INTERLOCUÇÕES

Nos cenários da Educação a Distância no Brasil urge explorar o que entendemos por Educação. No caso da presente pesquisa, se concretizaram pela Orientação de Monografia sem presença física. Estudar a distância exige dos sujeitos alguns elementos que podem contribuir para a continuidade do curso, evitando a desistência e fuga. Para Moore (2012, p. 1)

Ser um aluno a distância também é diferente, a pessoa precisa ter aptidões distintas para o estudo e habilidades de comunicação diferentes; comumente, esse modo de educar agrada a um setor da população diferente daquele que frequenta as escolas tradicionais.

A experiência de trabalhar por meio das tecnologias

digitais com alunos já graduados parece deixar o cenário da EAD mais fácil, pois se trata de educandos que já possuem formação, tem contatos imediatos com as tecnologias e dispõem de um processo de estudos já vivenciados. No entanto, nas experiências vivenciadas por nós, pesquisadores, os sujeitos têm mais disponibilidade em evadir-se, pois eles consideram qualquer empecilho que se apresente durante o processo um meio para buscar outras possibilidades de estudo. No entendimento de Paloff (2004, p. 42),“seguir o fluxo de um curso on-line, não se deixar perturbar quando as coisas vão mal, e mesmo enfrentar as pequenas crises com humor

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ajudam a manter o sentido da comunidade”. Diante dessa constatação, quando o Professor orientador de Monografia se apresenta e inicia uma construção coletiva da caminhada de orientação, parece ser confortante para os alunos saber que tudo vai dar certo. A distância, nesse momento, é superada e a motivação do sujeito se altera. Mas para isso são necessárias interlocuções que apontem ou demonstrem a segurança de todo processo.

Estas interlocuções, chamadas pelos pesquisadores de elementos necessários, e acontecem no primeiro contato: a escuta, a paciência e o detalhamento de toda a caminhada são elementos primordiais e que podem ressignificar a continuidade dos sujeitos que ali estão para serem orientados em um trabalho de pesquisa. Nesse sentido, Kenski (2012, p. 12) explora o presencial físico e a distância com leveza e simplicidade quando afirma que:

Falar em educação “presencial” (desencadeada nos espaços específicos em que as pessoas se encontram fisicamente, olham-se, tocando-se experimentam a proximidade de seus corpos em um mesmo ambiente em que ocorre o ato presencial de ensinar) ou a “distância” (aproveitando-se das múltiplas formas de interação, comunicação e acesso à informação oferecidas pelas novas tecnologias digitais de informação e comunicação), parece demasiado ambiciosos e fugidio como objeto de pesquisa. (Kenski, 2012, p. 12)

Assim, quando falamos dos desafios enfrentados no processo de orientar dez alunos no referido curso, nos referimos a enfrentar os obstáculos que a educação à distância, se não for bem planejada, pode provocar nos

sujeitos, comoa dispersão e, consequentemente, a descontinuidade do curso. Escolhemos a escuta, a paciência e o detalhamento como três importantes elementos para dar consistência ao diálogo, possibilitando a interação dos espaços em que não nos encontraríamos fisicamente. E é tendo em vista esse contexto de exigências da educação online que Moran (2003) afirma:

Educação online pode ser definida como o conjunto de ações de ensino-aprendizagem que são desenvolvidas através de meios telemáticos, como a Internet, a videoconferência e a teleconferência. (...) Abrange desde cursos totalmente virtuais, sem contato físico - passando por cursos semi-presenciais - até cursos presenciais com atividades complementares fora da sala de aula, pela Internet. A educação online não equivale à educação a distância. Um curso por correspondência é a distância e não é online. Por outro lado, não podemos confundir a educação online só com cursos pela Internet e somente pela Internet no modo texto (Moran, 2003, p.39).

No entanto, são as possíveis interações que o orientador vai proporcionar durante as suas orientações que garantem a permanência desse sujeito no curso online Assim, compreendemos que as “tecnologias da vida” (Castells, 2011) surgem para minimizar as distâncias e mostrar aos sujeitos as possibilidades de melhoria de vida quando bem aproveitadas, provocando uma revolução na vida das pessoas. Parecia-nos impossível, há uma década, estudar por meio de tecnologias digitais, porém, hoje, a sociedade já vislumbra essa possibilidade. Para Castells (2011, p. 97),

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(...) o desenvolvimento da revolução da tecnologia da informação contribuiu para a formação dos meios de inovação onde as descobertas e as aplicações interagiam e eram testadas em um repetido processo de tentativa e erro: aprendia-se fazendo.

Apropriamo-nos de muitas ideias de autores que deixaram um legado precioso e importante para o processo da pesquisa, principalmente as leituras de Álvaro Vieira Pinto, autor que declara que “O homem não seria humano se não vivesse sempre numa era tecnológica” (PINTO, 2005, p. 18). Entendemos que a Educação a distância compreende “uma visão integrada”, segundo Moore (2012), desde que seus atores envolvam espaços para as interlocuções e a dialogicidade (Freire, 2005) a fim de alcançar seus objetivos no percurso das orientações. 2 O PROCESSO DE ORIENTAÇÃO NÃO FÍSICA: A EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA MANIFESTADA PELAS APROXIMAÇÕES DO ORIENTANDO E ORIENTADOR

O processo de Orientação não física, compreendida por nós pesquisadores como Educação a Distância, abre importante espaço de discussão no âmbito das tecnologias digitais. Os processos dialógicos instaurados abrangem uma retórica dialógica entre orientando e orientador e conforme Souza Santos, (2005, p. 105): “através da retórica dialógica, o conhecimento progride na medida em que progride o autoconhecimento.” Nesse contexto, as relações que se estabelecem nessa parceria são influenciadas pelo processo

dialógico e de argumentação. Analisando a orientação presencial, em que há os encontros semanais, na orientação a Distância, os envolvidos estabelecem uma relação de parceria quando as dúvidas que surgem nos curtos espaços de tempos são solucionadas porque são disponibilizadas tecnologias digitais como extensões para a interação e para a superação das deficiências encontradas pelo caminho. No entanto, quando o orientando não tem retorno, ou seja, não conta com alguém para diminuir ou desfazer suas angústias, é muito mais fácil passar por um processo de insegurança, bem como de desistência.

Nas leituras realizadas por nós, pesquisadores, encontramos nas ideias de Palloff (2004, p. 94) um item interessante em que as autoras demonstram como incorporar a orientação à aula online. Segundo as referidas autoras:

Se possível, faça uma orientação presencialmente para mostrar aos alunos o site do curso e discutira aprendizagem online; disponibilize uma orientação ao curso no site do próprio curso como primeiro item para discussão; disponibilize uma lista das perguntas mais frequentes e, também, as respostas a essas perguntas; Coloque as informações sobre como navegar pelo site do curso na primeira página; Envie uma mensagem por email ou carta contendo a orientação sobre o curso para todo aluno matriculado. Por sua vez, Moore (2011) discorre sobre a ideia do

sistema de educação a distância quando afirma que um modelo sistêmico para essa modalidade de ensino é o mais apropriado no processo de aprendizagem, pois essa

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abordagem “é o segredo da prática bem sucedida” (p. 09). Quanto ao modelo sistêmico, ”um novo modo de pensar” (Capra, p. 40), o referido autor salienta que, “de acordo com essa visão, as propriedades essenciais de um organismo, ou sistema vivo, são propriedades do todo que nenhuma parte possui. Elas surgem das interações e das relações entre as partes.”

Ao iniciarmos um processo de orientação, temos que refletir sobre todos os elementos que contribuirão para a melhoria do processo de aprendizagem dos sujeitos. Para Moore (2011, p. 9), “um sistema de ensino a distância é formado por todos os processos componentes que operam quando ocorre o ensino e o aprendizado a distância.” Há uma coerência em refletir sobre “como as pessoas aprendem”?

Ainda se referindo ao ensino a distância, este mesmo autor aponta alguns elementos primordiais que devem existir na relação de aprendizagem:

Uma fonte de conhecimento que deve ser ensinada e aprendida; um subsistema para estruturar esse conhecimento em materiais e atividades para o aluno ao qual denominamos curso; outro subsistema que transmita os cursos para os alunos; professores que interagem com alunos, à medida que usam esses materiais para transmitir o conhecimento que possuem; alunos em seus ambientes distintos; um subsistema que controle e avalie os resultados, de modo que intervenções sejam possíveis, quando ocorrerem falhas; uma organização com uma política e uma estrutura administrativa para ligar essas peças distintas. (Moore, 2011, p.12).

Com base nessa perspectiva, nos apoiamos em Paloff ( 2004, p. 15) que apresenta algumas características apropriadas para o sucesso na sala de aula online: “Flexibilidade; disposição para aprender com os alunos e com os outros; disposição para ceder o controle aos alunos tanto na elaboração do curso quanto no processo de aprendizagem”. Em todas as reflexões dos autores mencionados, observamos que o conhecimento alicerça toda a estrutura para a melhoria do processo de aprendizagem dos sujeitos. Dessa forma, orientar um trabalho de pesquisa por meio de tecnologias digitais exige um amplo conhecimento de toda a caminhada ao longo da qual as relações se estabelecerão.

3 A INTERAÇÃO E INTERVENÇÃO COMO ELEMENTOS NECESSÁRIOS PARA A PRÁTICA AVALIATIVA NO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DOS ORIENTANDOS

Pela experiência vivenciada nas orientações das

monografias, consideramos a avaliação comoelemento primordial do processo, porque o modelo pedagógico da Universidade Aberta do Brasil caracteriza-se como b-learning, ou seja, se realiza pela utilização intensiva e exaustiva de ferramentas de comunicação online, sem desconsiderar os momentos de ensino presencial, promovendo a avaliação pelas interações possibilitadas ao longo das orientações.

Nesse sentido, as interações são fortemente centradas no estudante como sujeito ativo, autônomo e construtor do

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seu conhecimento. O modelo vivenciado permite, ainda, flexibilidade na aprendizagem, já que a comunicação está atrelada à disponibilidade do estudante, ao compartilhamento dos recursos, dos conhecimentos ampliados e apropriados e das atividades interativas com seus pares.

Os instrumentos avaliativos a distância utilizados durante as orientações são basicamente: e-mail, chat, páginas web, fórum, mural eletrônico. Essa distância e a diversidade de atores docentes na atuação em EaD perpassam a necessidade de focar nossa discussão na mediação didático-pedagógica de todos os processos de ensino-aprendizagem possíveis e necessários para dinamizarmos a apropriação do conhecimento dos alunos. Na avaliação de Vasconcelos (2005 p.77),

(...)a mediação de conhecimento baseia-se no trabalho acumulado de múltiplas gerações humanas, portanto, no diálogo permanente entre os sujeitos históricos em busca de melhor compreender a realidade. Dito de outra forma, a mediação de conhecimento estrutura-se na compreensão de que o conhecimento é um valor de uso, na medida em que colabora para fruição ou Transformação do contexto social.

Desse modo, Vasconcelos (2005, p.77) estabelece como foco a apropriação do conhecimento, em detrimento das interações decorrentes desse processo, enquanto Masetto (2003, p.144) frisa o aspecto motivacional da mediação didático-pedagógica, como segue:

(...) a atitude, o comportamento do professor que se coloca como um facilitador e incentivador ou motivador da aprendizagem, que se apresenta com a disposição de ser uma ponte entre o aprendiz e sua aprendizagem. (Masetto, 2007, p.144).

Assim, toda a atividade de orientação para um

trabalho de pesquisa exige do orientador e do orientando que iniciem primeiramente um plano de ação na caminhada da investigação. Um elemento necessário para esse processo é a avaliação.

Abordando este tema, Fernandes entende que: (...) a avaliação das aprendizagens pode ser compreendida como todo e qualquer processo deliberado e sistemático de coleta de informação, mais ou menos participativo e interativo, mais ou menos negociado, mais ou menos contextualizado, acerca do que os alunos sabem e são capazes de fazer em uma diversidade de situações. (Fernandes, 2009, p. 20).

Nas intervenções de Moretto, o ato de avaliara

aprendizagem “é um momento privilegiado em que o professor recolhe dados para sua reflexão-na-ação com vistas a redirecionar seu processo de ensino.”(Moretto, 2007, p.53).Nesse sentido, quando nos direcionamos para a educação a distância, temos uma nova abordagem, como salienta Ruhe (2013), e precisamos de uma ação planejada para a avaliação à distância. Os referidos autores abordam a importância do planejamento para conduzir a avaliação

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desde os designs do curso e determinar se a avaliação é formativa ou somativa.

Na avaliação formativa, um curso é avaliado na fase de design para que se identifiquem áreas para sua melhoria (RUHE 2013, p. 117), enquanto na avaliação somativa um curso é avaliado “depois de já ter sido executado para determinar se ele obteve sucesso ou se o suporte deveria ser continuado.” (idem, 2013, p. 117).

Para Fernandes (2009), deve-se interagir nesses dois campos explicitando que na avaliação formativa, ou do processo, buscar-se-á acompanhar o desenvolvimento das aprendizagens no seu transcurso. Na avaliação somativa, busca-se identificar qual a diferença expressa quantitativamente entre a meta de aprendizagem e o nível de conhecimento que foi atingido pelo acadêmico em etapas mais pontuais do processo.

Nesse contexto avaliativo, Fernandes (2009) afirma que a avaliação das aprendizagens pode ser entendida como todo e qualquer processo deliberado e sistemático de coleta de informação, mais ou menos participativa ou interativa, mais ou menos negociado, mais ou menos contextualizado, acerca do que os alunos sabem e são capazes de fazer em uma diversidade de situações. Essa perspectiva é o desafio da educação a distância, em que os pares não interagem frente a frente, mas por meio de uma ferramenta virtual que os obriga a ter mais clareza, persistência, sistematização e ousadia.

Nas práticas desenvolvidas na ação com os alunos do curso de especialização em Mìdias e Tecnologias, fomos mais além e nos apropriamos da avaliação emancipadora que, por

sua vez, buscou desenvolver a autocrítica e melhorar o desempenho do orientando. Tanto a avaliação formativa quanto a somativa foram intensificadas na caminhada. Na primeira, entendemos que, do design do curso até as ferramentas, como fórum, chat, email, telefone, todos deram sua contribuição para que a interação acontecesse. Percebemos que há novos modos de avaliar. Mas de acordo com o Projeto de Curso de Especialização em Mídias na Educação, tivemos que optar, na finalização, pela avaliação somativa, a fim de cumprir com as diretrizes do Curso de Mídias na Educação, em que atribuímos uma nota ao trabalho final dos alunos. 4 A PRÁTICA DA PESQUISA, SEUS EFEITOS E RESULTADOS NA ORIENTAÇÃO DA MONOGRAFIA.

Durante as orientações realizadas, tivemos 100% de

alunos aprovados e que foram motivados a realizar suas pesquisas em seus próprios campos de trabalho e na sua área específica de atuação. Todos os vinte participantes da pesquisa estavam vinculados a Rede Estadual de Educação de SC, tinham concluído as disciplinas e estavam finalizando a Monografia e tinham uma experiência significativa para optar pelo objeto de pesquisa na própria escola em que atuavam como professores. Diante desse contexto, optamos pela utilização do Estudo de Caso como possibilidade de sistematização dos dados e resultados.

O Estudo de caso é uma metodologia de pesquisa em que se aborda um problema do cotidiano, mas que exige um

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empenho do aluno para identificá-lo, analisando as evidências. Para os envolvidos na elaboração da monografia foi fácil conseguir desenvolver argumentos lógicos, avaliar e propor soluções, pois eles estavam mergulhados no contexto pesquisado.

Mergulhados no contexto pesquisado buscamos analisar os dados, a partir dos depoimentos e a comunicação virtual utilizada durante as orientações. Foram 20 sujeitos que, no período de seis meses, foram orientados semanalmente por duas professoras, sendo divididos em dois grupos de 10 participantes. Os depoimentos aqui analisados e apresentados são uma síntese do que foi vivido nesse período.

Analisando a comunicação ocorrida entre as professoras e os alunos emergiram duas categorias de análises:

• Aproximação virtual quase permanente de professor e aprendiz (o que aumenta o processo de aprendizagem);

Nessa categoria a flexibilidade proporcionada aos

alunos para acessar o via email o conteúdo da disciplina e nos enviar os materiais solicitados, já que tínhamos o computador conectado à rede foi muito útil. Semanalmente os contatos eram realizados com informações novas e progressivas, como é possível verificar no depoimento a seguir: “Professora, essa semana mando a parte da fundamentação teórica pronta, mas ela precisa ser revista e arrumada. Quando você poderá dar retorno? Pois preciso dar continuidade.” A professora

respondeu: “Vou ler o teu trabalho e assinalar o que precisa ser modificado. Aguarde que até quarta, dessa semana, te mando mais alguma coisa”.

Outra relevância destacada nessa categoria é a

dinâmica dos atendimentos que possibilitava o contato direto com o professor ou com o aluno, a qualquer momento e por razões imediatas. Assim, as professoras realizaram vários contatos telefônicos para resolver problemas emergenciais, como a falta de contato semanal dos alunos, como é possível verificar no depoimento colhido nos email. “querida aluna, estou preocupada com a sua situação. Já temos duas semanas que não me mandas nada de atividades. Sua monografia não poderá ficar atrasada. Temos um prazo para cumprir. Conforme contato telefônico realizado hoje para você, preciso que me envies, até quinta as suas produções para darmos continuidade ao cronograma. Quero te dizer que estou aqui para te ajudar. Conte comigo e Aguardo!”

Nessa mesma categoria, ainda podemos destacar a abertura das fontes de pesquisa proporcionadas aos alunos, apresentando sempre diversos sites na Internet, para ampliar os conceitos e as informações oferecidas na disciplina possibilitando que os alunos percorram bibliotecas, como segue o depoimento: “Hoje o nosso contato é para informar vocês de que existem vários sites que podemos confiar para fazermos as pesquisas. Segue a listagem a seguir(...)”

Diante desses depoimentos e dos três itens destacados:

flexibilidade, dinâmica e abertura se pode dizer que se

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proporcionou aos alunos um segurança e incentivo para finalizarem as produções em cada etapa exigida. Essa categoria nos remete a segunda categoria, pois sem planejamento não iríamos conseguir tal proeza de ter 100% dos alunos aprovados no curso.

• A influência do planejamento quanto às orientações virtuais e os encontros presenciais

Nesse sentido, consideramos que a didática do ensino virtual deve contemplar a multidimensionalidade dos recursos e das ferramentas tecnológicas e os procedimentos adequados prevêem:

Figura 1: Fundamento a perspectiva EAD

Esses cinco pontos destacados nos direcionam para uma interação possível e viável nas orientações das monografias à distância. Diante disso, a dinâmica proposta foi a seguinte:

Figura 2: Dinâmica relacional em EAD

Esse planejamento da nossa ação proporcionou uma avaliação do processo vivido e que incluiu um alto grau de interação entre os participantes, o que nos aproximado modelo avaliativo progressivo. Isso significa que todas as facetas estão interligadas e sobrepõem-se entre si, formando uma rede complexa e interdependente, formando uma totalidade que tem força unificadora de desempenho. Todos os emails enviados para direcionar os estudos e as produções foram decorrentes de orientações do tipo: “Pessoal, estamos numa fase bem delicada do trabalho, por isso enviamos para vocês um roteiro para ser executado nessa

Autonomiadoaluno

Exploraçãodaspossibilidadesdomaterial

Domíniodasferramentas

Conhecimentopréviodosprocessosdeinteraçãoemediação

Disponibilidadeeinteresseparaacomunicaçãodiferenciadadasfontesdeinformação

Professor

Aluno

AmbienteVirtual

Produçõesparciais

ParticipaçãoeFeedbacks

InteraçãoeDiálogos

FerramentasVirtuais

AvaliaçãodoPercurso

ProduçãoFinal

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semana.” Esse procedimento era recebido pelos alunos de forma “obrigação de fazer”, como segue o depoimento a seguir: “Professora, agora vou seguir esse roteiro para poder dar conta das atividades. Dessa forma, fica mais fácil agendar as tarefas que são necessários. Isso também nos obrigada a alcançar os prazos. Em breve lhe dou um retorno”. A comunicação semanal, exigido e explicitada no planejamento nos direcionou ao sucesso dos aprendizados dos alunos. Nesse cotidiano, avaliamos constantemente as situações e as produções. São escolhas simples que não nos afligem, porém, no contexto escolar a avaliação toma outra dimensão que exige do aluno uma dedicação e preocupação, conforme depoimento a seguir: “Professora, o que a banca vai quer ouvir? Será que eles vão gostar o trabalho? Estou bem nervoso e ansioso. Preciso de ajuda.” . Esse depoimento revelador de tanta tensão, precisou ser mediado pelas professoras, já que se tratava de um excelente trabalho. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Orientar alunos em um trabalho de Monografia a distância exige, por parte dos orientadores, muita leitura e a compreensão de que se trata de um processo nada fácil, mas com condições de superação durante toda a caminhada do projeto e execução da pesquisa.

É preciso, primeiramente, compreender a educação sem presença física, seus entraves e sua retórica. E temos a convicção de que o sucesso dessas orientações se deve à aplicação de alguns elementos necessários durante o

percurso: conhecer um pouco da história de vida dos alunos; delinear todo o percurso das orientações com datas previstas dos retornos das atividades; ter consciência da forte influência das tecnologias digitais nas produções; a superação das inseguranças e dúvidas em um curto espaço de tempo; e a motivação para a continuidade dos trabalhos. Percebemos que qualquer motivo como, por exemplo, atividades em atraso, problema de saúde, situação familiar, financeira, entre outros, constituía uma situação de risco para que os alunos se afastassem! Mas foi quando nos preparamos para a apresentação final dos trabalhos nas bancas que realmente entendemos que valeu a pena. Tivemos cem por cento das conclusões dos mesmos.

A avaliação dos orientandos foi tanto formativa quanto somativa, mas principalmente com foco na avaliação emancipadora compreendida pela dinâmica relacional criada por nós como instrumento fortalecedor na caminhada da pesquisa.

A dinâmica relacional apresentada na Figura 02 expressa o processo de orientação como proposta criada por nós, pesquisadoras, que assegurou a todos os orientandos a defesa e aprovação dos trabalhos.

Sabemos que não existem “receitas” para um processo de orientação, mas entendemos que esse estudo apontou alguns caminhos que favorecem a melhoria da qualidade de um trabalho de pesquisa a distância entre orientandos e orientador. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ANTROPOLOGIA E EDUCAÇÃO: EDUCAÇÃO PARA

SUSTENTABILIDADE E DIVERSIDADE CULTURAL

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DISCURSO, FORMAÇÃO DE IDENTIDADES E LEGITIMAÇÃO CULTURAL: COLONIALISMO DO PODER, DO SABER E DO SER56

Valdenésio Aduci Mendes57

RESUMO: O trabalho desencadeia uma discussão sobre as diferentes formas discursivas que permeiam as culturas latino americanas. A partir do olhar atento aos jogos de linguagem sob o qual se constrói o(a)outro(a), será possível questionar a forma como as identidades e os saberes foram legitimados em contextos tidos como monoculturais no sentido de não reconhecimento das diferenças. A partir da análise sobre a realidade latino americana nos debruçamos sobre a realidade brasileira para entendermos o processo de exclusão de amplas camadas da população no que diz respeito à inclusão sócio econômica e educacional. Palavras-chave: Colonialismo; América Latina; Brasil; Monoculturalismo; Pluriculturalismo; Inclusão

56 O presente trabalho é resultado de capítulo 2 do Caderno Pedagógico Educação e Multiculturalidade, escrito em 2013 para o Curso de Pedagogia a distância da UDESC. 57 É professor na Universidade do Estado de Santa Catarina- UDESC e do Centro Universitário Municipal de São José - USJ, atuando nos cursos de Pedagogia e de Ciências da Religião. Tem formação em filosofia (graduação e mestrado) e doutorado em Sociologia Política. Contato: [email protected]

INTRODUÇÃO Partimos do princípio que sempre há a possibilidade de que a História possa ser transmitida de forma unívoca e normalmente sob a perspectiva dos(as) dominadores(as). Ao apresentar as teses sobre a filosofia da história, Walter Benjamin (2005, p. 70) sugere que devemos aprender a “escovar a história a contrapelo”, dando a entender que é necessária uma atitude de suspeita diante daquilo que nos parece ser, muitas vezes óbvio e familiar. De certa forma, a leitura da história do ponto de vista dos(as) vencidos(as), requer colocar em dúvida, a História transmitida pelos(as) vencedores(as). A sugestão de Walter Benjamin parece sinalizar que sempre há o “perigo” de lermos o passado pelo viés daqueles(as) que se tornaram dominantes ao longo de processos históricos. A observação de Walter Benjamin é válida, de modo geral, tanto para o campo da História como para o campo da cultura. A forma como os europeus perceberam outras culturas e descreveram os fatos, desde que aportaram na América do Sul e do Norte a partir de 1492, ilustra muito bem a situação em que a História é contada na perspectiva dos “vencedores e conquistadores”. Isto significa dizer que a presença do europeu no “novo mundo” foi se estabelecendo mediante a construção de uma visão monocultural, sustentada na ideia de progresso, de linearidade e modernidade. Vejamos a posição de filósofos como Friedrich Hegel (1770-1831) sobre a História, a qual sustenta a ideia da

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superioridade européia: “a história universal vai do leste para oeste, pois a Europa é o fim da história universal, e a sia é o começo” (HEGEL, 2008, p. 65). Tendo em vista essa perspectiva de História, que se tornou dominante no século XIX, dela não fariam parte o continente africano nem a América Latina, já que nessas regiões não haveria o desenvolvimento da liberdade, e esta só aportaria nesses rincões com a chegada dos europeus. A leitura da história da América Latina “a contrapelo”, como sugere Benjamim, nos revela que o processo colonial latino-americano se deu tanto por meios coercitivos como por meios ideológicos. Em outras palavras, este processo tratou de naturalizar o imaginário cultural europeu “como a única forma de relacionamento com a natureza, com o mundo social e com a própria subjetividade” (CASTRO-GÓMEZ, 2005, p. 59, tradução dos autores).

Figura 1 - A chegada de Hernán Cortez a Veracruz, mural de Diego Riviera, 1951.

1 FALA E SILÊNCIO: DISCURSO, LINGUAGEM E MÚLTIPLAS IDENTIDADES

Do ponto de vista dos europeus, o processo de expansão de seu ideário cultural ocorreria de uma forma ou de outra: ou pela coerção ou por processos institucionais criados para esse fim, como é o caso dos tribunais de justiça, das escolas religiosas e do aparato burocrático desenvolvido em terras ultramarina. É importante ressaltar que no período das grandes navegações (séculos XV e XVI), a Europa ainda estava sob forte inflência do teocentrismo, o que quer dizer que a Igreja Católica, apoiada pelas diversas monarquias européias, dominava ideologicamente e promovia a expansão do cristianismo nas regiões recém-descobertas. A partir do século XVII, o projeto de modernidade européia prometeu desenvolver o espírito da autonomia humana nos campos da ciência, da religião e da política, ancorada cada vez mais em processos racionais e pragmáticos. Tal ideário sobre uma nova forma de vida social desenvolveria um tipo de sociedade em que todos seriam iguais e que todos desfrutariam de seus benefícios sociais, regulados pela razão instrumental. Mas, qual a relação entre esse processo de modernidade européia e a colonização da América? Na realidade, a modernidade, como projeto e narrativa européia, esconde a face oculta do colonialismo e suas consequências. Esse projeto teria tido início a partir do século

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V, já no movimento de expansão ultramarina, e não a partir do século XVIII, ou do Século das Luzes, tal como nos ensinaram nos manuais de Filosofia e História no processo de escolarização. Enrique Dussel, destacado pensador argentino radicado no México, afirma que a América Latina entrou na Modernidade na condição de “dominada, explorada, encoberta” (2005, p. 28). Assim, por trás da retórica da modernidade havia uma realidade oculta: a vida das pessoas que viviam nas comunidades recém “descobertas” e outras que posteriormente vieram de outros continentes, que passaram a ser desapreciadas e invisibilizadas. Na perspectiva de Dussel (1991, p. 41), “conquista” passou a significar:

[...] um processo militar, prático, violento que inclui dialeticamente o Outro como ‘o Mesmo`. Outro, na sua distinção é negado como Outro e é obrigado, subsumido, alienado a incorporar-se à Totalidade dominadora como coisa, como instrumento, como oprimido, como ‘encomendado`, como ‘assalariado` (nas futuras fazendas), ou como africano escravo (nos engenhos de açúcar ou outros produtos tropicais).

No Discurso sobre o colonialismo (obra escrita em 1950),

Aimé Césaire descreve as contradições do projeto moderno, tendo em vista a presença do europeu na América, nos seguintes termos:

Ouço a tempestade. Me falam de progresso, de ‘realizações’, de enfermidades curadas, de níveis de vida por cima deles

mesmos. Eu, eu falo de sociedades esvaziadas delas mesmas, de culturas pisoteadas, de instituições minadas, de terras confiscadas, de religiões assassinadas, de magnificências artísticas aniquiladas, de extraordinárias possibilidades suprimidas (CÉSAIRE, 2006, p. 20,tradução dos autores).

Aimé coloca em evidência, o lado contraditório da modernidade nascente: por um lado, a promessa de progresso e infinitas realizações, talvez para os habitantes da Europa, mas por outro, a espoliação das sociedades africanas e latino-americanas. Dessa forma, onde os europeus viam civilização, o poeta via a barbárie, o que significa que, em si, colonialismo e civilização são termos opostos. Assim, entre colonizador e colonizado “só existe lugar para o trabalho forçoso, para a intimidação, para a pressão, para a polícia, para o trabalho, para o roubo, para a violação, para a cultura imposta, para o desprezo, para a desconfiança, para o cemitério, para a grosseria, para as elites sem cérebros, para as massas degeneradas” (AIMÉ, 2006, p. 20, tradução dos autores). A nefasta realidade do processo de colonização percebida por Aimé o faz chegar à seguinte fórmula: colonização = coisificação. Ou seja, de um lado, o discurso europeu apela à grandiosidade de suas obras realizadas em terras distantes, mas de outro, o homem latino-americano “coisificado” fica destituído de sua cultura e da possibilidade de suas múltiplas identidades. O mais intrigante na constatação dessa realidade, assevera Aimé, é que a colonização não só desumaniza o colonizado, mas também

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aquele que promove a ação colonial, já que esta ação tende a modificar aquele que a empreende: “o colonizador, ao habituar-se a ver ao outro como a besta, ao exercitar-se em tratá-lo como besta, para clamar sua consciência, tende objetivamente a transformar-se ele mesmo em besta” (AIMÉ, 2006, p. 19, tradução dos autores). Frantz Fanon, inflente pensador do século XX, escreveu Os condenados da terra, clássico da sociologia política escrito na década de 1960, em cujas linhas seguem as trilhas das denúncias apresentadas por Aimé sobre o colonialismo. Para Fanon, o colonialismo é a violência em estado de natureza, não se contentando com impor sua lei ao presente e ao futuro do país dominado: “[...] o colonialismo não se contenta com apertar o povo entre suas redes, com esvaziar o cérebro do colonizado de toda forma e de todo conteúdo. Por uma espécie de perversão lógica, se orienta para o passado do povo oprimido, o distorce, o desfigura, o aniquila” (FANON, 2007, p. 168, tradução nossa). Aimé já havia percebido que exercício do poder colonial evidencia-se tanto na força do aparelho militar e administrativo e de domínios físicos, como nos discursos de inferiorização dos colonizados. Esse aspecto foi aprofundado por Fanon ao perceber que o colonialismo divide o mundo em compartimentos e raças:

[...] quando se percebe em seu aspecto imediato o contexto colonial, é evidente que o que divide o mundo é primeiro o fato de pertencer ou não a tal espécie, a tal raça. Nas colônias, a

infraestrutura é igualmente uma superestrutura: a causa é consequência - se é rico porque se é branco, se é branco porque se é rico (FANON, 2007, p. 29, tradução nossa).

Para Fanon, o processo de servidão vai acompanhado de um processo de inferiorização daqueles(as) que são subjugados(as). Nesse caso, o racismo exerceu (e continua a exercer) um papel fundamental para que o status quo da população dominante se mantivesse intacto ao longo de séculos na América Latina. Césaire Aime e Frantz Fanon, além de levantarem questões importantes sobre as causas e consequências do colonialismo em diversas partes do planeta, também se manifestam favoráveis a projetos de descolonização dos países colonizados, primeiro pela Europa e depois pelos Estados Unidos da América. A intermitente intervenção dos Estados Unidos em diversos países da América Latina, a partir de 1960, fez com que inúmeros intelectuais aprofundassem as ideias levantadas por Aimé e Fanon,

[...] colocando no centro dos debates a questão da colonização como componente constitutivo da modernidade, e a descolonização como um número indefinido de estratégias e formas de contestação que exigem uma mudança radical nas formas hegemônicas atuais de poder, ser e conhecer” (MALDONADO-TORRES, 2008, p. 66, tradução nossa).

Dentre os intelectuais que surgiram a partir desse novo contexto pós-colonial podemos citar: Leopoldo Zea, Edgardo Lander, Aníbal Quijano, Stuart Hall, Ella Shohat, Enrique Dussel, Paulo Freire, Falleto, Walter Mignolo, Eduardo

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Restrepo, Abdias do Nascimento e tantos outros. Antes de prosseguir, é importante reconhecer a importância dos principais movimentos políticos ocorridos na América Latina, a partir do século XIX, em prol da independência e do processo de descolonização, os quais garantiram e consolidaram de alguma maneira uma influência direta na atual organização social, política e institucional da região. Entre os movimentos de descolonização destacam-se as Revoltas de Tupac-Amaru, iniciada pelos indígenas peruanos em 1780, a Revolução do Haiti de 1793, realizada pelos afro-haitianos que trabalhavam nos campos, e o movimento deflagrado por Simón Bolívar a partir de 1810 que culminou com a independência da Venezuela, Colômbia e Equador em 1824. Vistos esses itens, a questão que se discutirá a partir daqui é a seguinte: por que ainda se fala em pós-colonialismo no século XXI, depois dos processos de independência anteriormente mencionados, ocorridos a partir do século XIX? Se o colonialismo é coisa do passado, por que continuamos a falar de pós-colonização num contexto de pós-modernidade? 2- Discurso, formação de identidades e legitimação cultural: colonialismo do poder, do saber e do ser Tendo em vista as reflexões feitas acima, o que o pós-colonialismo aponta não é o fim do colonialismo, mas sua reorganização. Nesse sentido, “pós-coloniais seriam as novas formas de colonialismo atualizadas na etapa pós-moderna da história do ocidente” (GÓMEZ, 2005, p. 75). Em outras

palavras, embora possamos falar com toda a tranquilidade que ainda vivenciamos o contexto do pós-colonialismo, não significa que a sociedade tenha enterrado no passado valores e crenças criadas no período colonial. Por exemplo, a constituição brasileira diz que o preconceito é crime inafiançável, o que de certa forma revela o desejo por parte de uma parcela da sociedade brasileira em estar sintonizada com princípios políticos modernos, mas a existência da lei, por si só, não garante que a sociedade deixará de ser racista tão facilmente, já que o imaginário social está impregnado dessas práticas produzidas no passado. A lei é importante e valiosíssima no combate ao racismo, mas práticas racistas também devem ser combatidas no campo cultural e educacional. A sociedade brasileira revela a seguinte ambiguidade: por um lado, deseja os valores políticos, econômicos e sociais do projeto moderno, a saber: garantia dos direitos políticos e civis, sistema político democrático, equilíbrio dos poderes, igualdade de oportunidades políticas, possibilidade de inserção no mundo trabalho, acesso aos bens socialmente produzidos, etc. Mas por outro, nessa mesma sociedade estão presentes ainda as desigualdades, as xenofobias, os racismos e a exclusão de amplas camadas populacionais, herdadas do passado colonial. Pois, a ausência física do colonizador, e os processos políticos de independência não significaram o fim do colonialismo cultural, exatamente porque a colonização consiste, em primeiro lugar,

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[...] numa colonização do imaginário dos dominados. Ou seja, atua na interiorização desse imaginário [...] A repressão recaiu, antes de tudo, sobre os modos de conhecer, de produzir conhecimento, de produzir perspectivas, imagens e sistemas de imagens, símbolos, modo de significação; sobre os recursos, padrões e instrumentos de expressão formalizada e objetivada, intelectual ou visual [...] Os colonizadores impuseram também a imagem mistificada de seus próprios padrões de produção de conhecimentos e significações (CASTRO-GÓMEZ, 005, p. 58-59, tradução do autor).

Ao fazer referência ao colonialismo, o sociólogo peruano Aníbal Quijano afirma que o mesmo se funda “na imposição de uma classificação racial/étnica da população [...] como pedra angular de dito padrão de poder e opera em cada um dos planos, âmbitos e dimensões materiais e subjetivas da existência social cotidiana e numa escala social” (QUIJANO, 2000a: 342, tradução do autor). Aqui os elementos de raça e identidade ganham centralidade em suas críticas e reflexões, já que, segundo o autor, eles foram estabelecidos como instrumentos de classificação social básica da população. Tais elementos, associados à divisão do trabalho, fiaram estruturalmente associados e reforçaram-se mutuamente (QUIJANO, 1993, p. 202-204). Para Quijano, no momento em que os Ibéricos conquistaram, colonizaram e lhe deram nome América, encontraram um grande número de diferentes povos,

[...] cada um com sua própria história, linguagem, descobrimentos e produtos culturais, memória e identidade. São conhecidos os nomes dos mais desenvolvidos e sofisticados deles: Aztecas, Mayas, Chimú, Aymaras, Incas,

hibchas, etc. Trezentos anos mais tarde todos eles fiaram reunidos em uma única identidade: índios. Esta nova identidade era racial, colonial e negativa. Assim também ocorreu com as pessoas trazidas forçadamente desde a futura África como escravos: ashantis, yorubas, zulus, congos, bacongos, etc. No lapso de trezentos anos, todos eles não eram senão negros QUIJANO, 1993, 221, tradução do autor).

Nas reflexões de Quijano, o projeto de modernidade

trazido com a colonização não só tornou homogêneas as distintas culturas já existentes na América, mas também passou a se referir a essas mesmas culturas como parte de um passado a ser apagado, já que seria a expressão de “atraso”. Portanto, a constituição da identidade e hegemonia européia se deu, tanto em função da extração da mais-valia do trabalho escravo das populações autóctones e africanas como de um padrão cognitivo (epistemológico), cuja característica era o não-reconhecimento dos conhecimentos acumulados pelas culturas aqui existentes. Ao contrário, para o europeu que aportou no continente americano, o referencial de cultura era o modelo grego clássico Ocidental, de modo que a cultura não-europeia era percebida pelos europeus como algo a ser eliminado porque estava associada ao passado; logo, não faziam parte do estatuto do conhecimento reconhecido e legitimado. Para Quijano (1993, p. 225), a perspectiva eurocêntrica de conhecimento “opera como um espelho que distorce o que reflte”. Em outras palavras, há um vínculo estreito entre colonialismo, poder e saber. Complementando a reflexão desse autor, Maldonado-Torres propõe que o colonialismo do

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poder e do saber engendra o colonialismo do ser. Para o autor, o colonialismo do ser “se traduz na experiência vivida da colonização e seu impacto na linguagem”. E complementando as reflexões iniciadas por Quijano, Maldonado Torres afirma que a conquista das Américas “foi um evento com implicações metafísicas, ontológicas e epistêmicas” (MALDONADO-TORRES, 2007, p. 130-137, tradução do autor). Na realidade, o projeto da modernidade estaria praticamente fundamentado no “penso, logo existo”, do filósofo René Descartes (1596-1650). O projeto de Descartes inicia com a dúvida metódica e desemboca numa razão instrumental que serviria de referência para o domínio da natureza e organização social. O que autores como Maldonado-Torres, Aníbal Quijano e Enrique Dussel procuraram mostrar em suas reflexões, é que esse projeto de modernidade cartesiano, supostamente ancorado em processos racionais, se dá no mesmo contexto do “eu conquisto”, que já estava em pleno curso a partir de 1500. Sem perder o foco da discussão, é importante destacar que a epistemologia cartesiana pressupõe em seus fundamentos, “o colonialismo do conhecimento e o colonialismo do ser”. Neste sentido, a modernidade seria caudatária dos pressupostos filosóficos de Descartes, e que, ao que tudo indica, predominou no processo de colonização latino-americano a faceta da razão instrumental, muito mais do que aspectos de uma razão dialógica que reconhecesse a variedade das formas de conhecimento humano. Nesse sentido, o condenado é paradoxalmente “invisível e em excesso visível ao mesmo

tempo” (MALDONADO-TORRES, 2007, p. 150-151). Em outras palavras, o(a)s condenados(as), mesmo sendo a maioria esmagadora da população em termos numéricos, tornaram-se politicamente inexpressivos, devido exatamente ao processo de invisibilidade política e social sofrida por essas populações no transcurso de séculos de dominação. Maldonado-Torres propõe que, ao lermos O discurso sobre o colonialismo de Césaire Aimé na perspectiva da descolonização, poderíamos interpretá-lo como uma resposta ao Discurso do Método de Descartes: “o Discurso sobre o colonialismo procura refazer perguntas básicas sobre o método, mas não a partir das evidências do ‘eu conquistador’, senão das dúvidas do ‘eu conquistado’, condenado ou sub-outro” (MALDONADOTORRES, 2007, p. 160). De um lado, o projeto de modernidade estaria filosoficamente fundamentado no Discurso do Método de Descartes, e, de outro, o Discurso sobre o colonialismo denuncia a face obscura da modernidade. Essas breves reflexões sobre o projeto da modernidade, a partir da realidade latino-americana no contexto de pós-colonialismo, objetiva pontuar que a realidade do colonialismo e suas graves consequências passaram despercebidas tanto para o próprio Descartes como para inúmeros outros intelectuais europeus até meados do século XIX. Por outro lado, o processo de homogeneização cultural imposto pelo discurso da colonização não teve fim depois das lutas em prol da emancipação e independência política da América Latina, que teve início em 1791, no Haiti, e culminou praticamente em Cuba em 1959. Em outros termos, o processo

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de construção dos Estados-nações da América Latina do pós-independência deu sequência à lógica de homogeneização cultural estabelecida pelos Europeus desde os primeiros contatos. A partir das independências, começou outro capítulo da trágica história América Latina que, em busca da identidade nacional, perpetuou as mazelas herdadas do passado colonial. 3 Discurso multicultural como prática descolonizadora Teoricamente, a organização política em torno do Estado-nação deveria trazer maiores benefícios para a população em geral, e mais possibilidades de democratização do poder político. Na realidade, entretanto, muitos autores(as) comungam da ideia de que o processo da criação de uma identidade nacional, alavancado pelo processo de modernização, não sinalizou para o início de um novo processo político. Ao contrário, esse foi um processo histórico marcado por muitas contradições desde o norte até o sul da América, sobretudo se tivermos presente o destino das populações indígenas e negras do continente. Não surgiu, como se esperava, um interesse nacional comum. Ao contrário, os interesses pós-independência da pequena minoria “branca” eram explicitamente contrários em relação aos direitos sociais de maioria da população não “branca”. Mesmo depois do processo de independência latino-americana, a situação não melhorou para índios e negros. Por isso, desde o ponto de vista dos dominadores surgidos nas

colônias recém-libertas de suas metrópoles, “seus interesses sociais estiveram muito mais perto dos interesses de seus pares europeus e por consequência estiveram inclinados a seguir os interesses da burguesia europeia” (QUIJANO, 1993, p. 235). Poderíamos destacar aqui a importância dos princípios do liberalismo político e, quem sabe, da modernidade como um todo. O liberalismo político parte do pressuposto filosófico de que os seres humanos nascem com direitos naturais inalienáveis como os direitos à vida, à liberdade, à felicidade e à autonomia. Nesse caso, caberia ao Estado promover mecanismos que assegurassem tais princípios, valorizando a liberdade e a autonomia como princípios constitutivos dos indivíduos. Na realidade, os princípios do liberalismo político permitiram a gestação de revoluções políticas importantes, como a Revolução Francesa e a Revolução Americana, e sem tais revoluções seria praticamente impossível falar de ruptura com processos sociais e políticos tradicionais do passado europeu. Por sua vez, os ideários dessas revoluções influenciariam a formação do processo de independência em toda a América Latina. Por outro lado, o processo de pós-independência deflagrado em toda a América Latina não significou necessariamente a descolonização das relações sociais, políticas e culturais entre os diversos grupos europeus e não europeus aqui presentes. Isso significa, segundo Quijano (1993, p. 237), que “a estrutura de poder foi e ainda segue sendo organizada sobre e ao redor do eixo colonial. A construção da nação e, sobretudo do Estadonação foram

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conceituadas e trabalhadas contra a maioria da população, neste caso, dos índios, negros e mestiços”. Na América Latina como um todo, Estado-nação se tornou sinônimo da construção de identidade nacional, e, como tal, a tendência foi conceber as distintas manifestações culturais nos termos de homogeneização. De maneira geral, a análise realizada até aqui sobre aspectos do processo de colonização ocorrido na América Latina, também está refletida na história do Brasil, embora seja importante destacar algumas particularidades de nossa realidade, tendo em vista a questão racial como pano de fundo de nossa análise.

Figura 2 - Habitação de negros. Primeira metade do Séc. XIX

Desde a primeira metade do século XX, vem se disseminando no Brasil, o discurso de que estamos vivendo

sob a égide de uma democracia racial, que seria a consequência da “cordialidade” do povo brasileiro e sua capacidade de miscigenar-se com outras etnias e culturas. Ao que tudo indica, a difundida ideia de que no Brasil vivemos numa democracia racial parece ser muito mais um discurso oficial, cujo objetivo seria o de construir uma identidade nacional, do que uma política com ressonância prática na vida daqueles e daquelas que sofreram diariamente o racismo. Sim, porque a realidade parece apontar para outra coisa e não para a democracia racial. Os indicadores sociais de fontes oficiais revelam que negros e pardos, apesar de praticamente empatarem em termos de número populacional, continuam sendo as parcelas da população menos favorecidas econômica e socialmente no Brasil. Uma coisa é o país imaginado (aquilo que se deseja), e outra é o país real. Se a democracia racial existe, como explicar a situação de marginalização a que está submetida essa imensa parcela da população brasileira não-branca que ultrapassa, e muito, a população tida como branca? Para entendermos tal disparate, é necessário ter claro que a literatura produzida a partir do colonialismo já revelava o tratamento desigual dado aos negros. Em diversos sermões escritos pelo Padre Antônio Vieira (1608-1697), e num claro sinal de contradição, o jesuíta, ao mesmo tempo em que combatia a escravidão indígena por um lado, por outro defendia a escravidão dos negros, perpassando a ideia de que a escravidão seria algo “natural”, e que não restaria aos(às) negros(as) senão a resignação perante o destino, já que os(as) mesmos seriam herdeiros de

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Caim, filho de Noé, expulso de seu clã após o dilúvio. O racismo continuou presente mesmo após a abolição, a implantação da República e a construção da identidade nacional. Depois da abolição, o destino dos negros no Brasil seguiu um caminho tortuoso: primeiro porque a liberdade não foi acompanhada de direitos sociais e civis mínimos, e em segundo lugar, essa força de trabalho livre seria substituída pela mão de obra provinda da Europa, considerada como sinônimo de eficiência e progresso. O que fazer então com uma imensa população de negros que perambulava pelas ruas sem terras para produzir e sem direitos trabalhistas, sociais e civis? Para responder à questão, faremos uma alusão à obra de Gilberto Freyre “Casa Grande & Senzala”, em que o autor, em sua ótica, descreve a forma como ocorreu o processo de formação sócio-cultural brasileira, tendo em vista o processo de miscigenação ocorrido entre negros, índios e brancos. Podemos afirmar que o mundo da “senzala” ficaria de certa forma para trás, mas a “casa” tenderia a ficar ainda maior para aqueles(as) que já não tinham mais interesse na exploração da mão de obra escrava. De fato, no contexto pós-republicano, os(as) escravos(as) libertos(as) não tiveram as mesmas oportunidades concedidas aos imigrantes que começaram a entrar no País em meados do século XIX e início do século XX. Esses eram bem-vindos, pois se enquadravam no padrão branco de beleza e de moral:

[...] Para alcançar pequenas regalias, fosse como escravo ou como homem livre, os descendentes de negros precisavam

ocultar ou disfarçar seus traços de africanidade [...] Os antigos escravos e seus descendentes continuaram a ser tratados como párias, discriminados pela cor e pela classe social e chamados pelos tradicionais estereótipos – boçal, sujo, estúpido, atrasado, bruto, imoral, mentiroso, degenerado” (CARNEIRO, 2005, p. 15-16).

No início do século XX, o país se urbanizava e se industrializava, procurando dessa forma criar uma identidade nacional. Nesse contexto de ascensão e aceitação da mão de obra européia, a nova ciência emergente respaldada pelo positivismo classificava os(as) negros(as) como membros de uma raça inferior, incapazes de exercerem a autonomia e a liberdade para o mundo do trabalho, além de serem responsabilizados pela desordem social e pelo crime: “um novo racismo emergia sustentado pelo avanço da ciência. Substituía-se a irracionalidade do regime escravista pela racionalidade, colocada, mais uma vez, a serviço da discriminação” (CARNEIRO, 2005, p. 18, grifo da autora). As inúmeras teorias, como o darwinismo social, o evolucionismo, o arianismo e a eugenia surgidas na Europa, influenciaram vários intelectuais brasileiros que tinham como pano de fundo a discussão sobre a questão nacional, o que os levou a levantarem a questão racial. Para Munanga (2003, p. 9), “o racismo é essa tendência que consiste em considerar que as características intelectuais e morais de um dado grupo, são consequências diretas de suas características físicas ou biológicas”. De maneira geral, teóricos importantes do pensamento intelectual brasileiro, como Silvio Romero, Nina Rodrigues, Francisco Adolfo de

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Varnhagen, Euclides da Cunha e Francisco José de Oliveira Vianna, Monteiro Lobato e outros teriam caído no equívoco de pensarem que haveria uma relação inequívoca entre caracteres biológicos e qualidades morais, psicológicas, intelectuais e culturais, o que os(as) levaria a acreditarem na hierarquização das chamadas raças superiores e inferiores no Brasil. O quadro do pintor Modesto Broccos, mostrado a seguir, pode ser interpretado como um exemplo visual da teoria do branqueamento das raças. É preciso salientar que ele foi realizado no contexto em que as ideias de branqueamento vinham sendo discutidas pelas camadas intelectuais brasileiras. Observe na imagem abaixo que a senhora mais idosa parece agradecer a Deus de pé, por ter-lhe dado um neto branco, que por sua vez aparece sentado no colo de sua mãe mulata, cujos traços das mãos revelam certa suavidade (sinal de “civilidade”) em contraste com os calos das mãos da mãe que revelariam a tradição, o passado e a não polidez. Por outro lado, o pai mostra-se orgulhoso ao contemplar o filho branco no colo da mãe, mostrando que na mistura das raças o componente branco superior, se sobrepujaria.

Figura 3 - A redenção de Cam, de Modesto Broccos, 1895.

Essa visão foi fomentada também pelas políticas governamentais. O Decreto-lei nº 7.967/1945, por exemplo, em seu artigo 2º, ao tratar da política imigratória, dispôs que o ingresso de imigrantes dar-se-ia tendo em vista “a necessidade de preservar e desenvolver, na composição étnica da população, as características mais convenientes da sua ascendência européia”. Segundo a tese do branqueamento das raças, num prazo não maior do que 100 anos, o Brasil deixaria de contar com os negros na

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configuração de sua população. A construção da identidade nacional, já a partir de meados do século XIX, trazia à tona a tese de que o atraso da nação brasileira era atribuído ao mal da mestiçagem. Na época, acreditava-se que o branqueamento da raça seria a solução. Foi a partir de então que se começou a incentivar o projeto de imigração para o Brasil, abrindo-se apenas para a imigração branca. Na cabeça da elite brasileira, havia a percepção de que o negro representava o atraso do Brasil. Entretanto, entre os anos 1920-1940, houve a substituição da visão pessimista da contribuição das raças que compunha a sociedade brasileira por um enfoque positivo. A teoria da degeneração das raças foi colocada em questão, sobretudo a partir da publicação da obra, antes mencionada, Casa-grande & Senzala de Gilberto Freyre, que defende a mestiçagem como fator de contribuição no processo de uma suposta democracia racial. Para Munanga, o modelo não democrático construído pela pressão política e psicológica exercida pela elite dirigente foi assimilacionista, conforme relata:

Ele tentou assimilar as diversas identidades na identidade nacional em construção, hegemonicamente pensada numa visão eurocêntrica. Embora houvesse uma resistência cultural tanto dos povos indígenas como dos alienígenas que aqui vieram ou foram trazidos pela força, suas identidades foram inibidas de manifestar-se em oposição à chamada cultura nacional [...] O processo de construção dessa identidade brasileira, na cabeça da elite pensante e política, deveria obedecer a uma ideologia hegemônica baseada no ideal do branqueamento (MUNANGA, 2004, p. 110).

Vejamos a forma como Gilberto Freyre descreve o mulato na composição populacional brasileira, nos anos de 1930:

O intercurso sexual de brancos dos melhores estoques – inclusive eclesiásticos, sem dúvida nenhuma, dos elementos mais seletos e eugênicos na formação brasileira – com escravas negras e mulatas foi formidável. Resultou daí grossa multidão de filhos ilegítimos – mulatinhos criados muitas vezes com a prole legítima, dentro do liberal patriarcalismo das casas-grandes; outros à sombra dos engenhos de frades; ou então nas ´rodas` e orfanatos. Híbrida desde o início, a sociedade brasileira é de todas da América a que se construiu mais harmoniosamente quanto às relações de raça: dentro de um ambiente de quase reciprocidade cultural que resultou no máximo aproveitamento dos valores dos povos atrasados pelo adiantado; no máximo da contemporização da cultura adventícia com a nativa, da do conquistador com a do conquistado (FREYRE, p. 442-443).

Na realidade, nem o intercurso sexual entre brancos e negros se deu de forma espontânea, desejada, e nem as relações sociais e trabalhistas se deram de forma cordial, tal como descreve Freyre. O mulato, essa figura híbrida descrita por Freyre, e por extensão a mestiçagem, passariam a ser dotados de valores positivos na sociedade brasileira, passando a indicar um fator de mobilidade social e intercâmbio étnico, compondo, dessa forma, a meta raça nacional, que condensaria todas as etnias e culturas. Entretanto, o processo de miscigenação elevado às alturas por Freyre ocorreu mediante um processo de exploração do homem pelo homem, e não através de um relacionamento voluntário e benigno entre as diferentes etnias.

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Segundo Domingues (2005, p. 116), democracia racial, a rigor, significa “um sistema racial desprovido de qualquer barreira legal ou institucional para a igualdade racial, e, em certa medida, um sistema racial desprovido de qualquer manifestação de preconceito ou discriminação”. A realidade sociopolítica brasileira parece apontar para outra coisa. Na perspectiva de Roberto Da Matta, a mistura de raças foi um modo de esconder a profunda injustiça social contra negros, índios e mulatos, pois situou-se no biológico uma questão profundamente social, econômica e política, deixando-se de lado a problemática mais básica da sociedade. Assim, dizer que vivemos numa democracia racial, “é mais fácil do que assumir que somos uma sociedade hierarquizada, que opera por meio de gradações e que, por isso mesmo, pode admitir, entre branco superior e o negro pobre e inferior, uma séria de critérios de classifiação” (DA MATTA, 1984, p. 46-47). Em tese, a República defendia os princípios da democracia participativa, mas na prática a teoria da democracia racial, endossada por diversos(as) intelectuais brasileiros, cumpria o papel do incentivo à omissão, tanto dos ex-senhores como do Estado em relação aos ex-escravos(as): aqueles(as) não responderam em nenhum momento por seus atos bárbaros e cruéis, e o Estado não criou políticas compensatórias para esta população depois delibertas do cativeiro. Nas palavras de Florestan Fernandes (1989, p. 80), O negro era expulso de uma economia, de uma sociedade e de uma cultura, cujas vigas ele forjara, e enceta por conta própria o penoso processo de transitar de escravo a cidadão. (...) Então começa a pugna feroz do negro para ‘tornar-se

gente’, para conquistar com suas mãos sua auto emancipação coletiva. No fundo, as teorias liberais vigentes no Brasil republicano que defendiam o progresso dos mais capazes também contribuíram para jogar nos ombros da população negra a culpa de seu próprio destino e infortúnios. Ou seja, todos os problemas de dimensão e amplitude social passaram a serem vistos como condizente à esfera individual e particular. O discurso oficial passou a tratar as exceções como as regras, “o particular em universal; casos isolados em generalizações. Aproveitaram-se os raros exemplos de negros e ‘mulatos’ que se projetaram socialmente e os adotaram como modelo do sistema racial” (DOMINGUES, 2005, p. 119). Em pleno século XXI, mesmo na Europa, o tom do debate político é: o que fazer com grupos étnicos que não foram absorvidos no processo de constituição dos Estados nacionais, sobretudo o que fazer com as diásporas contemporâneas que se deslocam intermitentemente no contexto de globalização em busca trabalho e de melhores condições de vida? Para Quijano, em se tratando de realidade latino-americana, classe social tem cor, e cor se tornou o instrumento mais eficaz de dominação; por isso, o movimento em prol da descolonização deve pressupor a redistribuição radical do poder. Por sua vez, Maldonado-Torres propõe que a descolonização como projeto “não envolva meramente o termino de relações formais de colonização”. Ao contrário, que seja “uma oposição radical ao legado e produção contínua da colonização do poder, do saber e do ser” (MALDONADO-TORRES, 2007, p. 161).

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Catherine Walsh (2008, p. 141) chama a atenção para o caráter uninacional de todos os Estados sul-americanos e a natureza monocultural de suas estruturas e instituições sociais e políticas. Daí a importância, segundo a autora, de descolonizar o Estado, cujo parâmetro de análise é a realidade do Equador e da Bolívia, países que estariam avançando para uma proposta política de construção do Estado plurinacional. Implícita nesse projeto está a ideia de interculturalidade. Para a autora, “os movimentos indígenas têm mantido suas formas múltiplas de conceber e construir identidades, territorialidades e sistemas de vida dentro ou acima do ‘nacional’, coisa que também ocorreu com os povos afrodescendentes de maneira distinta” (WALSH, 2008, p. 142, tradução do autor). Movimentos como o Exército Zapatista de Libertação Nacional (México), a Confederação dos Povos Indígenas e o Conselho Nacional de Ayllus y Markas (Bolívia), Confederação de Nacionalidades Indígenas de Equador, são exemplo de movimentos que lutam por uma proposta de Estado Plurinacional, cujo objetivo é cogitar um modelo de organização política para a descolonização das nações e povos, recuperando e fortalecendo a autonomia territorial na perspectiva solidária. Portanto, a ideia alternativa de um Estado plurinacional questionaria a forma como o Ocidente idealizou a organização do poder político nos últimos séculos, cujas estruturas sempre demandam lealdades exclusivas. Um Estado plurinacional requer uma perspectiva intercultural, a qual vai além da perspectiva do reconhecimento das diferenças, já que propõe mudanças

políticas e sociais estruturais que procuram reparar injustiças históricas causadas. Talvez não se tenha dado início ainda ao debate sobre a proposta de um Estado plurinacional no Brasil. Isso, porém, não nos exime da responsabilidade de pensarmos um Estado e sociedade plural, onde problemas estruturais não sejam tratados com a roupagem da democracia racial, mas com políticas efetivas e compensatórias que façam justiça àquelas populações historicamente colocadas à margem dos processos sociais, econômicos e sociais por questões étnicas, raciais e de gênero. É preciso reconhecer as lutas dos novos movimentos sociais que não pouparam esforços na conquista e ampliação de direitos, que até então não faziam parte da proposição das políticas públicas de diversos governos. Nesse viés, as ações afirmativas (uma antiga reivindicação do movimento negro norte americano) promoveram um impacto profundo naquela sociedade e passaram a ser aplicadas a vários segmentos sociais até então discriminados. Por isso, é importante ressaltar que as ações afirmativas também estão voltadas para segmentos de recorte étnico, de gênero, religiosos e outros. No caso do Brasil, as cotas de vagas nas instituições universitárias são, sem sombra de dúvida, uma forma de reparação social, mas também é importante esclarecer que nos Estados Unidos, a luta dos negros é por cotas que vão além do acesso às universidades. Naquele país, também se reivindica acesso ao trabalho, ao setor público e às mídias. Faltaria dar esse passo no Brasil, mas enquanto as cotas estão restritas ao acesso ao ensino superior, que essas políticas sejam ampliadas, garantindo-se tanto a oferta como a

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permanência das populações que buscam justiça social em nosso País.

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INTERCULTURALIDADE E EDUCAÇÃO INDÍGENA ENTRE O POVO GUARANI DE LARANJEIRA ÑANDERU/MS

José Paulo Gutierrez58

Antônio Hilário Aguilera Urquiza59 Resumo: O presente texto tem por base a experiência dos autores e trabalho de campo em andamento. Discute o processo de escolarização e aprendizagem de crianças indígenas Kaiowá e Guarani, em situação de acampamento, no sul de Mato Grosso do Sul. A aldeia Laranjeira Ñanderu é uma área de retomada (ao redor de 50 hectares), em conflito com o proprietário e cedida provisoriamente pela Justiça Federal enquanto não finaliza o processo judicial. Os estudantes indígenas deslocam-se do acampamento todos os dias para as escolas públicas na cidade de Rio Brilhante/MS e acompanham em seus estudos o desenvolvimento de uma 58 Doutorando em Educação pela Linha de Pesquisa Diversidade Cultural e Educação Indígena da Universidade Católica Dom Bosco – UCDB. Bolsista da FUNDECT/CAPES - Fundação de Apoio ao Desenvolvimento do Ensino, Ciência e Tecnologia do Estado de Mato Grosso do Sul. Contato: [email protected] 59 Doutor em Antropologia pela Universidade de Salamanca. É Professor Adjunto da UFMS, Professor do Programa de Pós-graduação em Antropologia (PPGAnt) da UFGD e professor colaborador do Programa de Pós-graduação em Educação da UCDB. Contato: [email protected].

grade curricular de uma escola não indígena, urbana. Trata-se de uma realidade conflitante, pois no acampamento, além das dificuldades de alimentação e moradia, as crianças aparentemente carecem das condições mínimas para as atividades escolares: cadernos, espaços para estudar e fazer tarefas. A partir da caracterização desta situação (território, história, cultura), nos propomos discutir como ocorre o processo da escolarização e aprendizagem e as especificidades culturais dos alunos e alunas indígenas da aldeia Laranjeira Ñanderu: dificuldades, preconceitos, atrasos, desistências, entre outros, ancorados em autores oriundos dos chamados Estudos Culturais, como Stuart Hall (1997), Fleuri (2003), Bhabha (2001), Walsh (2009), assim como autores estudiosos do povo Guarani, como Brand (1997), Nascimento (2006). Há espaço para manifestação da cultura indígena na escola, diálogo intercultural? A aprendizagem dentro da escola e o “diálogo de saberes” na formação das identidades dos alunos indígenas é o eixo orientador deste trabalho. PALAVRAS–CHAVE: Processo de Escolarização e Aprendizagem; Crianças Kaiowá e Guarani; Educação Intercultural; diálogo de saberes; Introdução No Estado de Mato Grosso do Sul 60 , assiste-se à situação de muitas comunidades indígenas, especialmente 60 Segundo Thiago Leandro Vieira Cavalcante [...] dados do Censo Populacional do IBGE de 2010, da SESAI e da FUNAI, estima-se que a

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Kaiowa e Guarani, que vivem fora de seus territórios tradicionais e à beira de rodovias, ou provisoriamente em reduzidos a pedaços de terra, onde ficam aguardando até o julgamento do processo judicial que decidirá pelo retorno ou não ao seu antigo tekoha61. Por se encontrarem fora de seus territórios tradicionais, por motivo de esbulho durante o governo do presidente Getúlio Vargas (1930-1945), os Kaiowa e Guarani a partir da década de 1980 começam a luta pela retomada de parte de seu território tradicional. Antonio Brand em sua tese de doutorado fez um grande trabalho de levantamento histórico e listou em seu estudo mais de 80 antigas áreas de ocupação tradicional indígena que foram esbulhadas e destruídas por iniciativas colonialistas, durante o século XX, no território tradicional Kaiowa e Guarani (BRAND, 1997). É neste contexto que surgem os denominados acampamentos que estão situados nas margens de rodovias, ou mesmo em uma pequena porção da área reivindicada. Nosso objetivo neste artigo é discutir como ocorre o processo

população Guarani e Kaiowa que vive em áreas de reservas indígenas, terras indígenas e acampamentos em Mato Grosso do Sul seja de 51.801 indivíduos, desses 2.630 vivem em acampamentos, 38.525 em reservas indígenas criadas pelo SPI e 10.646 em terras indígenas demarcadas após 1980. Esses dados são bastantes conservadores e não computam grande parte da população indígena que vive em áreas urbanas, o que faz considerar que estimar a população guarani e kaiowa de Mato Grosso do Sul em 60.000 pessoas vivendo em diferentes tipos de assentamentos não seja nenhum exagero (CAVALCANTI, 2013, p. 84). 61 Segundo Thiago Leandro Vieira Cavalcante os Kaiowa e Guarani [...] utilizam a categoria nativa tekoha como sinônimo de aldeia ou terra indígena. Trata-se de categoria polissêmica cuja instrumentalização depende do contexto de sua utilização (CAVALCANTI, 2013, p. 51).

da escolarização e aprendizagem a partir das especificidades culturais dos alunos e alunas indígenas da aldeia Laranjeira Ñanderu, em situação de acampamento, nas escolas do Município de Rio Brilhante/MS. 1. A aldeia Laranjeira Ñanderu

A aldeia Laranjeira Ñanderu tem uma população estimada em 110 indígenas62, situa-se na BR 163, rodovia que liga Campo Grande à Rio Brilhante. A comunidade que vivia à margem da rodovia deixou a BR e entrou em parte do seu território tradicional, em reserva legal da fazenda em disputa judicial. A área foi retomada em 2004. Por ordem da justiça federal, ocupam cerca de 50 hectares de terra, até que finalize o processo judicial.

Os alunos indígenas têm que se deslocar para as escolas municipais Criança Esperança I, II, III e IV, Escola Municipal Prefeito Sírio Borges, Escola Municipal Rural Arthur Tavares e Escola Estadual Etalivio Pereira Martins onde recebem aulas do 1º ao 9º ano e Ensino Médio.

Estas crianças indígenas não têm nenhum acompanhamento dos professores na aldeia para verificar se de fato os processos de aprendizagem ocorrem de forma eficiente na comunidade a qual pertencem. O fato da escola não ser indígena também implica na organização do ensino e da aprendizagem marcados por um currículo não indígena.

62 Os dados populacionais têm por base o programa de segurança alimentar MDS/FUNAI. Situação em julho de 2012.

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O propósito de estudar o processo de escolarização e aprendizagem é verificar se os alunos indígenas da aldeia conseguem desenvolver o conhecimento curricular apresentado na escola formal, e verificar se também na escola há espaço para desenvolver suas culturas tradicionais por meio da pedagogia da oralidade recebida na aldeia. Os dados foram levantados em três jornadas de campo (02 de dezembro de 2013, 24 e 25 de fevereiro de 2014 e 14 de abril de 2014), por meio de observação do contexto familiar e comunitário, entrevistas semiestruturadas com alunas indígenas, diário de campo, conversa com o Secretário Municipal, a diretora da escola, pais e liderança da aldeia. Discute-se o processo de escolarização e aprendizagem com autores da Linha 3 de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação que é Diversidade Cultural e Educação Indígena. Tonico Benites (2009), Antônio Carlos Seizer da Silva (2009), Elda Vasques Aquino (2012), e Eliel Benites (2014) falam sobre a educação indígena nas suas pesquisas de mestrado. Para Romanowski e Ens (2006) o estado da arte contribui para a constituição do campo teórico de uma área de conhecimento, pois

[...] procura identificar os aportes significativos da construção da teoria e prática pedagógica, apontar as restrições sobre o campo em que se move a pesquisa, as suas lacunas de disseminação, identificar experiências inovadoras investigadas que apontem alternativas de solução para os problemas da prática e reconhecer as contribuições da pesquisa na constituição de propostas na área localizada (ROMANOWSKI; ENS 2006, p. 39).

A importância do estado da arte neste momento é por que favorece a compreensão de como se dá a produção do conhecimento em uma determinada área de conhecimento, em teses de doutorado, dissertações de mestrado, artigos de periódicos e publicações. No contexto em discussão, fez-se uma revisão de literatura com autores, dos chamados Estudos Culturais, assim como autores regionais que contribuem com seus estudos para o entendimento do processo de escolarização e aprendizagem na escola e fora dela. Eliel Benites (2014) defendeu a dissertação que tratou de “Oguata Pyahu (uma nova caminhada) no processo de desconstrução e construção da educação escolar indígena da aldeia Te’yikue” e afirmou que a construção da escola indígena (processo de escolarização) se faz na perspectiva do diálogo entre os conhecimentos tradicionais e a escola formal. Relatou que a identidade que se forma é o produto de uma realidade e resistência. A dissertação de Tonico Benites (2009) tratou do tema “A escola na ótica dos Ava Kaiowá: impactos e interpretações indígenas”. Analisou as divergências e conflitos entre a educação Kaiowá realizada pelas famílias extensas e a escola formal introduzida nas aldeias. Fez também uma análise dos efeitos de atividades desenvolvidas pelas antigas escolas integracionistas na formação de novas gerações indígenas, identificando os possíveis impactos e interferências negativas na organização educativa das famílias extensas Kaiowa. A dissertação de Benites (2009) contribuiu para se entender que na educação das crianças se há dois grupos, sendo o primeiro grupo educativo composto pelas mulheres e

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o segundo grupo é composto pelos homens. O primeiro grupo é determinante, pois todas as tarefas educativas são supervisionadas rigorosamente pela liderança feminina, a avó, juntamente com filhas e noras mais experientes. Nesse momento de aprendizagem é que se faz a classificação das crianças por ciclo de crescimento. Segundo Benites (2009)

Neste âmbito da família extensa para ensinar as crianças e jovens de modo correto É feita uma classificação das crianças por ciclo de crescimento, considerando os diversos momentos por que passam os jovens. É levada em consideração o estado e a característica de cada alma gradativamente assentada no corpo da criança, observando a sua força e a fraqueza, visto que a condição da alma (ayvu ñe’e) é a condição vital para o bom desenvolvimento da aprendizagem e crescimento saudável do corpo (BENITES, 2009, p. 62). (Grifos dos autores).

Aqui começa o processo de aprendizagem na educação tradicional, pois, as fases de crescimento das crianças são acompanhadas de forma que elas ganham liberdade vigiada no espaço familiar. A sequência das fases é acompanhada pela mãe e avó que ajudam a criança com a idade de cinco a dez anos a realizar a ressignificação do comportamento e a incorporação de frases ou ideias de adultos. Segundo Benites (2009)

Esta fase é considerada a mais delicada e preocupante, porque é o início da imitação, reprodução e incorporação de qualquer comportamento e atitudes, sejam positivas ou negativas. Ainda é possível afastar da alma as palavras imperfeitas ou negativas, que podem comprometer a força e a

aprendizagem do modo de ser adequado (teko porã vy’a) almejado pela família. É possível também fortalecer o estado da alma no corpo, para suportar e superar os desafios futuros frente aos possíveis ataques dos espíritos maléficos, visando sempre a derrotá-los e a evitar a sua incorporação. (BENITES, 2009, p. 62).

Verifica-se que o processo de aprendizagem inicia-se

desde que a criança tem uma identidade na aldeia e cada família, iniciando pelas mulheres (avó, mãe, noras) supervisiona as tarefas desenvolvidas por elas. Após, acompanhando o ciclo de crescimento a criança recebe a educação dada pelos homens, dentre eles o Ñanderu (rezador). Somente após esse processo de aprendizagem é que os alunos indígenas ficam aptos a buscar a escolarização nas escolas públicas. A dissertação de Antônio Carlos Seizer da Silva (2009) que tratou do tema “Educação escolar indígena na aldeia bananal: prática e utopia” investigou as permanências e mudanças na prática pedagógica decorrente da passagem de escola extensão para a escola indígena de ensino médio, na Aldeia Bananal, Distrito de Taunay, Município de Aquidauana/MS, com especial atenção para a questão das diferenças étnicas. Seizer da Silva (2009) descreve que os grupos escolares se organizam de acordo com os poderes que se constituem e se reconstituem dentro da Aldeia Bananal. Segundo Seizer da Silva (2009)

Os grupos escolares se organizam, numa tomada de pertencimento, solicitada pelos grupos dominantes. Tem-se aqui a necessidade de confirmar espaços, de marcar

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territórios. Mas o que se vê é o trânsito constante dos sujeitos entre os diversos grupos religiosos, que demonstram seu poder no espaço onde se encontram. Mas nesse transitar, não há exclusão (SEIZER DA SILVA, 2009, p. 118).

Para este autor, a tensão criada, os enfrentamentos e os diálogos constantes na comunidade sobre a atuação da escola (processo de escolarização), provocam desconstruções que dinamizam o pertencer crítico estabelecido (aprendizagem), permitindo elaborar um conhecimento satisfatório e eficaz para a comunidade escolar do povo Terena do Posto Indígena de Taunay e Ipegue, e não mais do Terena da Aldeia Bananal (SEIZER DA SILVA, 2009, p. 120). A escola esquece o conhecimento que o aluno indígena produz na aldeia e que esse conhecimento poderia ser reproduzido em sua vivência na sala de aula. Segundo Backes e Nascimento (2011) a escola indígena, por estar nesse espaço ambivalente, localizada na fronteira entre a negação e a afirmação dos saberes indígenas, ora legitimando o saber ocidental, ora subvertendo-o, torna-se um espaço de negociação privilegiado entre a cultura indígena e a cultura ocidental, reconhecendo sua incomensurabilidade ao mesmo tempo em que também reconhece a impossibilidade de que elas não se cruzem, imbriquem, mesclem, produzindo novos modos de ser/viver indígena. Para Seizer da Silva (2009) o conhecimento circunscrito na realidade não-indígena não satisfaz o seu ideal de escola indígena. Segundo ele:

O que seria viável são os poderes polissêmicos que a atuação da escola produziria no campo social e político. Ninguém aqui pretende uma escola ligada à concepção mítica Terena, que evidencia os valores do passado. E também não querem a escola do não-índio, pura e simplesmente, com suas tecnologias e aparatos pedagógicos. Mas, dizem aqui, de uma retomada da vivência, onde todos esses valores, com seus significados, seriam colocados a apreciação da população num todo. E só ai construir efetivamente e porque não, gradativamente a educação que garante acesso, mas que não deixa de ser a do momento que o povo Terena esteja vivendo na perspectiva da interculturalidade (SEIZER DA SILVA 2009, p. 147).

Quando se fala em interculturalidade se quer retomar com Fleuri (2003) que a educação intercultural propõe uma escola dialógica onde o diverso faz parte do seu espaço, sem ser mancha que provoque a exclusão, buscando por meio da escola superar as discriminações da sociedade (SEIZER DA SILVA 2009, p. 98). A dissertação de Elda Vasques Aquino (2012) que tratou da “Educação Escolar Indígena e os processos próprios de aprendizagens: espaços de inter-relação de conhecimentos na infância Guarani/Kaiowá, antes da escola, na Comunidade Indígena de Amambai, Amambai – MS” teve como objetivo principal conhecer melhor a criança Guarani/Kaiowá antes de ir à escola, e observar/descrever como se davam as suas aprendizagens, tendo em vista a compreensão dos seus processos próprios de aprendizagens e as suas interações estabelecidas com o cotidiano e seu em torno. Verifica-se que a autora concluiu que as crianças que ainda não haviam ido para a escola têm seus próprios

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processos de aprendizagem uma vez que essa aprendizagem vai ocorrendo no cotidiano, não importando os momentos e nem os lugares em que se encontram. Segundo a autora

Tudo se torna uma escola de aprender, sempre vai ultrapassando as fronteiras e os entre-lugares e afirmando sua identidade, buscando o seu pertencimento nos lugares adequados, aprendendo a conviver com os dois mundos diferentes, respeitando as diferenças culturais existentes (AQUINO, 2012, p. 06).

Segundo Aquino (2012) a aprendizagem ocorre nos diferentes momentos da vida. Verifica-se, portanto que

[...] ao longo de toda a vida as pessoas vão adquirindo muitos aprendizados, e esses aprendizados acontecem em diferentes momentos. As crianças indígenas Guarani/Kaiowá, como todo e qualquer ser humano, estão em constante processo de desenvolvimento, aprendendo dos mais diferentes jeitos e em vários momentos da vida (AQUINO, 2012, p. 86).

E, nesse passo, apresenta diversos depoimentos de entrevistados que relatam serem as crianças sujeitos culturais e por isso transitam nas culturas sem dificuldades embora sejam educadas para respeitar os valores tradicionais e os valores não indígenas (2012). Reforça esse olhar o entendimento de Nascimento (2006) de que

As crianças aprendem olhando, observando toda a realidade, estão presentes em toda a parte na aldeia e nas áreas circundantes e quase não há punições. A criança tem liberdade, permissividade e autonomia, experimentando e participando da realidade concreta do dia a dia, seus conflitos

e contradições, estão perfeitamente articuladas com aprendizagem e responsabilidades (NASCIMENTO, 2006, p. 8).

Desta forma, defende Aquino (2006) que o Kaiowá e Guarani precisa negociar o conteúdo sistematizado (na escola) com o sistema tradicional de educação numa relação de ambiguidade para o alcance do mesmo objetivo. Backes e Nascimento (2011) acreditam que os povos indígenas instigam-nos a subverter e ressignificar as práticas de colonização e subordinação. No caso do processo de escolarização e aprendizagem nas escolas públicas de Rio Brilhante/MS não se trata de reivindicar o desenvolvimento de uma cultura apenas para os alunos indígenas na escola e nem de tornar a cultura indígena absoluta, mas de propor um processo dinâmico onde a escola possa trabalhar com a presença do indígena em seu interior, apresente um projeto político e pedagógico que inclua a comunidade indígena, que no espaço escolar faça atividades onde se possibilite o desenvolvimento da cultura e da aprendizagem e ela negocie com a cultura indígena que muitas vezes foi negada pelo poder colonizador. Com o estudo do processo de escolarização e aprendizagem dos alunos indígenas nas escolas públicas de Rio Brilhante, desvendando as relações de poder dentro da escola, busca-se na visão de Walsh (2009) pensar que estamos colaborando para descolonizar o saber e isso representa uma mistura de sentimentos/pensamentos ambivalentes e também um exercício permanente de descentramento como

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bem reforça Larrosa (2003) uma vez que se torna uma experiência impronunciável. Neste sentido, Skliar (2003) nos lembra que na condição de sujeito do conhecimento produzido pelo ocidente é importante que controlemos o ímpeto etnocêntrico/colonizador de nossa racionalidade aceitando nossa incapacidade de vermos o outro na radicalidade de sua diferença. Escutar o outro sem pretensão de compreendê-lo é crucial, pois sem a compreensão e sem o reconhecimento de que há coisas incompreensíveis o sujeito resultará no retorno da mesmidade e da asfixia da diferença.

Como se reconhece aos alunos indígenas o direito à educação diferenciada? O processo de escolarização para esses alunos indígenas Kaiowá e Guarani em situação de acampamento passa pelo respeito que se deve ter à representação de seus conhecimentos dentro da escola. A presença da cultura indígena no espaço escolar desestabiliza, questiona e gera cidadania e esta poderá ser construída e desenvolvida de forma coletiva.

2. A Escola formal e os/as alunos/as indígenas No contexto da pesquisa de campo conversamos com a direção da Escola, que em entrevista nos informou que na Escola Municipal Prefeito Sirio Borges, há alunos indígenas da escolaridade pré 1 até o 8º ano e que neste ano de 2014 não havia nenhum aluno indígena no 9º ano. Ela nos disse que

Trabalha na Escola Municipal Prefeito Sirio Borges há 10 anos e que os alunos indígenas que estudam lá são do pré 1 até o 8º ano; que sabe que são cerca de 60 alunos da aldeia

Laranjeira Ñanderu que estudam nas escolas de Rio Brilhante/MS; que os alunos vem para a Escola Municipal Prefeito Sirio Borges no ônibus escolar do município de 2ª a 6ª feira e às vezes no sábado quando tem jogo ou alguma atividade e também na reunião de pais; disse que eles (alunos) são muito educados e a família é muito presente; que a família quando não vem na reunião eles comunicam e também quando os filhos não vem à escola por motivo de chuva ou outro motivo; que a escola comunica aos pais para vir buscar o aluno se ele não passa bem na escola; disse que os alunos indígenas começaram a estudar na Escola Municipal Prefeito Sirio Borges a partir de 2007 e disse que já estava na escola (CELESTRINO, 2014). (Grifos dos autores).

Ressalte-se que na fala da diretora substituta parece que tudo a primeira vista encontra-se bem com relação à situação de escolarização e aprendizagem dos alunos indígenas que estudam nesta escola. Verifica-se que os alunos vão à escola de 2ª a 6ª feira e às vezes no sábado quando se tem alguma atividade ou jogo. Segundo a diretora, os alunos indígenas são muito educados e a família é muito presente nas ações que se desenvolvem na escola. Percebe-se num primeiro momento que a cultura indígena a priori encontra-se em situação de igualdade com as demais culturas presentes na escola. É instigante pesquisar dentro da escola as manifestações do elemento cultural neste espaço onde a maioria dos alunos são brancos (karai) e os alunos indígenas são minoria. Eles têm livre acesso à cultura ocidental. Segundo Bhabha (2001) as culturas estão sempre em processos de negociação e mais do que olhar para esses processos de negociação é importante olhar para o processo

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de construção do sentido de cultura. Sabe-se que uma cultura (e principalmente a cultura ocidental) não está imune aos encontros e desencontros inocentes, mas atribuem um significado às ações articuladas por meio das identidades que são produzidas dentro do espaço escolar. Sabe-se que as identidades são articuladas de maneira instável e são constantemente perturbadas pela diferença. Verifica-se que as identidades culturais (dentro do espaço escolar) estão sempre se ressignificando a partir das fronteiras porosas que caracterizam as culturas. Segundo Hall (1997):

Os seres humanos são seres interpretativos, instituidores de sentido. A ação social é significativa tanto para aqueles que a praticam quanto para os que a observam: não em si mesma, mas em razão dos muitos e variados sistemas de significado que os seres humanos utilizam para definir o que significam as coisas e para codificar, organizar e regular sua conduta uns em relação aos outros. Estes sistemas ou códigos de significado dão sentido às nossas ações. Eles nos permitem interpretar significativamente as ações alheias. Tomamos em seu conjunto, eles constituem nossas ‘culturas’ (HALL, 1997, p. 16).

O processo de escolarização e aprendizagem dos alunos indígenas que estudam na cidade em escola de branco, mas que vivem em situação de acampamento é um desafio não somente para a escola, mas para toda a comunidade escolar (pais, professores e alunos), pois a educação é um direito de todos, inclusive direito subjetivo do cidadão

brasileiro63. Sabe-se que o direito à cultura é garantido, como afirma Bhabha (2001), com a “articulação social da diferença, da perspectiva da minoria, é uma negociação complexa, em andamento, que procura conferir autoridade aos hibridismos culturais que emergem em momentos de transformação histórica” (BHABHA, 2001). Na pesquisa verifica-se que os alunos indígenas saem de sua aldeia e vão estudar em escolas municipais e estaduais no Município de Rio Brilhante/MS e, portanto estas escolas não são escolas indígenas e sim escolas urbanas, as quais não apresentam elementos de prática intercultural, em que contemple a cultura dos alunos indígenas. Os gestores destas escolas não se obrigam a seguir a Legislação Nacional referente à educação escolar indígena por que estas escolas não estão dentro da aldeia, e as escolas indígenas têm características próprias de gestão, portanto, não são escolas para indígenas. Apesar de não existir no município de Rio Brilhante/MS escolas indígenas com classes multisseriadas e apenas alguns professores com formação específica para atender os alunos indígenas, é necessário ouvir a comunidade indígena que tem seus filhos matriculados nas escolas municipais e estaduais para favorecer e possibilitar a interação da cultura indígena e a cultura escolar.

63 O direito subjetivo na educação quer dizer que o acesso ao ensino fundamental é obrigatório e gratuito; o seu não-oferecimento pelo Poder Público (Federal, Estadual, Municipal), ou sua oferta irregular, importa crime de responsabilidade da autoridade competente.

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Os alunos indígenas que cursam a educação infantil e o ensino fundamental muitas vezes têm muita dificuldade para acompanhar o processo de escolarização e aprendizagem, especialmente por que não tem conhecimento satisfatório da língua portuguesa. A escola segue os parâmetros tradicionais de cultura, em que a prática da colonialidade do saber e do poder é constante. Há uma dificuldade das escolas públicas entenderem as particularidades culturais dos alunos indígenas Kaiowa e Guarani justamente por que não se teve uma discussão e nem formação dos professores a respeito do processo de colonização imposto e a possibilidade de uma educação intercultural. O Estado de Mato Grosso do Sul sofreu no início do século XX uma intensa colonização promovida e estimulada pelo Estado Brasileiro. Entender o processo de escolarização e aprendizagem requer medidas que desenvolvam a interculturalidade. Por exemplo, em relação às crianças indígenas que chegam sem nenhum tipo de aprendizado da língua portuguesa a escola municipal responsável pela escolarização/alfabetização inicial deveria investir na capacitação de professores para que estes ensinem o conteúdo na língua materna e pensem um ensino baseado na interculturalidade. Pode-se também pensar em colocar um intérprete para o acompanhamento da alfabetização dessas crianças o que esbarra na questão de se promover concurso público para esses profissionais. Entender a cultura do outro se trata de uma experiência limite e devemos ouvir a voz daqueles que se encontram nos limites da exclusão. Para Backes e Nascimento

(2001) devemos aprender “a ouvir as vozes dos que estão posicionados nas fronteiras da exclusão [e isso] é uma experiência agonística”. Compreender o processo de escolarização e aprendizagem que ocorre nas escolas de Rio Brilhante/MS com os alunos indígenas que vivem em acampamento na aldeia Laranjeira Ñanderu, ajudará a identificar as formas de contribuir para o desenvolvimento de sua formação educacional e a construção de uma identidade indígena. Isso contribui para desmistificar as fronteiras da educação na aldeia pesquisada. Na aldeia Laranjeira Ñanderu também foram entrevistadas algumas alunas indígenas que estudam na Escola Estadual Etalivio Pereira Martins, no Ensino Médio. Na entrevista foram perguntadas sobre o processo de escolarização e aprendizagem que recebem na Escola, se há momentos de diálogo entre as culturas e valorização da cultura indígena.

Verifica-se que a escola deveria entender que o processo de escolarização não está dissociado do processo de aprendizagem que ocorre no cotidiano dos alunos indígenas na aldeia. Aliás, o aluno indígena se orgulha de sua identidade cultural, pois, é com ela que ele ressignifica seu espaço. Considerações finais Finalizando o texto verifica-se tratar de resultados ainda preliminares da pesquisa de campo que se propôs a compreender o processo de escolarização e aprendizagem de alunos indígenas em situação de acampamento, a partir dos

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autores dos Estudos Culturais e pós-coloniais percebendo a lacuna e necessidade de práticas interculturais na educação formal. Sabe-se que o processo de escolarização e aprendizagem para os alunos indígenas da aldeia Laranjeira Ñanderu aponta para um desenvolvimento de conceitos, concepções de mundo e território que alargam a visão etnocêntrica de que a escola deva ser homogênea no desenvolvimento da identidade da pessoa. A função da escola faz sentido à medida que ela é capaz de preparar o aluno para viver entre culturas diferentes. Desta forma, a escola que favoreça o desenvolvimento do processo de escolarização e aprendizagem pode ser concebida como um espaço de encontro de culturas diferentes respeitando as diversas formas de ser e de pensar. O que se espera é despertar na família, na comunidade, nos professores e alunos, e também na sociedade, toda a perspectiva de vivência intercultural para o desenvolvimento de uma sociedade aberta e marcada pela diferença cultural.

Espera-se, ainda, que o processo de escolarização e aprendizagem dos alunos indígenas que estudam nas escolas públicas de Rio Brilhante/MS seja corroborado pela participação da comunidade indígena que possui uma cultura que permite o diálogo com a comunidade escolar no projeto político e pedagógico. Que seja realmente um diálogo que possibilite dar visibilidade ao conhecimento tradicional e que a educação escolar indígena se transforme numa educação intercultural.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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em Mato Grosso do Sul. 2013. Tese (Doutorado em História). Universidade Estadual Paulista, Assis, São Paulo. CELESTRINO, Florência. Entrevista concedida a José Paulo Gutierrez em 14 de abril de 2014, na Escola Municipal Prefeito Sirio Borges, na cidade de Rio Brilhante, Mato Grosso do Sul, 2014. FLEURI, Reinaldo Matias. Intercultura e educação. Grifos, Chapecó, n. 15, p. 16-47, nov./2003. HALL, Stuart. Identidades culturais na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 1997b. LARROSA, Jorge. Pedagogia profana: danças, piruetas e mascaradas. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. NASCIMENTO, Adir Casaro. A cosmovisão e as representações das crianças Kaiowá/Guarani: o antes e o depois da escolarização. Anais da 25º Reunião Brasileira de Antropologia. Goiânia, 2006. ______. Os processos próprios de aprendizagem e a formação dos professores indígenas. Práxis Educativa, Ponta Grossa, v. 7, Número Especial, p. 155-173, dez. 2012. ROMANOWSKI, Joana Paulin; ENS, Romilda Teoodora. As pesquisas denominadas do tipo “Estado da Arte” em Educação. Diálogo Educ., Curitiba, v. 6, n. 19 p. 37-50, set./dez. 2006. SEIZER DA SILVA, Antonio Carlos. Educação escolar indígena na aldeia bananal: prática e utopia. Dissertação (Mestrado em Educação) – UCDB, Campo Grande, 2009. SKLIAR, Carlos. Pedagogia (improvável) da diferença e se o outro não estivesse aí? Rio de Janeiro: DP&A, 2003. WALSH, Catherine. Interculturalidade críticae pedagogía decolonial: in-surgir, re-existir e re-viver. In: CANDAU, Vera

Maria (Org.). Educação intercultural na América Latina: entre concepções, tensões e propostas. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2009. p. 12-43

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A EDUCAÇÃO INTERCULTURAL SUPERIOR INDÍGENA: UMA ANÁLISE SOBRE PROJETOS NO BRASIL, MÉXICO E BOLÍVIA.

DANIEL VALÉRIO MARTINS64

RACQUEL VALÉRIO MARTINS65

64 Licenciado em Pedagogia pela Universidade Estadual Vale do Acaraú (2001), especializaçao em Historia y Metodologia do Ensino da Universidade Estadual do Ceará (2003). Mestrado em Antropologia de Iberoamérica (2012), também Mestrado em Cooperaçao Internacional para o Desenvolvimento (2014) e Doutorando em Estudos Latinoamericanos da Universidad de Salamanca. Seu interesse investigador se centra na Antropologia da Educaçao e desenvolve o projeto titulado: A Intraculturalidade nas comunidades indígenas da regiao metropolitana de Fortaleza Brasil. Atualmente é Coordenador Acadêmico do Mestrado em Antropologia de Iberoamérica da Universidade de Salamanca, membro do conselho do Instituto de Iberoamérica da Universidad de Salamanca, Presidente da Asociación de la Comunidad Brasileña de Salamanca (ABS), membro do Grupo Iberoamericano de investigaçao e difusao da antropologia sociocultural na Universidade Federal da Grande Dourados Mato Grosso do Sul, miembro do Grupo de Criaçao e Difusao do Conhecimento em Antropologia do Centro de Estudios Brasileños de la Universidad de Salamanca, membro do Instituto Brasileiro de Direitos Humanos (IBDH) , membro do Instituto Interamericano de Derechos Humanos (IIDH) e Realizou Estância de Investigaçao no Instituto Dominicano de Desarrollo Integral (IDDI) em República Dominicana. Email: [email protected]/ [email protected] 65 Licenciado em Pedagogia pela Universidade Estadual Vale do Acaraú (2001), especializaçao em Historia y Metodologia do Ensino da Universidade Estadual do Ceará (2003). Mestrado em Antropologia de Iberoamérica (2012), também Mestrado em Cooperaçao Internacional para o Desenvolvimento (2014) e Doutorando em Estudos Latinoamericanos da Universidad de Salamanca. Seu interesse investigador se centra na Antropologia da Educaçao e desenvolve o projeto titulado: A Intraculturalidade nas comunidades indígenas da regiao metropolitana de Fortaleza Brasil. Atualmente é Coordenador Acadêmico do Mestrado em

INTRODUÇÃO

De acordo com a temática indígena de luta contra a discriminação, onde está inserida a luta pela reafirmação identitária como minoria étnica, fortalecida por base na diferença, observamos o desenvolvimento de um pensamento equitativo, no qual as comunidades indígenas da América Latina, ao longo dos anos, em suas lutas pela identidade, terras e reconhecimento social, buscam na Educação o meio alternativo para a manutenção e a propagação de suas culturas66 quase sufocadas pela cultura ao seu redor (não

Antropologia de Iberoamérica da Universidade de Salamanca, membro do conselho do Instituto de Iberoamérica da Universidad de Salamanca, Presidente da Asociación de la Comunidad Brasileña de Salamanca (ABS), membro do Grupo Iberoamericano de investigaçao e difusao da antropologia sociocultural na Universidade Federal da Grande Dourados Mato Grosso do Sul, miembro do Grupo de Criaçao e Difusao do Conhecimento em Antropologia do Centro de Estudios Brasileños de la Universidad de Salamanca, membro do Instituto Brasileiro de Direitos Humanos (IBDH) , membro do Instituto Interamericano de Derechos Humanos (IIDH) e Realizou Estância de Investigaçao no Instituto Dominicano de Desarrollo Integral (IDDI) em República Dominicana. 66 A ideia de cultura aqui abordada segue o contexto antropológico, seria portanto o resultado mais profundo de toda realidade coletiva, sendo produzida pela interação de seus membros na busca dos objetivos grupais podemos dizer que os indivíduos se agrupam e se organizam socialmente a partir do momento que pertence a uma cultura. (Angel Aguirre Baztán em sua obra La Cultura de las Organizaciones. 2004). Na Constituição Brasileira de 1988, a cultura aparece no artigo 5º, IX, assegurando a liberdade de expressão, e os artigos 215 e 216, tratam dos direitos culturais e da proteção do patrimônio cultural em uma perspectiva de democracia cultural e de acordo com suas diversas

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indígena). Ao mesmo tempo, sentem a necessidade de extrair os aspectos positivos desta sociedade, uma vez que se trata de pequenas comunidades, com poucos habitantes, e parcas oportunidades de emprego, não sendo desenvolvido o suficiente para manter a todos apenas com seus recursos naturais. Considera-se, portanto, que o presente artigo vem a contribuir para a promoção da Educação Superior Diferenciada, compreendida como uma importante ferramenta que as comunidades indígenas possuem, em concreto mesmo que limitada para, a partir dos conhecimentos adquiridos com ela, vislumbrar e buscar os benefícios em prol da coletividade, tais como seus direitos políticos e socioculturais. Isto porque os cursos superiores diferenciados têm a finalidade de colaborar para o desenvolvimento interno e sustentável das comunidades indígenas, fazendo ver a importância da seguinte triangulação: Aculturação - Educação - Desenvolvimento67. Sendo assim, a ideia central é partir de uma comparação de cursos superiores interculturais que partem do propósito de formação de profissionais que possam desenvolver

concepções, vem do verbo latino “colere”, que significa cultivar, criar, tomar conta, cuidar, na antiguidade designava o cuidado dos homens com a natureza (agricultura), com os deuses (culto) e com as crianças- especialmente essas últimas, que eram educadas tendo seus corpos e espíritos moldados e adequados ao convívio social. (Julia Alexim da Silva, 2013). 67 Diferentemente da triangulação Desenvolvimento - Aculturação - Educação, sustentada por Margaret Mead e Franz Boas, quando expressam que o desenvolvimento gera a aculturação que por consequência gera outros métodos de educação.

internamente a própria comunidade, utilizando mesmo que de maneira empírica, o conceito espanhol de “intraculturalidad”. Para tanto, o Projeto LIIPITAKAJÁ do Brasil, as Universidades Indígenas de Bolívia (UNIBOL), e Universidad Intercultural Indígena de Michoacán (UIIM) do México, fazem parte do objeto de estudo desse trabalho.

1 O CONTATO E A INTERAÇÃO

Este texto se inicia com a análise da execução do trabalho de campo desenvolvido na tese doutoral em andamento no Programa de Estudos Latinoamericanos da Universidad de Salamanca, a qual enfatiza o papel da cultura indígena, com a educação diferenciada como instrumento, não de unificação, mas, de interação cultural resultante do contato e que cada individuo tenha passado pelo processo intracultural, com a auto aceitação e auto reconhecimento.

A observação do papel de cada aluno da amostragem nos projetos interculturais nas comunidades foi crucial, pois além da diversidade cultural observada, foi possível ver os papéis da inter e intraculturalidade na teoria e na prática para o desenvolvimento do pensamento em cada projeto em particular e em perspectiva comparada.

Evidentemente, que no desenvolvimento do trabalho, não foram dispensadas as leituras de estudos vinculados ao tema. Entre os estudos selecionados, citamos a obra Interculturalidad, Educación y Plurilinguismo en América Latina dirigida por Aparício Gervás que se trata de uma minuciosa abordagem de temáticas interculturais, sobre a interação da

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cultura indígena e a não indígena e a necessidade de criação e adaptação de um ambiente de convivência pacífica, respeitosa e harmônica; a obra de Conocimiento local, comunicación e interculturalidad dirigida por Ángel B. Espina, onde agrupa várias temáticas interculturais e realiza uma análise acerca do projeto de formação de uma comunidade perfeitamente ordenada, utilizando como ferramenta a educação intercultural, igualmente interessante foi a observação a Tese doutoral de Jenny Ampuero, que versa, sobretudo, sobre os trabalhos de Aparício Gervás e o modo como foram acolhidos, bem como a influência deixada, entre as nações indígenas que compõem a UNIBOL Guarani, nesse caso específico a UNIBOL Guarani y de Pueblos de Tierras Bajas – Apiaguaiki Tupa.

Com a metodologia utilizada, foi possível ampliar, de forma expressiva, o conhecimento sobre a construção do pensamento intercultural indígena, conhecimento que resultou na elaboração desse artigo para publicação. Ademais, não podemos deixar de mencionar que, com os estudos aprofundados da cultura indígena, houve uma melhora na compreensão dos conceitos fundamentais da antropologia cultural e da educação.

Assim, com as pesquisas realizadas até o presente momento, vemos que o estudo da Inter e Intraculturalidade, pressupõe a base do conhecimento que se inicia com o processo de contato entre culturas diferentes, considerando, do mesmo modo, a série de problemas prévios ao contato como: políticos, econômicos e sociais enfrentados pelos indígenas, nesse caso em especifico, por razão da integração

dos diferentes grupos étnicos e religiosos em um mesmo espaço geográfico. Afinal, foi a necessidade de encontrar soluções para esses fatores que impulsionou o desenvolvimento da educação diferenciada entre os indígenas. Portanto, uma vez que se compreende como se deu a inserção do pensamento intracultural entre os indígenas bolivianos e mexicanos, bem como a configuração política e social ao qual são submetidos, é possível melhor observar as influências recebidas nesse processo de contato no caso dos indígenas brasileiros, em especifico dos povos PITAKAJÁ.

Independente da maneira do contato, esse pode gerar a transformação na maneira de pensar e agir de um grupo social, seja por meio da perda ou da soma de culturas (aculturação / adculturação), seja por meio da educação (enculturação), ou por meio da imposição de costumes e tradições (inculturação). Deixando uma ideia de movimento, de constante mudança, resultado de um processo que incluiu vários elementos e conceitos agrupados de forma complementária em busca de um desenvolvimento.

El conocimiento práctico que se hace disponible a través de una tradición no es meramente reproductivo; es también constantemente reinterpretado y revisado a través del diálogo y la discusión. Precisamente porque lleva en sí mismo este proceso de reconstrucción crítica es por lo que una tradición se desarrolla, evoluciona y cambia, en lugar de permanecer inmóvil o estática. (García, 2009).

De acordo com o autor Aparício:

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Los cuatro conceptos citados (intraculturalidad, interculturalidad, multiculturalidad y transculturalidad), constituyen los pilares de investigación sociocultural del paradigma ecológico de intervención y nos facilitaran, sin duda, analizar y poder interpretar con mayor rigor y precisión, el estudio de las sociedades actuales. Estos conceptos nos van a permitir analizar e interpretar con mayor rigor y precisión, el estudio de las sociedades originarias y sus interconexiones más allá de las propias fronteras transnacionales. (Aparício e Delgado, 2014).

Observamos que, segundo o pensamento do referido autor, todos esses conceitos abordados, fazem parte de um mesmo processo cultural e que até o presente momento estavam sendo trabalhados individualmente e propõe a seguinte ligação entre os mesmos:

Fonte: elaboração própria

De acordo com seu pensamento os conceitos trabalhados se complementam entre si, fortalecendo a existência de cada um, passando de um ponto de autoaceitação e autoreconhecimento, para a interação com o outro seguido do respeito e da transformação gerada por esse contato. Assim passamos a analisar tais conceitos no âmbito

da educação superior indígena e nos projetos que desenvolvem a mesma.

2. APRESENTAÇÃO DOS PROJETOS INTERCULTURAIS INDÍGENAS

A Universidade Intercultural Indígena de Michoacán (UIIM), do México, foi constituída por decreto oficial, publicado no Periódico Oficial do Governo Constitucional do Estado de Michoacán, no dia 11 de Abril de 2006. Esta Universidade oferece educação superior para aproximadamente mil estudantes divididas em 3 campus, para atender a toda região de Michoacán, das etnias Purhépecha, Mazahua, Otomí e Nahua, que cursam as licenciaturas de Desenvolvimento Sustentável, Gestão Comunitária e Governos Locais, Língua e Comunicação Intercultural, Arte e Patrimônio Cultural e Saúde Comunitária.68 Cada disciplina com seu caráter específico, e são voltadas para as questões indígenas em seus diversos pontos.

As Universidades Indígenas de Bolívia (UNIBOL) foram criadas em 2008 durante o governo do presidente Evo Morales, mediante a aprovação do Decreto-Lei número 29664. Tal decreto supremo estabeleceu que os fundamentos filosófico-políticos e suas bases educativas se sustentarão em 3 pilares: a descolonização, a intraculturalidad e a

68 Casillas, Juan C. Silas. Disponível na internet: www.interamerica.de/volume-4-1/casillas/ . Acessado em Novembro/2014. Ressalta-se que a licenciatura de saúde comunitária esta em projeto e ainda não esta em funcionamento.

INTRACULTURALIDAD INTERCULTURALIDAD

E MULTICULTURALIDADE TRANSCULTURALIDAD

E

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115

interculturalidade isso com duas finalidades primordiais de acordo com o informe do Ministério de Educação e Cultura de Bolívia.

No que diz respeito à UNIBOL Guaraní y de Pueblos Tierras Bajas, “Apiaguaiki Tupa” 69 , cabe destacar que, atualmente, esta possui um total de quatro cursos voltados para o aprimoramento das atividades realizadas nas comunidades, pondo, assim, em relevo as necessidades demandadas pelas populações indígenas. As titulações oferecidas são as seguintes: Engenharia Florestal, Medicina Veterinária e Zootecnia, Engenharia em Ecopiscicultural, Engenharia do Petróleo e Gás Natural.7071 (Aparício, 2012).

Tudo isso levando em consideração o modelo econômico, no modo de ser Guaraní, a propriedade comunal, bem como as formas de trabalho e cooperação pois;

La economía Guaraní es un sistema de comunicación de bienes en el cual el régimen de producción está íntimamente ligado con relaciones sociales de consumo y reciprocidad. (Meliá, 1988)

O Projeto LII-PITAKAJÁ, foi criado no ano de 2010, e levado a cabo pela Universidade Federal do Ceará para 69 Apiaguaiki Tupa é o nome de um líder indígena Guaraní da batalha de kuruyqui em 1892. 70 Mais informação sobre o assunto, cf. GERVÁS, Jesus M. Aparicio. Didáctica de las Ciencias Sociales: cuatro casos prácticos. Seminario Iberoamericano de Descubrimientos e Cartografía. Valladolid, 2012.p. 71 .

desenvolver o curso de Licenciatura Intercultural Indígena para os povos; Pitaguary, Tapeba, Kanindé, JenipapoKanindé e Anacê, que apesar de não funcionar com o sistema de cotas, foi elaborado exclusivamente para indígenas das cinco comunidades citadas anteriormente, gerando um convívio entre as mesmas. Tal projeto foi baseado no conceito de interculturalidade e vemos que de forma parcial, pois o convívio intercultural nesse caso específico se limitaria às culturas indígenas e a troca de experiências entre as mesmas, tratando-se de um curso fechado a não indígenas que queiram cursar a única oferta de Graduação exclusiva de formação de professores indígenas.

A partir deste projeto, os alunos não têm acesso integral a um espaço físico de Universidade e as aulas são realizadas nas escolas diferenciadas, com um sistema semi-internato, ou seja, no período de férias dos alunos das mesmas, passam todo esse período instalado e alojado nessas Escolas Diferenciadas das comunidades, de maneira rotativa, quer dizer que, em cada período de férias são recebidos e alojados por uma comunidade distinta, e que durante essa estância se organizam, criando grupos de trabalhos, de limpeza, alimentação, vigilância etc. Esteve-se presente durante dois períodos de alojamentos, um na Escola Diferenciada Jenipapo-Kanindé e outro na Escola Diferenciada Pitaguary.

3 ESTUDO COMPARADO: INTERCULTURALIDADE ENTRE A TEORIA E A PRÁTICA

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Depois da identidade indígena reconhecida, delimitação da terra e posse legal da terra, passa-se a ver uma atuação mais confiante dos indígenas em busca de outros direitos fundamentais – como a saúde e a educação – bem como por uma voz ativa política, destruindo a imagem estereotipada do índio como “selvagem” e ignorante político, como muitas vezes era imposto pelos próprios livros didáticos. Através do multiculturalismo, buscam promover a interculturalidade, com base na intraculturalidade, e, assim, fazer surgir uma transculturalidade, pois a grande ferramenta que possuem as comunidades para esse processo cultural consiste na Educação Diferenciada. Entretanto, observa-se ser relevante, para o êxito desse processo, que tal educação seja continuada, isto é, não podendo-se parar no ensino fundamental, ou na educação para jovens e adultos, como ocorre atualmente na comunidade Jenipapo-Kanindé. Seria preciso ir além dessas etapas de ensino (até mesmo do ensino médio), em busca de cursos superiores, pois esses é que iriam fortalecer a comunidade de forma direta, por meio da formação de profissionais qualificados, que iriam promover o desenvolvimento interno. Para tanto, partimos da comparação no trabalho etnográfico realizado não somente no Brasil, mas também na Bolívia e no México, portanto os resultados agora apresentados têm por base as respostas dos questionários realizados durante o trabalho de campo nos três projetos interculturais indígenas, além da observação participante,

vivenciando as problemáticas diárias de todo o corpo docente e discente que formam tais projetos.

Foram consideradas como amostras: 62 alunos de um total de 80 do Projeto LII-PITAKAJÁ, o equivalente à 78% do alunado; 68 alunos de um total de 326 da UIIM, o equivalente à 21% do total do alunado e 183 alunos de um total de 732 da UNIBOL Guarani, o que corresponde a 25% do total de alunos como apresentado no gráfico abaixo. Também partimos de algumas categorias de análises que podemos destacar: a intraculturalidad; a interculturalidade; interesses individuais frente ao coletivo; nível de satisfação com a licenciatura e com a universidade; possibilidade de mudança de licenciatura; possibilidade de seguir estudos com uma pós-graduação e problemas com os projetos interculturais.

Fonte: elaboração própria

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117

Fonte: elaboração própria

Nesse caso da categoria de análise que diz respeito à intraculturalidade, foi observado que no caso do Projeto LII-PITAKAJÁ, todos os alunos da amostra apresentaram que possuem o auto reconhecimento e a auto aceitação necessária para essa fase do processo, a qual os prepara para iniciar o contato e a interação. Nos outros casos, ou seja, caso boliviano e caso mexicano, apresentam oscilações no resultado, mas que mostra que também possuem também um alto nível de auto aceitação e auto reconhecimento, no caso boliviano o que nos chama a atenção é o fato de que existem alunos que não sabem sua identidade, não conseguem se identificar como indígena ou como não indígena, estão figurados no gráfico como indecisos.

Como resultado dos questionários realizados com os alunos das comunidades indígenas objeto deste estudo, foi observado que, apesar de existir a Universidade Indígena em meio às comunidades indígenas em Michoacán, região de uma predominância Purhepecha com um grande espírito de comunidade, o seu alunado também busca interesses individuais, ou seja, está diminuindo a ideia de comunidade e aumentando um espírito de competitividade entre seus membros, pois, em uma amostra de 68 alunos, 26%, estão estudando por interesses individuais, desvinculando assim da aplicação do conceito de intraculturalidade no sentido comunitário. Do mesmo modo, observou-se que os alunos do projeto LII-PITAKAJÁ, nas respostas de seus questionários, deixaram evidente o espírito comunitário frente ao individual, ou seja, 77% da amostra deixou em evidência o espírito comunitário, mas também 23% evidenciou o pensamento individualizado, isso, levando em consideração respostas explicativas que em seus conteúdos possuíam o “eu” e o “Nós”, quando questionados sobre a importância da licenciatura para o aluno e a importância da licenciatura para a comunidade.

No caso boliviano o resultado observado para tal questionamento se aproximou mais ao caso mexicano, pois, 28% de uma amostra demonstrou interesses individuais em seus estudos e 72% demonstrou interesses voltados para a coletividade.

Em geral os três casos foram muito semelhantes, como podemos observar nos gráficos abaixo:

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Fonte: elaboração própria

Fonte: elaboração própria

Quando questionados sobre um nível de satisfação com o curso, no caso do Projeto LII-PITAKAJÁ, mostrou uma média de 8,567 de satisfação, más que quando comparado com o questionamento sobre a oportunidade de cursar outra licenciatura, somente 13% permaneceria no curso de formação de professores, o restante iria buscar outra carreira para estudar, mostrando que a satisfação está relacionada com a falta de opção, ou seja, por somente existir um curso.

No caso da UIIM em comparativa com os mesmos questionamentos, surgiu uma média de satisfação de 8,0 com as licenciaturas cursadas e uma média de satisfação de 7,1 com a Universidade. Quando questionados sobre a possibilidade de estudar outra carreira, um total de 13% permanecia satisfeito, e 21% comentaram sobre a possibilidade de melhorar as licenciaturas já existentes, o restante, ou seja, 66% passaria a estudar outras licenciaturas se tivessem oportunidades.

Na Bolívia como resultado para os mesmos questionamentos, surgiu uma média de satisfação de 7,9 com as licenciaturas ofertadas e uma média de satisfação de 7,0 com a universidade, mas, 23% permaneceriam nas mesmas licenciaturas mesmo se tivessem oportunidade de substituí-la. Esses resultados podemos ver na comparação dos dois gráficos agora apresentados:

%28

72%

INTERESSESUNIBOL

INDIVIDUAISCOLETIVOS

26%

74%

INTERESSESUIIM

INDIVIDUAISCOLETIVOS

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119

Fonte: elaboração própria

Fonte: elaboração própria

Quando pedido a sugestão de novas licenciaturas, no caso mexicano que já possuem quatro, surgiram um total de 14 novas licenciaturas, mas com a evidência de que a maior

parte preferiria desenvolver as licenciaturas já existentes. No caso brasileiro que possui uma única licenciatura, diante do mesmo questionamento surgiu um total alarmante de 24 novas licenciaturas, e no caso boliviano surgiu um total de 18, mas todas relacionadas com as principais carências das comunidades indígenas, ou seja, áreas de medicina, direito, agronomia, antropologia, psicologia, línguas, etc. Aqui tornando evidentes as carências das comunidades, pois necessitam de profissionais dessas áreas citadas e ao mesmo tempo que se voltassem para a questão individual por tratar-se de profissões que mostram um determinado status social. Podemos observar esses resultados nos gráficos apresentados abaixo:

Fonte: elaboração própria

1

24

EDICINAM4

18

DIREITO4

14ANTROPOLOGIA

NºLINCECIATURAS

ATUAL

NºDESUGESTOES

MAISSUGERIDAS

Sugestaodenovaslicenciaturas

LII-PITAKAJÁ UNIBOL UIIM

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120

Quando questionados sobre a possibilidade de continuar seus estudos com uma pós-graduação ou mestrado, em ambos os casos a grande maioria disse que sim, que pretende seguir com os estudos, citando várias carreiras, ou seja, no caso mexicano 82%, pretende seguir com uma pós- graduação, no caso boliviano 84% e no caso brasileiro 77%, devido a necessidade de estar inserido no mercado de trabalho, em vista que no caso brasileiro, os próprios alunos são professores das escolas diferenciadas de suas comunidades, não tendo assim, tempo suficiente para se dedicar aos estudos e trabalho ao mesmo tempo.

Fonte: elaboração própria

Quando questionados sobre os problemas surgidos nas respectivas licenciaturas e com os programas interculturais, observou-se a preocupação do alunado em diversos pontos como: a falta de laboratórios; a falta de especialização

docente; o desenvolvimento de mais práticas nas licenciaturas, poucas licenciaturas e problemas de infraestrutura. Também se observou problemas que dificultam a aplicação da interculturalidade, como por exemplo: a questão linguística, pela falta de professores falantes de idiomas originários; falta de convênios com outras universidades; o uso restrito de internet e televisão e bibliotecas escassas. Todos esses pontos observados nos três programas interculturais, alguns com mais evidências que outros, como o caso boliviano por tratar-se de um regime de internato.

Fonte: elaboração própria

77%

%23

%84

16%

82%

18%

SIM NAO

CURSARPOS -GRADUAÇAO

LII-PITAKAJÁUNIBOLUIIM

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121

Fonte: elaboração própria

CONCLUSÃO

Com a observação dos gráficos elaborados a partir do trabalho de campo realizado nos três projetos interculturais indígenas, concluímos que quando se trata de teorias, ambos os projetos desenvolvem a interculturalidade com bases em outros conceitos antropológicos e pedagógicos, mas ao mesmo tempo foge totalmente do proposto na hora de por em prática, ou seja, a interculturalidade não permite exclusão e sim inclusão, não permite descriminação, não luta pela integração e sim pela interação e enriquecimento cultural mútuo.

Por se tratar de programas interculturais indígenas alguns como no caso brasileiro do Projeto LII - PITAKAJÁ e

no caso Boliviano da UNIBOL - APIAGUAIKI - TUPA se fecham totalmente à cultura não indígena, ou seja, foram elaborados exclusivamente para indígenas, excluindo todos que tenham interesses e buscam interagir com essas comunidades.

A educação intercultural está além do proposto nos projetos observados, pois não nega o outro, reconhece-o, aceita-o e busca a interação com ele, ou seja, busca desenvolver um espaço de convivência pacífica entre as várias culturas pertencentes ao espaço geográfico que estão inseridas, nesse caso em específico, sejam elas indígenas ou não, mas com objetivos em comum que partem desde o enriquecimento cultural pessoal ao comunitário.

Portanto, a interação pelo contato com a diversidade, gera uma visão mais ampla do contexto local ao global, e o isolamento ou afastamento de grupos no pensamento de fortaleza, aumenta ainda mais a fragilidade pela falta do conhecimento do outro, surgido com o contato, tornando-os indivíduos vulneráveis ao outro, enfraquecendo ainda mais suas identidades por meio de choques culturais que podem ser amenizados com a interação.

REFERÊNCIAS

Aguirre, A. B. (2004). La Cultura de las Organizaciones. Barcelona: Ariel. Alexim, J. S. (2013). Diálogo Ambiental, constitucional e internacional. Vol. 1. Fortaleza: Premius.

62 62 0 0 []%

183 169

4 10 ,18%268 65 5 1 7,0%

INTERCULTURALIDADE

LII-PITAKAJÁ UNIBOL UIIM

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Aparicio, G. J. M. (2011a). Interculturalidad, Educación y Plurilinguismo en America Latina. Madrid: Pirámide. Aparicio, G. J. M. & Ángeles, M. D. B. (2011b). Multiculturalidad, Interculturalidad e Intraculturalidad. Revista E20 Año V-número 9. Aparicio, G. J. M. (2012). Didáctica de las Ciencias Sociales: cuatro casos prácticos. Seminario Iberoamericano de Descubrimientos e Cartografía. Valladolid. Aparicio, J. M., & Delgado, M. A. (2014). La Educación Intercultural en la formación universitaria europea y latinoamericana. Segovia: Itamut-FIFIED. Barrio, Á. B. E. (1997). Manual de Antropología Cultural, 2ª Ed. Salamanca: Amarú Ediciones. Barrio, Á. B. E. (1999). Antropología en Castilla y León e Iberoamérica: Antropología visual (Vol. 2). Dirección General de Universidades e Investigación, Junta de Castilla y León. Barrio, Á. B. E. (2006). Culturas locales ibero-americanas, comunicación e interculturalidad en Conocimiento local, comunicación e interculturalidad. Angel B. Espina (ed.). Recife: Massangana. Barrio, Á. B. E. (2011). Culturas y Mestizajes Ibero Tropicales. Fundação Joaquim Nabuco. Recife: Editorial Massangana. BOAS, F. (1964). Cuestiones Fundamentales de Antropología Cultural. Buenos Aires : Ediciones Solar. Bolívia. Decreto Supremo nº 29664 de 2 de agosto de 2008. Disponivel em:

http:// www.lexivox.org/norms/BO-DS-29664.xhtml, acesso em: 25/1/2015. Brasil. Constituição Federal. Senado Federal, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm, acesso em: 29/01/2015. Casillas, J. C. S. Disponível na internet:www.interamerica.de/volume-4http://www.interamerica.de/volume-4-1/casillas/1/casillas/ . Acessado em Novembro/2014. Garcia, M. A. (2009). Cfr. Gadamer, H.G. (1977). Apriendendo a ser Humanos: Una Antropologia de la Educación 3ª ediçao. Navarra-Es: Astrolábio. Mead, M. (1980). Cultura y compromiso (2ªed.). Barcelona: Editoral Gediza. Melià, B. (1988). Los Guarani-Chiriguano: Ñande reko nuestro modo de ser. Centro de Invest. y Promoción del Campesinado.

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EDUCAÇÃO PARA INTEIREZA E AMBIENTALIZAÇÃO CURRICULAR: PRIMEIROS PASSOS E REFLEXÕES

Marina Patricio de Arruda RESUMO: O propósito desse artigo é proporcionar um diálogo entre Educação para Inteireza e Ambientalização Curricular tendo em vista a necessidade de implementação efetiva da Educação Ambiental (EA) nas Instituições de Ensino Superior (IES). Como estratégia metodológica, optamos em vincular a pesquisa ao Programa Permanente Institucional de Educação Ambiental na Graduação- PPIEAG/UNIPLAC que busca integrar ensino, pesquisa e extensão por meio de atividades educativas voltadas à Educação Ambiental. Esse programa se justifica por fortalecer dois grupos de pesquisa: Grupo de Pesquisa e Estudos em Educação, Saúde e Qualidade de Vida (GEPESVida) e o Grupo Estadual de Estudos e Pesquisas em Educação, Saúde e Ambiente: Áreas de Abrangência do Aquífero Guarani (GEPESA). Compreendemos a importância de se trabalhar a EA na educação de nível superior, pois os estudantes além da formação acadêmica que recebem, pautada em conhecimentos específicos de sua área de formação, de caráter técnico e científico necessitam de uma formação humana, ou seja, um processo de formação de um sujeito ético, cidadão e político, pessoa-habitante de um universo coletivo.

Palavras-chave: Ambientalização Curricular; Educação para Inteireza; Educação Permanente e continuada. INTRODUÇÃO A educação brasileira se vê desafiada a responder a desafios contemporâneos complexos cujas implicações para a atuação do professor incidem sobre novas perspectivas teóricas e metodológicas. O propósito desse artigo é proporcionar um diálogo entre Educação para Inteireza e Ambientalização Curricular tendo em vista a necessidade de implementação efetiva da Educação Ambiental (EA) nas Instituições de Ensino Superior (IES).

O diálogo que aqui se estabelece relaciona-se a uma tímida experiência no sentido de criar possibilidades para uma mudança e reforma de pensamento (MORIN, 2010) de professores do Ensino Superior. Essa proposta demanda um esforço de complexidade pessoal e institucional por envolver a articulação de diferentes espaços como ensino, pesquisa, extensão e gestão, instâncias responsáveis pela formação dos futuros profissionais.

Reconhecendo o compromisso e responsabilidade das IES em relação à importância do processo de formação de educadores ambientais, propomos uma reflexão que relaciona Ambientalização Curricular e Educação de inteireza tendo em vista nossa preocupação em considerar as várias dimensões do ser humano cuja relação com o ambiente implica em consequências para a vida do planeta.

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O que se deseja não é somente a necessidade da EA, mas que os processos educativos contemplem os sujeitos na sua integralidade, transcendendo os conceitos técnicos da EA para uma perspectiva individual (eu), comportamental (ações do eu), cultural (valores internalizados e que se manifestam no individual/comportamental), social (como organizamos socialmente os valores (individual, comportamental, cultural) e espiritualmente (que se manifesta na inter-relação entre as funções e pensar, sentir, agir no mundo integralmente).

Todos esses processos são complementares, e dão sentido às ações e relações estabelecidas consigo mesmo, com os outros/e com o ambiente marcando conscientemente a história da própria espécie humana no planeta. Assim, buscamos em Morin (2003, p. 20) apoio quando afirma que “no mundo humano, o desenvolvimento da inteligência é inseparável do mundo da afetividade” e, em Maturana e Varela (2001), com sua teoria autopoiética, que fundamenta a construção interativa entre pensar e sentir.

Nesse sentido, convém destacar a intensificação de discussões acadêmicas sobre a necessidade de se prestigiar as abordagens que consideram o pensamento complexo, o caos organizador, as estruturas assimétricas, as diferentes realidades, as incertezas e provisoriedades da vida. Para tanto, não basta ter clareza da visão de mundo, de sociedade, de universidade marcada pela simplificação e fragmentação, é preciso assumir o compromisso de rever o próprio modo de pensar, de significar e de agir como sujeitos inteiros.

Como alerta Morin, estamos diante dos problemas complexos que as sociedades contemporâneas criaram e só os

estudos de caráter inter-poli-transdisciplinares ou integrais (individual, comportamental, cultural, social e espiritual) poderiam nos orientar nas análises de tais complexidades: "Afinal, de que serviriam todos os saberes parciais senão para formar uma configuração que responda a nossas expectativas, nossos desejos, nossas interrogações cognitivas?” (2003, p.16).

Muitas intervenções humanas ainda ignoram a profundidade das variações ecológicas que produzem. Nesse sentido, a questão da educação ambiental surge como uma ação estratégica educacional capaz de “reformar o pensamento” das pessoas para o cuidado consigo, com o outro e com a natureza. Para Morin, “Este novo casamento entre a natureza e a humanidade necessitará, sem dúvida, como acabamos de dizer, de uma superação da técnica atual que por sua vez necessita de uma superação do modo de pensar atual, inclusive científico.” (2001, p. 94). Assim, convém destacar que a crise ambiental compreendida como uma crise da racionalidade instrumental (LEFF, 2001) segue espalhando seus efeitos sobre o ambiente natural, em relação à preservação da vida e da biodiversidade, ameaçadas pelo modelo capitalista de produção, consumo e descarte. A universidade como instituição promotora e formadora de professores, apresenta-se como espaço importante na consolidação dessa nova proposição de cuidado ambiental integral.

Há mais de um ano entrou em vigor a Resolução de Nº 2/2012 do Conselho Nacional de Educação (CNEA Conselho Pleno) que estabelece Diretrizes Curriculares Nacionais para a educação Ambiental (EA). Essas Diretrizes determinam que

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aos sistemas de ensino a promoção das condições para que suas instituições educacionais se constituam em

(...) espaços educadores sustentáveis, com a intencionalidade de educar para a sustentabilidade socioambiental de suas comunidades, integrando currículos, gestão e edificações, em relação equilibrada com o meio ambiente e tornando-se referência para seu território (BRASIL, CNE, 2012, p. 7).

Mas como promover conhecimentos concernentes à EA

nos currículos da Educação Superior se os educadores ainda não se encontram preparados para esse compromisso? Como reformar o pensamento dos professores para a Ambientalização Curricular?

A educação para inteireza e ambientalização curricular são conhecimentos que desafiam as universidades. "Segundo a Política Nacional de Educação Ambiental, no ensino superior é facultada a criação de disciplinas nas áreas voltadas aos aspectos metodológicos da Educação Ambiental (EA), nos cursos de pós-graduação e de extensão." (ZUIN, & FREITAS, 2007). O novo olhar para a educação nos faz refletir a importância do educar-se por inteiro, e de lutar pela integração das disciplinas.

Para o conceito de ambientalização curricular buscamos em Oliveira & Freitas (2004, p.166) orientar-nos a partir de uma perspectiva ampla e transdisciplinar alimentada por “aspectos tanto conceituais, como procedimentais, atitudinais e políticos, envolvendo aspectos cognitivos, emocionais e valorativos relativos à temática ambiental” (grifo nosso).

Utilizado por Japiassu (2006), Morin (2003),Portal (2006) e Wilber (2007) o termo inteireza diz respeito à “Qualidade do que é inteiro” portanto, a educação não pode mais seguir fragmentada produzindo consciências reducionistas e desprezando as mais variadas dimensões humanas em nome de uma ciência que priorizou a parte em detrimento do todo.

No sentido da Educação para inteireza é que buscamos compreender a ambientalização curricular como caminho propício à institucionalização da educação ambiental (EA).

EDUCAÇÃO PARA INTEIREZA E AMBIENTALIZAÇÃO CURRICULAR

A Educação para a Inteireza sinaliza a importância de

se integrar alma, coração e razão (PORTAL, 2006) contribuindo com as propostas do pensamento complexo de Edgar Morin (2000) no qual o homem é ao mesmo tempo razão e emoção. Assim, se configura “uma proposta de autoconstrução do Ser Humano, voltada para a interioridade de seu próprio “EU”, redescobrindo-se em suas dimensões constitutivas básicas: social, emocional, espiritual e racional, que desenvolvidas de forma equilibrada são essenciais para a ressignificação de sua dignidade (PORTAL, 2006, p.77) e da dignidade planetária. Esses são elementos próprios da natureza humana: interioridade, subjetividade, consciência corporal e espiritual, autoconceito, sensibilidade, amorosidade que estão articulados num todo complexus de vivências e de experiências que se fazem na vida do educador

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do Ensino Superior. Esses são pressupostos teóricos essenciais à reflexão que ora se desenha.

Nesse contexto complexo, a IES, se faz compreendida como instância de ensino, pesquisa e extensão empreendido nas transformações e renovações mais radicais que jamais tenha enfrentado: A reforma do pensamento da sociedade contemporânea que se apresenta numa crise profunda de valores e transcenda as considerações econômicas e assuma as dimensões éticas, existenciais e espirituais mais arraigadas. Nesse contexto a Educação Superior, ressitua-se numa complexa reforma para que possa desenvolver “valores que dignifiquem a vida e se sustentem em uma ética de dimensões planetárias” (TESCAROLO et DARÓS, 2007, p.139), construa um pensamento mais abrangente, multidimensional, integrador, “capaz de compreender a complexidade do real e construir um conhecimento que leve em consideração essa mesma amplitude” (MORAES, 1998, p. 30).

A Educação Superior então, a busca vivenciar processos pedagógicos transformadores em que a “aprendizagem passa a ter foco na visão complexa do universo e na educação para vida” (BEHRENS, 2006, p.14).

Assim, a ambientalização curricular numa sociedade sustentável apresenta-se como um processo de aprendizagem permanente e contínuo, baseado no respeito a todas as formas de vida no cosmo. Tal ideia revela valores, emoções e atitudes que contribuem para a transformação humana nas dimensões individual, comportamental, cultural, social e espiritual. Ela estimula a formação de sociedades mais justas e

ecologicamente equilibradas, que conservam entre si, as relações de interdependência e diversidade num movimento holográfico de partes e todo. Essa perspectiva, enquanto fundamento epistêmico nos direciona a reforma de pensamento e a produção de conhecimento como um resultado do processo de humanização das pessoas por meio das relações subjetiva, objetiva, intersubjetiva e interobjetiva mediadas pela emoção e inovação de atitudes. Isso requer a responsabilidade individual e coletiva, em nível global e local, de gerar com urgência uma reforma de pensamento. Essa perspectiva nos traz a reflexão sobre a formação continuada de educadores do Ensino Superior:

As IES (Intituições de Ensino Superior) representam importantes espaços sociais para reflexão, formação e difusão de novas concepções de desenvolvimento e sustentabilidade, participando numa perspectiva mais ampla do estabelecimento de sociedades mais justas, solidárias e ambientalmente saudáveis. Além disso, ao ter como foco a educação profissional e a formação de educadores e professores (...). Nesse sentido, a EA nos currículos e práticas universitárias possui um sentido estratégico na ambientalização do ensino e da sociedade. (OLIVEIRA et al, 2008, p.95), O tema ambientalização curricular nos leva à

explicitação do que entendemos por currículo e entender a diferença entre reforma de pensamento e inovação nas atitudes.

Currículo é um termo polissêmico, de dimensão global e interdisciplinar, que agrupa uma variedade de práticas

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educacionais processuais que segundo Antunes (2008, p. 100) também envolve “todas as atividades compreendidas no planejamento pedagógico, incluindo a execução e a avaliação de um trabalho”. Mas, para Sacristán, o currículo é como uma “confluência de práticas” (SACRISTÁN, 2000, p. 102), desenvolvidas “através de múltiplos processos e na qual se entrecruzam diversos subsistemas ou práticas diferentes” e, sendo uma prática, todos os que participam dela são sujeitos, elementos ativos, e não objetos (SACRISTÁN, 2000, p. 165).

A Reforma de pensamento está relacionada está relacionada à autoformação de educadores que significa ensinar a assumir a condição humana, ensinar a viver) e ensinar como se tornar cidadão” (MORIN, 2000ª, p. 65). Dessa forma, o processo inclui a reforma do pensamento clássico ambiental por um “pensamento complexo capaz de ligar, contextualizar e globalizar.” (MORIN, 2000b, p. 13), vivenciando seu próprio potencial de criatividade, independência, autossuficiência, flexibilidade, responsabilidade, dialogicidade, amorosidade e, consequentemente, produtividade.

Nessa direção, mencionamos uma característica essencial aos formadores/educadores para inteireza, que é o desenvolvimento da dimensão Espiritual, sagrada para perceber a ambientalização como parte integrante da própria vida. Para justificar tal confirmação, buscamos em Portal (2004, p. 72) um diálogo quando afirma que: “A vida é uma inteira jornada iluminada pelo sol da consciência espiritual”. E educar nada mais é do que VIDA. Ainda, corroborando com esse viés de inteireza-espiritualidade-formação, Portal

(2006) traz a afirmação de que cabe investir, nos educadores, “os processos de autoconhecimento e autodesenvolvimento, que implica responsabilizarmo-nos pelo projeto do nosso crescimento, tornando-nos sujeitos/agentes transformadores, criadores e diretores do nosso próprio projeto de vida”. (p.116).

Como inovação nas atitudes, buscamos Carbonell (2002, p. 19), que afirma que há diferenças entre inovação e reforma, relacionadas à magnitude da mudança pretendida. Assim, inovação se localiza nas IES (a nossa microescala) e a reforma diz respeito ao conjunto da estrutura do sistema formativo, movidas por imperativos econômicos e sociais gerais (a nossa macroescala). A dificuldade em se fazer reformas já explicitada por E. Morin (2002) está no fato de que não se pode reformar a instituição sem a prévia reforma das mentes, assim como não se pode reformar as mentes sem uma prévia reforma das instituições.

Essa reforma micro e macro se entrelaçam, não se pode dizer o que vem em primeiro lugar, mas ambas nos permitem refletir sobre ambientalização curricular. Por onde começar essa reforma? O pensamento como uma rede de conexões transdisciplinares pode possibilitar a compreensão da inteireza do ser e colaborar na compreensão do sentido da vida no planeta. A REFORMA DE PENSAMENTO DOS PROFESSORES

De acordo com a "concepção bancária da educação" (FREIRE, 1983, p. 66), não há conhecimento, os educandos

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decoram e repetem mecanicamente algo pronto, de forma vertical e antidialógica, esse paradigma educa para a passividade e não investe na educação para autonomia e inteireza.

Como inverter essa lógica? Que estratégias metodológicas são capazes de renovar a formação dos novos professores para o ensino superior? Quem são os professores do ensino superior do futuro? Que metodologias adotarão?

Por sua vez, Morin (2000a) já sinalizou que

(...) chegamos a um impasse: não se pode reformar a instituição sem uma prévia reforma das mentes, mas não se podem reformar as mentes sem uma prévia reforma das instituições. Essa é uma impossibilidade lógica que produz um duplo bloqueio (p.99).

Caberá então aos professores assumirem essa mudança

rompendo com esse duplo bloqueio? Para dar conta de tal proposta a Universidade do Planalto Catarinense – UNIPLAC, propôs um Programa Permanente Institucional de Educação Ambiental na Graduação- PPIEAG. Trata-se de uma estratégia transversal que busca integrar ensino, pesquisa e extensão por meio de atividades educativas voltadas à Educação Ambiental. O programa em questão se justifica por fortalecer dois grupos de pesquisa: Grupo de Pesquisa e Estudos em Educação, Saúde e Qualidade de Vida (GEPESVida), comprometido com a melhoria da qualidade das produções e o avanço do conhecimento em áreas interdisciplinares de fundamental importância como Saúde e Educação. E, o

Grupo Estadual de Estudos e Pesquisas em Educação, Saúde e Ambiente: Áreas de Abrangência do Aquífero Guarani (GEPESA), objetiva analisar as relações do ser humano com o ambiente, tendo como espaço mediador a educação ambiental na perspectiva da melhoria da qualidade de vida em áreas de abrangência do Aquífero Guarani . Esse Programa apresenta aspectos inéditos por discutir temas inovadores e possibilitar a discussão sobre ambientalização curricular de forma articulada à Educação para a Inteireza. De acordo com a gestão da Política Nacional de Educação Ambiental é preciso promover a articulação das ações educativas voltadas às atividades de proteção, recuperação e melhoria socioambiental potencializando a função da educação para as mudanças culturais e sociais relacionadas à educação ambiental. Esse programa funciona como um projeto piloto que durante o ano de 2014 desenvolveu algumas ações. Alguns encontros foram promovidos com a participação dos coordenadores dos cursos de graduação da UNIPLAC com o propósito de discutir a proposta de ambientalização curricular. No primeiro encontro, apresentamos o que denominamos de “projeto guarda-chuva” com várias possibilidades de integração para os cursos oferecidos na instituição. No segundo, discutiu-se um modelo integrativo de projeto para facilitar a inclusão de projetos correlatos e complementares à proposição. Percebemos nesse momento, a emergência de possibilidades e, também, de resistências por parte dos professores, o que nos fez refletir sobre as reais condições da

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ambientalização curricular dos cursos de graduação da UNIPLAC. A proposta do PPIEAG era de que os professores pudessem partilhar suas reais experiências de extensão voltadas à ambientalização, mas apenas dois coordenadores deram retorno à proposta.

A Ambientalização curricular e a educação para inteireza mostram que as partes e os efeitos, têm consequências para o todo, alimentando as suas próprias causas. Morin (2010, p.112) nos apresenta o paradigma da complexidade e afirma que:

[...] eu não posso tirar, nem pretendo tirar do meu bolso um paradigma da complexidade. Um paradigma [...] é no fundo, o produto de todo um desenvolvimento cultural, histórico e civilizacional. O paradigma da complexidade surgirá do conjunto de novas concepções, de novas visões, de novas descobertas e de novas reflexões que vão conciliar-se e juntar-se.

Nesse movimento temos as ações de sujeito incluindo o que se construiu e transcendendo para outro nível de atuação no mundo, consciente de suas ações. Assim, reinventar a aventura da Educação Superior é o compromisso. Mas, para isso se considera os aspectos humanos de estar vivo, uma vez que esse momento pode representar uma experiência fundamental quando se privilegiar os aspectos humanos, sem negar os culturais, comportamentais, sociais, políticos, espirituais da formação. Ressaltamos que esses são sinergias que articulam o conhecimento não-formal, experiencial, com

o conhecimento formal, numa lógica interativa em que a ação, a investigação e a formação estão presentes. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Compreendemos a importância se trabalhar a EA na educação de nível superior, pois os professores além da formação acadêmica, pautada em conhecimentos específicos de sua área de formação, de caráter técnico e científico necessitam de uma formação humana, ou seja, um processo de formação de um sujeito ético, cidadão e político, pessoa-habitante de um universo coletivo. Muitas vezes, a formação tende a ser abrangente, e nem sempre permitem discussões que envolvam a dinâmica dos fenômenos ambientais e sua relação com a sociedade. O que se busca hoje é a incorporação de valores e atitudes aos conhecimentos sobre processos ambientais para que se constitua a definição de uma relação de equilíbrio dos indivíduos com o ambiente em que vivem (TOZZONI-REIS, 2008, p. 43).

Vivemos no século XXI a dicotomia entre projetos humanos e econômicos, em desarmonia o ser humano busca discutir questões básicas da vida: seu lugar no mundo, sua missão e seu futuro comum. Cresce nesse cenário a consciência da crise ecológica, social e espiritual, brotando a necessidade de uma civilização global (YUS, 2002). Como educar para o pensamento global? Como educar para a inteireza?

Por meio das ações dos Grupos de Estudos envolvidos nessa pesquisa procuramos unir os fios independentes numa

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trama complexa que envolve a Educação Superior e a busca por uma Educação para Inteireza. Por isso é que consideramos que na busca de um pensamento organizador do todo e suas partes desenvolvemos uma compreensão contextual e complexa que respeita a inseparabilidade e as interretroações entre qualquer contexto e desse, com os contextos nos quais, o educador do Ensino Superior está inserido, gerando a necessidade de uma ampliação no olhar na direção do pensamento complexo, que não somente contextualiza os fenômenos ocorrentes, mas considera as relações, as inter-relações, as implicações mútuas em suas multidimensões, respeitando as diversidades e as unidades de cada ser e da vida no planeta.

Nesse sentido, diante dos achados provisórios da pesquisa, podemos considerar que, se por um lado, a Educação Superior para a Inteireza ligada a Ambientalização curricular estão pautadas em soluções externas, se revela ainda pouco expressiva nas ações reais das IES quando relacionados a soluções internas aos sujeitos envolvidos. Ao mesmo tempo que nos discursos dos educadores do ensino superior são extremanente relevantes viabilizar a transformação integral do ser em que suas multidimensões. Evidenciamos também na pesquisa que vários sistemas de educação falharam completamente por excluir a integralidade ou dos aspectos humanos do processo de educação. E isso impediu que os educadores se apropriassem, na própria existencialidade, da possibilidade de se conhecerem, compreenderem, desmistificarem e desprogramarem a prática adestrada na formação.

Esse modelo de fabricação-adestramento engessou a vivência e os acontecimentos existenciais dos educadores, ou seja, atrofiou a própria vida e a vida do planeta, por isso a dificuldade de se instalar um programa de Ambientalização curricular no ensino superior.

Consideramos que por intermédio da problematização de sua própria prática no Programa Permanente Institucional de Educação Ambiental na Graduação- PPIEAG, poderíamos conectar os cursos da UNIPLAC de uma rede muito mais ampla, que englobaria ações de um educador que recuperou a sua inteireza e, consequentemente, a competência para a solidariedade ambiental, o que permite vislumbrar uma práxis educativa permeada pela ética e voltada à verdadeira emancipação humana. REFERÊNCIAS ANTUNES, C. Glossário para educadores. 4ª ed., Petrópolis, RJ: Vozes, 2008 CARBONELL, J. A aventura de inovar. A mudança na escola. P. Alegre: Artmed. (Coleção Inovação Pedagógica, v. 1). 2002 FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 5ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 1983. JAPIASSU, Hilton. O sonho transdisciplinar e as razões da Filosofia. Rio de Janeiro: Imago, 2006. LEFF, E. Saber Ambiental. Petrópolis-RJ: Vozes, 2001. MATURANA, Humberto e VARELA, Francisco. A árvore do conhecimento: as bases biológicas para a compreensão humana. São Paulo: Palas Athena, 2001.

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MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. 8 ed. São Paulo: Cortez; Brasília: UNESCO, 2003 a. ___________. Os sete saberes necessários para a educação do futuro. Trad. Catarina Eleonora F. da Silva e Jeanne Sawaya. São Paulo: Cortez; Brasília, DF: UNESCO, 2000ª. ____________. Complexidade e transdisciplinaridade: a reforma da universidade e do ensino fundamental. Natal: EDUFRN, 2000b. MORIN, E. O Método 5 – A humanidade da humanidade: a identidade humana. Porto Alegre: Sulina, 2002. ____________. Ciência com consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. ____________. Introdução ao pensamento complexo. 3. ed. Porto Alegre: Sulina, 2010. OLIVEIRA, T. A. Educação Ambiental e cidadania: a transversalidade da questão. In: Revista Iberoamericana de Educación, [S.I.], n. 42/4, 2008. PORTAL, L.L.F.(et.al.) Uma teoria do tudo: contribuições para uma condição singular de ser. Revista Humanidades, v.19, N 1, p.40-45, jan./jun., 2004. ____________. Espiritualidade: uma dimensão essencial na experiência significativa da vida. In: TEIXEIRA, Evilázio F. B.; MÜLLER, Marisa C.; SILVA, Juliana D. T. da. Espiritualidade e qualidade de vida. Porto Alegre: Edipurcs, 2004. ____________. O sentido da existência humana: um olhar para cima na aventura do encontro interior. In: ENRICONE, Délcia (Org.). A docência na educação superior, sete olhares. Porto Alegre: Evangraf, 2006. p. 45-58.

SACRISTÁN J.G. O currículo: os conteúdos do ensino ou uma análise prática. In: _______.; PÉREZ GÓMEZ, A. I. Compreender e transformar o ensino. 4. ed. Porto Alegre: ArtMed, 2000. Cap. 6, p. 119-148. MORAES, Maria Cândida. O paradigma educacional emergente. Campinas: Papirus, 1998. TESCAROLO, Ricardo; DARÓS, Lauro. Aprendizagem e conhecimento: conexões planetárias. Revista Diálogo Educacional. Curitiba: Champagnat, v.7, n.20, 2007. TOZZONI-REIS, M. F. de C. (2006) Temas ambientais como “temas geradores”: contribuições para uma metodologia educativa ambiental crítica, transformadora e emancipatória. Educar, Curitiba: Ed. UFPR, n. 27, p. 93-110. http://www. educacaoambiental.pro.br. ZUIN, V.G.; FREITAS, D. A utilização de temas controversos: estudo de caso na formação inicial de licenciandos numa abordagem CTSA. Ciência & Ensino (UNICAMP), v.1, n.2, 2007. Disponível em http://www.ige.unicamp.br/ojs/index.php/cienciaeensino/article /viewFile/136/129. Acesso em 30 de abril de 2009. YUS, R. Educação Integral: uma educação holística para o século XXI. Porto Alegre: Artmed, 2002. WILBER, K. Uma teoria de tudo: uma visão integral para os negócios, a política, a ciência e a espiritualidade. São Paulo: Cultrix, Amaná-Key, 2007.

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ANTROPOLOGIA E EDUCAÇÃO: A ESCOLA E NOVOS

CONCEITOS DE CONHECIMENTO E

APENDIZAGEM

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COMO O CICLO ESTÁ DITO?

Celso Kraemer72 Marta Nascimento de Oliveira73

Resumo: Este trabalho tem por objetivo problematizar, a Lei 9394/96 especificamente o Art. 23 que trata das formas de organizações em séries, períodos semestrais, ciclos, alternância regular de períodos de estudos, grupos não-seriados, com base na idade, na competência e em outros critérios, ou por forma diversa de organização, sempre que o interesse do processo de aprendizagem assim recomendar. A pesquisa empírica foi realizada em cinco cursos de Licenciaturas do município de Blumenau, SC. Discute-se o conhecimento e a compreensão dos alunos, depois de estudar as formas de apresentação da LDB e seus artigos na disciplina Estrutura e Funcionamento do Ensino e Políticas Públicas e Legislação do Ensino, Estrutura e Funcionamento do Ensino e nelas observar as diferentes possibilidades de organização escolar. Utilizou-se como método para geração dos dados um questionário com estudantes de três instituições com Ensino Superior do município. A partir da análise dos dados, 72 Doutor em Filosofia. Professor de Filosofia do Departamento de Ciências Sociais e filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Educação (mestrado) da Universidade Regional de Blumenau – FURB. E-mail: [email protected] 73 Mestranda em Educação pela Universidade Regional de Blumenau. Especialista em Educação infantil e séries iniciais pela UNIVILLE e Gestão Escolar pela FIJ. Graduada em Pedagogia pela Universidade Regional de Blumenau. E-mail: [email protected]

percebe-se que nas aulas das disciplinas citadas o artigo 23 é abordado, contudo, pouco se discute das experiências e outras organizações escolares além da seriação. Os dados apontam para algumas lembranças da organização por ciclos sem conceituar ou referenciar sua existência, respondendo o questionário com saberes de senso comum. A pesquisa sinaliza que para os estudantes a seriação apresenta-se como única maneira de fazer escola, suprimindo de seu imaginário educacional e pedagógico outras possibilidades de organização de tempo, planejamento, avaliação, experiências de ensino e aprendizagem. O aporte teórico da pesquisa é Paulo Freire, Jefferson Mainardes, Andréa Fetzner, Vitor Paro, entre outros. Palavras-chave: Licenciatura. Seriação. Organização por ciclos. Escola por ciclos. INTRODUÇÃO

A inquietação inicial deste trabalho busca saber se ao estudar a LDB 9394/96, e especificamente o artigo 23, o estudante de licenciatura em instituições situadas no município de Blumenau-SC problematiza a seriação como única possibilidade de organização escolar. Para geração de dados foi aplicado um questionário com nove perguntas, das quais duas foram aqui trabalhadas, a trinta e três estudantes dos cursos de licenciatura em Pedagogia, Música, Biologia, História e Matemática de três Instituições de Ensino Superior do município de Blumenau-SC. Os cursos mencionados se

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aproximam por todos serem de licenciatura e diferem-se pela forma de organização presencial, semipresencial e a distância.

O estudo da legislação está presente nas licenciaturas conforme análise dos currículos dos cursos mencionados, por isso percebeu-se condições e possibilidade em pesquisar nas licenciaturas saberes sobre a escola organizada por Ciclos e buscar o com o auxilio da LDB 9394/96 o entendimento da legalidade de diferentes formas de organização escolar.

O artigo 23 determina que:

A educação Básica poderá organizar-se em séries anuais, períodos semestrais, ciclos, alternância regular de períodos de estudos, grupos não-seriados, com base na idade, na competência e em outros critérios, ou por forma diversa de organização, sempre que o interesse do processo de aprendizagem assim o recomendar. (BRASIL, 1996)

É possível perceber que mesmo com determinação e

legalidade do trabalho pedagógico se organiza de diferentes formas e pode ser implantada desde que seja a partir de discussões coletivas e que fortaleça o interesse do processo de aprendizagem. No entanto a pesquisa sinaliza que o ensino nas licenciaturas tem provocado pouco efeito na construção de conceitos e inquietações nos estudantes em pensar diferentes possibilidades de organizações escolares.

Por isso, é fundamental que, na prática da formação docente, o aprendiz de educador assuma que o indispensável certo não é presente dos deuses nem se acha nos guias de professores que iluminados intelectuais escrevam desde o centro do poder, mas, pelo contrário, o pensar certo que supera o ingênuo tem que ser produzido pelo próprio aprendiz em comunhão com o professor formador. (FREIRE, 1996 p.43)

Investigar nas licenciaturas conceitos de escola organizada por ciclos é uma forma de saber como estão as discussões no aspecto “formativo” e na possibilidade de um futuro professor chegar a uma escola organizada por ciclos já com saberes para prática e construção de outra escola, com organização de tempo, planejamento, avaliação e postura diferente da escola seriada que em nossa realidade blumenauense encontra-se como único “modelo escolar”, este sem questionamento e sem resistência.

O escopo deste trabalho não é de localizar num único professor ou disciplina estudada a responsabilidade de formar um futuro professor que tenha conhecimento suficiente para trabalhar em outra lógica de tempo, espaço e projeto pedagógico. Sabe-se que a temática pode ser abordada em várias disciplinas que não sejam as citadas, contudo o estudo da lei está presente nos currículos dos cursos e só como forma de direção escolheu-se as que estudam especificamente as leis.

Para Fernandes (2009, p. 23) “a cultura da escola seriada, cuja concepção de escolarização, de tempo e espaço escolares, de currículo e avaliação está incorporada não só nos docentes e na própria instituição mas também em todos que passaram por processos de escolarização.”, contudo o conhecimento da existência de outros tipos de organização escolar pode dar ao licenciando ferramentas para trabalhar com menos preconceito a outras formas de organização pedagógicas, todavia a formação superior atual mostrada nas respostas, é que a seriação parece ser a forma natural, neutra

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e sem questionamentos trabalhada e por isso este trabalho coloca-se como instrumento provocador,

[...] É preciso insistir: este saber necessário ao professor_ que ensinar não é transferir conhecimento_ não apenas precisa ser apreendido por ele e pelos educandos nas suas razões de ser_ ontológica, política, ética, epistemológica, pedagógica, mas também precisa ser constantemente testemunhado, vivido. (FREIRE, 1996 p.52)

Tomaz Tadeu da Silva ao fazer a apresentação do livro Rituais na Escola (1991), registra a importância de olharmos a escola e seus rituais com olhar crítico na forma e seu funcionamento numa sociedade capitalista. Alerta para a importância de termos análises críticas para o que geralmente é ignorado: o transcendente, o sagrado, o religioso, e também a alegria, a dor... e com esta inspiração de estranhamento ao que está colocado sutilmente, harmonicamente e sem questionamento, que este trabalho propõe questionar o modelo escolar seriado e naturalizado.

E para ampliação desta discussão buscou-se o exemplo do município de Blumenau com a “Escola sem Fronteiras” (1998-2004) Projeto de Educação que possibilitava à escola optar através de votação da comunidade escolar a forma de organização por Ciclos. E este exemplo, mesmo tendo ocorrido no mesmo município da pesquisa foi pouco abordado nos questionários.

Problematizar as respostas sobre o diferencial da escola organizada por Ciclos pode ser uma forma de trazer para discussão o que se estuda nas licenciaturas enquanto

LDB e o que se discute sobre escola e suas implicações organizacionais e pedagógicas.

O trabalho se desenvolverá a partir do conceito de escola organizada por Ciclos e suas implicações, seguido da escola por Ciclos em Blumenau, depois o artigo 23 da LDB de 1996, localizando seu estudo nos cursos das licenciaturas através das Ementas das disciplinas de Estrutura e Funcionamento do Ensino e Políticas Públicas, História e Legislação do Ensino nas licenciaturas, seguido de análises dos conteúdos nos dados gerados dos questionários aplicados e nestes, problematizando a legalidade e possibilidades de organização escolar.

As considerações destacam que tanto no estudo das Ementas, quanto nos dados gerados observou-se que os acadêmicos poderiam ampliar os estudos para diferentes formas de organização escolar, poderiam trabalhar de forma mais ampla questões pedagógicas e organizacionais, a qual a própria lei reconhece a possibilidade de outras formas de fazer escola. ESCOLA POR CICLOS: PROBLEMATIZAÇÕES

A escola por Ciclos apresenta-se como possibilidade de organização escolar na qual professores, pesquisadores e gestores se engajam para tornar a escola mais inclusiva e democrática. Um lugar que aposta na continuidade dos estudos com modelo de políticas mais flexíveis e que permite a construção de projetos educacionais com menor exclusão social e escolar e maior emancipação humana.

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O termo “ciclos” vem sendo utilizado no Brasil e em outros países para designar uma forma de organização da escolaridade que pretende superar o modelo da escola graduada, organizada em séries anuais e que classifica os estudantes durante todo processo de escolarização. (Mainardes, 2009, p.11)

Mesmo que em algumas experiências de Escolas organizadas por Ciclos 74 possam ocorrer posturas conservadoras a proposta teórica é ser emancipatória conforme suas concepções de mundo e sociedade. Nos Ciclos pode haver diferenças quanto a modalidade, propósitos, encaminhamentos, políticas e implementação com a mesma nomenclatura.

O ideal é que, na experiência educativa, educandos, educadoras e educadores, juntos, “convivam” de tal maneira com este como com outros saberes de que falarei que eles vão virando sabedoria. Algo que não nos é estranho a educadores e educadoras. [...] exercitaremos tanto mais e melhor a nossa capacidade de aprender e de ensinar quanto mais sujeitos e não puros objetos do processo nos façamos. (Freire, 1996 p.65)

74Atualmente são encontradas diferentes nomenclaturas para identificar organizações escolares com ciclos no Brasil: Ciclos de Aprendizagem (PG), Ciclos de Formação Humana (POA), Ciclo Inicial do Ensino Fundamental (Rio Branco), Ciclo Inicial de Alfabetização e Ciclo Complementar de Alfabetização (Estado MG e algumas redes municipais), Ciclos de Ensino Fundamental (Niterói-RJ), Ciclo Básico (rede estadual do Amazonas), Ciclo Básico de Alfabetização (rede estadual do PR- anos inicias) e Organização em ciclos (Ribeirão Preto-SP), entre diferenças e semelhanças as propostas de ciclos e no percurso destas propostas também pode haver modificações as quais ajustam-se as suas realidades escolares e locais, a partir de avaliações, dificuldades e mudanças de governo.

Na escola por Ciclos nem tudo acontece de modo tranquilo, pois ocorrem debates e conflitos relacionados ao tema série/reprovação/gestão e o trabalho pedagógico.

Como exemplo dos conflitos desta Escola pode-se observar a rede municipal de Blumenau que se propôs trazer para o chão da sala um aprender em ritmos e tempos ao alcance de todos, contudo este projeto colocado em prática em várias escolas é questionado até hoje.

Para Mainardes (2009, p.56)

A política de ciclos é polêmica e, não raro, torna-se o foco de discussões e disputas. Há diferentes grupos de debate: os intelectuais e pesquisadores, os gestores do sistema educacional, os políticos, os profissionais da educação, os sindicatos e associações de professores, os pais, a mídia, entre outros. Entre esses grupos, alguns defendem a escola em ciclos como uma proposta viável; outros criticam a proposta dos ciclos ou a forma como elas têm sido implementadas.

Importante problematizar que na atualidade a infância e juventude não são mais a mesma de outros tempos. Vivemos com tecnologias conectadas. E a formação de nossos professores? Permanece de forma linear, categorizada, seriada como em outros tempos? Se até mesmo a lei reconhece que há outras possibilidades de organização escolar como a “Educação Superior” continua reproduzindo modelos seriados? Arroyo (2001 p. 17) ao descrever um encontro numa escola onde havia exposição de fotos antigas, observava algumas professoras conversando e observa suas surpresas ao

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perceber o quanto se pareciam com professores de outras épocas. “Para as professoras aquelas fotos eram mais do que a memória da escola, eram sua memória. Descobriram-se tão iguais no passado!”

Diante do fato registrado por Arroyo vale refletir a causa de tal acontecimento. Porque professores novos se parecem com os de outros tempos? Um dos fatores que se discute neste trabalho é o da legalidade de diferentes possibilidades de organização escolar, a qual atualmente permanece com aparência de outros anos. A pesquisa sinaliza a reprodução da organização seriada, a qual tem sido o “modelo” natural conforme as respostas obtidas nos questionários, o que pode causar a sensação de viver numa escola estática no tempo. A pergunta que surge é: Por qual motivo e dificuldade não se traz o aprofundamento de estudos de outras possibilidades de organização escolar para a roda universitária?

ESCOLA POR CICLOS EM BLUMENAU

O Ano de 1996 foi marcado por acontecimentos

importantes na educação Blumenauense e nacional com a nova LDB em vigor e no município de Blumenau além disso também ocorre a mudança no governo, por se tratar de um ano eleitoral; vence um prefeito com propósito anunciado (conforme carta do prefeito eleito75) de governo popular democrático e com Projeto de Educação para todos. No

75 Carta enviada aos servidores municipais. Não publicada.

mesmo ano (96) tem início diálogos acerca de uma nova proposta de educação para rede municipal de Blumenau.

A experiência do município de Blumenau pode dar suporte e “forma” a possibilidades e alternativas trazidas pela lei, além de conhecer esta, que é outra maneira de organização escolar e nesta linha de reflexão acredita-se que o passado modifica e empurra novas experiências para o presente.

A proposta inicial deste novo projeto de Educação Municipal era que as escolas pudessem optar por outra estrutura escolar e passasse ser organizada por Ciclos de Formação Humana. Existiam três ciclos: o primeiro Ciclo da Infância , segundo da Pré-adolescência e o terceiro da Adolescência. Por alguns anos algumas escolas trabalharam organizadas dessa maneira. Algumas nunca aceitaram esta organização e preferiram continuar seriadas. Esta experiência de Blumenau foi relevante no aspecto histórico e legal, já que a nova lei autorizava e autoriza diferentes possibilidades de organização escolar. Passados alguns anos e novamente com a mudança de governo em 2004 todas as escolas que estavam organizadas por Ciclos voltaram para seriação.

Em linhas gerais observa-se que o percurso histórico transcorre entre tentativas, avanços e regressos da educação, entre meio a séries e Ciclos, a oportunidade de discutir e procurar caminhos, os quais certamente estão abertos para serem trilhados em outros lugares do Brasil e do mundo. APRESENTAÇÃO DA LDB 9394/96 AOS CURSOS DE LICENCIATURAS

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A Escola por Ciclos na formação dos novos

professores pode ser tratada em outras disciplinas pedagógicas, contudo escolheu-se fazer o recorte na disciplina de Estrutura e Funcionamento do Ensino e Políticas Públicas, História e Legislação por ser um lugar no currículo atualmente pré-determinado aos cursos de licenciaturas, e nestas, observou-se nas ementas76 analisadas a previsão e o estudo da LDB9394/96 atual, bem como os artigos que a constituem.

Buscou-se nas cursos pesquisados como a Instituição de ensino superior apresenta a LDB, seus artigos e suas possibilidades de trabalho aos estudantes de licenciaturas, e foi possível observar que as três instituições de Ensino pesquisadas se organizam de forma diferenciada, bem como suas disciplinas. Elas variam na forma de apresentação de suas ementas entre Plano de Ensino, caderno e apostila.

Foi possível observar que na primeira Instituição analisada aborda do artigo 23 em termos generalistas em que não há descrição específica em formas de organizações escolares, somente dá ideia que “a flexibilização para a organização da Educação Básica, conforme estabelecido no Art. 23, atende às peculiaridades locais no intuito de garantir a aprendizagem sem prejuízo em relação às diferenças regionais”(apostila). Neste caso, as formas possíveis de organizações escolares está implícita no texto, o que pode apontar para a não problematização da organização escolar 76 Documentos sem identificações em respeito às instituições e seus ministrantes.

seriada colocada como modelo escolar que funciona e movimenta a máquina Estatal e produção de cidadãos.

No segundo documento analisado a Instituição trata a “organização do trabalho nas Instituições de Educação Básica[...]” em linhas abrangentes que se afunilam em capítulos e seções, os quais remetem a organização do tempo e do espaço no Ensino Fundamental nas referências bibliográficas e bibliografia complementar, na qual consta a sugestão de um título que aborda os “Ciclos de Desenvolvimento Humano e Formação de Educadores”. Esta sinaliza a possível abordagem da organização em Ciclos, contudo se refere ao Desenvolvimento Humano, omitindo outras formas de organização por ciclos existente.

Na terceira análise a disciplina tem como objetivo “Refletir os planos atuais de educação partindo dos determinantes contextuais e históricos em relação às diferentes políticas educacionais adotadas nas diferentes esferas, níveis e modalidades de ensino. Analisar contextualmente propósitos adoção de políticas e promulgação das diferentes legislações educacionais, avaliando seu impacto nacional, bem como as consequências práticas atuais e possíveis no futuro. Examinar o papel da educação/educador sob o ponto de vista estrutural político da educação.” Nesta a proposta da disciplina prevê conteúdos programáticos de Educação ao longo do processo histórico nacional, a estrutura do ensino e seus desdobramentos, a legislação de ensino: implicações políticas, histórico-estruturais, a relação público-privado e perspectivas atuais e a inserção no Cotidiano Escolar da Educação Básica.

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Nas três Disciplinas das três Instituições pesquisadas, a disciplina estudada tem um semestre para ser trabalhada, e observou-se na última ementa uma quantidade considerável de conteúdos, o que parece difícil estudar qualquer item apresentado com aprofundamento, tanto no estudo da lei e suas possibilidades de organização escolar como em outras discussões.

Importante registrar que as análises foram feitas com enfoque em um único artigo da lei, no caso o artigo 23 da LDB 9394/96, no entanto as fragilidades aparecem quando observa-se que a disciplina trata os estudos de forma generalista; o que dificulta ao estudante o conhecimento de outras possibilidades que não seja a que ele mesmo vivenciou como aluno de escola seriada.

ANÁLISE DOS DADOS GERADOS Para refletir a partir das respostas dos questionários

respondidos por estudantes dos cursos de licenciaturas de Pedagogia, Música, Biologia, História e Matemática de três Instituições de Ensino Superior. Buscou-se os conceitos de Ciclos conforme a compreensão de pesquisadores que tratam a temática como possibilidade de organização escolar e outro jeito de fazer escola, bem como a negação da pedagogia como forma de oprimir e ver os alunos como simples depositários de conhecimentos(Freire 2011).

Observou-se nas respostas dos acadêmicos que o senso comum prevalece ao conhecimento acadêmico o que pode fragilizar todo o processo de formação de um estudante de

graduação que em poucos anos estará na escola como docente exercendo práticas encharcadas de intencionalidades.

Em Paro (2010 p.18)

[...] a compreensão da educação como exercício de poder pode trazer maior clareza sobre como se efetiva o processo pedagógico[...] e pode facilitar a concepção de uma prática escolar mais democrática e de uma organização da escola mais condizente com essa prática. Nesta reflexão Paro problematiza a prática pedagógica

ao denunciá-la como meio para afirmação de um único modelo de escola, a qual institucionaliza a classificação e seletividade, e exerce seu poder a favor da continuidade destas práticas.

A partir da questão: “Como você conceituaria a organização por ciclos?”, algumas respostas partem de saberes que alguém conhecido falou sobre..., como podemos observar: [...] Já ouvi falar sobre a organização por ciclos, mas não dei muita importância por colegas dizerem que a organização por ciclos não é recomendável.

Ao registrar em uma de suas obras que o senso comum está presente na Educação, Paro (2010) exemplifica generalizações como sinônimos ditos tanto em conversa com pais de alunos como com professores ao discutir conceitos de educação, diz ele:

O mais importante na concepção de educação do senso comum, porém não é se o termo é ou não utilizado como sinônimo de ensino, e sim, a forma não científica como se

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concebe a maneira pela qual a educação (ou o ensino) é a simples passagem de conhecimentos e informações de quem sabe para quem não sabe. (PARO, p.21)

Com exemplos um tanto distintos, a problemática é a mesma, o senso comum presente em discussões que academicamente deveriam ser resolvidas permanecem no patamar de saberes sem a rigorosidade de reflexão.

Outra abordagem interessante foi a resposta de outro estudante, que ao conceituar o Ciclo “afirma” que é o mesmo modelo de escola tradicional existente e com as mesmas possibilidades que a conhecemos, diz ele:

“A mesma organização que por séries, só muda a nomenclatura.”

Neste caso o licenciando ignora as diferentes estruturas de tempos e espaços da Escola por Ciclos, como por exemplo, a “Escola sem Fronteiras” que tinha em seus tempos o dia de estudo para o professor, tarefa a distância para os alunos, reorganização de turmas, encontros com a comunidade, organização curricular por áreas de conhecimento...além da lógica estar voltada para educação popular, como afirma o próprio prefeito da época em carta já mencionada.

A Escola Plural em Belo Horizonte, conforme Arroyo (2013) teve origem nas discussões com o coletivo de professores e Plural porque derivou de vários ângulos: renovação teórica, curricular e didática e por esse motivo associar a simples mudança de nomenclatura das séries para ciclos parece equivocada.

A experiência de Porto Alegre, conforme Fetzner (2006) fez da pesquisa uma possibilidade de planejamento escolar. Ela descreve o modo coletivo e particular de organizar e dar forma a uma entre outras diferenças nos Ciclos:

O conteúdo escolar é organizado a partir de uma pesquisa sócio-antropológica realizada na comunidade, onde são buscadas questões-problemas reveladoras da contradição entre a realidade vivida e a realidade percebida pela comunidade. A partir dessa pesquisa, reúnem-se representantes discentes e da comunidade para discutir com as professoras e professores o eixo central dos conhecimentos a serem trabalhados na escola. (FETZNER, 2006, p.16) Ela referencia ainda a aprendizagem nos Ciclos como

um direito de todos, na qual a responsabilidade é compartilhada por um grupo de docentes e não mais por um professor individualmente.

Escola Plural, Candanga, Sem Fronteiras, Cidadã, Cabana e outras colocam-se ou colocaram-se como experiências de resistência ao contexto atual.

O Estado de Goiânia (2014) está rediscutindo a proposta da Escola por Ciclos, resgatando um a história que já existiu, e retoma a possibilidade desta organização escolar.

A cidade de Angra dos Reis é outro exemplo de município que tem o Ciclo como formação inicial e discute a ampliação desta proposta, assim como em Niterói que tem seu trabalho pedagógico por Ciclos. Estes exemplos mostram que a temática está viva e a abordagem relevante.

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Outra pergunta da pesquisa desenvolvida trouxe para pauta o desempenho dos estudantes em modelos de Ciclos. Perguntou que os estudantes sabiam das aprendizagens; e uma das respostas foi: “Ouvi dizer que os alunos não tem a acrescentar na sociedade; que não aprendem muito, até porque não se ensina.”

Nesta resposta é possível observar o enraizamento de um sistema escolar que castra a diversidade e queda a imaginação. Também é preciso reconhecer a coragem de um dizer forte a uma pesquisa que busca saberes para a temática de ciclos. Problematizar a “crença” num “Estado” que pede cidadãos produtivos e que direcionem sua energia na produtividade estatal, bem como o “... porque não se ensina” sinaliza para a falta de compreensão conceitual da Escola por Ciclos e o conhecimento de experiências anteriormente citadas. Percebe-se que a partir das respostas dos estudantes a continuação e permanência de um único modo de pensar ou viver escola, desconhecendo outras formas de aprender a ensinar, e ensinar no aprender.

As duas perguntas exploradas acima fazem parte de um questionário usado para geração de dados, analisados com base nos conteúdos e em autores citados que trabalham conceitos e conhecimentos a cerca de outras possibilidades escolares, os quais foram colocados neste texto como resistência ao que é normal e neutro, fugindo do que critica PARO (2010) do senso comum na educação. CONSIDERAÇÕES

A crítica feita aos saberes de senso comum foram destacadas no sentido de repensar o ensino de modo geral, porque os pensamentos são em grande parte, produto do que vivemos. E se vivemos uma escola seriada, seletista e excludente, de onde virá outros conhecimentos formais que não sejam os da academia?

A universidade apresenta-se como lugar privilegiado de conhecimentos e nelas são colocadas apostas quando estudantes escolhem fazer este ou aquele curso. Enquanto estudantes, as pessoas procuram a universidade e fica o questionamento: O que os cursos superiores estão fazendo para que seus conhecimentos sejam realmente um diferencial nas licenciaturas? É sabido que somente o estudo da lei não garante modificações nas posturas profissionais dos futuros professores, todavia trabalhar o pensar em outras possibilidades de escola poderia provocar desconfianças no que está colocado e parece ser apolítico dentro das organizações escolares.

Os autores usados como referencia neste trabalho sinalizam que a Escola por Ciclos está colocada como alternativa a outras experiências escolares. Esta pesquisa problematiza o estudo da LDB nos cursos de licenciaturas em Blumenau e o estudo do artigo 23, o qual mostra que existe abertura na lei, contudo a academia cumpre seu papel de estudar a lei sem mexer ou provocar efeitos nos estudantes.

Ao responder o questionário os estudantes universitários colocaram-se como leigos e com saberes de senso comum, dado este que está na “contramão” para quem freqüenta cursos teoricamente científicos Educacionais. O

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processo de implantação e as vivências da “Escola sem Fronteiras” no município são ignorados como fato histórico relevante no município. É possível também perceber que os cursos trabalham na perspectiva do que é atual, no caso escola seriada, a qual possibilita a continuação da seriação limitando a semelhança de tempos antigos fotografados que se parecem atuais.

Conforme o aporte teórico de Freire, Mainardes, Fetzner, Arroyo, entre outros , as escolas por Ciclos se colocam como forma de resistência a modelos culturalmente autoritários, ainda predominantes em nosso cotidiano a qual nos dá a forma da civilidade.

A escola por Ciclos restitui questões éticas, políticas, estéticas e intelectuais da Emancipação Humana, este pode ser um entre tantos outros motivos para tê-lo mais presente nas formações dos futuros professores.

Reitera-se a que a intenção deste trabalho não foi buscar culpados, mas de problematizar as fragilidades no estudo da LDB e a consequência deste desconhecimento. REFERÊNCIAS

ARROYO, Miguel G. Ofício de mestre: imagens e auto-imagens.3. ed. Petrópolis : Vozes, 2001. 251p. BRASIL. Lei n. 9.394, de 20 de Dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm Último acesso em: 02/03/2014.

BLUMENAU. Secretaria Municipal de Educação - SEMED. Escola sem fronteiras: Construindo Cidadania pela Educação. 2000? 6f. FERNANDES, Claudia de Oliveira. Escolaridades em ciclos: Desafios para a escola do século XXI. Rio de Janeiro: Wak Ed.,2009.132p. FETZNER, Andréa Rosana. Ciclos de formação: uma proposta político pedagógica transformadora. Porto Alegre: Mediação, 2006. _________. Organização; Ciclos em Revista- A construção de uma outra escola possível.V.1, Rio de Janeiro: Wak editora, 2007.128p. FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 50ª edição. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2011. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à pratica educativa. 12ª edição.São Paulo: Editora Paz e Terra, 1996. MAINARDES, Jefferson. A escola em ciclos: fundamentos e debates. São Paulo: Cortez, 2009. MACLAREM, Peter. Rituais na Escola: em direção a uma economia política e gestos na educação. Tradução Juracy C. Marques, Angela M.B.Biaggio. Petropólis, RJ: Vozes, 1991. PARO, Vitor Henrique. Educação como Exercício de Poder: crítica ao senso comum em educação. São Paulo: Cortez, 2010. 2 ed.

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A CULTURA DIGITAL COMO FONTE DO SABERCOM O USODASTECNOLOGIAS NA SALA DE AULA EM UM

CURSO DE PEDAGOGIA.

Marinez Chiquetti Zambon77 RESUMO O entrelace entre a teoria e a prática pedagógica dentro do movimento tecnológico dá norte ao trabalho,que se apresenta na relação dodesenvolvimento pedagógico dos profissionais da educação do século XXI,dando ênfase no incremento e produção do conhecimento e da ressignificação dos saberes através do despertar dacultura de uso dastecnologias na sala de aula. Tendo como norte o movimento tecnológico que ocorre em todos os espaçosda sociedade, com a convergência das mídias e a necessidadede inovação nos ambientes educativos. Este estudo tem como objetivoconsiderar a cultura darelação entre a teoria e a prática com o uso de tecnologias na sala de aula. O ressignifcar do conhecimento com a disseminação da cultura a partir das tecnologias iniciou-se com o estado da arte na pesquisa bibliográfica eda vivênciaprática da pesquisadora e dos acadêmicos/asque participaram da pesquisa. A justificativa se fundamentapela relevânciada disseminação da cultura do uso dastecnologias na sala de aula, quepode favorecer os indivíduos, que estão envolvidas em momento educativas,onde a informação e a

77 Professora Mestra em Educação atua no Centro Universitário Municipal de São Josénas disciplinas de Educação, mídias e tecnologias e estágio Curricular Supervisionado na Educação Infantil.

tecnologia se intercalam oferecendo a possibilidade de ampliar suas competências. A pesquisa aconteceu,em uma instituiçãode ensino superior no curso pedagogia, com uma turma de sexta fase, para uma população de vinte e três participantes e com dezoito instrumentos respondidos, à abordagem do problema foi pesquisa quali-quantitativa, quepermitiu fazer a leitura dos dados em números com o instrumento questionário, o que possibilitou fazer a sistematização dos resultados, identificando a importância em trabalhar com a disseminação da cultura da tecnologia na sala de aula, oportunizando ao professor que está em formação, novas formas de ensinar, dando o acesso outras metodologias mediadas pelas tecnologias. Palavras-chave: Cultura Digital;Educação; Formação de Professores. INTRODUÇÃO

A tecnologia nocontexto da educação, em que a teoria e a prática pedagógica se intercalam, num movimento tecnológico e pedagógico, dão norte ao trabalho, com o objetivo de considerar a cultura da relação entre a teoria e a prática com o uso de tecnologias na sala de aula. Esta pesquisa dá ênfase no incremento e produção do conhecimento da ressignificação dos saberes,através do despertar da cultura de uso das tecnologias na sala de aula, com a possibilidade de favorecer a prática pedagógica com o uso de recursos tecnológicos,na perspectiva de defender a inclusão digital.

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Os acadêmicos/as que estão em formação nos cursos de pedagogia,e participam destarevolução tecnológica que se instaurou no mundo globalizado, onde se apresenta na relação do desenvolvimento dos indivíduos do século XXI, podem ter acesso a este movimento com disciplinas que propiciem a disseminação do tema, com cursos que ofereçam em suas ementas a possibilidade de unir a teoria e prática como um processo de desenvolvimento de novas competências profissionais.

Desta forma, a sistematização deste relato está dividido em tópicos. Como o de número dois quetrata da cultura digital como fonte do saber. A cultura digital nasce da necessidade de possibilitar a acessibilidade a equipamentos tecnológicos para e metodologias que possam favorecer o aprendizado para aspessoas que estão conectadas à rede mundial de computadores.

No tópico de número trêsapresenta aspectos relevantes quanto ao uso das tecnologias na sala de aula, em que chama a atenção para um dos problemas que é percebido com a possibilidade de uso das tecnologias digitais na sala de aula, na falta de formação do professor, para o uso de estratégias, que favorecem o ensino com a mediação tecnológica.

No tópico de número quatro,a ênfase é na formação de professores no curso de pedagogia. A formação do indivíduo,deve ser permanente para estar ativo no mundo do trabalho, e o professor, deve estar atento as inovações em seu contexto de trabalho. O currículo das Instituições de Ensino Superior, precisa contemplar momentos de discussão sobre as tecnologias como possibilidade de uso nas salas de aula.

No tópico de número cinco se trata dosprocedimentos metodológicos da pesquisa que teve como plano de fundo a prática de ensino vivenciada na disciplina de Educação, Mídias e Tecnologias, em uma turma da sexta fase do curso de Pedagogia, que acontece no Centro Universitário Municipal de São José – USJ em que a pesquisadora é participante ativa deste movimento de formação de professores.

Para este estudo, concluímos que a partir da disciplina de Educação, mídias e tecnologias,alcançamos o objetivo de criar a cultura de uso das tecnologias na sala de aula.

Desta forma, comoos movimentos tecnológicos que ocorrem em todos os espaços da sociedade,a convergência das mídias e a necessidade de inovação nos ambientes educativos. A educação para a inserção da cultura midiática contribui para o desenvolvimento da cultura digital como fonte do saber, com o usodas tecnologias na sala de aula, a formação de professores no curso de pedagogia.

Conforme se apresentaa seguir onde se fala da cultura digital como fonte do saber apresentando a relevância deste tema para a educação. 1A CULTURA DIGITAL COMO FONTE DO SABER

A cultura digital nasce da necessidade de oferecer a acessibilidade a equipamentos tecnológicos,para a criação de metodologias que possam favorecer o aprendizado,daspessoas conectadas à rede mundial de computadores.

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O trânsito de informações disponíveis na rede digital com o acesso da internet são motivos de preocupação pelo desfecho negativo, que gera a falta oportunidade deacesso ao estudante que estão neste momento dentro de instituições educacionais.

“Definida por muitos autores como a Era da informação, ou do Conhecimento, e da valorização da economia criativa [...]” (BRASIL, 2014) Este é o momento de tratar deste processo de inserção das tecnologias na sala de aula, a partir da formação do professor nos cursos de graduaçãocompreocupação e cautela. E a cultura digital tem o seu significado dentro desta falta de acesso conforme se diz a seguir.

Cultura é a representação das manifestações humanas; aquilo que é aprendido e partilhado pelos indivíduos de um determinado grupo. Por sua vez, a cultura digital é a cultura de rede, a cibercultura, que sintetiza a relação entre a sociedade contemporânea e Tecnologias da Informação (TIs).(FAGUNDES; HOFFMANN,2014).

A cultura pode aproximar ou afastar as pessoas,distanciando das suas possibilidades de desenvolvimento intelectual,excluindo destes movimentos e as deixando a margem.

Ao mesmo tempo em que abriga pequenas totalidades e seus significados, ela se mantém distanciada de um sentido global e único. Isso porque, representa a cultura da diversidade, da liberdade de fluxos, de conhecimentos e de criações, que dá corpo e identidade às organizações que delas se constituem [...]. (FAGUNDES; HOFFMANN, 2014).

As mudanças de comportamento dos jovens, por exemplo, com o uso dos dispositivos móveis (celulares) podem dar uma nova dimensão de que as expressões culturais,que ampliaram a dimensãode tempo, espaço nascem novasnarrativas para o mundo globalizado. Segundo FAGUNDES; HOFFMANN, (2014).“As expressões culturais são predominantemente mediadas pelas redes de comunicação eletrônicas abertas ao público em geral e não maisexclusivamente a uma elite.”

Interagir com as informações e com as pessoas para aprender é fundamental. Os dados encontrados livremente na Internet transformam-se em informações pela ótica, o interesse e a necessidade, com que o usuário o acessa e o considera. Para a transformação das informações em conhecimentos é preciso um trabalho processual de interação, reflexão, discussão, crítica e ponderações que são mais facilmente conduzidos, quando partilhado com outras pessoas. (kenski, 2008).

Esta interação e mediação,como dito por Kenski, para

ser transformado em conhecimento é necessário desenvolver nas comunidades educativas espaços de aprendizagem permanente, pela velocidade como estão sendo modificados os meios tecnológicos as intervenções destes meios na vida das pessoas.

Criar a cultura digital nos espaços de educação é um desafio pelos grandes entraves nas políticas de acesso à rede e aos componentes que podem ser usados pelos profissionais da educação, nos espaços públicos de educação.

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A educação mediada pelas tecnologias a partir da consciência de acesso e participação dos docentes,participantes ativos da cultura digital é um desafio para os tempos modernos, que aparentemente ainda não se chegou a um consenso da necessidade de instrumentalização tecnológica para o professor.

A instituição escolar no compasso da cultura digital seria aberta, democrática,dinâmica e não hierarquizada pelo domínio do saber. Entretanto, a maioria dosesforços para incluir a escola na era digital tem sido no sentido de possibilitar que elaacesse (passivamente) o

exterior, mas não necessariamente atue nele para modificá-lo. (FAGUNDES; HOFFMANN,2014).

O processo de digitalização tecnológica na escola,não

acontece e se ampliadentro do seu espaço,pela inviabilidade de acesso,e conhecimento dos participantes da comunidade educativa como o gestor, o coordenador, o professor e seus pares, são precários,e este espaço e cultura digital nascem da vontade da comunidade: escola, gestor e o professor, quedevem querer aderir a ideia da cultura digital.

Pensar na disseminação e adesão de um pensamento de cultura digital é necessário entender o que acontece com o uso das tecnologias na sala de aula, temaque vai tratar na próxima abordagem a seguir, tratando das tecnologias nos espaços educativos como a sala de aula.

2 OUSODAS TECNOLOGIAS NA SALA DE AULA

Um dos problemas que é percebido,com a possibilidade de uso das tecnologias digitais na sala de aula, é a falta de formação do professor para a criaçãode estratégias que favorecem o ensino com a mediação tecnológica. Esta disponibilização de estratégias didáticas deve partir da vontade do professor em disponibilizar aulas de diferentes formatos.

Estas interações podem ser unidirecionais, sem maiores trocas comunicativas. Em termos de uso das tecnologias digitais para fins didáticos, colocar o programa do curso, os textos a serem lidos ou os exercícios, na Internet, para acesso e conhecimento de todos os alunos, seria um possível nível interativo elementar. (KENSKI, 2014).

Os professores,adeptos ao uso das tecnologias,organiza

no planejamento das suas aulas, a possibilidade de explorar momentos de trocas, e mediações com o uso de vários recursos que hoje estão disponíveis como o notebook, o projetor de multimídia e o próprio celular como: filmadora, registros com fotos e até mesmoselfies.

Alguns autores levam em consideração osvários níveis de interação com o uso da internet como instrumento deinformação, ao fazer adequação para fins didáticos. (Kenski, 2008). Veja no quadro a seguir as várias possibilidades de uso das tecnologias digitais de acordo com Kenski, (2014). Quadro 01: o uso de tecnologias na sala de aula. Fonte: adaptado de Kenski, 2014.

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De acordo com quadro apresentado acima,em que dá

varias ideias das possibilidades de interação, para a organização de aula com criatividade com o uso das tecnologias,possíveis de desenvolver para disponibilizar aos alunos.

Este trabalho de planejamento pode ser desenvolvido,com maior ou menor complexidade no processo de inserção das tecnologias digitais nos espaços educativos, que dependedo professor, que para pensar deve ter conhecimento de todas as tecnologias envolvidas nesta sugestão.

Para criar estratégias que se intercalem com a mediação das tecnologias digitais,é importante criar estruturas didáticas atrativas e interessantes, em que motivem os estudantes na construção coletiva de conhecimento, trocando ideias e tirando dúvidas, estes momentos podem ser feitos nos espaços watszap criando grupos, com e-mails, e o próprio Moodle com seus fóruns, wiki e outras ferramentas que estão disponíveis, a cada dia passa cada vez mais com possibilidade de interatividade entre os indivíduos.

Para finalizar, a questão que permeia os espaços educativos que usam recurso de tecnologias digitais (re)afirmam a inclusão do acadêmico/a em mundo globalizado em está imerso em um forte apelo tecnológico, em todos os setores da sociedade e negar o acesso ao estudante destes momentos educacionais é não oportunizar ao acadêmico/a ser cidadão do mundo.

3 A FORMAÇÃO DE PROFESSORES NO CURSO DE PEDAGOGIA

A formação do indivíduo deve ser permanentee para estar ativo no mundo do trabalho o professor, precisa desenvolver o senso de observação reflexiva,sempreatento às inovações em seu contexto de trabalho.

O currículo das Instituições de ensino superior devem contemplar momentos de discussão sobre as tecnologias

como possibilidade de uso nas salas de aula. Integrando a teoria e a prática pedagógica, como fundamental para a formação de um profissional competente para o mundo do trabalho.

As novas tecnologias e o aumento exponencial da informação levam a uma nova organização de trabalho, em que se faz necessário: a imprescindível especialização dos saberes; a colaboração transdisciplinar e interdisciplinar; o fácil acesso à informação e a consideração do conhecimento como um valor precioso, de utilidade na vida econômica. (MERCADO, 1998).

1 Apresentação do programa ou do cronograma da disciplina na Internet (em geral, nos ambientes virtuais disponíveis na instituição como o Moodle, TelEduc, Tidia, etc.).

2 Disponibilização dos conteúdos das aulas presenciais para que os alunos possam acessá-las, mesmo quando ausentes da Instituição.

3 Apresentações docentes em teles e videoconferências 4 Exploração da Internet pelos alunos, dentro e fora da sala de aula. 5 Apresentação de textos ou trabalhos dos alunos em websites ou blogs criados para a disciplina 6 Utilização dos ambientes virtuais para que os alunos respondam a testes, questionários, façam avaliações e

relatórios 7 Distribuição dos momentos da disciplina entre atividades feitas em sala de aula e atividades realizadas nos

ambientes virtuais ou outro espaço distinto na Internet (websites, blogs, etc.). 8 Criação de espaços de interação síncronos (como chats, por exemplo) e assíncronos (como fóruns, Wikis,

blogs) para discussão de temas e produção coletiva. 9 Oferecimento de unidade da disciplina, totalmente a distância, via Internet com atividades individuais e

coletivas, síncronas e assíncronas. 10 Desenvolvimento de projeto para oferecimento pleno de disciplina ou de um curso pela Internet com

atividades individuais e grupais; síncronas e assíncronas; e múltiplas formas de controle e de avaliação individual (docente, auto-avaliação) e coletiva (avaliação pelo grupo; avaliação pelos outros alunos, etc.).

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Com a possibilidade de inserção das tecnologias na sala de aula, é possível desenvolver novas propostas didático pedagógicas, amparadas em outros aparatos tecnológicos,que não apenas o computador como exemplos os dispositivos móveis, que a cada dia trazem mais inovações além de serem telefones são, câmeras fotográficas e filmadoras de alta resolução. Com estesequipamentos as aulas podem ganhar momentos de uso de tecnologias, como recursos para o desenvolvimento de projetos.

Com as novas tecnologias pode-se desenvolver um conjuntode atividades com interesse didático-pedagógico, como: intercâmbios de dados científicos eculturais de diversa natureza; produção de texto em língua estrangeira; elaboração de jornaisinterescolas, permitindo desenvolvimento de ambientes de aprendizagem centrados na atividade dos alunos, na importância da interação social e no desenvolvimento de um espírito de colaboração e de

autonomia nos alunos. (MERCADO, 1998).

O uso das tecnologias na sala de aula,só ocorre com a disposição do professor em usar, desenvolvendo projetos de inserção de tecnologias que podem contribuir para uma melhor apresentação de conteúdos, devem ser pensadas a partir de um conhecimento prévio do professor no uso das disciplinas. Este momento de aprendizagem do professor deve iniciar nos curso de graduação,com disciplinas que tenham em seus planejamentos acriação de estratégias com o uso de tecnologias na sala de aula. Para isso é necessário uma disposição do professor em participar ativamente neste processo de inserção das tecnologias nos seu saber fazer.

A qualidade da educação, geralmente centradas nas inovações curriculares e didáticas, não pode se colocar à margem dos recursos disponíveis para levar adiante as reformas e inovações em matéria educativa, nem das formas de gestão que possibilitam sua implantação. A incorporação das novas tecnologias como conteúdos básicos comuns é um elemento que pode contribuir para uma maior vinculação entre os contextos de ensino e as culturas que se desenvolvem fora do âmbito escolar. (MERCADO,

1998).

Os trabalhos desenvolvidos com metodologias,como os trabalhos por projetos, organização de atividades usando imagens a partir de fotos, filmes,feitos pelos estudantes.

Em quetudo é planejado intencionalmente pelo professor como proposta didático pedagógica, modificando os recursos de pesquisa dos estudantes, é possível criar novos olhares, para o mundo,onde os mesmos estão inseridos, criando oportunidades no desenvolvimento do olhar sensível dos estudantes.

Frente a esta situação, as instituições educacionais enfrentam o desafio não apenas de incorporar as novas tecnologias como conteúdos do ensino, mas também reconhecer e partir das concepções que as crianças têm sobre estas tecnologias para elaborar, desenvolver e avaliar práticas pedagógicas que promovam o desenvolvimento de uma disposição reflexiva sobre os conhecimentos e os usos tecnológicos. (MERCADO, 1998).

Esta possibilidade de formação docente não pode nascer apenas nas Universidades, mas também nas instituições de todos os níveis ensino,que podem contribuir oportunizando o acesso a instrumentos tecnológicos que

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possam amparar as ações didáticas pedagógicas dos professores em suas disciplinas. A formação do professor deve ser planejada a partir da sua prática docente, criandomomentos de teoria e momentos práticos com as tecnologias, para estes momentos é necessário a sua disposição os equipamentos e a internet, para a concretização das suas pesquisas.

Existem dificuldades, através dos meios convencionais, para se preparar professores para usar adequadamente as novas tecnologias. É preciso formá-los do mesmo modo que se espera que eles atuem. As tentativas para incluir o estudo das novas tecnologias nos currículos dos cursos de formação de professores esbarram nas dificuldades com o investimento exigido para a aquisição de equipamentos, e na falta de professores capazes de superar preconceitos e práticas que rejeitam a tecnologia mantendo uma formação em que predomina a reprodução de modelos substituíveis por outros mais adequados à problemática educacional. (MODERNO, 1998).

As tecnologias devem permear todas as disciplinas, não apenas as especificas que tratam destes temas, mas já nas primeiras fases onde os acadêmicos/as precisam iniciar suas pesquisas e movimentos de busca dos conhecimentos, sendo que o currículo dos cursos de pedagogia deve ser pensado com o olhar sistêmico para o curso todo, já que está implícita, a necessidade de formação um profissional com competências pedagógicas nos aspectos tecnológicos.

Os professores são profissionais que tem uma função re (criadora) sistemática, sendo esta a única forma de proceder quando se tem alunos e contextos de ensino com características tão diversificadas, como sucede em todos os níveis de ensino. A função do professor é a criação e recriação sistemática, que tem em conta o contexto em que se desenvolve a sua atividade e a população-alvo desta atividade. (MERCADO, 1998).

A importância em instrumentalizar o professor já na sua formação acadêmica favorece a criação de cultura douso das tecnologias na sala de aula. Sabendo queé função do professor propiciar a seus alunos momentos de ensino com o uso de novos instrumentos tecnológicos, a partir de um planejamento criativo, inovador,criando um ambiente de ensino aprendizagem agradável para professor e os estudantes que participam ativamente desta cultura digital. Desta forma ao tratar dos temas que são relevantes no processo de criação da cultura de uso na sala de aula, na continuidade será tratados dos procedimentos metodológicos da pesquisa realizada, que deu norte a este estudo. 5Procedimentos Metodológicos da Pesquisa

O presente estudo nasceu da prática de ensino vivenciada na disciplina de Educação, Mídias e Tecnologias, em uma turma da sexta fase docurso de Pedagogia, que acontece no Centro Universitário Municipal de São José – USJ em que a pesquisadora é participante ativa deste movimento de formação de professores como docente da disciplina.

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Para realização desta pesquisa, nasceu a partir do tema edos objetivos, a metodologia utilizada numa abordagem do tipo quali-quantitativa.

O conhecimento é um processo dinâmico e inacabado, serve como referencial para a pesquisa tanto qualitativa como quantitativa das relações sociais, como forma de busca de conhecimentos próprios das ciências exatas e experimentais. Portanto, o conhecimento e o saber são essenciais e existenciais no homem, ocorre entre todos os povos, independentemente de raça, crença, porquanto no homem o

desejo de saber é inato. (GERHARDT; SILVEIRA, 2009).

Nesta abordagem quali-quantitativa, quepermitiu fazer a leitura dos dados em números com o instrumento questionário, resultando na sistematização das opiniões e resultados obtidos após a tabulação de dados.

A pesquisa teve como públicos participantes vinte e três acadêmicos/as,que participaram e concluíram a referida disciplina. Sendo que dezoito responderam ao instrumento, o que possibilitou fazer a sistematização dos resultados, percebendo a importância em trabalhar com a disseminação da cultura da tecnologia na sala de aula, oportunizando ao professor novas formas de ensinar, e ao aluno o acesso outras metodologias mediadas pelas tecnologias.

Foram distribuídos vinte e três questionários,e respondidos dezoitoinstrumentos,que apresentavam seis perguntas fechadas e uma aberta,onde o participante pode expressar sua opinião,dando enfoque ao uso das tecnologias na sala de aula,que apresentaram aspectos relevantes que contribuíram para as seguintes análises.

Dos dezoito participantes,apenas três acadêmicos dominavam as tecnologias no sentido de saber usar com propriedade,e os demais não tinhamafinidade com as tecnologias.

Para a apresentação dos resultados seapresenta uma sistematização a partir da pergunta aberta que deu significado aos demais resultados.

Ao ser indagado em relação à tecnologia e como podem ser inseridas na sala de aula pelo professor, as respostas foram variadas e com ênfase a uma prática pedagógica com o uso das tecnologias na sala de aula, foram elencadas algumas repostas que dão fundamento ao objetivo proposto.

Acadêmico/a 1 (A1) disse que “Acredito que o processo parte da vontade do professor em inovar em suas aulas,em todos os momentos.”. Ao fazer este comentário o participante,demonstra maturidade na sua fala pelo desenvolvimento da sua percepção.

O que eu quero dizer com isto é que não são as tecnologias que vão revolucionar o ensino e, por extensão, a educação como um todo. “Mas, a maneira como esta tecnologia é utilizada para a mediação entre professores, alunos e a informação.” (HOFFAMAN; FAGUNDES, 2015).

Para que esta mediação aconteça e se efetive a vontade

do professor é inerente ao querer fazer do professor. Moran (2015) diz que “Os processos de interação e comunicação no

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ensino sempre dependeram muito mais das pessoas envolvidas no processo, do que das tecnologias utilizadas, sejam o livro, o giz ou o computador e as redes.” O professor é quem decide o que será trabalho nas suas aulas como recursos tecnológicos a partir do seu planejamento.

A2 falou que“A tecnologia pode ser inserida com filmes, pesquisas na rede, uso dos aparelhos celulares para trabalhos, uso de data show, e muitos outros recursos. Para isto o professor deve estar preparado para lidar com as tecnologias e fazer com que o uso seja significante para a aprendizagem dos alunos.”.

O fato de se treinar professores em cursos intensivos e de se colocar equipamentos nas escolas não significa que as novas tecnologias serão usadas para melhoria da qualidade e do ensino. Em escolas informatizadas, tanto públicas como particulares, tenho observado formas de uso que chamo de inovação conservadora, quando uma ferramenta cara é utilizada para realizar tarefas que poderiam ser feitas, de modo satisfatório, por equipamentos mais simples (atualmente, usos do computador para tarefas que poderiam ser feitas por gravadores, retroprojetores, copiadoras, livros, até mesmo lápis e papel). São aplicações da tecnologia que não exploram os recursos únicos da ferramenta e não mexem qualitativamente com a rotina da escola, do professor ou do aluno, aparentando mudanças substantivas, quando na realidade apenas mudam-se aparências.” (CYSNEIROS, 1999).

A tecnologia na educação deve estar amparada com um planejamento e uma proposta pedagógica que ampare a ação pedagógica na sala de aula, para que isso aconteça à formação docente deve acontecer já na sua formação profissional nos cursos de Pedagogia.

A3 afirmou que “O professor no seu simples uso de uma lousa digital pode trazer um leque de assuntos para ser usado em sala. Não precisamos ir muito além podemos usar as tecnologias mais simples como um filme, ou a construção de um curta metragemcom os alunos em sala de aula.”.

Segundo Moran, 2015 “Avançaremos mais se soubermos adaptar os programas previstos às necessidades dos alunos, criando conexões com o cotidiano, com o inesperado, se transformarmos a sala de aula em uma comunidade de investigação.” É um processo de inovação, de observação do que está acontecendo no mundo globalizado e criatividade de adaptação dos recursos que estão disponíveis para o uso nas salas de aula.

A4 falou que “Através da Internet, Power Point,jogos educativos de computadores.Tablet e celulares que podem ser usados para fazer leituras de livros,textos, vídeos e qualquer outra pesquisa.”.

O aluno, em uma abordagem cooperativa de ensino, tem maior autonomia e maior grau de responsabilidade. Tem tarefas a cumprir e se expõe mais facilmente, pois sempre haverá tempo e espaço para a apresentação das suas opiniões. Ainda mais, será solicitado – pelo professor e pelos colegas – a se posicionar, dizer o que pensa, tomar partido. (MORAN, 2015)

Os aparatos tecnológicos,hoje podem contribuir para inovar, mas esta inovação deve partir de ações didáticas pedagogias, criativas e inovadoras,que dão norte ao desenvolvimento das competências tecnológicas nos alunos, partindo da ideia que os recursos tecnológicos são apenas

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instrumentos tecnológicas e não se justificam como fim, mas como meio para chegar à aprendizagem.

A5 afirmou que “Podemos utilizar a tecnologia de diversas formas, através de data show, lousa digital, tabletes para serem realizada pesquisa em sala de aula, entre outros recursos para fazer com que as aulas fiquem mais agradáveis e prazerosas, e que o aprendizado dos alunos se torne mais significativo.”.

O aluno, em uma abordagem cooperativa de ensino, tem maior autonomia e maior grau de responsabilidade. Tem tarefas a cumprir e se expõe mais facilmente, pois sempre haverá tempo e espaço para a apresentação das suas opiniões. Ainda mais, será solicitado – pelo professor e pelos colegas – a se posicionar, dizer o que pensa, tomar partido. (KENSKI, 2008).

Inovar na sala de aula significa ir mais além no

planejamento, pensar estratégias de ensino que possam dar a autonomia de uso das tecnologias para os estudantes,que neste momento estão imersos em uma sociedade de tecnologias digitais. Sendo,possível trabalhar com proposta pedagógica inovadores com poucos recursos tecnológicos,como é o exemplo dos celulares quetem na convergência das mídias, a máquina de fotografia, a filmadora, o gravador de som, aplicativos inteligentes e muitas possibilidades de comunicação com interatividade.

A6 apresenta que “Das mais variadas formas, desde apresentações em slides como pesquisa. Trabalho com adolescentes, eles estão atodo o momento no celular então

para que isso se transforme em uma questão positiva e não desgastante para o educador, peço sempre para que usem a internet do celular para que pesquisem alguma coisa relacionada com a aula. Toda tecnologia tem seus pontos positivos e negativos, é só saber equilibrar.”.

As noções de espaço e tempo são, igualmente, transformadas pela superação de empecilhos como distâncias físicas e diferenças de fuso horário. A informação circula por todo o mundo ao acesso de um clique. As TIs proporcionaram rapidez e agilidade à disseminação de notícias, fatos e teorias. As comunicações tornaram-se instantâneas. A ampliação e a valorização da diversidade mundial, a partir do século XIX, tornaram o crescimento dos conhecimentos técnicos e científicos incontrolável. Dessa forma, qualquer intenção em dominar “os saberes adequados” tornou-seilusória. O mundo contemporâneo está sofrendo uma mutação na relação com o saber (HOFFAMAN; FAGUNDES, 2015,apud Lévy, 1999).

O trabalho pedagógico,em qualquer nível de

ensino,pode ser inovado com a inserção das tecnologias digitais, quedespertam o interesse de inovação, senso de pesquisa e vontade de buscar conhecimento para socializar com os amigos.

Este trabalho parte da percepção do professor em desenvolver estratégias e projetos que se incorporem com o uso das tecnologias digitais nas salas de aula, mas que para fazer este planejamento devem ter em sua formação o conhecimento que dão suporte ao seu saber fazer com o uso das tecnologias na sala de aula.

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A7 sugere que “De varias maneiras, com slides, vídeos, aulas online, trabalhos digitais, atividades digitais, hoje em dia tudo que é assistido e mais atraente tanto para crianças como adultos.”.

Construir, criar, inventar, experimentar, comunicar, cooperar, ajudar, aprender, essas são as palavras de ordem da mudança. Todos são verbos indicadores de ações, de movimento, de avanço. A escola precisa movimentar-se para integrar-se a cultura digital, formando uma amálgama inseparável, que dá lugar aos indivíduos e suas ações. (HOFFAMAN; FAGUNDES, 2015).

Tratar dos assuntos educacionais com a intenção pedagógica é trazer para a escola do século XXI as possiblidades descritas acima. O momentoé de inovar nas salas de aula, com um fazer pedagógico consciente a partir do seu querer fazer, querer aprender,e apreender a partir de troca com seus pares e com seus alunos.

A8 afirma que “Em todo o momento de construção do conhecimento, seja através de uma pesquisa, na produção de um trabalho no Power Point ou em outras mídias, ou seja, a utilização da tecnologia deve ser usada em todos os momentos possíveis, tendo em vista que nossos alunos estão inseridos nessa rotina tecnológica.”

O trabalho, com variados recursos didático pedagógicos, físicos e virtuais, que coloquem o aluno em interação com diversos conceitos é uma alternativa para a escola. Assim, as formas conceituais (objetos "reais", objetos virtuais, representações, esquemas, fotos, vídeos, produções hipertextuais, linguagem de programação, etc.) que permitam aos os alunos agir sobre, a fim de conhecer e operar

com suas propriedades, deve ser diversificadas e múltiplas. (HOFFAMAN; FAGUNDES, 2015).

Diversificar com estratégias de ensino inovadoras nas

salas de aula,demonstra que o trabalho variado,contribui para uma aula agradável, dinâmica e prazerosa com a prática pedagógica,bem explorada com as múltiplas linguagens tecnológicas.

Neste momento, em todos os níveis de educação,estamos tratando de uma geração que está intimamente ligada as inovações tecnológicas, imersa em um mundo globalizado que trata da atualização permanente do profissional com afinco.

Negar a este movimento é sonegar o acesso dos indivíduos a processo de inclusão digital que é fato que deve ser iniciado dentro da escola formal. Para isso o ensino superior deve propiciar para seus acadêmicos/as na base através de currículos inovadores que contemplem a disseminação da cultura digital para a sala de aula na formação acadêmica do futuro profissional da educação.

Para finalizar a apresentação dosprocedimentos metodológicos fazemos questionamentos sobre como inserir as tecnologias na sala de aula, e que a partir das sugestões dos participantesdas pesquisas com algumas das respostas dadas é possível perceber que os acadêmicos que participaram das disciplinas que antes não tinham uma visão criticam do uso das tecnologias na sala de aula, mas hoje trazem as possibilidades de uso com sugestões.

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Importante é não sistematizar o uso das tecnologias na sala de aula,apenas com um tipo de tecnologia, mas ensinar o acadêmico/a estar atento ao movimento de inovação que está o tempo todo acontecendo com as tecnologias, desenvolvendo o senso de pesquisador critico reflexivo, a percepção da sensibilidade e criatividadepara fazer adaptações pedagógicas com estes novos recursos que possam surgir. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante de tantas inovações com a sociedade dastecnologias,pode oferecer ao professor possibilidade de criatividade, mas este olhar pode se percebe que tudo depende de um querer fazer, tanto das instituições de ensino superior, oportunizando aos acadêmicos/as espaços de formação e criação de uma cultura digital de uso das tecnologias na sala de aula e de formação permanente dos indivíduos. Para tanto é necessário criar uma cultura que motive o professor a usar de maneiracriativa, usando seu planejamento, como meio de chegar ao desenvolvimento de estratégias inteligentes com a inserção de tecnologias de fácil acesso que estão disponíveis, integrando ao uso nasala de aula poderá constatar que a mesma vai trazer vantagens nos processo de ensinar e aprender, criando ambientes favoráveis à aprendizagem. No momento em que tratamos da formação de professores para a disseminação da cultura digitas de uso de tecnologias na sala de aulas estamos tratando do tema de

qualidade na educação, estes momentos didáticos pedagógicos contribuem para criar ambientes pedagógicos agradáveis, em sintonia com a atualização profissional para o desenvolvimento de novas competências docentes. Para este estudo, concluímos que a partir da disciplina de Educação, mídias e tecnologias alcançaram o objetivo de criar a cultura de uso das tecnologias na sala de aula.Mas, deixamos vários questionamentos para próximos estudos que podem complementar o tema:comooportunizar a forma a partir da cultura digital para os professores que já estão formados no ensino superior? Este é apenas um questionamento, dentre tantos que ainda podemos fazer dentro deste espaço que é tão rico e inovador como o uso as tecnologias e a educação. REFERÊNCIAS BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Média eTecnológica. Parâmetros Curriculares Nacionais: ensino médio. Parte II: Linguagens, Códigos e suas Tecnologias. Brasília: MEC/SEMTEC, 2000. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/14_24.pdf> Acesso em Jan.2015. ____________, Ministério da Cultura. A Cultura Digital. Disponível em<http://www.cultura.gov.br/cultura-digital. Acesso em; fev_2015 KENSKI, V. M. Educação e tecnologias: o novo ritmo da informação. Campinas, SP: Papirus, 2007.

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LÉVY, Pierre. As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da informática. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993. MERCADO, Luís Paulo Leopoldo. Formação Docente E Novas Tecnologias. IV Congresso RIBIE. Brasília 1998. Disponível em: <http://www.ufrgs.br/niee/eventos/RIBIE/1998/pdf/com_pos_dem/210M.pdf> acesso em: Jan.2015. GERHARDT Tatiana Engel, TOLFO e Denise. (org). Métodos de pesquisa. Curso de Graduação Tecnológica – Planejamento e Gestão para o Desenvolvimento Rural da SEAD/UFRGS. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2009. HOFFMAN,Daniela, FAGUNDES, Lea. Cultura digital na escola ou escola na cultura digital?Disponível em <http://www.futura.org.br/wp content/uploads/2011/09/Cultura_digital_na_escola_ou_escola_na_cultura_digital.pdf>acesso em Jan/2015. MORAN, José Manuel Moran. O Uso das Novas Tecnologias da Informação e da Comunicação na EAD: uma leitura crítica dos meios. Disponível em <http://portal.mec.gov.br/seed/arquivos/pdf/T6%20TextoMoran.pdf>Acesso em Jan/2015.

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ARCIMBOLDO: INTER-RELAÇÕES ENTRE ARTE, NATUREZA E SOCIEDADE EM SALA DE AULA

Simone Ballmann de Campos78

Raysa Serafim Farias79

Resumo: Neste estudo o projeto “Arcimboldo” é visto como possibilidade de ler o cotidiano no espaço pedagógico do ensino interdisciplinar de Artes nas séries iniciais da Educação Básica. Para construção da percepção do mundo natural e cultural e as diversas formas de linguagem artísticas desenvolvidas pelo ser humano ao longo da história, os aducandos dos 4ª anos do Ensino Fundamental de uma escola de Florianópolis utilizaram a releitura da obra “As quatro estações”, do artista italiano Giuseppe Arcimboldo (1527-1593). Usando recursos da natureza, tais como frutas, flores e verduras, para compor expressões faciais humanas, constituíram a inter-relação da arte com a agricultura, com a sustentabilidade e com as atividades econômicas e culturais de Santa Catarina. A produção de Arcimboldo está exposta 78 Pedagoga, Psicopedagoga, Mestre em Educação e Cultura (UDESC), Doutoranda em Educação (UFSC), Coordenadora no Centro Educacional Menino Jesus e Professora Efetiva do Curso de Pedagogia pelo Centro Universitário Municipal de São José– USJ , Integrante do GPHIESC: Grupo de Pesquisa sobre História da Educação de Santa Catarina. E-mail: [email protected] 79 Arte educadora , Graduada em licenciatura em Artes Visuais (UDESC), Professora de Artes no Centro Educacional Menino Jesus, Integrante do Projeto Família no Museu e do Grupo de pesquisa - Educação, Arte e Inclusão.

no Museu Louvre, em Paris. Enquanto tal artista compôs sua obra com produtos característicos da Europa, os alunos exploraram preponderantemente aquilo que era oferecido pela agricultura e pela flora catarinense, nas diferentes estações do ano, para construir em telas as imagens das faces humanas. As quatro estações também inspiraram a artista plástica catarinense Vera Sabino, cuja exposição no Museu Cruz e Souza foi visitada pelos alunos e nove professores envolvidos no projeto, que deram continuidade ao processo iniciado em sala de aula, expandindo seu repertório cultural, seus conhecimentos sobre Arcimboldo, o meio ambiente e o mundo, além de oportunizar uma observação mais atenta do mundo. Os depoimentos de alunos e professores sobre o projeto foram documentados e retratam o aprendizado ressignificado. A escola recebe uma geração inserida integralmente na tecnologia digital e as consequências de tão rápidas inovações são acompanhadas por novas representações sociais que, por sua vez, se mediadas adequadamente conduzirão o aluno à reflexão, à inquietação, à problematização de situações que, por sua vez, exigirão maior elaboração intelectual. O projeto Arcimboldo, a partir da disciplina de Artes numa perspectiva da cultura visual (Oliveira, 2014), possibilitou aos alunos criar e apreender várias áreas do saber para efetivar seu desenvolvimento como ser humano, pois a arte, para além das habilidades manuais, afeta a forma de ver e entender o mundo. Palavras-chave: Arte, Montessori, Releitura, Inclusão, Interdisciplinariedade.

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Introdução: Este artigo apresenta e discute a importância de uma educação interdisciplinar, enfatizando a arte como mediação cultural e social. Barbosa (2009) consagra na contemporaneidade o papel da arte na relação dos seres humanos com o meio em que vivem e aponta a arte-educação como a mediadora da leitura do mundo. Os alunos do 4ºs anos e seus professores, de uma escola privada de Florianópolis, público-alvo deste estudo, fizeram um percurso cultural e sócio-econômico pelo estado de Santa Catarina que abriu possibilidades de múltiplas leituras interdisciplinares. Boff (1997,p.9) declara que “cada um lê com os olhos que tem. E interpreta a partir de onde os pés pisam.” As professoras de artes, andarilhas da cultura visual, apresentaram para a turma dos 4ºs anos o artista italiano Arcimboldo e o contato com a obra instigou o grupo a pensar na relação dos elementos utilizados pelo artista e a produção agrícola conhecida anteriormente. O professor neste sentido é um mediador, proporcionando o acesso de outros tempos da história, relacionando a natureza em sua volta, pesquisando junto com os alunos a materialidade através da linguagem da arte. Para Panofsky (1979, p,36.) “a experiência recreativa de uma obra de arte depende não apenas da sensibilidade natural e do preparo visual do espectador, mas também de sua bagagem cultural.” Fazer uma produção artística com elementos da agricultura catarinense, proporcionou o contato sensível com a própria significação do ser humano, do mundo e da cultura.

A reflexão sobre sobre o tema em estudo utilizou como aporte teórico os trabalhos desenvolvidos por Dewey, Montessori, Freire e Barbosa, explicitados durante a primeira parte deste escrito. Já na segunda, procurou-se refletir sobre a prática de arte-educação que envolveu o projeto Arcimboldo e identificar seus desdobramentos, dificuldades e possibilidades. 1 EDUCAR PELA ARTE O acesso das massas à educação, sobretudo a partir do início do século XX, foi acompanhado da necessidade de renovação do modelo de instituição escolar. Assim, novos procedimentos educacionais se constituíram dando ênfase à pratica de atividades de aprendizagem na escola em consonância com o desenvolvimento social do período. Com isso, áreas afins ou não, como a psicologia, as ciências médicas, a arquitetura, a literatura, as artes e outras mais, foram influenciadas e influenciaram uma nova perspectiva para educar a sociedade, que em diferentes países, no e além do Velho Mundo, movimentaram-se na ótica do progresso e da inovação. Nessa perspectiva, John Dewey (1859-1952) acreditava que por meio da educação a criança deveria aprender a lançar hipóteses e a resolver seus problemas, numa atividade intelectual ligada à criatividade. Em 1934 publicou o livro “A arte como experiência”, tendo como base as palestras que proferiu na Universidade de Harward, onde exercia a docência. Para ele a arte espontânea existe quando precedida

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por momentos de longa atividade. “Temos uma experiência singular quando o material vivenciado faz o percurso até sua consecução.” (2010, p.109). O conceito de experiência singular proposto pelo autor dá notoriedade ao processo, à atividade realizada pelo sujeito num espaço que permita o desenvolvimento de uma ação do início ao fim, “de tal modo que seu encerramento é uma consumação, e não uma cessação”. (Idem, p.110). No mesmo prisma, a italiana Maria Montessori (1870-1952), contemporânea de Dewey, postulou que a educação deveria ser compreendida como uma oportunidade “de e para a vida, entendendo que seu sentido está no desenvolvimento do ser, na realização de suas forças interiores, inatas, como condição de libertar o potencial da criança e garantir-lhe o auto-desenvolvimento, por meio de experiências que permitam a auto-estruturação cognitiva.” (ANGOTTI, 2007, p.61). Há um congraçamento entre o que Dewey caracterizava como experiência singular e a educação montessoriana, especificamente no que é relativo à atividade desenvolvida pela criança e à autoeducação. John Dewey fez parte da American Montessori Society, inaugurada em 1913 nos Estados Unidos (ALMEIDA, s.d.) e, portanto, conheceu proximamente o método de ensino aventado pela doutora. Montessori, por sua vez, observou que as crianças revelam ordem, capacidade de concentração, amor à liberdade e à ação, manifestando alegria e satisfação após longas horas de atividades. Assim como Dewey (2010), ela considerava que todo o processo de ação realizado pelo

indivíduo era importante para que uma nova construção de conhecimento se consolidasse.

A criança tem necessidade de aprender e, recebendo a ajuda certa, ela responde com uma concentração surpreendentemente intensa nas tarefas que executa e, mais ainda, executando-as até o fim. A satisfação da criança reside na própria execução destas atividades, que são extremamente significativas para elas, e não da avaliação que o professor possa fazer. (MONTESSORI JR.,1975?, p. 78).

Os pressupostos defendidos por Montessori, Dewey e outros expoentes da Escola Nova possibilitaram que intelectuais e/ou professores, em experiências em grupo ou individuais, incorporassem mudanças no ambiente físico da escola, nos procedimentos metodológicos e recursos materiais, na postura com os alunos e nas relações de aprendizagem. Tal arquétipo também foi vivenciado no Brasil. No final da década de 1940, por exemplo, o professor Erasmo Pilotto (1910-1992), um estudioso de Montessori, Pestalozzi, Gentile, Tolstoi e Dewey (OLIVEIRA & SIMÃO, 2005 ), criou em conjunto com Emma Koch, uma artista polonesa radicada em Curitiba, uma escola de arte na capital paranaense que serviria de referência para as escolas estaduais daquele estado. Com o intuito de educar por meio da arte e da auto-educação, Pilotto acreditava que ambas compusessem a essência de um processo de formação que propiciasse ao educando “ participar da grandeza do mundo, em seu pleno sentido; purificar o homem por via desse esteticismo, da alta disciplina e da sensibilidade, do sentido criador numa

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infinita direção (PILOTTO, 1982, p.39 apud SILVA & VIEIRA, 2014, p.359). Percebe-se, assim, que mesmo de maneira não sistematizada por todo o território nacional, o ideário escolanovista influenciou na concepção de arte-educação que se constituiu no Brasil. Atualmente, Ana Mae Barbosa (AMARAL,2005, p.1) conceitua arte-educação como:

(...) um espaço de e para a vida, entendendo que seu sentido está no desenvolvimento do ser, na realização de suas forças interiores, inatas, como condição de libertar o potencial da criança e garantir-lhe o auto-desenvolvimento, por meio de experiências que permitam a auto-estruturação cognitiva.

De acordo com Barbosa, a principal referência brasileira em arte-educação, o intento de arte na escola como expressão criadora provém do início do modernismo, influenciada pela Bauhaus e pelo estímulo à expressão proveniente das teorias de Freud e Jung. “A função do ensino da arte era produzir soluções para a vida e para o design tecnicamente eficientes, esteticamente prazerosas e socialmente relevantes”. (BARBOSA, 2005, p.59). Atualmente, em nosso país, a arte-educação está conjugada sobretudo ao desenvolvimento cognitivo. “Por meio dele se afirma a eficiência da arte para desenvolver formas sutis de pensar, diferenciar, comparar, generalizar, interpretar, conceber possibilidades, construir, formular hipóteses e diferenciar metáforas.” Ana Mae Barbosa evidencia que as visões de arte-educação “que dizem respeito à nossa história e aos nossos dias no Brasil são em ordem cronológica: a expressão criadora, a

solução criadora de problemas, a cognição e a cultura visual.” (Idem, p.58). É possível perceber, entretanto, que a relação com a cognição também estava presente na proposta montessoriana, assim como o liame que permitia ao educando o acesso à cultura artística historicamente construída. Dewey, por sua vez, intensificou a possibilidades de que a criatividade e as atividades instintivas da criança se expandissem no cotidiano escolar. De acordo com ele (2010, p.5), “aquilo que estivesse pronto e acabado sem qualquer participação criativa, pouco concorreria para o crescimento e a descoberta de novas coisas.” . Dessa maneira, a ação “precede a experiência, o conhecimento ou a aprendizagem, não havendo a possibilidade de se ter conhecimento isolado da ação.” (Idem). Assim, a ideia de se considerar o processo, a criatividade, o conhecimento produzido pela humanidade ou a individualidade do aluno, decorrem do escolanovismo e mantém-se presente na educação hodierna. Ana Mae Barbosa (2009) concluiu junto a seu professor de Português, Paulo Freire, que “a educação é algo reestruturador do indivíduo” (Idem) e utilizou a obra do mestre da educação brasileira ao conceber filosoficamente um trabalho de destaque nacional e internacional desenvolvido com arte-educação. Considerando tal pressuposto, ao estudar as concepções de arte-educação presentes na atualidade, Ana Mae aproxima as teorias dos americanos John Dewey e Elliot Eisner às do brasileiro Paulo Freire. De acordo com ela (Ibidem, p.56), Dewey

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(...) conceitua educação como um processo de aprender, como inventamos a nós mesmos. Paulo Freire, menos confiante nas nossas invenções pessoais, ensinou-nos que a educação é um processo de vermos a nós e ao mundo em volta de nós. Enquanto Einsner enfatiza imaginação, Paulo Freire valoriza-a, mas sugere diálogos com a conscientização social […] Se para Dewey experiência é conhecimento, para Freire é a consciência da experiência que podemos chamar conhecimento. Já Eisner destaca da experiência do mundo empírico sua dependência de nosso sistema sensorial biológico, que é a extensão de nosso sistema nervoso ao qual Susanne Langer chama de órgão da mente. Segundo Eisner, refinar os sentidos e alargar a imaginação é o trabalho que a arte faz para potencializar a cognição.

Sem citar Montessori, Ana Mae também enfatiza a

relação equivalente entre percepção e cognição. Vale enfatizar, porém, que Montessori, na mesma esteira que Eisner, mas com antecedência de décadas, afirmou que “o desenvolvimento da habilidade da mão acompanha, pois, a igual ritmo, o desenvolvimento da inteligência. Certamente o trabalho intelectual de tipo requintado requer, para ser executado, a guia e a atenção do intelecto.” (MONTESSORI, s.d., p.129). Nesse ínterim, por meio da ótica apresentada por Barbosa foi possível identificar que a perspectiva freiriana, mais contemporânea que as escolanovistas, proporcionou que o legado de Dewey, Montessori e Eisner fosse revisitado, considerada a sua influência e relevância para a educação atual, e alcançasse um outro prisma, de cunho eminentemente político-social.

Por que uma educação interdisciplinar especialmente na Arte?

Alunos do 4º ano na construção da releitura. Fonte: FARIAS, 2015 Do que somos formados? O que você tem na cabeça? Qual a relação da terra e de seus frutos com o ser humano? Pensando sobre isso, os 4ºs anos do Ensino Fundamental do Centro Educacional Menino Jesus, uma escola de Florianópolis, SC, escolheram “As quatro estações”, do artista italiano Giuseppe Arcimboldo (1527-1593) para uma releitura.

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Fonte: Série Four Seasons: Primavera, Verão, Outono e Inverno: http://www.abcgallery.com/ A arte de Arcimboldo propõe uma original compreensão da natureza, mas que chegou a ser ridicularizada durante a sua produção no século XVI. Por meio de jogos visuais, nesta coleção o artista compôs quatro obras utilizando frutas e verduras que vistas à distância compunham rostos masculinos.

Entende-se por releitura a criação de uma nova obra, elaborada a partir de outra feita anteriormente, mas com estilo próprio, sem abandonar o tema original. Releitura não é cópia, pois reinterpreta, transforma. A cópia apenas reproduz a ideia do artista. Rossi & Demoliner (2012, p.1) enfatizam que

Talvez não seja fácil, nem possível, para a maioria dos alunos de hoje realizar esse tipo de releitura, porque a releitura é concebida a partir de cada leitura. E, como a educação estética nunca foi prioridade na escola, não surpreende que encontremos alunos, até mesmo no ensino médio, com leituras e releituras que enfocam o tema no sentido estritamente físico, ficando, assim, muito próximas do texto lido.

Enquanto Arcimboldo compôs sua obra com produtos característicos da Europa, os alunos do 4º ano e suas professoras80 exploraram preponderantemente aquilo que era oferecido pela agricultura e pela flora catarinense, nas diferentes estações do ano, para construir em telas as imagens das faces humanas. Estudaram também questões sócio-econômicas e de sustentabilidade relativas à produção e à alimentação catarinense. Assim, feijão, cebola, abóbora, milho, cascas de maracujá, sementes e grãos, flores, folhas, conchinhas das praias de Florianópolis, galhos de árvores

80 Participaram deste projeto as professoras: Andrea Livramento, Micheline Barros, Raysa Serafim Farias, Rozana Moliner de Carvalho, Sônia Buss dos Santos, Simone Ungaretti, Alexandra Frecchia, Maria da Graça Berber e Juliana Delfes.

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nativas, etc, foram utilizados como base na construção das imagens. E, por o grupo constituir-se de crianças em torno dos nove anos, em que o processo de abstração e de desenvolvimento estético está em fase de consolidação, e em consequência o afastamento da obra original para releitura pode ser mínimo (ROSSI&DEMOLINER, 2012), optou-se por manter o gênero e o formato apresentado pelo artista milanês em suas telas, reinterpretando os materiais utilizados e suas características. De acordo com uma das professoras envolvidas no projeto:

Ele nos traz, com suas obras exóticas, uma reflexão sobre o que nos constitui, a nossa relação com os elementos da natureza. Nossa série dedicou-se também a conhecer as atividades econômicas de Santa Catarina, e viu na agricultura catarinense uma grande fonte de inspiração para este projeto (CARVALHO, 2015).

Neste estudo, o projeto “Arcimboldo”, com uma semiótica ímpar, foi visto como possibilidade de ler o cotidiano no espaço pedagógico do ensino interdisciplinar de Artes nas séries iniciais da Educação Básica. Para construção da percepção do mundo natural e cultural e as diversas formas de linguagem artísticas desenvolvidas pelo ser humano ao longo da história, os alunos estudaram e discutiram sobre a obra “As quatro estações”, revelando outras nuances do cotidiano que os cerca.

Para Costa (2004) o processo artístico está em todos os lugares e situações, relacionando-se intimamente à história da humanidade, à natureza humana e ao seu simbolismo. É

no mundo de imagens, de sons e movimentos que a herança cultural impera, despertando reflexões. Nos dias atuais, diante do efêmero, do globalizado, da internet, apesar de constituir-se como produto da fantasia e da imaginação, a arte relaciona-se e é influenciada pelos padrões sociais. O mesmo ocorreu com a produção artística em outros períodos históricos, cuja composição entrelaçou-se entre o legado político-social e a história pessoal de cada artista. A arte muda a forma como enxergamos o mundo, é provedora de aprendizados e por isso deve permear diferentes disciplinas das práticas pedagógicas, estimulando a imaginação para o gosto pelo conhecimento. O ensino da arte na escola deve compreender o entorno, desmistificando o mundo próprio da arte, de modo que se leve “em conta que nas imagens há muito mais do que vemos e isso possibilita investigação sobre os discursos que as mediam” (HERNANDEZ apud FRANZ, 2003, p. 112) Neste sentido, Freire (1992) afirmava que o ato educativo deve ser um ato de re-criação, de re-significação, tanto na perspectiva cognitiva quanto na social e política. Para que isto ocorra, a aula deve ser aberta ao diálogo, permitindo que o aluno se manifeste e exercite uma reflexão mais profunda acerca da obra, do artista e do que os cerca na contemporaneidade.

Se a arte é produção sensível, se é relação de sensibilidade com a existência e com experiências humanas capaz de gerar um conhecimento de natureza diverso daquele que a ciência propõe, é na valorização dessa sensibilidade, na tentativa de desenvolvê-la no mundo e para o mundo

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desenvolvê-la, que poderemos contribuir de forma inegável com um projeto educacional no qual o ensino da arte desempenhe um papel preponderante e não apenas participe como coadjuvante. (BUORO, 2002, p.41).

Barbosa (2005), por sua vez, afirma que a arte interfere no desenvolvimento do intelecto, sobretudo na ampliação da capacidade de ler, escrever, explicitar a oralidade, aprimorar o foco de atenção e a inteligência espacial. A partir dos estudos de Cattedal ( s.d.), a autora destaca que atualmente há mais pesquisas sobre como o teatro e a música agregam benefícios para a performance acadêmica das crianças, em detrimento de outras áreas, como as artes visuais. Contudo, de maneira generalizada, as artes também elevam as habilidades sociais como a resolução de “conflitos, a facilidade de expressão, persistência, imaginação, criatividade, espírito de colaboração, cortesia, tolerância, etc” (Idem). Isso pode ser comprovado por intermédio do projeto de arte visual denominado Arcimboldo, pois mediante aos trabalhos em grupo e à coleta de materiais para a composição da obra, as habilidades sociais e cognitivas foram exercitadas constantemente. Identificando o indivíduo como um ser integral, Maria Montessori calcou-se em princípios científicos ao defender o ensino ativo, a atividade livre, a auto-educação e, concomitantemente, o desenvolvimento sensório-motor, cognitivo e social do aluno. Hernandez (1998) por sua vez, ao propor que o ensino não deva estar fechado em gavetas, de forma linear e por disciplinas, mas em espiral, promovendo

as inter-relações entre as diferentes fontes curriculares e os desafios impostos pelo cotidiano, afirmou que "todo ponto de chegada constitui em si um novo ponto de partida" (Idem, p.48). Essa é também uma das diretrizes da proposta de trabalho montessoriana, na qual a possibilidade de conexão entre saberes ocorre constantemente, num panorama interdisciplinar. Neste horizonte, a concepção sobre interdisciplinariedade apresentada por Barbosa (2015, p.4) comunga com os autores anteriormente citados e com a pretensão de reflexão deste estudo:

Interdisciplinaridade é trabalho de várias cabeças provocando as possibilidades do aluno estabelecer diferentes links. Não se faz interdisciplinaridade somente com conversa de corredor. Também não é necessário que dois ou mais professores estejam juntos, ao mesmo tempo na sala de aula. É necessário um projeto conjunto, que cada um saiba o que o outro vai ensinar e como; enfim comunalidade de objetivos e ações. Mas, principalmente se faz necessária a constante revisão conjunta de resultados.

Perceber que o trabalho conjunto exige planejamento, discussão e revisão constante dos objetivos, observando se o alcance dos mesmos colabora com o crescimento do grupo de alunos, faz parte do trabalho interdisciplinar. Pois, todo projeto precisa estar disponível à revisão, à re-significação durante a sua produção. Como afirmou Dewey (ALI, 2014) veementemente, num raciocínio com o qual a essência montessoriana se identifica, o processo é tão importante quanto o produto. De acordo com Lillard (2013, p.4, tradução

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nossa), a educação montessoriana “incorpora liberdade dentro da estrutura e estrutura dentro da liberdade”, ou seja, ao mesmo tempo que possibilita a liberdade de escolha e valoriza a ampliação do conhecimento, arquiteta materiais específicos para o desenvolvimento de certas habilidades cognitivas. Então, numa escola montessoriana, a proposta interdisciplinar convive com a liberdade responsável que possibilita aos alunos e aos seus professores criar, construir conhecimento, a partir de regras de convivência, de formalização de ações e de organização estabelecidas em grupo. Já no livro “Montessori: a ciência por trás dos gênios”, ainda sem tradução para o português, Lillard apresenta princípios do método Montessori, segundo suas pesquisas relativas ao mesmo, dentre os quais: a conexão entre movimento e cognição; a ampliação do conhecimento e da condução aos interesses pessoais promovida pela auto-educação; a interferência na aprendizagem promovida pela premiação dos alunos; a contribuição dos trabalhos colaborativos e dos contextos significativos para o aprender individual; a liberdade responsável do aluno mediada pelo professor; a influência do ambiente organizado na promoção da aprendizagem. Estes atributos da educação montessoriana coincidem em vários aspectos com o que Barbosa anuncia, com fundamentação freiriana, como sendo as possibilidades de emancipação do aluno por meio da arte-educação:

Dizer que a arte possibilita que os indivíduos estabeleçam um comportamento mental que os leva a comparar coisas, a

passar do estado das ideias para o estado da comunicação, a formular conceitos e a descobrir como se comunicam esses conceitos. Todo esse processo faz com que o aluno seja capaz de ler e analisar o mundo em que vive, e dar respostas mais inventivas. [...] A arte não tem certo ou errado, o que é muito importante para as crianças que são rejeitadas na escola por terem dificuldade de aprender, ou problemas de comportamento. Na arte, eles podem ousar sem medo, explorar, experimentar e revelar novas capacidades.

Nesta acepção, pode-se estabelecer a relação entre a arte e a inclusão numa dimensão em que o conhecimento provém de um caleidoscópio de experiências mediadas entre o indivíduo e o social. O nome caleidoscópio deriva das palavras gregas “kalos”, belo, bonito; “eidos”, imagem, figura; e “scopein” , olhar, observar. É assim que a arte se apresenta no contexto da inclusão, como possibilidade de expressão livre, como canal pelo qual a criança exterioriza seus sentimentos. Dessa forma, mesmo que o próprio Arcimboldo em sua época recebeu reprimendas sociais pela inovação artística que propôs, na sociedade atual a multiculturalidade permite a renovação permanente, sem desconsiderar o que já foi construído, e uma miríade de expressões. Ao se deparar com atividades onde a lógica não seja o certo ou o errado, mas o ousar, permite-se à criança expandir seu raciocínio e as maneiras de perceber o mundo e àqueles com quem convive.

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A abertura ao inusitado possibilitou um desdobramento da efetivação da atividade, pois ao se constatar que “As quatro estações de Arcimboldo” também haviam inspirado a artista plástica catarinense Vera Sabino, sua exposição no Museu Cruz e Souza foi visitada por alunos e professores envolvidos no projeto, que deram continuidade ao processo iniciado em sala de aula, expandindo seu repertório cultural. Atualmente a coleção de Arcimboldo está exposta no Museu Louvre, em Paris. Com a visita à exposição no museu Cruz e Souza, na capital catarinense, também se oportunizou a aproximação entre o museu e a escola, nem sempre propiciada pelas escolas brasileiras.

Primavera e verão. Fonte: CAMPOS, 2015.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: A escola recebe uma geração inserida integralmente na tecnologia digital e as consequências de tão rápidas inovações são acompanhadas por novas representações sociais que, por sua vez, se mediadas adequadamente conduzirão o aluno à reflexão, à inquietação, à problematização de situações que, por sua vez, exigirão maior elaboração intelectual. O projeto Arcimboldo, a partir da disciplina de Artes numa perspectiva da cultura visual, possibilitou aos alunos criar e apreender várias áreas do saber para efetivar seu desenvolvimento como ser humano, pois a arte, para além das habilidades manuais, afeta a sensibilidade e a forma de ver e entender o mundo. Ao final da experiência de convivência e troca desenvolvida, percebeu-se que tanto o grupo de professores como os alunos dos 4º anos demonstraram prazer por terem realizado o projeto coletivo, por terem-se dado oportunidade de inovar, por conseguirem conviver e superar as facilidades, as dificuldades e as resistências que sempre ocorrem no processo. O papel que a arte exerce nesse decurso não é formar artistas, mas gerar conhecimento, e foi através do convívio da turma com a construção da proposta que se obteve não um produto pré-concebido, mas uma leitura de imagem do mundo sob o enfoque da agricultura catarinense, numa possibilidade estética revelada no cotidiano. Ao se buscar uma maneira de expressão por meio das artes, a comunicação é articulada pela emoção, pela imaginação e sensibilidade que, por sua vez, apresentam novas formas de

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agir e atuar no local em que se vive e favorecem a inclusão, a humanização e um canal de ligação com a cultura produzida. O enfrentamento de novas situações no universo escolar, num processo permanente de refazer e reajustar a atividade para alcançar o objetivo de promover o crescimento pessoal e coletivo, além da produção do conhecimento, é mais trabalhoso, porém mais digno de uma educação na vida e pela paz. Nesse sentido, o discernimento político ocorre em consequência do ao educativo, na relação que o indivíduo estabelece consigo, com o grupo e com o conhecimento. A ampliação e análise circunscrita à arte para outros forames possibilita que o acesso à cultura se expanda e, também, que à cultura se incorporem outros valores. Neste projeto de muitas mãos, que não foi o primeiro realizado pelo grupo de professores, comprovou-se novamente o quanto o trabalho em equipe necessita do auxílio, planejamento e engajamento de todos e que a arte-educação, além do seu papel como como disciplina curricular, pode ser um viés para que outros conhecimentos sejam agregados e fundidos. Educar com arte era a proposta do educador Erasmo Pilotto, um brasileiro cujo legado também precisa ser revisitado. REFERÊNCIAS: ALI, Thaís. Crescimento: John Dewey e sua contribuição à noção de formação no pensamento pedagógico moderno. Dissertação de Mestrado, UFSC. Florianópolis, SC, 2014.

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ANTROPOLOGIA E EDUCAÇÃO: POLÍTICAS PÚBLICAS, PROJETOS E

PROGRAMAS EDUCATIVOS E DESIGUALDADE SOCIAL

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EDUCAÇÃO CONTINUADA: UMA POSSIBILIDADE DE UM OLHAR LUXUOSO DOS EDUCADORES DO ENSINO SUPERIOR

Izabel Cristina Feijó de Andrade81

Resumo: As atuais exigências oriundas das reformas educacionais, especialmente as vinculadas à Formação Continuada dos docentes do Ensino Superior, impõem o desafio de fazermos uma reflexão sobre qual o interesse do Centro Universitário Municipal de São José (USJ) no investimento em Formação Continuada, que contemple e enriqueça a autoformação de seus educadores para o desenvolvimento de uma Educação para a Inteireza em suas diferentes dimensões: corpo-mente-coração-espírito para, assim, contribuir com a melhoria do Ensino Superior. Essa pesquisa está vinculada ao grupo de Pesquisa EduSer/PUCRS e utiliza a abordagem qualitativa para sustentar a investigação, que parece nos levar a uma atividade orientada a maior compreensão dos fenômenos educacionais, entre eles, a autoformação do educador, na perspectiva transdisciplinar para a inteireza do ser. Das análises emergiram as seguintes categorias: a) Das intenções de Formação Continuada às evidências racionalistas: o

81 Doutora em Educação, PUCRS, Vice- Reitora Acadêmica e professora do Centro Universitário Municipal de São José. 2ª Líder do grupo EduSer/PUCRS, [email protected]

desafio de fazer-se educador no caminho vivido; b) Necessidade marcada pelo travessão existencial autoformativo. Sob esse viés, é preciso reinventar a aventura da Formação Continuada levando-se em consideração, também, os aspectos humanos, uma vez que esse momento pode representar uma experiência fundamental na formação profissional do educador. Enfatizaram os gestores entrevistados, serem oferecidas oportunidades de ações de caráter formal, centradas em capacitações externas e sem consulta prévia ou avaliação posterior dos educadores, chegando alguns depoimentos a alertar sobre a oferta de capacitações com temas que nada acrescentam ao exercício da docência, tornando-se desinteressantes e até desnecessárias. Além disso, evidenciaram os financiamentos em participação em eventos científicos, está atrelada a aceitação de trabalho científico. Ao privilegiar os aspectos humanos, sem negar os políticos, culturais, epistemológicos e sociais da formação, podemos ressaltar que esses são potencializadores de sinergias que articulam o conhecimento não formal, experiência com o conhecimento formal, numa lógica interativa em que a ação (extensão), a investigação (pesquisa) e a formação (ensino) estão presentes. Palavras-Chave: Transdisciplinaridade. Autoformação. Inteireza do ser. 1 INTRODUÇÃO As atuais exigências oriundas das reformas educacionais, especialmente as vinculadas a Formação

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Continuada (FC) dos docentes do Ensino Superior, impõem o desafio de fazermos uma reflexão sobre qual o interesse do Centro Universitário Municipal de São José (USJ), no investimento em Formação Continuada que contemple e enriqueça a autoformação de seus docentes para o desenvolvimento de uma Educação para a Inteireza em suas diferentes dimensões: corpo-mente-coração-espírito para, assim, contribuir com a melhoria da qualidade social do Ensino Superior. Para tanto, foi necessário analisar os entendimentos de Formação Continuada: nutridos e proporcionados pelos gestores do USJ; avaliar em que possibilidades de ações de Formação Continuada o USJ vêm investindo; analisar os interesses e contribuições/repercussões dos Programas de Educação Continuada propiciados pelo USJ na construção pessoal (Inteireza) e profissional de seus docentes; oferecer pontos de referência que contribuam com os programas informais e formais de Formação Continuada oferecidos em nível de graduação e pós graduação para contemplarem, em seus currículos, propostas que contribuam para o desenvolvimento das diferentes dimensões – físico, emocional, intelectual e espiritual do docente enquanto Ser Integral.

Essas intenções estão respaldadas pelo Grupo de Pesquisa Educação para Inteireza: um (re)descobrir-se (EduSer), do Programa de Pós Graduação em Educação da PUCRS e acompanhando as pesquisas desenvolvidas pelo mesmo, lanço-me ao desafio dessa pesquisa que traz para reflexão o seguinte questionamento: “É de interesse do

Centro Universitário Municipal de São José/SC investir na Formação Continuada de seus educadores numa perspectiva autoformativa fundamentada na Educação para a Inteireza?” Esse questionamento é uma extensão da pesquisa do EduSer intitulada “Autoformação de professores numa perspectiva de uma educação para a inteireza: um interesse das IES?”, que está sendo realizada no período de 2012 a 2013. Essa escolha, por mim assumida, passou a exigir uma reflexão no sentido de repensar a caminhada numa dimensão do educador a partir da humanização, ou seja, dos aspectos humanos que compõem a sua inteireza. Elementos esses próprios da dimensão existencial: interioridade, subjetividade, consciência corporal e espiritual, autoconceito, sensibilidade, amorosidade, articulados num todo complexus das dimensões didáticas e experienciais que são constitutivas da vida do educador e que necessitam estar presentes na Formação Continuada.

Esta reflexão sobre a experiência permite perceber a autoformação como um ponto de articulação das diferentes fontes de formação e especificar dimensões: • Uma dimensão experiencial, prática e social que articula o pólo eco e auto graças à formação experiencial; • A dimensão didática que articula o pólo eco e auto graças à formação existencial e formal; • Uma dimensão existencial, que engloba conjunto, porque dá sentido e motivação para aprender (Clénet, 2006, p.3). Essa perspectiva também é sinalizada por Wilber

(2006a, p. 18), quando afirma que “aqueles que se preocupam apenas com soluções externas estão contribuindo para o

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problema” da formação de educadores. Para Clénet (2006, p. 5) as

(...) dimensões existencial, experiencial e didática são fontes de aprendizagem complementares que se articulam as necessidades e situações. A autoformação não é uma prática educativa, porque não é uma ação do formador. É definida como uma ação reflexiva sobre o tema da sua formação em uma abordagem abrangente para construir autoconhecimento e desenvolvimento (Clénet, 2006, p. 5).

Essas dimensões inscrevem-se num movimento de

transformações profundas na Formação Continuada dos educadores, que relaciono a uma mudança própria de paradigma. Para justificar meu propósito, apoio-me nos significados já evidenciados no projeto de pesquisa do Grupo em que o conceito de Educação para Inteireza se expressa como:

(...) uma proposta de autoconstrução do Ser Humano,voltada para interioridade do próprio Eu, redescobrindo-se em suas dimensões constitutivas-social, emocional, espiritual e racional, que desenvolvidas de forma equilibrada são essenciais para a ressignificação de sua dignidade”, (Enciclopédia de Pedagogia Universitária, Glossário, vol 2, 2006, p. 77).

Nesse contexto, busco dialogar com a “autoformação,

que é um componente da formação considerado como um processo tripolar, pilotado por três princípios: si (autoformação), os outros (heteroformação), as coisas (ecoformação)” (Galvani, 2002, p. 1), sustentada pelos

pressupostos da transdisciplinaridade. Assim, apresento a autoformação como uma possibilidade do caminho que se entrecruza com outros percursos, os quais vão proporcionar uma transformação na Formação Continuada dos educadores a partir da abordagem transdisciplinar. Esta abordagem combina com uma visão global sã e equilibrada da condição humana de existência, na qual corpo-mente-coração-espírito estão contidos na inteireza do ser. Na verdade, o desafio consiste em:

Estar inteiramente à vontade no corpo e com seus desejos, com a mente e suas ideias, com o espírito e sua luz. Assumi-los inteiramente, plenamente, simultaneamente, uma vez que todos são igualmente manifestações de Um e único saber. Vivenciar a paixão e vê-la funcionar; penetrar nas ideias e acompanhar seu brilho; ser absorvido pelo Espírito e despertar para a glória que o tempo esqueceu de nomear. Corpo, mente e espírito, totalmente contidos, igualmente contidos, na consciência eterna que é a essência de todo o espetáculo. (Wilber, 2009, p. 61-62).

Nessa perspectiva de conexão corpo-mente-coração-

espírito, Portal (2012, p.2), afirma que o desenvolvimento da inteireza, desafia a produção científica e a exigência legal da formação nas IES que se apresentam frágeis e “quase nada vem contribuindo para que o ser humano possa encontrar-se, constituir relações sociais passíveis de reconciliação de si e, consequentemente, da sociedade” (p.2). Os estudos de Tardif (2002), Moraes(2004), Josso (2007) são partícipes da ideia de que o educador precisa ser considerado na sua existencialidade, na sua Formação Continuada e na sua

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história de vida, o que legitima a compreensão das bases subjetivas do trabalho profissional e dos aspectos humanos que a compõe em sua inteireza. Nesse sentido, considero que a Formação Continuada se apresenta como a religação da educação com o belo, a abundância e a vida, com as dimensões didática, experimental e experiencial.

A ideia de ampliar o projeto do Grupo de Pesquisa EduSer para o Centro Universitário Municipal de São José, está atrelado a minha vivência de coordenadora do Curso de Pedagogia, por quatro anos e de Vice Reitora Acadêmica em que percebo a desarticulação entre a FC, os projetos de Pesquisa, Cultura e Extensão executados pelo USJ e, os desejos dos educadores. O que está na contramão da prática formativa continuada proposta por esse grupo de pesquisa, que provoca no pesquisador a necessidade de pensar na conexão corpo-mente-coração-espírito e a profunda cisão entre educação e vida.

Diante das pesquisas realizadas pelo EduSer pode-se afirmar que a Formação Continuada oferecida pela IES, de modo que o educador não encontra sentido de vida alargando a distância entre o que sabe, estuda e pesquisa, num discurso tecnicamente belo e competente, mas nutrido por uma prática diferente da realidade almejada. O que é revelador de frustração, medo, ausência no trabalho e docência sem sentido. Assim questiono: Teria o educador consciência do seu propósito existencial? Onde ele encontraria alimento para se entusiasmar por sua ação docente? Essas inquietações nos remete a Andrade (2011) que afirma que a formação dos educadores precisa estar

alicerçada, também, nos aspectos humanos, além dos sociais e políticos. Uma Formação Continuada, centrada nos aspectos humanos, requer um educador que conhece a si mesmo e aos outros e que compartilha um destino comum.

A Formação Continuada na perspectiva de Inteireza do ser, então direciona a compreensão dos “seres humanos que se autoconhecem e que se percebem enquanto pessoa”, que têm uma abertura maior para entender o outro como igual, mas que entre eles e o outro existem outros espaços, lacunas e pontes que os diferenciam, num movimento antagônico e complementar de inclusão e exclusão. (Morin, 2003). Suas preocupações são voltadas “para a emoção, a intuição, a espiritualidade e o bem estar físico de todos”. Sua identidade é singular e plural ao mesmo tempo, pois, sem perder sua identidade, só se faz presente, no mundo, com os outros. Além disso, temos a necessidade da Formação Continuada discutir aspectos políticos e sociais da formação e que é bem expressada por Moraes (2007, p.15):

Sabemos que o problema da formação docente passa necessariamente por uma discussão profunda e abrangente que perpassa vários aspectos de extrema importância e que estão relacionados à necessidade de uma revisão significativa nas bases constitutivas dos sistemas educativos, como condição efetiva para um melhor equacionamento da problemática que afeta a formação docente. Passa, portanto, não apenas pelos aspectos pedagógicos, mas também pelas condições de trabalho, de emprego e pela deterioração salarial entre tantas outras variáveis importantes. O Pensamento Eco-Sistêmico, fundamentado na complexidade, exige o repensar a

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docência de um modo mais articulado, integrado e competente.

Os resultados evidenciados na Pesquisa Universal

(EduSer-CNPq), também utilizada como inspiradora desse projeto, apontam que a Formação Continuada oferecida pelas IES participantes, estão relacionadas “muito mais a uma exigência externa de avaliação institucional do que o interesse para a atendimento a uma necessidade sentida, reconhecida muito mais pelo investimento as dimensões cognitiva/intelectual, em detrimento das demais: física, social, emocional e espiritual” (Portal, 2012, p.15)

Essa perspectiva nos faz pensar sobre o Centro Universitário Municipal de São José/SC e evidenciar o que foi oportunizado e incentivado aos seus educadores em seus sete anos de existência. Estamos imersos num contexto de Formação Continuada em que o educador tem que tomar decisões significativas e criativas e que, em sua didática, a pesquisa transpareça como foco essencial, reconhecendo-se na complexidade do mundo. Isso equivale dizer que não basta introduzir alguns conceitos novos nos conteúdos abordados na FC, mas implica “mudança de pensamento” (Galvani, 2008), tanto da IES quanto dos educadores e gestores envolvidos. Morin(2006ª), Wilber (2007b) e Galvani (2008) vêm propondo, às IES adormecidas, outro modo de perceber a Formação Continuada.

A maior parte dos problemas humanos e, especialmente os da educação, da aprendizagem e da formação são problemas vagos e complexos. Estudando a compreensão interpessoal, a motivação para aprender, ou a dinâmica de um grupo de

aprendizagem, percebe-se que se trata de problemas cuja solução é sempre ambígua, contendo um pouco de paradoxo dialógico ligado à autorreferência dos sujeitos e à sua interdependência com o meio ambiente. (Galvani, 2008, p. 3).

A Formação Continuada, enquanto dimensão integral, produz um sentido coerente ao longo de toda a vida do educador por meio das múltiplas interações com o outro e que nos liga ao nosso contexto. “Essas múltiplas interações estão presentes também nas dimensões existencial, experimental e didática que compõem a vida do educador como uma ação reflexiva para a construção do autoconhecimento” (Andrade, 2011, p. 118). Sobre esse assunto, ressalto que a Formação Continuada estabelece uma relação direta com sua existência. Nessa direção, as dimensões que complementam na vida do educador são percebidas e relacionadas, legitimando-se, também, a própria Formação Continuada a partir de retroalimentações conscientes que compõem a inteireza do ser. Essa ampliação da consciência do IES proporciona aos educadores a abertura, o rigor e a tolerância para ser-no-mundo-com-os-outros.

2 METODOLOGIA

A abordagem qualitativa sustenta esta pesquisa e dá

clareza no caminhar. Um caminhar que parece levar uma atividade orientada à maior compreensão dos fenômenos educacionais, entre eles, a autoformação do educador, na perspectiva transdisciplinar para a inteireza do ser. Nesse posicionamento buscamos estruturar interpretações

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provisórias visando uma construção possível e viável para a minha caminhada. Tenho consciência de que a pesquisa, sendo uma atividade humana integral, carrega, portanto, valores, desejos, interesses, que emergem de minha própria experiência, tornando indiscutivelmente uma pesquisa qualitativa. Nesse sentido, Minayo (2006), afirma que a pesquisa qualitativa responde a questões particulares, aprofundando-se no mundo dos significados, das ações e das relações humanas, um lado não perceptível e não captável em equações, médias e estatísticas. Assim, a estratégia metodológica compreendeu uma etapa exploratória em que se procurou ter acesso ao campo de investigação junto ao USJ, intencionalmente escolhido, do qual buscamos obter informações a respeito dos possíveis participantes da pesquisa (gestores de FC, Vice-Reitores administrativos e acadêmicos, coordenadoras de Curso e possíveis Gestores de Centros Específicos de Educação Continuada).

Para a presente etapa foram previstos o contato com os participantes da pesquisa do USJ, para apresentação do projeto e assinatura de Consentimento Livre Informado, em caso de aceite, o agendamento das entrevistas individuais com os participantes do estudo. Os participantes relacionados se constituíram de cinco profissionais que aceitaram participar da pesquisa.

Outra etapa, foi a de campo em que optamos realizar um levantamento bibliográfico da fundamentação teórica que auxiliou na compreensão da problemática abordada nessa pesquisa. Essa revisão foi objeto de debate e discussão ao longo da pesquisa junto ao Grupo de Pesquisa EduSer,

envolvendo seus participantes. A análise dessa literatura buscou, também, identificar e aprofundar conceitos centrais que emergiram durante o processo de investigação: Instituição de Ensino Superior, Educação Continuada, Autoformação e Educação para a Inteireza para se pensar uma epistemologia em que as experiências de vida venham a contribuir no sentido de uma saber viver a própria existencialidade.

Foram realizadas as entrevistas semi-estruturadas para perceber as compreensões e trajetórias do USJ, em suas ofertas de Formação Continuada propiciadas aos seus educadores e como percebem integrar essas ofertas em suas experiências de vida pessoal/profissional em direção a uma autoformação que contemple seu Ser de Inteireza, deixando perceber no exercício de suas práticas docentes. Para analisar os dados, utilizamos o respaldo teórico de Moraes e Galiazzi (2007) porque tal ferramenta propicia a possibilidade de analisar partes do texto disponíveis, sem perder a visão do todo. Dessa análise emergiram as seguintes categorias: Das intenções de Formação Continuada às evidências racionalistas: o desafio de fazer-se educador no caminho vivido; e, Necessidade marcada pelo travessão existencial autoformativo.

Essas duas categorias emergentes marcam a trajetória de uma gestão pautada no modelo cartesiano de se fazer-se homem, sem levar em conta desejos individuais de auto realização dos educadores. Isso nos revela uma relação adversa entre o proposto pelos gestores do USJ e os interesses dos educadores. O que também evidencia que a Formação

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Continuada se configura como um caminhar na contramão da complexidade. No entanto, vamos deixar mais claro nas análises, mesmo que provisoriamente, as principais ideias e conceitos que os gestores do USJ têm sobre a Formação Continuada;

3 DAS INTENÇÕES DE FORMAÇÃO CONTINUADA ÀS EVIDÊNCIAS RACIONALISTAS: O DESAFIO DE FAZER-SE EDUCADOR NO CAMINHO VIVIDO

Essa pesquisa apresenta que é viável e possível a

construção de uma proposta de Formação Continuada em que a abordagem transdisciplinar, a autonomia, a alternância, a parceria e a competência dos educadores estejam presentes em todas as ações desenvolvidas no USJ. No entanto, o processo vivenciado tem raízes racionalistas com fortes zonas de resistência por parte dos gestores.

A necessidade da abordagem transdisciplinar, que contemple integralmente os processos de Formação Continuada dos educadores do USJ, nos impulsiona a perceber o conhecimento como uma construção/reconstrução sistêmica que leva em conta a relação tripolar: auto-hetero-ecoformativa. No entanto, os gestores entrevistados, em sua maioria, revelam que os propósitos pensados no USJ têm base sólida na visão neoliberal. Essa evidência se explica pelas ofertas propiciadas no USJ de Formação Continuada e que foram explicitadas pelos entrevistados: “Nós da reitoria oferecemos vários Cursos (Semestral), Seminários (Anual), Palestras (Semestral), e participação em Congressos (Bienal).

Esse é um exemplo razoável de atualização e capacitação docente, pois muitos que aqui vem trabalhar têm outra profissão e vêm ampliar a sua função no período noturno. Não investimos muito nesses educadores”.

Ao mesmo tempo, que isso ocorre, podemos ressaltar que o projeto neoliberal implementado pelas políticas públicas trata a Formação Continuada como algo simplista e fragmentado, tornando o professor vulnerável e com baixo prestígio (Maciel, 2004). Essa diversidade de profissionais apontada pelo entrevistado, que se vinculam à docência superior é bastante retratado pelos estudiosos da área (Pimenta; Anastasiou, 2005; Mello, 2007) e confirmam a tese de que, muitas vezes, a prática docente é exercida como uma atividade secundária. Mas, será que alguém já os ouviu para saber se realmente esse é o propósito deles? Alguns entrevistados afirmam que: “Minha participação nas organizações da Formação Continuada aconteceram apenas como colaboradora, não fui consultada. O que percebi é que essas ações foram oferecidas com profissionais de renome, (...) mas o que faltou foi uma pesquisa de satisfação junto aos docentes, para saber suas necessidades ou o que perceberam do curso, para a próxima Formação Continuada ficassem mais em sintonia com o que os docentes almejavam”. “O investimento nos educadores é muito pouco”; “O que temos são fragmentos de Formação Continuada que podem ser sintetizados como pequenas capacitações e investimentos que não incentivam os educadores”.

Diante desses três depoimentos e buscando nos entrevistados pistas de investimentos na Formação

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Continuada dos educadores no USJ temos a seguinte engrenagem (figura 1):

Figura 1: Investimentos na Formação Continuada

Fonte: Elaborado pela Autora, 2013.

Essa engrenagem evidencia que os investimentos ainda estão vinculados às questões externas ao educador e, mesmo assim, atividades de participação em seminários, congressos, grupos de estudos, projetos de extensão, de cultura e pesquisa não aparecem como relacionados à Formação Continuada.

É importante ressaltar que alguns dos gestores do USJ reconhecem a importância da Formação Continuada como forma de valorização docente, mas não têm autonomia para desenvolver, implementar ou consolidar uma política de FC, na busca de promover a melhoria da qualidade das funções de ensino, pesquisa e extensão, como o depoimento revelado por um dos entrevistados: “Eu entendo que a Formação Continuada oferecida aqui no USJ para educadores é como um processo que está para começar. O próprio conceito de

Formação Continuada ainda não foi questionado, nem mesmo refletido pela comunidade acadêmica, e está muito distante dessa noção de riqueza humana que comporta a inteireza. (...) Geralmente, é um evento que consiste de uma palestra, mas apesar do nome FC, ele não tem uma ligação mais pedagógica do que se entenderia por FC, na realidade está mais próximo de uma atividade de abertura de semestre. Nesse sentido, o USJ ainda tem que refletir sobre essa noção de Formação Continuada para que ela possa germinar, porque a semente ainda não se abriu”. A postura humanizadora se aproxima da perspectiva defendida nesse artigo, que é noção de autoformação que se trata de um processo que inclui articulação retroalimentada entre dimensões cognitivas e emocionais, individuais e coletivas, pessoais, materiais e culturais, procedimentais e atitudinais, críticas e valorativas das próprias capacidades, habilidades, recursos e limitações.

Para Ferreira (2005) abordar a construção e o desenvolvimento do conhecimento dentro da cultura neoliberal já instalada é o desafio que a Universidade terá que enfrentar para encontrar novos modos de produzir ou lidar com o conhecimento transdisciplinar, estes são bem diferentes dos adotados pelo processo neoliberal, pois percebemos que os educadores e o mundo se integram, se influenciam e se modificam num movimento recursivo, holográfico e sistêmico. Essa perspectiva vem ao encontro de um dos depoimentos dos entrevistados: “A compreensão de ser humano nesta dimensão é a compreensão de ser humano de uma perspectiva que vai fundamentar uma ideia de

BancasdeTCCdosacadêmicosdegraduaçãodo

USJ

CursosinternosdoUSJ

PalestrasInternasdoUSJ

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Formação Continuada bem mais radical, vai pensar o ser humano na sua concepção integral. Eu diria que o modelo que está sendo utilizado no USJ é um modelo quase neoliberal que pensa o ser humano na dimensão racional, corpo e mente, no sentido de priorizar apenas a contribuição meramente racional, em um sentido mais instrumental” e completamos, de sobrevivência.

Ferreira (2008) nos alerta sobre como a Universidade deve se comportar nos dias atuais, pois não basta repensá-la a partir de velhos paradigmas. O emergencial é buscar fundamentos novos, adequados ao nosso viver, que tragam em si a promessa de possibilidades futuras reais, capazes de reconstrução do Mundo, voltadas para a inteireza do ser. No entanto, no USJ as iniciativas se fortificam institucionalmente: “por conta dessa visão exclusivamente neoliberal do ser humano, adotada inconscientemente pela nossa cultura e instaurada na nossa organização institucional, a dimensão racional é privilegiada e viria em primeiro lugar; em segundo lugar, a dimensão social uma vez que somos uma instituição pública; em terceiro lugar essa dimensão emocional porque, por mais que se privilegie esse aspecto racional, o ser humano interage de modo emotivo com seus semelhantes e na prática docente isso é inevitável, já que não tem como ser um robô dentro de sala e, em último lugar, estaria essa dimensão mais espiritual por conta das perspectivas da maior parte dos cursos focados exclusivamente na formação de um profissional valendo-se de um modelo onde o espiritual ficaria como uma opção do âmbito privado”. Diante desses relatos, evidenciados, podemos considerar, mesmo que

provisoriamente, que o interesse e a repercussão da Formação Continuada oferecida no USJ pelos gestores, está na contramão dos interesses docentes, que desejam uma Formação Continuada que abarque seus desejos pessoais e profissionais.

Nessa direção, afirmamos que o USJ precisa se empenhar na tentativa de encontrar um sentido para a sua ação, o que exige a ousadia de voltar-se à pesquisa e à extensão que ainda encontram-se deficitária, como revelado em uma das entrevistas: “Ainda deficitária, pelo pouco comprometimento dos docentes em comparecer e apoiar as formações oferecidas todos os semestres. De tal forma que seria um momento para sugerir novos métodos, e ajudar na construção de uma Formação Continuada sólida e motivadora dentro da instituição”.

Esse depoimento evidencia, também, a necessidade de se pensar o USJ “como sendo algo que os educadores fazem, pensam e constroem para si mesmos”. Constituindo-se, junto com os educadores, num movimento complexo. Temos, então, a complexidade do sistema universitário que busca junto aos seus educadores reconhecer suas necessidades, ficando mais em sintonia com todos. Para Moraes (2008, p.214), a complexidade da Formação Continuada “se apresenta como um antídoto ao pensamento reducionista, único e verdadeiro no trato dos objetos do conhecimento”. Mas, essa visão complexa exige dos gestores uma abertura às ações de Formação Continuada que leve em conta todas as dimensões aqui discutidas.

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Tanto Pineau (2004) quanto Nicolescu (1999) afirmam que a Formação Continuada se faz presente na vida do educador de forma tripolar, constituída por processos de autoformação, de heteroformação e de ecoformação. Temos consciência de que a realidade é complexa e diversificada, por isso não pode ser compreendida apenas por partes separadas, mas numa relação sistêmica em que tudo ocorre de forma integral, e ao mesmo tempo, unificada. Para que ocorra a Formação Continuada baseada na transdisciplinaridade é preciso que se resgate os valores, desejos dos educadores que foram esquecidos no decorrer dos séculos e se transcenda de forma sistêmica para o olhar de incompletude do conhecimento. Surge, então, a necessidade de estimular, junto aos gestores do USJ, o desenvolvimento das dimensões social, emocional, espiritual e racional, sempre acolhendo a exclusão e a inclusão como processos antagônicos e complementares. Para um dos gestores: “O ser humano ainda é pensado como um mero detentor de conhecimento que vem colado em um diploma e que vai assumir determinada função para contribuir com aqueles conhecimentos meramente racionais. Apesar do ser humano ser pensado assim, ele é cobrado nas outras dimensões porque quando a aula não dá certo, quando ele começa a ter dificuldade, tanto pedagógica como em suas relações sociais. Na realidade, sacrifica-se esse professor sem levar em consideração essas dimensões mais profundas, mas cobrando todos os resultados delas”.

Essa ideia exposta nos remete a questionar a valorização dos educadores do USJ e remete à discussão de

Arroyo (2000) que afirma que a desvalorização do educador e a luta por salários, carreira digna, estabilidade financeira e condições de trabalho vêm acompanhando sua trajetória. Essa luta é “a defesa e a afirmação de um ofício que foi vulgarizado e precisa ser recuperado sem nos arrepender do que fomos outrora, porque ainda somos”(ARROYO, 2000, p. 23). Essa relação presente/passado/futuro na vida do educador do USJ revela que são poucas as iniciativas propostas pela gestão: “existem iniciativas de uma tentativa de ampliação nesse sentido, nas atividades de extensão e de pesquisa, mas isso ainda é muito pouco. Isso não vai poder mostrar que existe uma política institucional focada na dimensão social, na dimensão emocional ou a dimensão espiritual, porque o ser humano não é pensado nessa dimensão total”.

A Formação Continuada proposta nessa pesquisa não deve limitar-se aos cursos de curta duração oferecidos semestralmente pelo USJ, mas todas as possibilidades didáticas, existenciais e experienciais da vida do educador do USJ, pois segundo Mizukami (2002, p.27), esses cursos “alteram apenas de imediato o discurso dos educadores, e muito pouco contribuem para uma mudança efetiva”. Essa perspectiva vem ao encontro do depoimento de um dos gestores entrevistados: “Alguns educadores querem sair para apresentar trabalhos científicos, participar de congressos e tudo é muito difícil. Ou não tem verba, ou não se tem disposição para ajudar. Isso sempre ficou muito evidente pelas desculpas que são dadas aos educadores. Os critérios não são claros. Só se participa se for do interesse do grupo

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gestor. Esse tipo de atitude enfraquece o capital intelectual do USJ que são os educadores”.

Assim, Formação Continuada deve preservar os aspectos pessoais pelas áreas de conhecimento do educador, mas precisa envolver também o aprimoramento das técnicas pedagógicas de ensino e as necessidades da instituição. Além disso, é essencial o incentivo e a valorização por parte do USJ, dos educadores que se interessem pela FC, para que o número de adeptos aumente gradativamente.

As universidades devem propor a formação sob uma perspectiva que integre duas dimensões: programas e atividades de formação, que devem ser interessantes, e ao mesmo tempo, ter repercussões benéficas para os professores em relação ao reconhecimento institucional. (Zabalza, 2003, p. 151)

Não basta contemplar na Formação Continuada a área de conhecimento do educador se, na prática, ele não consegue fazer com que seus acadêmicos atinjam o objetivo desejado por sua disciplina. A essência está em perceber o objetivo das técnicas de ensino-aprendizagem em relação ao que se ensina, como se ensina e como se aprende. Essa ideia vem corroborar com o que Zabalza (2003, p. 156) propõe quando afirma que “o importante é saber cada vez mais como os alunos aprendem para poder facilitar, orientar e melhorar, na medida de nossas possibilidades.”

É certo que os investimentos em programas de formação de curto e de longo prazo, como mestrado e doutorado, acabam tendo menos eficácia prática, mas envolvem além do reconhecimento acadêmico, as técnicas de

pesquisa. Ambos de fundamental importância para a indissociabilidade ensino-pesquisa-extensão. A FC, então, deve contemplar também a interação entre teoria e prática, nesse sentido, Zabalza (2003, p. 166) defende que as novas modalidades de formação giram em torno da ideia de reflexão sobre a prática e a vinculação real entre teoria e prática profissional.

Essa interação não deve limitar-se à sala de aula, deve envolver também, atividades externas ao USJ, com parcerias que agreguem valores para a instituição, para os docentes e alunos, como afirma um dos entrevistados: “temos possibilidade de oferecer ao corpo docente e técnico da instituição alternativas para o aprendizado contínuo, de forma que todos exerçam suas atividades profissionais e suas potencialidades com efetividade”.

Assim, os programas de Formação Continuada oferecidos pelo USJ, necessitam abranger as necessidades reais dos educadores e da instituição em si, e ambos devem caminhar juntos na busca de melhora da qualidade no ensino superior. Os investimentos em programas de Formação Continuada devem existir a partir de uma política de qualidade compromissada com as disciplinas oferecidas no curso, os desejos pessoais e profissionais dos educadores, motivo pelo qual ele é mediador, revelando a “dupla competência: a competência científica, como conhecedores fidedignos do âmbito científico ensinado, e a competência pedagógica, como pessoas comprometidas com a formação e com a aprendizagem de seus estudantes”. (Zabalza, 2003, p. 169). Nesse sentido, a Formação Continuada tem o foco não

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só a atualização de conhecimentos específicos em cada área de conhecimento, mas, também a busca de técnicas de ensino-aprendizagem que estejam presentes no Projeto Político-Pedagógico do USJ, pois, só assim serão trabalhados com interesse e seriedade, sem abraçar interesses individuais de grupos isolados. 4 PONTO DE REFERÊNCIA PARA A FORMAÇÃO CONTINUADA: A NECESSIDADE MARCADA PELO TRAVESSÃO EXISTENCIAL AUTOFORMATIVO: Das discussões atuais sobre a Formação Continuada emergem a necessidade de um paradigma inovador e sistêmico (Boaventura Santos, 1989; Capra,1997, 2002; Morin. 2002), que busca uma relação complexa com a própria existencialidade dos educadores. Essa relação envolve as dimensões didática, experiencial e existencial. Nesse sentido, Zabalza (2004, p.144) complementa: “o exercício da profissão docente requer uma sólida formação, não apenas nos conteúdos científicos próprios da disciplina, como também nos aspectos correspondentes a sua didática e ao encaminhamento das diversas variáveis que caracterizam a docência”. Assim, o educador universitário coloca-se numa atitude intencional e libertadora da vida e do conhecimento. Essa tomada de consciência (metacognição) da circularidade vida-educação-autoformação não é espontânea. É necessário fazê-la emergir na construção do autoconhecimento como parte do desenvolvimento sócio cognitivo e afetivo do adulto.

Por isso, a necessidade de abarcar na Formação Continuada os desejos dos educadores, como nos apresenta um dos gestores: “Eu vejo um pouco mais de investimento por parte dos professores naquelas atividades que estão ligadas à pesquisa, às orientações dos projetos, às produções do ponto de vista acadêmico, nos grupos de estudos, na participação em bancas, nesse tipo de atividade. Isso tem demonstrado um pouco mais de investimento, de energia, de desejo e entusiasmo. Até porque não são coisas impostas, mas estão vinculadas às suas próprias necessidades pessoais e profissionais.” Esse depoimento, juntamente com fragmentos emergentes, na pesquisa como um todo, nos pontuam referencialmente a necessidade de um programa de Formação Continuada que contemple todos os aspectos humanos (figura 2):

Figura 2: Formação Continuada/Aspectos humanos

Fonte: Elaborado pela Autora, 2013.

Quero acentuar que buscamos entender a Formação Continuada como uma construção do conhecimento que não resulta apenas de experiências trazidas de fora para dentro,

Espirituais

Emocionais

Intelectuais

Físicos

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de exigências externas, mas de dentro para fora, do próprio educador, a partir de seus interesses, de suas necessidades, de seus valores, imaginação, intuição, crenças, saberes, vinculando-se às suas próprias experiências, como relata outro gestor: “aqueles que participam das formações promovem a interação, o compartilhamento de conhecimento e a troca de experiências. É evidente que os profissionais que buscam constantemente sua autoformação, se assim posso dizer, estão em permanente aperfeiçoamento, numa incompletude que marca o movimento de ir e vir profissional.”

Diante desse entendimento, Furter (1974, p.79) afirma que a Formação Continuada se constitui como um:[...] processo ininterrupto de aprofundamento tanto da experiência pessoal como da vida coletiva que se traduz pela dimensão educativa que cada ato, cada gesto, cada função assumirá, qualquer que seja a situação em que nos encontramos, qualquer que seja a etapa da existência que estejamos”.

Assim, temos a necessidade dos educadores do USJ com a ampliação da consciência social e planetária para a responsabilidade, iniciativa, aspectos humanos, autonomia da Formação Continuada num movimento autossustentável, inconclusivo, dinâmico em que a amorosidade e o olhar luxuoso sobre si e sobre o outro permaneçam integralmente em suas ações. Assim, tornam-se possibilidades de espaços significativos para a Formação Continuada dos educadores das IES, quando respeitados seus aspectos humanos e que poderão vir a contribuir para a ampliação de consciência “que

iluminará o desenvolvimento das diferentes dimensões do Ser Humano, tornando viável uma civilização global. A compreensão do sentido e do significado de ações de FC, provavelmente, nos encaminharão para outro estágio da humanidade na qual, em nossa visão mais otimista, poderá, quem sabe, predominar a consciência de integração, de interdependência e o reconhecimento de nossos processos de co-evolução” (Portal, 2012-2013). Essa perspectiva é um desafio para os educadores do USJ, como relatado por um dos gestores: “Se a gente entender o USJ como a comunidade, não meramente como a política institucional, percebemos que as pessoas têm mostra certa contribuição, integração, apesar das dificuldades vividas nestes sete anos de existência. Existe uma identidade voltada para o social desta instituição que acaba sendo o que mais se expressa, ou seja, a inclusão das cotas sociais. Claro que é isso que recebe maior investimento por parte do USJ se pensarmos num todo. No entanto os educadores investem sua energia vital nesta instituição porque querem vê-la tal como ela é, tal como ela foi concebida, e fazem de tudo para que ela continue assim, alguns têm opções de sair mas, acabam ficando porque acreditam não só mentalmente, acreditam porque têm um sentimento de carinho e investem para que isso aconteça. Esse relato evidencia o desejo dos educadores do USJ. Esse entendimento parecer ser revelador, porque esse gestor é educador da instituição e ocupa os dois espaços (gestor/educador) que em alguns momentos são antagônicos

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e outros complementares às nessidades e desafios dos educadores. O investimento na Formação Continuada a partir de uma perspectiva na complexidade estaria justificado pelos constantes apelos dos educadores do USJ pela Paz, Moralidade, Ética, Valores, Transparência, Participação e Sentido e Significado de suas ações. Assim, surgem as complexas e instigantes indagações: Que mundo é esse em que estamos querendo pensar, discutir e pesquisar? Para quê? Para quem? Por quê? Onde estamos nele? Por onde tem nos levado? A que custo? Que papel temos a desempenhar? Sentimentos, aliados a tantas outras adjetivações que tão bem caracterizam e retratam o cotidiano de nossos dias atuais e que insistentemente nos apontam e alertam para a nossa própria autodestruição.

Parece-nos, sim, que o USJ precisa se mostrar como um lugar privilegiado de diálogo, de exercício do livre arbítrio e de espaço propício para ampliação de consciência. Lugar, onde gestores, educadores e alunos, poderão encontrar condições para desdobrarem suas potencialidades, ampliarem suas consciências, decidirem com responsabilidade sobre critérios de suas ações, realizando um desenvolvimento harmonioso de seu Ser, no equilíbrio de suas diferentes dimensões constitutivas, num processo transcendente de “tornarem-se”. “Um lugar onde seria interessante que nós conseguíssemos perceber que qualquer possibilidade de extensão, pesquisa, terapia, todas as atividades propostas, são um meio para nós tornarmos melhor como/quanto seres humanos.” Desse modo,

“Formação Continuada é uma espécie de institucionalização, são conjuntos de atividades-meio para que cada um possa se tornar ser humano, fazer-se o ser humano”.

O USJ tem, sem dúvida, como instituição social, espaço de aprendizagem, investigação e formação, oportunidade de propiciar a construção de um novo modo de Ser, incluindo, nesse processo compreensão, tolerância, respeito, consideração, amor, ética e paz que se nos desvelam os modos de ser próprios, de uma cultura transdisciplinar (Nicolescu, 2001) e exigem um desenvolvimento integral do ser, conforme propõe e privilegiam Catanante (2000), Yus (2002), Wolman (2001), Moraes (2004). Esse termo “integral” não tem um sentido de uniformidade, completude, nem relação com a tentativa de eliminar as extraordinárias diferenças, mas, sim, o de significar a unidade na diversidade, compartilhar atributos comuns. Wilber (2003) conceitua “integral” como a ação de reconciliar, juntar as partes, integrar, unir e depois transcender. Para esse autor, a concepção integral passa pela concepção e ampliação da consciência humana ao considerar e entender o ser humano em suas diferentes dimensões: corpo, mente, coração e espírito, tecidas no equilíbrio da inseparabilidade de suas interações e inter-relações.

Acredito que esse Ser Humano de Inteireza, poderá contribuir com “[...] a construção de comunidades ecologicamente sustentáveis, organizadas de tal modo que as tecnologias e as instituições sociais em suas estruturas não prejudiquem a capacidade intrínseca da natureza humana de sustentar avida”. (Capra, 2003, p. 17).

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Temos consciência de que o preço que precisamos pagar pela exploração técnico/científica esteja pondo em risco a dignidade humana, justifica-se o interesse ora mencionado de questionar, por meio de um processo investigativo: a quem cabe a responsabilidade pela ampliação dessa consciência para formação da Inteireza desse Ser? Para um dos gestores, “O que impede o ser humano de se auto-conhecer é ele mesmo, mas precisamos passar por um processo de amadurecimento para conseguir conceber que existem dimensões na nossa existência que também são relevantes: a espiritual, a emocional (...), enfim. A coisa é mais sistêmica, em função das limitações que os indivíduos têm, cada um isoladamente, acabamos unidos mostrando uma limitação institucional. Institucionalizados com uma limitação pessoal. Em um primeiro momento o fundamental é o auto-conhecimento.” Atualmente, o USJ tem o compromisso para com a sociedade de instigar as transformações da vida humana, propiciando espaços de integração do ser humano consigo mesmo, com o outro, com a sociedade, com a natureza para torná-lo mais harmônico, e contribuir com inovações por meio do Ensino, da Pesquisa e da Extensão, em consonância com as exigências sociais do hoje e do amanhã. Considerando esse papel que as IES exercem, cabe aos docentes nelas atuantes tornarem-se agentes diretamente responsáveis por propiciar condições para atendimento a essa formação (autoformação). Estaria o USJ e educadores sensíveis e atentos a esse chamado? Preocupados em relação a uma formação de

Inteireza, ao desenvolvimento das diferentes dimensões que nos constituem: corpo, coração, mente e espírito? Em que tipo de Formação Continuada estão investindo? Por quê? Pra quê? A favor de quem? Quais têm sido suas mais notórias repercussões? Como vêm respondendo aos interesses pessoais, profissionais e institucionais? A consciência da responsabilidade do USJ e de nós docentes na formação do Ser Humano Integral dependerá do grau de ampliação de nossa própria consciência, pois estamos diante de “[...] uma encruzilhada: continuar refletindo no espelho o materialismo científico, o pluralismo fragmentário e o pós-modernismo desconstrucionista, ou olhar para além do espelho, escolhendo uma vereda mais integral, mais abrangente e mais inclusiva”.(Wilber,2003, p. 11). Estaria o excessivo investimento no aspecto profissional, pelas exigências contextuais, ofuscando, quando não deixando no esquecimento, a correspondente e intrínseca condição de Ser pessoal desse profissional, evidenciado pelas manifestações características do contexto de mundo atual que clama por paz, harmonia, ética, solidariedade e compaixão? A Formação Continuada é um fenômeno complexo porque é histórico, produto do Ser Humano, com desafios emergentes de vários contextos político, social, cultural, entre outros. O desenvolvimento pessoal vem sendo preocupação de investimento em ações do USJ? Que repercussões acreditam se fazer presentes no exercício docente de seus educadores? Harmonia pessoal e profissional vem sendo uma necessidade buscada e suprida pela Formação Continuada e vem sendo de interesse do USJ? Essas constantes indagações

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nutrem a categoria emergente analisada e nos remetem a pensar numa possibilidade de história para os próximos sete anos do USJ. 5 CONSIDERAÇÕES PROVISÓRIAS Resultados de Pesquisa Universal “Educação Continuada uma possibilidade de um olhar sensível para a autoformação na busca de uma educação para a inteireza? (CNPq)” desenvolvida de 2009 a 2013 em oito universidades do Rio Grande do Sul, buscou saber como os educadores percebiam os Interesses das IES em suas ofertas de EC, deixando desvelar ser, na maioria delas, para atendimento voltado a uma exigência externa de avaliação institucional do que por interesse para atendimento a uma necessidade sentida. São ações reconhecidas muito mais pelo investimento na dimensão cognitiva/intelectual, em detrimento das demais: física, social, emocional e espiritual. Essa mesma consideração pode ser feita com relação ao Centro Universitário Municipal de São José que concentra seus investimentos em Formação Continuada nos aspectos externos. Enfatizaram, os gestores entrevistados, serem oferecidas oportunidades de ações de caráter formal, centradas em capacitações externas e sem consulta prévia ou avaliação posterior dos educadores, chegando alguns depoimentos a alertar sobre a oferta de capacitações com temas que nada acrescentam ao exercício da docência, tornando-se desinteressantes e até desnecessárias. Além

disso, evidenciaram ainda, os financiamentos em participação em Eventos científicos, está atrelada a aceitação de trabalho científico. Tais resultados denunciam a necessidade de maior sensibilização do USJ em seus investimentos, em propostas dessa natureza, que possibilitem a ampliação de Consciência de seus educadores, contemplando seu desenvolvimento nas diferentes dimensões que tecem sua Inteireza. Contextualizando as necessidades dos educadores na perspectiva da transdisciplinaridade, é fundamental que o investimento não se dê apenas, pela demanda de uma sociedade instável e mutante, mas pelo fato de perceberem e entenderem o homem necessitar adaptar-se a novas maneiras de pensar, sentir, significar e agir, e, sobretudo, para que não perca sua essência. Assim, os gestores, precisam considerar a existencialidade no processo de formação numa grande rede em que aspectos cognitivos, experienciais, práticos, simbólicos, transcendentais e espirituais se interligam em todos os níveis de realidade, compondo uma sinfonia integral, marcando sistemicamente as dimensões didática, experiencial e existencial dos educadores.

Nesse sentido, pensar a autoformação do educador, numa abordagem didática, experiencial e existencial, como expressão da vida, significa dizer que para retenção do Capital Intelectual do USJ e permanência de seus educadores é preciso reinventar a aventura da Formação Continuada levando-se em consideração, também, os aspectos humanos. Ao privilegiar os aspectos humanos, sem negar os políticos, culturais, epistemológicos e sociais da formação, podemos ressaltar que esses são potencializadores de sinergias que

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articulam o conhecimento não formal, experiência com o conhecimento formal, numa lógica interativa em que a ação (extensão), a investigação (pesquisa) e a formação (ensino) estão presentes.

Há evidências claras de que o USJ precisa se preocupar com o investimento no seu Capital Intelectual, no oferecimento formal de ações de Formação Continuada, não só em “cursos, seminários, palestras, capacitações docentes” que viabilizem um repensar de seus educadores sobre a responsabilidade, mas uma formação mais ampla que abarque também as necessidades internas desses educadores e coloque-o no centro de seus investimentos.

É fundamental que o USJ valorize a complexidade do processo de formação de seus educadores, numa abordagem centrada em um sujeito de “inteireza”, orientando-os individual e coletivamente, no exercício de ampliação de sua própria consciência com significativas repercussões para uma vida mais plena, digna de qualidade e com consequente maior qualidade no exercício profissional.

Além disso é necessário ofertar um olhar luxuoso para as questões de autoformação como processo permanente no decurso da vida, num processo auto-hetero-ecoformativo que faz da formação um processo permanente, dialético, multirreferencial, transcultural e transdisciplinar, ampliando a compreensão de Formação Continuada enquanto princípio sistêmico, holográfico e continuum de desenvolvimento pessoal, profissional e integral de educadores. Assim, é possível visualizar indicadores mais precisos dos educadores sua realização de Ser Humano num processo de

transformação de sua consciência, como um recurso para a busca de sua essência, pois tornamo-nos conscientes de nós mesmos e, conhecer nossa verdadeira identidade é a chave para lidarmos com estes tempos de transformação que diante de nós se colocam.

Acredito, assim, transcendermos o falso racionalismo, aliando o desenvolvimento tecnológico e científico a uma sensibilidade ética, social e ambiental, utilizada de modo a atender necessidades sociais coletivas, pela compreensão do que nos faz únicos e, ao mesmo tempo iguais, em nossas divergências e singularidades, o que move nossas vidas, no sentido que damos a ela e como isso é proporcionado e vivido por nós nos mais diferentes ambientes em que estamos inseridos, nos quais nos são oportunizadas situações de Autoformação numa perspectiva de uma Educação para Inteireza. REFERÊNCIAS Alarcão, I.(2001) Compreendendo e construindo a profissão do professor – da história da profissão professor ao histórico profissional de cada professor. Universidade de Aveiro:CIFOP. Brasil.(1996) Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei nº 9.394/96, de 20 de dezembro de 1996. Capra, Fritjof.(2003) As conexões ocultas, ciência para uma vida sustentável. São Paulo:Cultrix.

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A RELAÇÃO DA PRÁTICA COM O DISCURSO: UM FAZER PEDAGÓGICO

Celso Kraemer82

Marta Nascimento de Oliveira83 RESUMO Este estudo discute criticamente uma experiência vivenciada enquanto educadora de uma turma do pré- escolar. A partir do relato da experiência, vivenciada em uma escola pública analisada a partir dos conceitos de disciplinamento dos corpos e de resistência, de Foucault, bem como o conceito de autonomia, de Paulo Freire. Conforme Foucault, em Vigiar e Punir, a sociedade disciplinar engendrou instituições como o exército, a fábrica e a escola, as quais atuam na constituição de corpos dóceis. O trabalho mostra os dispositivos de poder atuando no espaço escolar e igualmente, as estratégias de resistências nas relações envolvendo tanto os pais quanto os alunos. Conforme os teóricos referenciados, nas relações de poder é possível elaborar estratégias de resistências e criar “fugas” nas dinâmicas e processos internos às organizações escolares. Nesse sentido, as crianças que figuram o relato são 82 Doutor em Filosofia. Professor de Filosofia do Departamento de Ciências Sociais e filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Educação (mestrado) da Universidade Regional de Blumenau – FURB. E-mail: [email protected] 83 Mestranda em Educação pela Universidade Regional de Blumenau. Especialista em Educação infantil e séries iniciais pela UNIVILLE e Gestão Escolar pela FIJ. Graduada em Pedagogia pela Universidade Regional de Blumenau. E-mail: [email protected]

um exemplo importante na constituição de estratégias de resistência e linhas de fuga aos dispositivos disciplinares de poder. O relato mostra a possibilidade de um planejamento dialogado e integrado com vistas à constituição de uma subjetividade capaz de resistir ao disciplinamento, em ações estratégicas de resistência na escola com práticas de liberdade, criatividade e autonomia. A experiência mostrou que, em geral, os pais trazem os filhos com expectativas de que a escola reproduza sujeitos por eles idealizados e presos às obrigações. Mas o planejamento coletivo conseguiu dialogar com as diferenças e desejos, escolares e familiares, exercendo poder de resistência na construção da autonomia e criação coletiva. Palavras-chave: Disciplina. Educação Infantil. Autonomia. INTRODUÇÃO

Árduo é o trabalho de planejar coletivamente, de aprender ensinando e ensinar aprendendo. Parece ser “natural” ensinar na lógica de depositar e decorar conhecimentos. E nesta lógica a disciplina não questionada é aceita docilmente.

A escola sempre procurou transformar a criança num aluno interessado, atento e aplicado. Com essa meta, a subjetividade estudantil se edificava a partir de práticas que instituíam a memória, a atenção e a consciência, buscando fazer com que essa

última exercesse hegemonia sobre a percepção. (SIBILIA,2012, p.89).

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Neste relato busco dialogar sobre algumas inquietações presentes na escola, especialmente a que elejo como dificuldade, que é perceber a razão da existência da escola, a quem ela se destina, para que precisamos ensinar e qual é o papel do educador neste universo.

O espaço escolar, o qual muitos de nós frequentamos no papel de aluno, depois professor, possibilitou que participássemos de práticas pedagógicas diversas, as quais possuem objetivos sem nenhuma neutralidade. Algumas dessas práticas fundamentadas em perspectivas formativas , a qual deposita créditos por meio da lógica de “encher” e “acumular” conhecimentos, os famosos depósitos de conteúdo, segundo a educação bancária. Práticas que sinalizam a necessidade de mudanças. A partir do pensamento de Paulo Freire “Se o educador é o que sabe, se os educandos são os que nada sabem, cabe àquele dar, entregar, levar, transmitir o seu saber aos segundos. Saber que deixa de ser “experiência feita” para ser de experiência narrada ou transmitida.” (FREIRE, 2011, p. 83)

Conforme essa descrição de Freire, muitas vezes o planejar das aulas fomentam o processo de reprodução imediatamente sem reflexão. O planejar, enquanto ação, pode implicar a reflexão e ao refletir buscar novas possibilidades de re-planejar. Como discussão primeira, dialogar sobre a naturalização da escola em nossa sociedade, se a escola sempre existiu, é natural que continue existindo, e a partir do texto de Varela (1996), A Maquinaria Escolar, observar a intencionalidade da existência da escola, aceita entre nós sem estranhamento.

A partir do questionamento crítico do planejamento, buscar estratégias de fuga dentro do espaço escola no sentido da criação que desequilibra, de certa forma, o bom funcionamento da maquinaria.

A experiência por mim vivenciada e aqui relatada, na turma de educação infantil, permite observar aprendizagens individuais e coletivas das crianças. E através dessa prática que teve no planejamento a possibilidade do agir coletivamente nas decisões relativas ao dia a dia de professores e alunos, A experiência por mim vivida na Educação Infantil permitiu observar aprendizagens individuais e coletivas e através dela refletir a forma de planejar junto com as crianças, os quais se tornaram atores também responsáveis pelas aulas. 1 DISCURSO E PRÁTICA

Aqui falamos de ação pedagógica, na qual a ação não é um simples fazer e nela é possível assegurar ou não o planejamento, a organização, a liberdade e a reflexão. O fazer pedagógico, em sentido dialógico, se diferencia de outra ação. O Fazer dialogado se dá em atos abertos ao ainda não sabido, ao impensado, desconhece muitas vezes o resultado, é um processo humano.

A “repetição” e a falta de reflexão no ambiente escolar dificulta em muitos casos o envolvimento de professores e alunos. Experiência é ação se faz nas vivências, nas tentativas, no acertar e errar, no mudar. Professor que

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ensina é também professor que aprende e ensinar no fazer é também aprender e somar experiência.

Professor que ousa na (cri)ação e recria com seus alunos, vive experiências com eles, e nelas a possibilidade de amadurecer posturas, criar oportunidades que não sejam somente as já determinadas. Buscar maneiras de escapar da dominação parece externar “desejos” de identidade de ser e agir livre. “[...] cabe, especialmente aos profissionais, acharem saídas para que os processos de singularização possam realmente se efetivar, recompondo uma corporeidade existencial, saindo de seus impasses repetitivos.” (IERECE, 2000, p. 14).

Como tentativa de sair dessa engrenagem e dominação, no ano de dois mil e doze foi desenvolvido um trabalho em uma escola municipal com a turma de pré-escolar, composto por vinte alunos entre cinco e seis anos de idade. 2 UMA PRÁTICA DIFERENTE: ONDE HÁ PODER HÁ RESISTÊNCIA

Iniciamos as aulas no período vespertino em fevereiro de dois mil e doze com acolhida das crianças. Algumas choravam porque estavam conhecendo o ambiente escolar naquele dia, outras aparentemente mais calmas, já haviam frequentado a educação infantil e mostravam-se inseridas no processo escolar.

Traziam em suas mãos não só material como também expectativas de como seria a escola, de como seria aquela

professora nunca antes vista, totalmente estranha a seus olhos, então a saída de alguns era chorar.

Percebi naquele dia a expectativa dos pais que ao acalmá-los relatavam experiências vividas por eles. Admitiam ter chorado, obedecido à professora, sentido medo, ter ido à escola para aprender ler, escrever, pintar e contar, e de fazer atividades que a professora “passava”.

Pude perceber em suas falas alguns desejos que traziam consigo. Parece comum a ideia de que a escola seria a mesma, ignorando mudanças de paradigmas sociais. Atualmente um mundo midiatizado, eletrônico e digital, mas a escola parece permanecer a mesma fortalecida pelo imaginário dos pais neste caso. Sibilia (2012) aponta semelhanças entre a escola e a igreja, trazendo a reflexão de sinônimos no cotidiano, também presentes na fala dos pais: Obediência ao mestre e ao pastor.

O pensar escola como instituição vinculada ao poder disciplinador parece amortecido em nós. A organização escolar praticada a longo tempo, com bases no silêncio, na reprodução e ausência de reflexão nos dão suportes seguros à orientação para obediência.

Educador é o que educa; os educandos, são os que são educados, o educador é o que sabe; os educandos, os que não sabem; o educador é o que pensa; os educandos, os pensados; o educador é o que diz a palavra; os educandos, os que a escutam docilmente.

(FREIRE, 2011, p.82) A didática magna de Comenius afirmava: “uma

escola sem disciplina é um moinho sem água”. (Comenius,

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1957, p.401) A escola como uma instituição social é politica e nela estão presentes relações de poder. O poder não é algo necessariamente negativo, mas uma potencialidade nas relações, para criar e para se opor. O poder difere da violência, destrutiva:

Uma relação de violência age sobre um corpo, sobre as coisas; ela força, ela submete, ela quebra, ela destrói; ela fecha todas as possibilidades; não tem, portanto, junto de si, outro polo senão aquele da passividade; e, se encontra resistência, a única escolha é tentar reduzi-la. Uma relação de poder, ao contrário, se articula sobre dois elementos que lhe são indispensáveis, por ser exatamente uma relação de poder: que o “outro” (aquele sobre o qual ela se exerce) seja inteiramente reconhecido e mantido até o fim como o sujeito da ação; e que se abra, diante da relação de poder, todo um campo de repostas, reações, efeitos, invenções possíveis. O funcionamento das relações de poder, evidentemente, não é uma exclusividade do uso da violência mais do que da aquisição dos consentimentos; nenhum exercício de poder pode, sem dúvida, dispensar um ou outro e frequentemente os dois ao mesmo tempo (Foucault, 1995, p. 243).

A pedagogia bancária, impositiva, exclui as crianças

do processo pedagógico e o professor torna-se o agente central e único. Pelo fato das crianças estarem no ambiente escolar naturalizado como “bom” sem questionar ou estranhar a antecipação delas ali, e no tumulto da entrega de materiais, choro, orientações diversas e união de todas as nossas diferenças, senti uma inquietação imediata ao perceber que a esperança depositada em mim era de repetir experiências que os pais viveram enquanto crianças.

Intencionalmente e com objetivo de encaminhar o planejamento, ouvi as crianças da turma que estavam

envolvidas no processo tanto quanto eu. Fizemos uma roda de conversa combinando entre nós que no momento em que o colega fala, o grupo ouve. Caso outro de nós quisesse também falar, deveríamos nos manifestar com pedido da palavra. Inicialmente foi preciso interferência da professora para iniciar a conversa. Estava confusa a questão de falar com objetivo pedagógico, conforme se pretendia. Foram necessários vários momentos para que pudéssemos falar e ouvir no movimento de diálogo, esta construção de “roda” fala, ouve, inicialmente oportuniza os mais falantes, daí as interferências para que todos falassem, e o que falou também ouvisse. Opostamente à expectativa construída, que o professor é o que ensina e que os alunos os que aprendem, viu-se a imediata participação das crianças nas atividades escolares. Montamos um texto coletivo com nossos dizeres e a partir daí começamos dar identidade ao grupo. O que surgiu de início foi a escrita do nome. Usávamos crachás para facilitar a comunicação. Talvez essa estratégia tenha motivado a escolha e a maneira pela qual encontraram de visualizar e representar a escrita.

Trabalhamos com crachás, e dos nomes iniciou-se as ampliações de saberes. Nas rodas de conversa avaliávamos as aulas e o desenvolvimento de apropriações coletivas e individuais. Alguns diziam que não precisavam mais de crachá para escrever seu nome, outros ainda precisavam do recurso. Sinalizavam nas avaliações se era possível avançar. Espontaneamente falavam que estava ficando “chato” o que escolheram e queriam mudar de ideia. A biblioteca foi um espaço que desde o início seduzia. Ficavam encantados com

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os livros. Este espaço foi importante para ampliar o contato com os livros, escrita e a leitura de histórias.

Uma pessoa responsável pela biblioteca, além de fazer a troca semanal de livros, também contava histórias. Era um momento de magia!

FOTO 1

Fonte: Foto feita por Marta Nascimento de Oliveira. Arquivo

pessoal, 2012. Diversas leituras de livros infantis foram feitas, tanto

na biblioteca como na sala de aula. Das muitas leituras, percebi o interesse na literatura dos PINGOS. Depois de várias voltamos para biblioteca fazer pesquisa sobre os pingos. Fizemos descobertas sobre suas personalidades. Durante o processo de pesquisa percebi o envolvimento delas com o mundo letrado, viam que a escrita tinha um fim social, pois usavam o texto de alguém como suporte e base para

ampliação das suas escritas, para além dos seus nomes.As literaturas fizeram ponte da sala de aula com a biblioteca.

Criança com cinco, seis anos pesquisadora? Foi. Tudo ficou registrado no formato de trabalho levado para casa, com a combinação de explicarem aos pais o objetivo e conclusão da pesquisa. Tínhamos também partes da pesquisa coletiva registrada em papel pardo e exposta na parede, estes serviam como caminho para registros individuais.

O trabalho foi conhecido por toda escola na apresentação denominada momento cívico, lida por sete alunos do grupo que representavam cada PINGO, com personalidade, cor e atitudes diferentes, que juntas formavam o arco-íris. Deste trabalho os alunos tiveram a oportunidade de concluir que nossas diferenças são qualidades que podem somar-se, e nos conflitos poderíamos dialogar para resolvê-los. Então, como poderíamos dialogar para entender e não repreender? Busquei auxilio na forma de trabalho da Escola da Ponte que faz das assembleias. Falei dessa experiência para eles e perguntei se gostariam de fazer algumas tentativas para ver se nos adaptaríamos a esta nova maneira expressão.

No início precisava de interferência para que ouvissem seu colega e depois, se tivesse vontade ou necessidade, falassem. Todos queriam falar ao mesmo tempo. Pensei que não daria certo. O ouvir deveria ser mais discutido e percebido. Com brincadeiras sonoras, esconde-fala-ouve e fala qual colega falou, tivemos alguns avanços. Diariamente parávamos para conversar. Foi se naturalizando e tornando-se uma necessidade estes momentos. Quando por algum

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motivo as assembleias não aconteciam eles cobravam e justificavam as prioridades do dia.

Poderíamos pensar então que essas crianças não tinham conflitos em lidar com suas diferenças, não se batiam e brigavam? A resposta é sim, às vezes acontecia, e como a turma resolvia? Nas assembleias. Eles sugeriam estratégias e encaminhamentos para o problema. Interessante como se questionavam e se colocavam em papéis diferentes nos conflitos. Comum haver a pergunta: _ E se fosse você, como estaria se sentindo? _ Como você resolveria este problema?

O “causador/causadora” se colocava num momento de reflexão coletiva. O grupo parava para falar e pensar sobre a questão em particular. No início era comum a indicação de castigos e bilhetes para que o colega não repetisse o erro. Depois observei que as sanções indicadas perderam força e foram substituídas para “chamadas” entre eles.

Poucas vezes paramos para conversar pelos mesmos motivos. Também notei que minha interferência havia se reduzido, agora mínima. Colocava-me no papel de aprendiz ao vê-los atuando com autonomia na resolução dos problemas.

Nas assembleias decidíamos o que estudar. E foi em assembleia que decidimos registrar o que cantávamos durante as aulas. No papel pardo, foi escrito músicas como o Cravo e a Rosa, Abelhinha, Escovinha, Índio, Óculos, Urubu, Cara redonda, e outras. Expostas as músicas nas paredes, durante as aulas eu os desafiava a encontrar palavras dentro da música.

Às vezes livremente o aluno ia até ao registro da música e mostrava ou circulava a palavra, em outros momentos pedia que outro colega fosse também. Todos tiveram a oportunidade de mexer nos registros. Interessante como sabiam localizar as palavras. Usavam recursos como cantar e colocar as mãos nas palavras, localizar letras chave, deduzir pelo tamanho da palavra, bater palma e contar partes da palavra e também pedir ajuda para outro colega. [...] “pode-se ensinar o que se ignora, desde que se emancipe o aluno; isso é, que se force o aluno a usar sua própria inteligência. Mestre é aquele que encerra uma inteligência em um círculo arbitrário do qual não poderá sair se não se tornar útil a si mesma.” (RANCIÈRE, 2002, p.27) Jacotot, crítico das explicações, diz ser possível “aprender qualquer coisa e a isso relacionar todo o resto, segundo o princípio de que todos os homens têm igual inteligência” (Rancière, 2002, p.30).

As aulas fluíam no caminho das construções de alfabetização e letramento. Surgiam propostas de trabalho de diferentes grupos. A heterogeneidade existente e a presença de diálogo possibilitaram negociações e diferentes caminhos ligados à música e literatura.

Nas tardes era comum alguma criança querer mostrar o livro que tinha escolhido na biblioteca, e foi numa dessas tardes que um menino trouxe a literatura “O susto”. Todos ficaram bem motivados porque o livro descreve uma surpresa no final. Brincando comecei provocar outras situações que poderiam estar no saco do susto. Uma menina sugeriu que escrevêssemos aquilo, e assim foi feito. Um falava, outro

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sugeria, outra dava uma nova ideia e fomos... Assim surgiu primeiro o texto.

O texto ganhou o título de “O SEGREDO DA FLORESTA”. Deste surgiu a proposta de fazermos um livro. E fizemos. Em parceria com a professora de informática demos o formato de texto, e estes em páginas de livro. Voltamos para sala e como o texto era coletivo cada um recebia uma página para ilustrar. No transcorrer das atividades e negociações provocava novas construções. Num destes momentos foi que ocorreu o “susto pedagógico" as ilustrações eram livres para criação e alguns, além de ilustrar, escreviam nomes de seus desenhos. Tudo com autonomia, sem imposição. Naquela criação sequer tinha havido combinação de escrita. Interessante como eles se organizavam, a maioria recebia a mesma página para ilustrar, no entanto cada um deles colocava o seu jeito na folha. A foto abaixo demonstra o momento em que a aluna registra esta descrição.

FOTO 2

Fonte: Foto feita por Marta Nascimento de Oliveira. Arquivo pessoal,

2012.

O texto que segue é a finalização da obra. Como educadora evitei explicações e optei por ouvir, deixei que a criação se materializasse. Desta escolha o registro fotográfico e o texto mostram-se por eles mesmos. Segundo Jacotot “As palavras que a criança aprende melhor, aquelas em cujo sentido ela penetra mais facilmente, de que se apropria melhor para seu próprio uso, são as que aprende sem mestre explicador, antes de qualquer mestre explicador.” (Rancière, 2002, p.19).

MISTÉRIO DA FLORESTA O tatu encontrou a borboleta no caminho para o hospital. A borboleta estava doente porque quebrou sua asa ao bater no muro. No hospital a borboleta encontrou o pato, seu amigo,

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que ficou preocupado com ela. O pato pegou o telefone e ligou para a abelha que era médica e conhecida da borboleta. A abelha aplicou uma injeção e fez um curativo para o sangramento parar, e disse que tudo ficaria bem. O pato a estava esperando para levá-la para casa. Ele nadou até a casa da borboleta e depois foi para casa. No caminho de volta o pato encontrou a mosca indo para o mercado, que lá encontrou a barata, a joaninha e a cigarra; todas fazendo compras de alimentos para o piquenique. Elas compraram uma lata de ervilha, banana, maçã, uva e laranja. O dinossauro ao ouvir o barulho que elas faziam, junto o som da música resolveu dançar. Enquanto dançava sacudia a terra. Isso assustou as formigas que juntas fugiram para a pedra do sapo. O rato curioso perguntou ao mosquito o que estava acontecendo. O mosquito disse que era um piquenique na floresta. No final da tarde, início da noite, todos os animais cansados de tanta aventura foram dormir.

FOTO 3

.

Fonte: Foto feita por Marta Nascimento de Oliveira. Arquivo pessoal,

2012.

Esta foto representa o registro final do trabalho. Na capa estão individualmente fotos dos alunos que fizeram o livro. Na sequência do livro o texto e na penúltima página está a foto das professoras com todos os alunos. Na última página registramos todos os nomes com suas assinaturas ao lado. Todos receberam seus livros autografados por todos. 2 CONSIDERAÇÕES FINAIS Figurar no presente artigo como escritora, relatando a experiência vivenciada enquanto professora de uma turma do pré-escolar oportunizou-me vivenciar dois extremos. Um de crítica, de buscar reflexões ásperas e de questionar a invenção escolar como máquina de produzir corpos dóceis e ações previsíveis. Outro foi de viver uma história que abriu outras dinâmicas de poder, com outras possibilidades de construção de subjetividades livres à criação e à negociação. Trabalhar com desníveis dessa grandeza põe em questão a prática e a formação do professor que está na escola. Quem é esse professor? O que faz nesse espaço chamado escola? Exercer o poder de resistência buscando autonomia e criação, requer um coletivo escolar que dê suporte ao professor que nem sempre em tentativas isoladas consegue desenvolver um trabalho diferenciado. REFERÊNCIAS

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EDUCAÇÃO FILOSÓFICA: DA NATUREZA HUMANA – UMA DISCUSSÃO SOBRE O SUICÍDIO.

José Antunes de Souza Pomiecinski84

A intenção desse artigo é tratar sobre o suicídio numa perspectiva educacional. Como prevenir, como tratar tal tema alinhado ao conhecimentos pedagógicos? Não mais um tabu, mas sim uma abertura ao diálogo. Essa experiência foi realizada em aulas de Filosofia no município de Curitibanos, região Serrana de Santa Catarina. O método da abordagem foi exposição e diálogo em aula com turmas de segundos anos do ensino médio a partir do livro Morreu na Contramão, de Arthur Dapieve, 2007. Segundo o autor, tratar do suicídio é de grande responsabilidade, pois ao se abordar tal tema pode-se elevar ou acelerar a taxa de suicidas, não criar, mas excitar indivíduos propensos com suas próprias razões a se matar. Essa problemática é de suma importância no ambiente escolar, uma vez que o Brasil, conforme pesquisa da OMS (Organização Mundial da Saúde) em setembro de 2014, o Brasil é o 8° país em número de suicídios, um total de 11821, no ano de 2012. Qual a ação da Escola perante tal cenário? É possível que abordagens sobre o tema, índices, discussões possam somar como prevenção? A natureza humana necessita de educação, diálogo e reflexão sobre as diversas possibilidades e adversidades que a vida pode lhe impor.

84 Professor de Filosofia na rede Estadual de Santa Catarina, Mestrando em Educação pela Uniplac, Especialista em Ensino de Filosofia e Sociologia e Licenciado em Filosofia pela Unifae.

1 SUICÍDIO – UM PERSPECTIVA FILOSÓFICA E O DEBATE EM SALA DE AULA O fenômeno da morte nos interpela e nos acompanha constantemente no linear de nossas vidas. A única certeza que temos na vida é a certeza da morte. No decorrer da história vemos que o homem tem essa preocupação em tomar mérito dessa questão, buscar elucidação desse acontecimento abrupto (gestos rápidos) chamado morte. O antagonismo vida e morte caminham lado a lado e por mais aparato que o homem tenha em mãos no que tange a temática da morte, o mesmo ainda não conseguiu busca uma ideia convincente do que venha a ser tal acontecimento. Todos nós sabemos que a hora derradeira irá chegar, porém, muitos veem tal fato ainda com temor e obscuridade. Não queremos ter a morte como companheira de nossa caminhada, ela nos causa preocupação. Falar de morte é assombroso e repugnante. Perder alguém muito caro a nós, é mais difícil ou dificultoso ainda, as reflexões e as abordagens acerca da morte. Não nos conforta suficientemente a tal ponto de entendermos nossa finitude. Segundo Albert Camus, o suicídio é o único grande problema filosófico, pois julgar se a vida vale a pena ser vivida ou não é uma questão crucial, uma vez que feita a opção nada mais pode ser necessário ou possível.

Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio. Julgar se a vida merece ou não ser vivida é responder a uma questão fundamental da filosofia. O resto,

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se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou doze categorias, vem depois. São apenas jogos, o primeiro é necessário responder. E, se é verdade, tal como Nietzsche o quer, que um filósofo para ser estimável, deve dar o exemplo, avalia-se a importância desta resposta, visto que ela vai preceder o gesto definitivo. São evidências sensíveis ao coração, mas é preciso aprofundá-las para as tornar caras ao espírito”. (DAPIEVE, 2007, p. 174)

Por isso que no ano de 2009 e sequencialmente no ano de 2010 foi feito essa abordagem em salas de aula de segundo ano do Ensino Médio da cidade de Curitibanos em uma escola, a qual preservo o nome. As discussões levantadas partiram do embasamento pela Obra de Arthur Dapieve em Morreu na Contramão, 2007 onde se aborda o suicídio como notícia, em especial, em como veicular tal informação, havendo nesse trabalho prevenção para que o acontecimento não cause imitações ou incentivo a tal prática. Além dessa obra foi feito uso das compreensões discutidas por Emile Durkheim em O Suicídio numa versão de 2005. Para situar a filosofia e o suicídio buscamos conhecer o Mito de Sísifo, na versão de Albert Camus, ali Sísifo condenado a rolar a pedra morro acima e sempre que chegava ao final a pedra descia morro abaixo, fazendo que tivesse que retomar toda a árdua tarefa, eternamente onde o coloca diante de um grande vazio existencial chegando a pensar no suicídio, mas como resposta compreende-se que não é a melhor vida, tarefa que é importante, mas a importância que se dá à vivência da própria existência.

Abordamos com especial acento a compreensão de morte em Albert Camus, quando se fala do absurdo e o suicídio, no aspecto cético só há um problema sério segundo Albert Camus, é o suicídio. Não cabe a nós dizer ou julgar quando falamos se vale a pena viver ou não? Esta seria uma das questões mais importantes que existem a respeito da existência e da morte. Há muitas causas para um suicídio e, de um modo geral, as mais aparentes não tem sido mais eficazes. Num ambiente escolar, encontrou-se espaço para discutir com alunos a problemática em torno do suicídio, uma vez que a filosofia tende a contribuir para essa reflexão acerca da vida e suas escolhas, por isso visamos tratar sobre o suicídio numa perspectiva educacional elencando os mitos, histórias sobre casos de suicídios no mundo, indo além dos tabus impostos pela sociedade, numa política de silêncio como pretensa solução. Segundo a OMS entre 20 e 60 milhões de pessoas tentam o suicídio por ano, 1 milhão consegue. A redução do acesso aos meios de suicídio é uma maneira de reduzir as mortes. Outras medidas eficazes incluem relatórios responsáveis do suicídio na mídia, tais como evitar linguagem que sensacionalizam o suicídio e evitar a descrição precisa dos métodos utilizados. Também a identificação e tratamento precoces dos transtornos por uso de substância mental e nas comunidades e pelos profissionais de saúde, em particular. Citamos, “O exemplo clássico de Os sofrimentos do jovem Werther, de Goethe, que levou a uma onda de suicídios entre jovens germânicos, ainda reverbera nas letras e mentes

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mais de 230 anos depois de sua publicação”. (DAPIEVE, 2007, p. 08) 2 O RELACIONAR COMPARTILHANDO Em minha pesquisa de monografia, quando me licenciei em Filosofia pela Unifae – Centro Universitário Franciscano do Paraná tinha por intenção pesquisar a temática do suicídio, porém, como pertencia à Ordem dos Frades Menores, ao apresentar meu tema de pesquisa ao Padre responsável fui vetado, certamente ainda um tema visto como tabu, envolto em reservas morais e sociais. Para completar no dia seguinte ao conversar com um professor sobre meu tema, sendo que esse seria meu provável orientador, tive a surpresa ou então compreensão de que o suicídio está mais próximo de nós do que imaginamos, uma irmã desse professor havia cometido suicídio a duas semanas e ele não tinha interesse em orientar tal temática. Para Durkheim, o suicídio apresenta posições relacionados à boa integração em três esferas: à social, ou à religiosa ou à política, estando ausente delas, a tendência por cometer o ato é maior. Sendo assim, a necessidade de discussão se faz urgente e para tal nos embasamos na filosofia, visão apropriada para refletirmos e discutirmos de maneira científica e existencial. Assim, Spinoza propõe um problema inaugural para a questão do ser, o ser em alteridade:

Quando a experiência me ensinou que todos os acontecimentos são vãs e fúteis, (...) decidi-me, afinal, a saber se não existe um bem verdadeiro e que se possa comunicar, qualquer coisa, enfim, cuja descoberta e aquisição me dessem para a eternidade o gozo de uma alegria suprema e incessante (SPINOZA, 1954 apud BORNHEIM, 2003, p. 112-113, grifo nosso).

O pensar a vida a partir da expressão das convicções na obra de Martin Buber – Eu e Tu, convida a tratar sobre um mundo duplo para o homem, segundo a dualidade de sua atitude, da dualidade das palavras-princípio que são os pares de vocábulos que ele pode proferir (Cf. BUBER, 2001, p. 03). Assim, Eu - Tu, Eu – Isso e/ou Ele ou Ela: desta forma o Eu do homem torna-se também duplo. As palavras-princípio exprimem o que há nelas de existentes e ao serem expressas se fundamentam na existência presente. Ao dizer Eu, na verdade, se quer dizer “um dos dois” (BUBER, 2001, p. 04), e ser Eu ou proferir é a mesma coisa. Ao expressar Eu há o direcionamento para uma ação “Eu-Isso”. Há entre o homem e o mundo a experienciação, isto é, a exploração das coisas pela vivência na relação Eu-Isso, Isso-Isso, Ele-Isso, Ele-Ela, de Ela e Isso. Assim, afirma Buber:

O experimentador não participa do mundo: a experiência se realiza “nele” e não entre ele e o mundo (...) o mundo como experiência diz respeito à palavra-princípio Eu-Isso. A palavra-princípio Eu-Tu fundamenta o mundo da relação (BUBER, 2001, p.06).

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O mundo da relação se desdobra em três esferas - como primeira tem-se a vida com a natureza, onde a relação se dá sem o auxílio da linguagem, há percepção da existência, porém sem o endereçamento palavreado de um ao outro pelo Tu. Por segunda tem-se a vida com os homens, onde há relação direta no endereçamento e recebimento de Tu. Por terceiro há a vida com os seres espirituais, composta de relação silenciosa, mas grandemente expressiva, uma vez que envolve o lançar-se ao encontro do transcendente (Cf. BUBER, 2001, p 6 e 7). Há relações em que possivelmente se crie figuras tipológicas de espécie, gênero e número, isso se dá por estar sujeita à expressão de uma lei onde o conflito de forças será sempre nela regido e solucionado. Pode ser que por uma força ou graça a relação onde a força da sua exclusividade se apodera e será possível haver um ultrapassamento de Isso para Tu, uma vez que está expressa em corpo vivido, isto é, um momento de verdadeira presença 85 . Aí se vê a possibilidade de que se tenha algo a ver do Tu com a figura do Eu e que o Eu tenha algo a ver com a do Tu mesmo que em modos diferentes. Assim, relação é reciprocidade. A relação não é com a alma, é com a alteridade mesma do Tu. O homem é o Tu sem limites onde todo horizonte nele se completa e que tudo mais vive em sua luz. Sua vida atual é o encontro, onde não há um

85 Por verdadeira presença, entende-se o fato de estar presente; de estar aí, num manifestar-se, é ser ele mesmo, sob a forma de presença a si (Idem, op. Cit. 15, p 24).

tempo para essa presentificação86, mas uma presentificação para o tempo, senão não seria Tu, seria Ele, Ela ou Isso. A arte tem esse movimento – se apresenta ao homem que é afrontado em relacionar Eu-Tu eficazmente através de seu poder atualizador dentro de uma oferta de risco na exclusividade face-a-face, pois a obra tem o poder de desestruturar ou ser desestruturada se houver relação Eu-Isso ao invés de Eu-Tu, ou seja, ela é a própria razão que se for substituída não chegará a ser a obra de arte projetada. Há o processo de atualização onde ocorre o encontro criador original e puro. Assim fazer é criar, inventar é encontrar, dar forma é descobrir sendo que reciprocamente há atuações de Eu para Isso e de Isso para Eu constituindo-se Isso em Tu.

A relação com o Tu é imediata. Entre o Eu e o Tu não se interpõe nenhum jogo de conceitos, nenhum esquema, nenhuma fantasia; e a própria memória se transforma no momento em que se passa os detalhes à totalidade. Entre Eu e o Tu não há fim algum, nenhuma avidez ou antecipação; e a própria aspiração se transforma no momento em que passa do sonho à realidade. Todo meio é obstáculo. Somente na medida em que todos os meios são abolidos, acontece o encontro (BUBER, 2001, p. 13).

O encontro se dá no presente como instante atual, na real presença. Presente não é momento estático, pois o ponto de satisfação em que se pára a fim de gozar do que se experienciou se vive do passado e não em presença. Presença

86 Manifestação, é uma relação imediata com o objeto existente (ABBAGNANO, Nicola. 3 ed. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 789).

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não é algo fugaz e passageiro, mas o que aguarda e permanece diante de nós (cf. BUBER, 2001, p. 14). Notável é que a melancolia do destino humano é de Tu tornar-se um Isso, um objeto a ser lembrado sendo que a contemplação autêntica é breve durando apenas no tempo da alternância e da latência, ou seja, enquanto há inovação e vigor na relação configurada no encontro. Em se tratando de encontro, pode-se observar o processo de desenvolvimento da criança. Ela, ao estar satisfeita em suas necessidades primárias começa a interagir com o nada em movimentos feitos pelas mãos, como que se quisesse tocar algo, conhecer e repentinamente se detém fixamente a um objeto e o observa atentamente, até que o tenha em mãos. E ali, na fantasia, se o objeto não tem vida, ela o torna vivo e acontece entre eles a relação. Então o instinto de relação é primordial (Cf. BUBER, 2001, p. 31). As relações são o seu desenvolvimento. Na criança (homem) em atualização surge o Eu, que o capacita a relacionar-se face-a-face. Os encontros não se ordenam de modo a formar um mundo, mas são indicadores do ordenamento do mundo que não quer ajuda a conservar a vida e sim sugerir a eternidade. Sendo que o processo relacional, segundo as palavras de Buber – o homem não pode viver sem o Isso, mas aquele que vive somente com o isso não é homem. Por compreensão tem-se que somente aqueles que conhecem a relação e a presença do Tu estão aptos a decidirem, pois são livres e se apresentam diante da Face.

Cada ato de relacionamento amarra o Tu ao mundo do Isso, assim surge a obra, o conhecimento. Isto se dá através da contemplação como resposta ao Tu. Como a relação entre duas pessoas através dos sentimentos, duas são as condições: a de estarem em relação viva e mútua com um centro vivo e de estarem unidos uns aos outros em relação recíproca (cf. BUBER, 2001, p. 53). Assim a unidade se dá sobre a relação viva e recíproca, mas o verdadeiro construtor é o centro ativo e vivo. A renovação da civilização é feita pelas relações causadoras do Tu:

O homem livre é aquele cujo querer é isento de arbitrário. Ele crê na atualidade, isto é, ele acredita no vínculo real que une a dualidade real do Eu e do Tu crê no destino e também, que ela tem necessidade dele; ela não o conduz em inteiras, mas o espera; o homem deve ir ao seu encontro mas não sabe ainda onde ela está. O homem livre deve ir a ela com todo seu ser (BUBER, 2001, p. 69, grifo nosso).

Do contrário, não crer e não se oferecer ao encontro é desconhecer o vínculo relacional, e ao expressar Tu expressa sua vontade de poder e utilização onde seu destino, ou ser-determinado pelas coisas e através dos instintos básicos à sua condição humana. Seu mundo é privado de oferta e presença, pois é condicionado nos fins e meios, como uma fatalidade. Sendo que “todo o vínculo Eu-Tu, no seio de uma relação, que se especifica com finalidade exercida por um lado sobre o outro, existe em virtude de uma mutualidade que não pode tornar-se total” (BUBER, 2001, p. 152).

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Então sendo o mundo do Isso abandonado a si mesmo sem possibilidade de encontro com o Tu, aliena-se; como exemplo, segundo relato do Brahmana (Cf. BUBER, 2001, p. 71 e 72) ao falar de que deuses e demônios disputavam entre si. Os demônios pararam e em suas conclusões disseram: a quem poderíamos apresentar nossas oferendas? E depositaram todas as oferendas em suas próprias bocas, e os deuses depuseram nas bocas uns dos outros. Então o superior dos demônios se rendeu aos deuses. A diferença da palavra-princípio Eu-Tu é diferente do Eu da palavra-princípio Eu-Isso. O último se compreende como egótico87, que vê somente a utilidade das experiências, o Eu-Tu se conscientiza como pessoa e subjetividade. Mostra-se então o abismo entre querer e conhecer, pois na relação de admiração ingênua da alteridade o ideal e o real coincidem numa manifestação dotada de plenitude e sentido, acabando com as modalidades pessimistas e egocêntricas. Então se tem a abertura como característica de afirmação, como reconhecimento.

Somente o homem - uma vez que é pessoa – consegue se alçar por sobre si mesmo – enquanto ser vivo -, e, a partir de um centro como que para além do mundo espaço – temporal, incluindo aí ele mesmo, tornar tudo objeto de seu conhecimento [...] Enquanto tal, ele também é capaz da ironia e do humor que constantemente envolvem uma elevação por sobre a própria existência [...] Sendo

87 Excessiva importância a si mesmo; falar demais de si mesmo, culto do Eu (ABBAGNANO, Nicola. 3 ed. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 308).

então, a objetivação causada por este espírito unicamente pelos seus próprios atos, ou seja, sua atualidade (SCHELER, 2003, 44 e 45).

Compreende-se que de fato, o ser humano é uma

substância incompleta, e no outro encontra todas as prerrogativas de uma vivência equilibrada. Pois a alteridade que o outro representa ajusta o Eu em experiência através desse Tu. Entende-se então, que é no feixe de relações que o homem encontra a sua mais profunda essência e inquietude88. Em outras palavras, o sentido do humano a fim de resgatar a dignidade da responsabilidade que lhe é inerente na construção de um mundo mais humano. 3 RELATOS SOBRE O PENSAMENTO EM SUICÍDIO

Na sequência transcrevo entrevistas realizadas com ex-alunas das turmas de Ensino Médio que lecionei nos anos de 2009 a 2012, os nomes são fictícios para preservar suas identidades, suas participações foram de fundamental importância, pois deu a nossa pesquisa base empírica, com pessoas que pensaram em cometer suicídio. 3.1 MELISSA

Falar sobre suicídio é algo que hoje não me pertence mais. Porém se paro para pensar, parece que ainda posso

88 Agitação mental, sentir insegurança. Impulso que leva à busca nas vicissitudes da existência. Em Leibniz é totalmente positiva, pois jamais permite repouso, acomodação (DUROZOI, Gerard. Dicionário de Filosofia. Trad. Marina Appenzeller. Campinas: Papirus, 1993, p. 255 e 257).

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sentir o quanto isso me corroeu por dentro. Suicídio é uma coisa tão estranha de se sentir, a vontade de cometer esse ato, deixa a gente meio irracional, como se uma âncora te puxasse para o fundo enquanto seus sentimentos te dominam, mas de repente a razão vem e te traz para a realidade de novo... E assim eu vivi durante muito tempo, foi uma adolescência difícil, as pessoas jamais imaginariam que passei por tudo isso sozinha, calada, sem compartilhar um pouco da dor com ninguém. Não sei dizer quando essa fase depressiva começou em minha vida, só sei dizer que nunca fui uma pessoa que viveu normalmente. Viver por viver. Apenas aproveitar a vida. Não! Isso não fez parte de mim.

Sempre fui muito curiosa, porque as coisas são como são? Porque isso é assim e não assado? Meu coração era dominado por questões que eu não sabia responder, e talvez nem quisesse responder, porque sempre que uma resposta cientifica existia para tal questão, ainda assim eu continuava me indagando. E então começou a passar pela minha cabeça: Porque continuar assim? Porque não me libertar disso? Porque continuar vivendo sem ser feliz? Porque continuar fingindo que sou uma pessoa normal, feliz?

Foi a época mais dolorosa da minha vida. Porque você viver assim, com tanta dor, tantos sentimentos ruins não é fácil. E o pior era se passar por uma pessoa normal, querida, aluna exemplar...

Eu me agarrava em vários motivos para não cometer o “ato”. Sempre pensava nas pessoas queridas, sempre imaginava a dor que causaria nelas, sempre seguia perguntando se não é esse o sentido do mundo mesmo, um

ser diferente do outro, então porque eu queria ter uma vida que eu julgava ser “normal” como os outros tinham?

Eu comecei a me convencer de que todo mundo uma vez na vida sentiu isso, que eu não estava sozinha, mesmo que parecesse. Jamais busquei ajuda. Guardei a dor de um lado do coração, e do outro guardei o que era bom.

Não tenho como negar que ainda carrego as mesmas dúvidas, ainda carrego um pouco da dor, mas com o tempo fui aprendendo a deixar ela de lado. Afinal o que é a vida se não uma grande montanha russa de vai e vem de emoções e sentimentos? Sou feliz por jamais ter cometido isso que eu julgaria de “erro” pois mal sabia o que a vida estaria reservando para mim.

Hoje me considero feliz, dou muito valor aos momentos bons que tenho justamente por já ter sido tão só dentro de mim. Não consigo passar aqui alguma dica ou ainda algum conceito sólido sobre suicídio. A maior lição que tirei do que passei é que é inexplicável, posso usar todas as palavras que conheço e jamais conseguiria explicar com clareza o que senti. É doloroso e solitário, por isso acredito que poucas pessoas conseguem realmente se livrar disso. É preciso ir além de uma simples conversinha sobre dar valor ao que tem, é preciso tocar a alma. 3.2 LIRIA ASSIS

Sobre estar deprimido, se fechar em um quarto escuro e só chorar, sobre não comer, e pensar que a vida não tem graça... De todos os pensamentos negativos que uma pessoa

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pode ter, a vontade de acabar com a dor este é o mais significativo.

Pensar em suicídio não se refere apenas aos planos de morte, pensar em como seria bom se não estivesse sobre a face desta terra já é um pensamento suicida, pensar em como seria se tivesse um botão de desligar a vida também é um pensamento suicida. Frases como "não aguento mais", "quero sumir", "a vida não tem mais cor, não tem graça"... costumam ser diversas vezes repetidas por pessoas que estão em profundo sofrimento mental.

E muitas vezes não damos a devida atenção a essas queixas. Por isso é importante ficar atento a esses "alarmes". Quando chega-se a este ponto fica claro que esta pessoa deve procurar uma psicoterapia, pois mesmo que a pessoa se considere “medrosa demais” – como muitos declaram - para concretizar o suicídio, apenas o fato de pensar em não estar mais vivo já é algo muito significativo, esta pessoa precisa, e merece, ajuda. Na grande maioria das pessoas que se suicidaram houve um aviso, algo foi dito que demonstrasse pensamento suicida. `O impulso para agir tem um tempo limitado, as ideias de morte persistem por algum tempo, mas ainda assim normalmente a pessoa consegue resistir ao impulso de concretizar essa ideia, mas só o fato de ter o pensamento já demonstra a importância dessa depressão. Vale salientar que nem sempre há o desejo de morte, o desejo real é a eliminação do sofrimento e não da vida em si. E para refletir, deixo aqui uma frase do grande escritor Augusto Cury: "Quando uma

pessoa pensa em suicídio, ela quer matar a dor, mas nunca a vida". 3.3 TALISSA Suicídio, segundo dicionário é o ato ou efeito de se suicidar-se, em outras palavras é um atentado contra a própria vida. O suicídio muitas vezes pode ocorrer por influência de alguém ou a pessoa mesmo pode pensar em se matar sem que haja alguém envolvido. A três etapas do suicídio: o suicídio pensado, ocorre quando a pessoa tem leves pensamentos suicidas, a tentativa de suicídio, ocorre quando a pessoa vai suicidar-se e na hora não consegue, e o suicídio consumado, ocorre quando a pessoa tira sua vida sem pensar duas vezes. As pessoas que atentam contra a própria vida muitas vezes estão fora de si, seu psicológico está sobre tal pressão que a pessoa já não tem mais controle de seus pensamentos. Pessoas que cometem tal ato são pessoas que estão muito abaladas seja por causa de seu trabalho, seja problemas familiares, essas pessoas chegam em um grau tão alto de desespero por não conseguir resolver seus problemas e veem na morte a única solução para livrar se da pressão sobre elas, e livrar se de toda sua dor psicológica. Normalmente quando as pessoas chegam a esse estágio e porque estão em uma depressão muito forte e precisam de tratamento, precisam de ajuda, mas não admitem, não acreditam que estão mal e que precisam de um auxílio para continuar vivendo. Mas não são só pessoas depressivas que cometem suicídio, alcoólatras, drogados também cometem, afinal também estão fora de si

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pois o álcool a droga consome sua sanidade, a sua consciência levando as a agir sem pensar e acabam fazendo besteira. Segundo pesquisa de psicólogos e psiquiatras em único ano, cerca de 1 milhão de pessoas no mundo tiram sua própria vida e provavelmente cerca de 60 milhões o tentam fazer. O suicídio encontra-se entre as 10 primeiras causas de morte, sendo que por cada suicídio ocorrem 11 sem sucesso. Pessoas que tentam suicídio se não receberem ajuda medica em menos de um ano tentam de novo e de novo até que conseguem o ato final. Segundo pessoas que tentaram e receberam ajuda dizem que hoje elas olham para trás e veem que estavam fazendo besteira. E eu acho que não e só essas pessoas que pensam assim que é besteira, ao meu ver as pessoas que após o ato consumado elas caiem em si e que nos seus últimos segundos de vida veem que estão fazendo besteira, mas como já e tarde demais o que resta a elas e simplesmente aceitar o erro cometido afinal quanto a isso não se pode voltar atrás. Pra mim, ninguém tem direito de tirar a própria vida afinal deram a ela o dom de viver ela não compro, ela não achou ela simplesmente recebeu, ganhou, mas também não posso julga-las, afinal estão tão fora de sua sanidade mental que acabam tirando a própria vida sem perceber, acabam fazendo loucuras coisas indesejáveis sem pensar. CONSIDERAÇÕES FINAIS Essa discussão teve sua importância, uma vez que atuou sobre a vida, ainda presente para ocasionar parte dessa reflexão, sendo assim, cumpriu sua tarefa – dar início ao

pensamento sobre o suicídio de uma forma em que se motive preservar a vida. As pessoas raramente se suicidam (a hipótese, no entanto, não se exclui), por reflexão. Aquilo que provoca a crise é quase sempre incontrolável. Os jornais falam muito, muitas vezes “desgostosos íntimos” ou de doenças incuráveis. São explicações validas. É preciso saber se nesses próprios dias um amigo desesperado não lhe falou, num tom indiferente. É ele o culpado. Porque isso pode bastar para precipitar todos os rancores e todos os cansaços em suspensos. Mas se é difícil fixar o momento preciso, o momento subtil do espírito em que este se determinou pela morte, é mais fácil tirar do próprio gesto as consequências que ele implica. Matar-se em certo sentido, (e tal como no modelo implica). É confessar que é ultrapassado vida que a não compreendemos. REFERÊNCIAS ABBAGNANO, Nicola. 3 ed. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1999. BORNHEIM, Gerd Alberto. Introdução ao Filosofar: O Pensamento Filosófico em Bases Existenciais. São Paulo: Globo, 2003. BUBER, Martin. Eu e Tu. Trad. Newton Aquilis Von Zuben. 8ºed. São Paulo: Centauro, 2001. Título Original – Ich und Du.

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SCHELER, Max. A Posição do homem no Cosmos. Trad. Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. DAPIEVE, Arthur. Morreu na contramão: o suicídio como notícia. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. DURKHEIM, Émile. O Suicídio. São Paulo: Martin Claret, 2005. DUROZOI, Gerard. Dicionário de Filosofia. Trad. Marina Appenzeller. Campinas: Papirus, 1993.

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ANTROPOLOGIA E EDUCAÇÃO - ANTROPOLOGIA E EDUCAÇÃO INFANTIL: FAMÍLIA, GÊNERO,

SAÚDE E EDUCAÇÃO

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EDUCAÇÃO, ENSINO RELIGIOSO E GÊNERO: UM ESTUDO DA PROPÓSTA PEDAGÓGICA NAS ESCOLAS DE CURITIBANOS.

Francinne de Oliveira Kerkhoff89 O presente artigo é parte do projeto de mestrado que está em curso na Universidade do Planalto Catarinense (UNIPLAC) em Lages e tem como proposta promover e incentivar a discussão de dois temas polêmicos em sala de aula. O Ensino Religioso como disciplina curricular que está garantido na LBD (Lei de Diretrizes e Bases) em seu art. 33 da Lei 9475/97, garantindo ensino laico e de matrícula facultativa na escola pública. Quantoà proposta de análise de gênero entendemos ser necessária para que possamos promover o debate e a desconstrução de pré-conceitos ainda existentes em nossa sociedade, tais como “homem não chora” e “lugar de mulher é na cozinha”. Nossa proposta ao promover a união desses dois temas em sala de aula é buscar novas possibilidades de olhar para o ser humano além do seu corpo e da sua fisionomia externa. Entendemos que ambos os temas ainda são visto com resistência pela sociedade, famílias e escolas, mas mudanças só acontecem quando debates são promovidos e realizados entre as pessoas. Para tanto, faremos uma pesquisa bibliográfica usando autores/as como Ivone Gebara, 89 Mestranda em Educação pela Uniplac de Lages/SC. Bacharel em Teologia. Pastora na Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB). Possui experiência na área de Teologia, com ênfase no pastorado. Estudante pesquisadora no Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação Básica GEPEB. E-mail: [email protected]

Guacira Lopes Louro, Jon Scott entre outros, para tratarmos da questão de gênero. No Ensino Religioso traremos autores como Sérgio Junqueira, Lurdes Caron, Remi Klein entre outros, além de realizarmos pesquisa de campo com professores/as que lecionam essa disciplina. PALAVRA- CHAVES: Ensino Religioso, gênero, educação.

INTRODUÇÃO: O Ensino Religioso tem sido uma disciplina

marginalizada nas escolas públicas de modo geral. Os motivos são vários, entre eles podemos citar a falta de valorização e incentivo ao profissional que atua nessa área. Levando assim o/a profissional dessa disciplina a atuar em muitas escolas ou até mesmo numa disciplina diferente da sua formação. O contrário também ocorre. Por falta de docentes licenciados/as no curso de ciências da Religião com habilitação em Ensino Religioso docentes de outras áreas acabam assumindo essa disciplina.

Em sentido lato, as instituições formadoras capacitam de forma a qualificar esse profissional para o exercício da disciplina do ER como fenômeno religioso e não como catequese, ganhando assim forma acadêmica. A disciplina de ER quer ser um espaço que possibilita um processo de construção e reconstrução do conhecimento e reconhecimento do diferente. Porém asdificuldades ainda são muitas e os/as próprios/as formadores/as muitas vezes não possuem a

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devida qualificação, ou pouco material e investimento na pesquisa para desenvolver o Ensino Religioso como ciência.

Todo/a profissional para exercer de forma plena sua função necessita de formação adequada. Assim também é com o ER, a FURB (Universidade Regional de Blumenau) é pioneira em oferecer o Curso de Ciências de Religião – Licenciatura em Ensino Religioso (CR-ER), criado há 15 anos.

[...] é pioneiro no Brasil com Licenciatura em Ensino Religioso, habilita profissionais para o exercício docente em Ensino Religioso na Educação Básica. No decorrer destes anos o curso tem integrado de forma significativa a luta pelos Direitos Humanos em relação à Diversidade Cultural Religiosa, que transita no cotidiano social, acadêmico e escolar, buscando contribuir na formação de docentes e pesquisadores e comunidades comprometidas com a erradicação de discriminações e violências de caráter religioso.90

Nosso cenário atual conta com o/a professor/a com

formação acadêmica em Ciências da Religião e outros/as sem essa formação. Frente a isso percebemos o quanto precisamos caminhar para que esse/a profissional seja valorizado/a e reconhecido/a. Acabamos assim, tendo docentes com dois tipos de comportamento, gerando uma lacuna frente o conhecimento teórico proposto pela LEI 9475/97 do art. 33 da LBD, que garante um ensino laico, sem a interferência de nenhuma denominação religiosa.

90 http://www.furb.br/web/1771/cursos/graduacao/cursos/ciencias-da-religiao/apresentacao. Acesso em: 03 de dezembro 2014.

Para que o/a professor/a possa ser instrumentalizado para essa discussão se faz necessário olhar o ER, como possibilidade de desconstrução e reconstrução, pois essa disciplina pode proporcionar discussões e ofertar possibilidades de responder de forma consciente tanto no âmbito pessoal e comunitário sobre o ser humano. A falta desse conhecimento/consciência acaba levando a uma negação do trabalho com os conhecimentos específicos do ensino religioso (MARTINS, 2013). Entendemos desse modo ser relevante olharmos mesmo para a formação do/a professor/a que atua nessas disciplinas. São conhecimentos específicos do ER:

Para Junqueira (1998, p. 7-8).

O Ensino Religioso, valorizando o pluralismo e a diversidade cultural presentes na sociedade brasileira, facilita a compreensão das formas que exprimem o transcendente na superação da finitude humana e que determinam subjacente, o processo histórico da humanidade. Por isso necessita:

• Proporcionar o conhecimento dos elementos básicos que compõem o fenômeno religioso, a partir das experiências religiosas percebidas no contexto do educando;

• Subsidiar o educando na formulação do questionamento existencial, em profundidade, para dar sua resposta devidamente informada;

• Analisar o papel das tradições religiosas na estruturação e manutenção das diferentes culturas e manifestações socioculturais;

• Facilitar a compreensão do significado das afirmações e verdades de fé das tradições religiosas;

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• Refletir o sentido da atitude moral, como consequência do fenômeno religioso e expressão da consciência da resposta pessoal e comunitária do ser humano;

• Possibilitar esclarecimentos sobre o direito à diferença na construção de estruturas religiosas que têm na liberdade o seu valor inalienável.

A disciplina de Ensino Religioso, precisa de professionais com boa formação, para poder ir além do estudo e da reflexão sobre o do fenômeno religioso. Um dos principais objetivos da disciplina é “assegurar o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil” (Lei nº 9475/97). Com boa formação, os/as profissionais desta área vão poder promover e estimular de forma adequada o exercício da tolerância, diálogo, abandono de ideias preconceituosas e ações discriminatórias contra o diferente. (WELTER, 2011).

A escolha pela inclusão da proposta de gênero neste trabalho se dá pela importância cada vez maior de conhecer mais amplamente o ser humano e seudesenvolvimento desde a infância. Assim, entendemos ser a disciplina de ER uma possibilidade de discussão, formação e quebra de pré-conceitos ainda existentes em nossa sociedade. Para que isso ocorra, faz-se necessário trazer essa discussão para sala de aula e para o nosso dia-a-dia escolar.Promover a discussão desse tema é relevante, pois, preconceitos e falta de informação são características ainda muito presentes tanto no que se refere ao ER, quantoà discussão de gênero na escola e na sociedade. Pesquisar sobre o desenvolvimento de gênero na disciplina de ER torna-se indispensável uma vez que

vivemos em uma sociedade pluralista e multicultural (PATRÍCIO, 2008). O início da discussão sobre gênero no Brasil

Pensar em feminismo no Brasil é descobrir que muitas foram e são as formas de manifestar-se. Nessa luta pela busca do direito ao voto feminino, também outros interesses foram agrupados como “o direito à educação, a condições dignas de trabalho, ao exercício da docência.” (LOURO;FELIPE; GOELLNER, 2013, p. 14). Apesar de inicialmente ser um ato bem singular pela busca dos direitos femininos, logos ganha proporção mais ampla que acaba englobando uma multiplicidade de outras reinvindicações mais plurais. Patrício (2008) mostra que esse movimento pode ser dividido em dois momentos: o primeiro, no final do século XIX até 1932 e o segundo, do feminismo pós-1968. De acordo com Patrício (2008, p. 5).

Na década de 70, em pleno governo Médici, o feminismo brasileiro acabou por dividir-se entre o “dentro e fora” do país, devido principalmente à grande quantidade de feministas exiladas. Na Europa e nos Estados Unidos o cenário era de grande efervescência política, de revolução dos costumes, de renovação cultural radical, enquanto no Brasil a repressão era marca maior da ditadura militar. As características que o movimento feminista teve nesses dois cenários refletem essa conjuntura política diversa no qual estavam inseridos, sendo queos primeiros grupos feministas em1972, em São Pauloe n

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o Rio de Janeiro, foram inspirados no feminismo dos países do Norte.

Segundo essa mesma autora, o ano de 1975 é decretado pela Organização das Nações Unidas (ONU) o dia internacional da mulher que contribuiu de forma significativa juntamente com a criação do Centro de Desenvolvimento da Mulher Brasileira e juntos deram mais ânimo e fôlego ao movimento feminista em âmbito brasileiro (PATRÍCIO,2008). Na cultura de tradição ocidental, somos condicionados a pensar em nossos corpos como um elemento menos nobre e mais profano: “corpo-alma, corpo-espírito, corpo-mente, corpo-razão” (LOURO; FELIPE; GOELLNER, 2013, p. 9).Nessa proporcionalidade eles ocupavam o lugar da natureza opondo-se a cultura. Ainda somos uma geração que vive as transformações com certo receio e pudor. As criticas, as mudanças e a liberdade de expressão nos incomodam e deixammuito/as de nós em situações desconfortáveis. Prova disso é que ainda vigiamos o comportamento de nossos corpos. De acordo com Louro, Felipe e Goellner (2013, p. 9)

Um olhar mais cuidados nos mostra que todos os processos educativos sempre estiveram – e estão – preocupados em vigiar, controlar, modelar, corrigir, construir corpos de meninos e meninas, jovens, homens e mulheres. Os corpos foram – e são objeto da mais meticulosa atenção, não apenas das escolas, mas de várias instâncias sociais.

6.3 – Ensino Religioso e Gênero.

Nessa proposta de relacionar e discutir a questão de gênero dentro da disciplina de Ensino Religioso nos dispomos a investigar se o/a professor/a recebe formação na área de gênero durante sua formação acadêmica no Curso de Ciências da Religião com Licenciatura em ER. Por sua vez em outro momento investigaremos a existência ou não do estudo de gênero nas aulas de ER nas escolas publicadas na região do Contestado. Temos consciência que o debate sobre gênero ainda é polêmico e pouco discutido nas salas de aula, mas como o tema é cada mês mais atual seu debate se faz necessário. Quanto à oferta da temática sobre gênero na formação acadêmica do/a graduando/a no curso de Ciências da Religião, pode-se perceber que as dificuldades ou a ausência de debate se fazem presentes. De acordo com Welter (2011, p. 5).

Analisando as ementas das disciplinas dos Cursos de Licenciatura em Ciências da Religião, constatou-se que não há previsão de disciplinas específicas ou inclusão de temáticas como gênero e sexualidade na formação destes licenciados. Na prática, estas temáticas são abordadas especialmente nas disciplinas de Ciências Humanas, como Sociologia e Psicologia, em eventos específicos ou apropriadas como fundamentação teórica de alguns Trabalhos de Conclusão de Curso. Exemplos desta apropriação em TCC (UNISUL/UNOESC 1996-2000): “Sexualidade e Televisão”, “Gravidez na adolescência” e “A mulher na Igreja”.

Percebe-se que as dificuldades sobre a temática de gênero ainda é muito distante da realidade dos/as docentes e de sua formação acadêmica. Com isso o reflexo em sala de

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aula com alunos e alunas se torna algo difícil e por vezes constrangedor ao professor/a. É valido ressaltarmos que questões de gênero vão perpassar todas as disciplinas do currículo escolar, nos detemos na disciplina de Ensino Religioso por o nosso foco. A partir da discussão da questão de gênero podemos ter à noção de que durante toda a nossa vida varias instituições sociais acabam por fazer parte de nossa formação e de nossas práticas que por sua vez vão contribuir para nossa formação como homens e mulheres que não possuem uma forma linear e harmônica, mas inconclusiva. Entrelaça-se nesse pressuposto, uma intrínseca relação de gênero e educação que por sua vez acaba contribuindo com uma posição teórica vai ampliar a noção de educativo muito além de família e escola. Descobrimos então que educar engloba um complexo muito maior de forças durante todo o nosso processo de formação. Esse processo “(inclui, na contemporaneidade, instancias como os meios de comunicação de massa, os brinquedos, a literatura, o cinema, a música)”(LOURO; FELIPE; GOELLNER, 2013, p. 18-19), todos esses elementos podempossibilitar paraque indivíduos se reconheçam como homens e mulheres no meio em que vivem.Portanto, somos frutos de um processo de construção que nunca acaba, mas sempre sofre modificações. Conceituando Gênero:

Segundo Scott (1995) a palavra “Gênero” precisa ser vista de outra forma, que não a que se usava até então. As possibilidades de interpretação da palavra passaram a

diminuir e a ter sua função mais voltada para a organização social da relação entre os sexos. Quem trouxe isto à tona foram as feministas americanas.

Três são os eixos para compreendermos as desigualdades, são elas “classe, raça e gênero”. Classe tem fundamentação em Marx e Weber, mas raça e gênero não carregam associações semelhantes. O que aconteceu com a história levantada pelas feministas é que foram reconhecidas, mas logo confinadas ou relegadas. A palavra “gênero” tornou-se sinônimo de “mulheres”. Dessa forma dá uma conotação mais acadêmica sem parecer uma ameaça. Assim, não há como dissociar um sexo do outro na formação da história. Nas relações sociais entre os sexos rejeita explicações biológicas para explicar a subordinação feminina. Gênero enfatiza um sistema de relações que pode incluir o sexo, mas não é diretamente determinado pelo sexo. Várias foram às abordagens na área do gênero. Eram três as posições teóricas, mas abrangentes. As teóricas do patriarcado ao analisar a subordinação feminina concluem que os homens alienados diante de sua incapacidade de reprodução exaltavam a primazia do patriarcado obscurecendo o trabalho da mulher no ato de dar a luz. Para outras a resposta estava na sexualidade onde o homem domina a mulher, mas não mostram o que uma desigualdade tem a ver com as demais e outros problemas a-históricos. O feminismo marxista tem uma abordagem mais histórica. Famílias, lares e sexualidades são, no fim das contas, todos os produtos de modos cambiantes de produção

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(SCOTT, 1995). O patriarcado está sempre se desenvolvendo e mudando em função das relações de produção. Já a teoria psicanalítica exige uma distinção entre escolas. A Escola Anglo-americana e a Escola Francesa. Ambas procuram na formação da identidade do sujeito ainda criança pistas sobre a formação da identidade do gênero. A escola francesa enfatiza a experiência concreta, enquanto que a escola pós-estruturalista enfatiza o papel central da linguagem na comunicação, interpretação e representação do gênero. Para Scott, nenhuma das teorias é plenamente utilizável. Quando SCOTT (1995) define gênero,separando em duas partes com diversos subconjuntos. Primeiramente o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos. Segundo, o gênero é uma forma primária de dar significados às relações de poder. Aposição que emerge como posição dominante é, contudo, declarada a única possível. Este é o terceiro aspecto. O quarto aspecto é a subjetividade. Nenhum destes quatro elementos pode operar sem os outros. O gênero é um campo primário no interior do qual, o poder é articulado. O gênero então fornece um meio de decodificar o significado e de compreender as complexas conexões entre várias formas de interação humana. O conceito de gênero tem sido utilizado literal ou analogicamente na teoria política para justificar ou criticar reinado de monarcas e para expressar as relações entre governantes e governados.

Compreendo que Scott(1995) rompe fronteiras mostrando os pontos fracos e fortes das pesquisas realizadas até então, sem desvalorizar a importância que ambos os sexos possuem na construção da sociedade. Ao mostrar como enxerga a palavra “gênero”, explicita que a palavra outrora citada tornou-se uma forma de identificar o papel de cada um na sociedade. Conceituando e refletindo Ensino Religioso De acordo com as reflexões de Sérgio Junqueira,o Ensino Religioso como fenômeno assumiu como compreensão de conceituação de Religião (lat.) “RELIGIO” como (lat.) “RELEGERE” (port.) “RELER”, utilizando-se, portanto da definição de Cícero. Este filósofo em seu tempo propôs “RELIGIO” como sendo: o culto aos deuses segundo os costumes dos povos ancestrais; que a melhor religião é a mais antiga, porque está mais próxima dos deuses, e ainda como conjunto de crenças e práticas tradicionais próprias a uma sociedade humana particular, que assim honra seus deuses e merece o respeito das demais comunidades (JUNQUEIRA, 2013). O Ensino Religioso como disciplina pode além de conceitos e fatos históricos. Uma vez que ele esteja bem estruturado como disciplina e levado a sério como tal, além de professionais que recebam reconhecimento pelo seu trabalho. Podemos olhar o Ensino Religioso com o olhar fenomenológico que deve receber e não mais com resquícios de catequese como no passado. Enfim precisamos incentivar formação e espaços pra debates, gerando assim crescimento e instrumentalização

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aos/as profissionais dessa área. Nosso desafio fica maior quando somos desafiados a incluir questões como sexualidade e gênero em sala de aula, no nosso caso na disciplina específica de Ensino Religioso.

Um grande número de educadores/as sentem-se desprovidos/as de material e pouco conhecimento, além de não se sentirem a vontade para discutir sobre a questão de gênero e sexualidade em sala de aula. Poucos são os/as que estão dispostos a deixar as certezas e os discursos feitos para traz e admitir que a “instabilidade e a transitoriedade se transformaram em ‘“marcas”’ do nosso tempo”. (LOURO;FELIPE; GOELLNER, 2013, p. 43).

Parece que as convicções e certeza do passado já não respondem as necessidades da nossa atualidade contemporânea. Juntamente com a questão da sexualidade podemos incluir a questão de gênero, que não podemos mais ignorar em nossa vida atual. Enquanto alguns educadores e algumas educadoras preferem buscar referencias no passado ou ainda ignorar outros/as buscam alternativas.

De acordo com Louro, Felipe e Goellner (2013, p, 44).

[...] a opção é assumir os riscos e as contradições, e sem pretender lhes dar uma solução definitiva, ensaiar, em vez de disso, respostas provisórias, múltiplas, localizadas. [...] muito mais do que um sujeito, o que passa a ser questionado é toda uma noção de cultura, ciência, arte, ética, estética, educação que, associada a esta identidade, vem usufruindo, ao longo dos tempos, de um modo praticamente inabalável, a posição privilegiada em torno da qual tudo mais gravita.

Novos desafios rondam a educação na nossa atualidade, precisamos nos dispor ao debate e ao rompimento de modelos prontos e indissolúveis. Pois “uma noção singular de gênero e sexualidade vem sustentando currículos e práticas de nossas escolas” (LOURO;FELIPE; GOELLNER, 2013, p. 45). Nessa perspectiva de mudanças e alternativas o presente artigo propõe o debate sobre identidade, sexualidade e gênero na disciplina de Ensino Religioso no ensino fundamental. O espaço da educação é muito amplo e engloba muitas estruturas e entre essas temos a presença da família que desenvolve seu papel. Também a escola, as instituições religiosas, as politicas públicas e demais organizações educativas nos diversos âmbitos desenvolvem a tarefa de formar e educar a sociedade. A educação está presente em todo o processo de educação, de suas ideias e especialidades envolvendo as trocas de símbolos e demais poderes que juntos constroem tipos de sociedade. (BRANDÃO, 1981). Pensando especificamente no âmbito escolar e na sua dinâmica para preservar a vida, ela necessita recorrer aos fenômenos e conhecimentos gerados no passado procurando resignificar para o presente, fazendo com que tenham significado na realidade e na cultura atual (GROOME, 1983). Para Mondin (2002, p, 183) a cultura é um

[...] conjunto de objetos materiais, de instituições, modos de vida e de pensamento que não são característicos do individuo, mas que caracterizam um grupo social [...] é a vida de um povo, assim como se formaliza em contatos, instituições, aparatos tecnológicos, costumes e tradições característicos [...] todas aquelas coisas,

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instituições, objetos materiais, reações típicas das situações que caracterizam um povo e o distinguem dos outros.

A proposta desse artigo é pensar na disciplina de Ensino Religioso como possibilidade de trabalharmos o preconceito e a discriminação aliados a nossa vida cotidiana. Pois, “em nossa sociedade verbetes como preconceito, exclusão e discriminação passaram a serem considerados vergonhosos, já que conscientemente as pessoas não assumem viver o sentido de qualquer uma destas palavras” (JUNQUEIRA, 2013, p. 149). Nesse sentido buscarmos a relação de gênero na disciplina de Ensino Religioso em Curitibanos- SC pode nos mostrar quais as possibilidades/espaços que professores/as encontram para refletir sobre esses temas em sala de aula com pré-adolescentes que começam a descobrir e viver sua sexualidade. Considerações finais: Existem várias formas e possibilidades de pensar a disciplina de Ensino Religioso, nós pensamos nessa disciplina como mais um espaço de diálogo e de buscarpela identidade do ser humano que nunca esta formada, mas sempre em construção. Referencias bibliográficas: BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é educação? 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1981. BRANDENBURG, L; KLEIN, R; REBLIN, I. A.; STRECK, G. I. (Orgs).Ensino Religioso e Docência e(m) Formação.São Leopoldo: Sinodal/EST, 2013.

JUNQUEIRA, Sérgio R. A. Ensino Religioso; uma real mudança de paradigma. Diálogo. São Paulo, ano III, n°11, p. 5-9, agosto/1998. ____ Ensino Religioso: um estudo sobre sua relação com gênero e orientação sexual. Religare 10 (2), 142-151,PUC-PR, setembro de 2013 GROOME, T. Educação Religiosa e cristã. Compartilhando nosso caso e visão. São Paulo: Paulinas, 1983. MONDIN, B. Introdução à filosofia. 13. ed. São Paulo: Paulus, 2002. PATRÍCIO, Daniela Silva. Educação e Gênero: uma discussão para além da inclusão igualitária. Mestranda em Sociologia pela FCL/UNESP. SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Porto Alegre: Educação e Realidade, vol. 20, 1995. WELTER, Tânia. Problematizando a categoria de diversidade no Ensino Religioso de Santa Catarina. Comunicação apresentada no V Seminário Corpo, Gênero e Sexualidade. Rio Grande (RS)/Universidade Federal do Rio Grande (FURG), 25 e 27 de agosto de 2011. LOURO, G. L., FELIPE J., GOELLNER V. S.. Corpo, gênero e sexualidade: um debate contemporâneo na educação.9 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. KLEÍN R., BRANDENBURG L. E., WACHS M. C. (Org). Ensino Religioso: Diversidade e identidade: V Simpósio de Ensino Religioso – 29 a 31de maio de 2008. São Leopoldo: São Leopoldo: Sinodal/EST, 2008.

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MARGINACIÓN SOCIAL Y REFORMISMO EN ESPAÑA: LA CAUSA DE LOS NIÑOS EXPÓSITOS

Emiliano González Diez91

Las sociedades históricas han generado situaciones de marginación, e incluso de exclusión social, dirigida a grupos humanos a raíz de advertir su frágil posición económica, su reprobado origen civil, creencias confesionales distintas, la práctica explícita de actividades socialmente consideradas viles, menesterosas y cuando no antijurídicas y la forma antisocial de relacionarse dentro del modelo oficial que les conduce a la ruptura con el status social establecido. Si esto es obvio desde el punto de vista sociológico, también observamos cómo el poder político legítimamente establecido, e atención a sus planteamientos e intereses, activará todo un repertorio de medidas que atenderán al interés público y que gradualmente irán desde la separación efectiva de la persona por riesgo de contacto, la segregación espacial, el aislamiento social hasta la represión punitiva de tales conductas al entender intolerables por atentar contra el orden establecido y por poner en cuestión los poderes de la comunidad política

Con ello queremos prevenir de la proximidad y concomitancia entre intolerancia y marginación y cómo tales fenómenos están asociados a principios, valores y categorías sociales e históricas que implican una desvalorización

91 Catedrático de Historia del Derecho Universidad de Burgos.

personal y social y también la pérdida del goce y ejercicio de derechos individuales y sociales. La preterición de alguien, además de su exclusión económica, social y jurídica por su inferioridad respecto a los demás, conlleva formas de intolerancia, de limitación de la capacidad de obrar, de una asistencia tutelada que le impiden no sólo la integración sino la participación normalizada en la vida social. Es esta estigmatización social, que tendrá consecuencias jurídicas como veremos, la que podemos predicar de ciertos grupos sociales que el profesor Domínguez Ortiz describió en algunas obras generales de historia moderna92 y después definió y estructuró con más pormenor en algunos trabajos de clara adscripción social, y pretextan estas líneas muy someras en las que sólo nos vamos a ceñir a la secuencia del reformismo ilustrado y su intervención en la política legislativa de los niños expósitos93.

92 DOMÍNGUEZ ORTIZ, Antonio, Sociedad y Estado en el siglo XVIII, Granada, 1992, pp. 389-395; ALVAR EZQUERRA, Alfredo y DOMÍNGUEZ ORTIZ, Antonio, La sociedad española en la Edad Moderna, Madrid, 2005. 93 SÁNCHEZ ORTEGA María Helena, Los gitanos españoles. El período borbónico, Madrid, 1977; DOMÍNGUEZ ORTIZ, Antonio, “Documentos sobre los gitanos españoles en el siglo XVII” en M. Gutiérrez Esteve, J. A. Cid Martínez y A. Carreira (coordinadores), Homenaje a Julio Caro Baroja, Madrid, 1978, pp. 319-326; CARDAILLAC, Louis, “Vision simplificatrice des groupes marginaux par le groupe dominant dans l’Espagne des XVI et XVII siècles”, en A. ROMERO REDONDO (coordinador), Les problemes de l’exclusion en Espagne (XVI-XVII siècles): ideologie et discours, Madrid, 1983, pp. 11-22; DOMÍNGUEZ ORTIZ, Antonio, ”Un memorial contra la prostitución española en el reinado de Felipe IV”, en Historia y Pensamiento. Homenaje a Luis Diez del Corral, Madrid, 1987, pp. 217-223; SÁNCHEZ ORTEGA, María Helena, La inquisición y los gitanos, Madrid, 1988; PHILLIPS Jr., William D., Historia de la esclavitud en España, Madrid,

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En consecuencia, dentro de este peculiar paisaje urbano del que da cuenta la literatura y la historia renunciamos al estudio de esos “otros” grupos marginados reclutados entre la legión formada por pícaros, esclavos, gitanos, meretrices, mendigos, excluidos confesionales y del que rendimos indicación oportuna en nota correspondiente94. Dentro de esta tipología social y su caracterización, los niños expósitos, abandonados y desamparados socialmente, por cierto, conceptuación de larga tradición legislativa, lo son por nacimiento u origen civil más que por circunstancias sobrevenidas95, siendo irrelevante que el abandono se hubiera producido por causa voluntaria o involuntaria. En la sociedad dieciochesca todavía eran reprobados socialmente estos menores desamparados a los que se les

1990; DOMÍNGUEZ ORTIZ, Antonio,”Picaresca y marginación social en la obra de Maravall”, en Cuadernos Hispanoamericanos, 477-478 (1990), pp. 313-322; SANTOS RIVAS, Juan José, Historia del pueblo gitano, Almería, 1990; GÓMEZ ALFARO, Antonio, El expediente general de gitanos, Madrid, 1992; CEBRIÁN ABELLÁN, Aurelio, Marginalidad de la población gitana española, Murcia, 1992; JIMÉNEZ MONTESERÍN, Miguel, Sexo y bien común. Notas para la historia de la prostitución en la España Moderna, Cuenca, 1994; DOMÍNGUEZ ORTIZ, Antonio, La esclavitud en Castilla en la Edad Moderna y otros estudios de marginados, Granada, 2003; PÉREZ GARCIA, Pablo, “Los pobres en la época moderna: La obra de Domínguez Ortiz y su contexto historiográfico”, en Historia Social, 47 (2003), pp. 87-111 y FRASER, Angus, Los gitanos, Barcelona, 2005. 94 LOBO CABRERA, Manuel y TORRES SANTANA, Mª Elisa, “Los “otros” a partir de la obra de Domínguez Ortiz” en Manuscrits, 14 (1996), pp. 99-116. 95 Nos referimos a aquellos niños expósitos procedentes de otras zonas geográficas que se solían abandonar con la cédula y certificación correspondiente de estar bautizados y hasta confirmados en sus parroquias de origen.

afrenta por sospecharse que eran el fruto de relaciones ilegítimas, fuera de las fórmulas canónicas, hijos de relaciones deshonestas, de padres legalmente desconocidos y sobre ellos mismos recaía la mácula del pecado de su concepción. Esta era la impostación sicológica de un grupo marginal marcado por la denostación de una sociedad estamental y rígida que les excluía de su estructura, y de una Iglesia institucional que en su tarea de vigilancia y tutela eclesial les asimilaba a los desmanes de la lujuria. Además al desamparo legal se añadía en los padres una precaria situación económica que les arrastraba a la mendicidad, la indigencia y a la pobreza más absoluta. En la sociedad de la España moderna ya había arraigado la imagen abigarrada de menores de edad pululando por las rúas urbanas practicando la mendicidad y buscando el socorro y la limosna96. Este ejército de pobres propició no sólo un debate teológico-doctrinal en el ámbito intelectual eclesiástico en el que intervinieron entre otros: Domingo de Soto97, Lorenzo de Villavicencio, el canónigo Giginta98, el médico Cristóbal Pérez de Herrera99 y Luis de

96 CARMONA GARCÍA, Juan Ignacio, “La asistencia social en la España de los Austrias”, en De la beneficencia al bienestar social: cuatro siglos de la acción social, Madrid, 1986, pp. 69-88; CARASA SOTO, Pedro, Pauperismo y revolución burguesa. Burgos 1750-1900, Valladolid, 1987 y del mismo autor CARASA SOTO, Pedro, Historia de la beneficencia en Castilla y León. Poder y pobreza en la sociedad castellana, Salamanca, 1991, pp. 8-12. 97 Fray Domingo de SOTO, Deliberación de la causa de los pobres, Salamanca, 1545. 98 GIGINTA, Miguel de, Exhortación a la compasión de los pobres, Madrid, 1581. 99 PÉREZ DE HERRERA, Cristóbal, Amparo de pobres, Madrid, 1608.

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Molina defendiendo no sólo a los legítimos pobres, sino que en la intensidad de la disputa se plantearon la creación de albergues asistenciales en cada población y la reducción de estos desgraciados en casas de misericordia, hospitales y hospicios para pobres inválidos para que así, de una vez por todas, se pudiera controlar el pauperismo. A esta controversia ideológica se sumaron en el siglo del barroco los tratadistas de militancia mayoritaria arbitrista añadiendo a la discusión las raíces y causas espirituales y materiales que alimentan la pobreza, integrándola en la coyuntura económica deprimida y en la advertida sensibilidad de la contrarreforma practicada por las clases altas. En definitiva, la nueva consideración del problema de la libre mendicidad abrió la espontaneidad de la caridad particular y la proliferación de obras pías de dimensión familiar y local para el socorro de pobres y huérfanos100. Pero junto a estos niños pobres, entregados a la miseria y a la indigencia como forma de vida, se agregaron en el escenario urbano la tragedia lastimosa de otra masa desheredada y cuantitativamente impresionante de recién nacidos, hijos naturales resultado de una relación ilícita, concebidos en pecado y por ello “arrastraban consigo una culpa

100 PALOMARES IBÁÑEZ, Jesús María, La asistencia social en Valladolid. El Hospicio de Pobres y la Real Casa de Misericordia (1724-1847), Valladolid, 1975; MARCOS MARTÍN, Alberto, Economía, Sociedad y Pobreza en Castilla. Palencia 1500-1814, Palencia, 1985; MAZA, Elena, Pobreza y asistencia social en España. Siglos XVI al XX. Aproximación histórica, Valladolid, 1987, pp. 77-97; CARASA SOTO, Pedro, Historia de la beneficencia en Castilla y León. Poder y pobreza en la sociedad castellana, Salamanca, 1991, pp. 9-10.

original irredimible”101, que eran desamparados a su suerte bien en las puertas de las casas, en las iglesias y en los portales de los hospicios, bien en lugares más inhóspitos de la calle, las riberas de los ríos e incluso en estercoleros, sin importar estación climática alguna, arrojados a su suerte pero anidando en sus progenitores la confianza soñada de que serían recogidos y criados en casas de caridad, hospitales y hospicios de cada ciudad y villa para así ofrecerles con ello una esperanza de supervivencia, ya fuera asegurada de manera precaria en algunos casos, ya truncada por el albur de las circunstancias en otros muchos; más siempre, quedaba en último extremo la salvación de su alma con la administración del bautismo102. Para suerte de estas desdichadas criaturas van a contar con el proteccionismo institucionalizado en manos de la Iglesia con su poderosa red diocesana articulada y reforzada por el apoyo del clero secular y de las órdenes regulares e instituciones paraeclesiásticas. Y este fundamental esfuerzo

101 DOMÍNGUEZ ORTIZ, Antonio, “Los expósitos en la España moderna: la obra de Antonio Bilbao”, en A. ROMERO REDONDO (coordinador), Les problemes de l’exclusion en Espagne (XVI-XVII siècles): ideologie et discours, Madrid, 1983, pp. 167-176. 102 MARTÍNEZ RIPOLL, Antonio, “La Casa de niños y niñas huérfanos y expósitos de Murcia”, en Cuadernos de Historia de la Medicina Española, 11 (1972), pp. 389-396; ÁLVAREZ SANTALÓ, León Carlos, Marginación social y mentalidad en la Andalucía Occidental: expósitos en Sevilla (1613-1910), Sevilla, 1980; GÓMEZ MARTÍNEZ, Enrique, Los niños expósitos en Andújar, Córdoba, 1987; LOBO CABRERA, Manuel y SEDILES GARCÍA, María José, “Expósitos e ilegítimos en Las Palmas en el siglo XVII”, en Anuario de Estudios Atlánticos, 34 (1988), pp. 159-204; MARCOS MARTÍN, Alberto, “Infancia y ciclo vital: el problema de la exposición en España durante la Edad Moderna”, en De esclavos a señores, Valladolid, 1992.

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humanitario descansaba en el ejercicio de la caridad cristiana y en la capacidad asistencial de la Iglesia en los que confían sus desafortunados padres a la hora de desprenderse del niño desvalido. Es una etapa caracterizada por la dispersión institucional y particular de pequeños hospitales, obras pías y sobre todo de cofradías; organizaciones piadosas todas ellas atentas a cubrir la desafección y el despego estatal por atajar el problema social103.

Especialmente estas últimas corporaciones, que nacieron con el aliento renovador del optimismo renacentista e inspiradas en el descubrimiento del valor del niño, y en particular en las bellas páginas que Juan Luis Vives dedica a estos necesitados e indefensos expósitos en su célebre tratado sobre el “Socorrro de los pobres”104, fueron las depositarias de esta noble tarea y se envolvieron bajo la envoltura jurídica de cofradías de inspiración religiosa, dotadas de capacidad autónoma de regulación y funcionamiento interno de la actividad mediante su Regla y ordenanzas escritas. Van a funcionar con normalidad a lo largo de tres centurias como una especie de fraternidad sujeta a la jurisdicción eclesiástica y al margen del Estado en cuanto a su

103 RAPP, Francis, L’Eglise et la vie réligieuse en Occident à la fin du Moyen Age, París, 1971; RUMEU DE ARMAS, Antonio, Historia de la previsión social en España. Cofradías, Gremios, Hermandades, Montepíos, reed. Madrid, 1981; JIMÉNEZ SALAS, María, Historia de la asistencia social en España en la Edad Moderna, reed. Madrid, 1994. 104 Nos referimos al tratado del doctor Juan Luis VIVES, De subvenciones pauperum, traducido por Juan de Gonzalo y con estudio introductorio de Pedro Carasa Soto, Madrid, 1991.

organización y funcionamiento105. De padres ignotos o sin precisión jurídica, aquí aparte de promover su filiación con una onomástica asociada al santoral del día, aunque podían figurar mayoritariamente los nombres de Juan, María, Antonio y Pedro, se recurre con especial intención a la advocación de San José. Estos niños expuestos estarán atendidos y educados con serias limitaciones y apuros económicos106. Las huellas de su origen quedaron grabadas con frecuencia en toda una panoplia de sobrenombres, resultando los más corrientes: “hijo de la iglesia” “hijo de la fe” “hijo de San José” o con los aditamentos junto al nombre simple de todos los santos y misterios del ciclo litúrgico. En cuanto al apellido suele figurar el de “expósito“o “San José” que connotaba su condición desamparada a la que tuvo que responder la legislación liberal para acabar con este reproche social de la persona con medidas que facilitaran el cambio de 105 Un buen ejemplo de lo que queremos subrayar es la cofradía vallisoletana de San José estudiada por EGIDO, Teófanes, “La cofradía de San José y los niños expósitos de Valladolid (1540-1757)”, en Estudios Josefinos, año XXVII, nº 53-54 (1973), pp. 77-100 y pp. 231-259; existe separata. Además SÁNCHEZ HERRERO, José Sánchez, “Cofradías, Hospitales y Beneficencia en alguna diócesis del Valle del Duero, siglos XIV y XV”, en Hispania, 126 (1974), pp. 5-51; CARASA SOTO, Pedro, “La asistencia social y las cofradías en Burgos desde la crisis del Antiguo Régimen”, en Investigaciones Históricas, 3 (1982), pp. 179-229; BURÓN CASTRO, Taurino, “La Obra Pía, antecedente del Hospital de León”, en Tierras de León, año XXV, 59 (1985), pp. 31-52; LINAGE CONDE, Antonio, Las cofradías de Sepúlveda, Segovia, 1988. 106 Es el caso de la simbología devocional de la figura protectora de San José observada en las cofradías de Sevilla, Salamanca y Valladolid y de gran tradición y uso en Europa que se proyecta en los gremios a lo largo del siglo XV.

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apellidos mediante expediente requerido en el registro civil107. Se podría dar el caso que estos padres ocultos o inicialmente silenciados, con el subsiguiente matrimonio legitimaban a este hijo natural y se procedía a una nueva filiación con la asignación de los apellidos de su nueva personalidad. Más lo común era el prohijamiento o adopción, que solía realizarse conforme a ley otorgando escritura pública de constitución con sus pertinentes estipulaciones. Los que no alcanzaban esta opción, la cofradía les buscaba salida aunque no faltaron aquellos que su porvenir no fue tan halagüeño y terminaron al punto ingresando en el colectivo de pícaros y vagos o como pobres de solemnidad108. La mayoría de sus mermados recursos procedían de limosnas de particulares y de legados testamentarios que generaron rentas y censos muy importantes. No faltaron otros ingresos para el sustento y crianza de los niños expósitos provenientes de fundaciones, memorias, arbitrios, rentas perpetuas, concesiones administrativas en régimen de monopolio como fue el caso de la cofradía de Nuestra Señora de Gracia, el Niño Jesús, San José y San Lorenzo de Valladolid que obtuvo el derecho exclusivo sobre la representación de autos, farsas, comedias demás

107 No faltaron, sin embargo, otros apellidos que incluían el lugar de la villa o aldea en que fueron encontrada estas criaturas expuestas. 108 Cuando las Juntas Reales asuman la actividad de las antiguas cofradías, y a pesar de la legislación protectora, no faltó el cuadro lastimero de adolescentes y jóvenes expósitos que trabajaban como criados y aprendices en talleres y casas particulares carentes de lo fundamental y básico para vivir dignamente.

entretenimientos a celebrar en la ciudad en su corral que el Ayuntamiento le otorgó109.

Las precauciones básicas de estas cofradías se centraban en primer lugar en su recogimiento, luego en su cristianización, lactancia, alimentación, vestido, educación y se preveía también como obligación propia su entierro en caso de fallecimiento que los libros parroquiales de la época registran puntualmente, con escueta elocuencia, esta sensible mortalidad infantil en el contexto acompasado de brotes de peste, tifus, disentería, pulmonías estacionales y otras enfermedades virulentas.

Mientras, la Corona seguía sin tomar conciencia de la asistencia social y mantendrá su política declinatoria en la inercia de hechos consumados contemplando cómo esas corporaciones socio-religiosas de las cofradías locales atendían el servicio de acogida de estos niños abandonados sin más exigencia que insistir por petición y memorial en la ayuda y concesión de arbitrios que de vez en cuando eran concedidos para el cumplimiento de sus fines. Cuando flaqueaban tan notoriamente las arcas, que solía ocurrir habitualmente, se acudía a donativos de los ayuntamientos aunque ya los últimos Austrias atendieron la súplica reiterada concediendo censos sobre sisas de la ciudad, juros sobre alcabalas, pensiones perpetuas contra la mesa episcopal 109 5 de septiembre y 6 de diciembre de 1575. RUMEU DE ARMAS, Antonio, Historia de la previsión social en España. Cofradías, Gremios, Hermandades, Montepíos, reed. Madrid, 1981, pp. 261-269; EGIDO, Teófanes, “La cofradía de San José y los niños expósitos de Valladolid (1540-1757)”, en Estudios Josefinos, año XXVII, nº 53-54 (1973), pp. 87-88.

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y derechos económicos como en Valladolid por cada libra de aceite consumida en la ciudad; facultad que solía prorrogarse a favor de la cofradía para poderla sacar de estos apuros110. El triunfo del regalismo ilustrado y la nueva mentalidad política dominante va a concebir la tarea asistencial no como una misión espiritual sino como una función propia del Estado para lo cual debía apartar cualquier injerencia jurisdiccional de la Iglesia de la beneficencia pública111. Esta convicción paternalista asistencial del Estado también vino precedida de un amplio debate mantenido por un sinnúmero de tratadistas que analizaron la realidad social y su percepción contemporánea. En sus escritos denuncian con firmeza el desmesurado número de expuestos en los hospitales y cofradías a rebosar así como la incidencia de la morbilidad en estas criaturas tan débiles físicamente como

110 En el caso de la cofradía de San José sabemos que Felipe III en 1602 concedió censos sobre las sisas de la ciudad y al año siguiente de 1603 los citados juros soportados sobre las alcabalas del mercado. Felipe IV es el autor de la merced de cesión de dos maravedíes por cada libra de aceite consumido en Valladolid en agosto de 1638 y se prorrogó hasta 1758. Carlos II en 1675 otorgó al Hospital una pensión perpetua de 400 ducados girada contra la mesa del obispo de la ciudad. Felipe V en 1713 cedió otra contribución de 600 ducados contra la mitra palentina. Pero a pesar de toda esta munificencia, la precariedad de los fondos seguía tan acuciante que Fernando VI en 1757 les entrega el arbitrio de dos maravedíes por cada cántara de vino que se recogiera y trasegara en la tierra de Valladolid; exacción que Carlos III extendió por R.O. al término municipal de la ciudad. Vid. EGIDO, Teófanes, “La cofradía de San José y los niños expósitos de Valladolid (1540-1757)”, en Estudios Josefinos, año XXVII, nº 53-54 (1973), pp. 92-93. 111 MORALES MOYA, Antonio, “Política social”, en R. MÉNENDEZ PIDAL (director), Historia de España. La época de la Ilustración. El Estado y la cultura (1759-1808), Madrid, 1987, vol. XXV.

vulnerables sicológicamente: el médico real José Iberti112, Santiago García113, el eclesiástico Trespalacios y Mier114, Fray Tomás Montalvo 115, Joaquín Javier de Uriz116 , Antonio Bilvao 117 o los densos cinco volúmenes de la Estadística político-médica del médico vasco Ignacio María Ruiz Luzuriaga y un largo etcétera son la muestra de este estado de opinión118. El problema de la exposición va a conectar con la doctrina de regeneración social y con una política modernizadora que ya no pueden cerrar los ojos ante ese goteo constante de desgracias recogidas en los hospitales de

112 IBERTI, José, Método artificial de criar a los niños, Madrid, 1795. 113 GARCÍA, Santiago, Breve instrucción sobre el método de conservar los niños expósitos, Madrid, 1794. 114 TRESPALACIOS Y MIER, Juan Antonio, Discurso sobre que los niños expósitos consigan en las inclusas el fin de estos establecimientos, Madrid, 1798. 115 Fray Tomás MONTALVO, Práctica política y económica de expósitos, en que se describen su origen y cualidades, resolviéndose las dudas que puedan ofrecer en esta materia, y juntamente se declara el gobierno doméstico que en sus hospitales se deben observar, Granada, 1700. 116 URIZ, Joaquín Javier de Causas prácticas de la muerte de los niños expósitos en sus primeros años, Pamplona, 1801. 117 BILVAO, Antonio, Destrucción y conservación de los expósitos, Madrid, 1789 narra la circunstancia de muerte a la que se ven irremediablemente conducidos muchos incluseros por el hambre que padecen ya que no pueden costearse su alimentación. Sobre este autor véase DOMÍNGUEZ ORTIZ, Antonio, “Los expósitos en la España moderna: la obra de Antonio Bilbao”, en Les problemes de l’exclusion en Espagne (XVI-XVII siècles): ideologie et discours, Madrid, 1983, pp. 167-176. En general, CARRERAS PACHÓN, Antonio, “El problema del niño expósito en la España ilustrada”, en Cuadernos de Historia de la Medicina Española, Salamanca, 1977, pp. 39-46. 118 BARTOLOMÉ MARTÍNEZ, Bernabé, “La crianza y educación de los expósitos en la España entre la Ilustración y el romanticismo (1790-1835)”, en Revista Historia de la Educación, 10 (1991), pp. 37-38.

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las ciudades y cuyo volumen de entradas continúa duplicándose a tenor del conjunto de estudios de ámbito local realizados 119 . Las cifras de los registros incluseros, en pavoroso aumento, suponen una severa llamada de atención que coincide con toda una suerte de hechos: la política poblacional con la lacra de la despoblación denunciada como uno de los mayores males económicos, el excedente demográfico rural, el decaimiento de la agricultura, una oleada de pobres y desplazados que colonizan las ciudades, la indigencia como forma de vida, la ausencia de infraestructuras de servicios y abastecimientos y la reforma educativa pendiente que van caracterizar este siglo. Una vez triunfante la España carolina con el regalismo como doctrina oficial, la idea del Estado útil y benefactor se 119 EIRAS ROEL, Antonio, “La Casa de expósitos del Real Hospital de Santiago en el siglo XVIII”, en Boletín de la Universidad Compostelana, 75-76 (1967-1968), pp. 295-355; DEMERSON, Paula de, “La Real Inclusa de Madrid a finales del siglo XVIII”, en Anales del Instituto de Estudios Madrileños, 8 (1972), pp. 261-272; FERNÁNDEZ UGARTE, María, Expósitos en Salamanca a comienzos del siglo XVIII, Salamanca, 1988; VALLECILLO CAPILLA, Manuel Francisco, Política demográfica y realidad social en la España de la ilustración: La situación del niño expósito en Granada (1753-1814), Granada, 1990; MARCOS MARTÍN, Alberto, “Infancia y ciclo vital: el problema de la exposición en España durante al Edad Moderna”, en De esclavos a señores, Valladolid, 1992, pp. 43-68; LOBO CABRERA, Manuel; LÓPEZ CANEDA, Ramón y TORRES SANTANA, Elisa, La “otra” población: expósitos, ilegítimos, esclavos (Las Palmas de Gran Canaria, siglo XVIII), Las Palmas de Gran Canaria, 1993, pp. 27-83; TARIFA FERNÁNDEZ, Adela, Marginación, pobreza y mentalidad social en el Antiguo Régimen: los niños expósitos de Úbeda (1665-1778), Granada, 1994; PRADO DE LA FUENTE GALÁN, María del, Marginación y pobreza en la Granada de la segunda mitad del siglo XVIII: los niños expósitos, Granada, 2000; MARTÍN GARCÍA, Alfredo y PÉREZ ÁLVAREZ, María José, Marginación, infancia y asistencia en la provincia de León a finales del Antiguo Régimen, León, 2008.

convierte en consigna programática que exigen a la Administración pública medidas de centralización, concentración y racionalización de los recursos públicos. Estamos ante la decidida apuesta por las reformas, al menos justificadas en el ingente papel de informes, instrucciones y cartas que un grupo de flamantes ilustrados remitirán a la Corona instando propuestas renovadoras que afectaron en mayor o menor medida a todos los ámbitos de la vida española: la economía, la hacienda, el comercio, la cultura y la sociedad120. Fue la hora de una generación de ilustres políticos de espíritu reformista partidarios de la acción renovadora que ocuparon la nomenclatura del poder. Unos con clara intención filantrópica, otros inclinados hacia la compasión del niño expósito o a la religiosidad piadosa, pero todos con la conciencia clara del problema nacional: Manuel de Roda y Arrieta, a la sazón ministro de Gracia y Justicia, Francisco Cabarrús121, el conde de Floridablanca122, los asturianos Pedro Ruiz Campomanes y Melchor Gaspar de Jovellanos y el aragonés conde de Aranda son un buen ejemplo de lo que venimos diciendo, defensores y partidarios de una administración ágil y eficaz; pero especialmente nos

120 MORALES MOYA, Antonio, Reflexiones sobre el Estado español del siglo XVIII, Madrid, 1987. 121 CABARRÚS, Francisco de, Cartas sobre los obstáculos que la naturaleza, la opinión y las leyes oponen a la felicidad pública, Madrid, 1820. 122 MOÑINO Y REDONDO, José, conde de FLORIDABLANCA, “Instrucción reservada”, en Escritos Políticos, Madrid, 1982.

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centraremos en la figura especial del fiscal y posterior gobernador del Consejo de Castilla123. Pedro Rodríguez Campomanes, fiel exponente de la fuerza de las leyes de la Monarquía frente al menoscabo de la jerarquía clerical, aparte defender el discurso positivo del trabajo y del fomento de la producción en su Bosquejo de política económica española, redactado hacia 1750 124 , ocupa lugar esencial en su literatura política la preocupación social y su atención eficaz. Para ello, y con intención, desconfía del hasta ahora servicio participado en régimen de monopolio de base eclesiástica y privada y se pronuncia por la sustitución por otro de carácter público, que desplazara a las instituciones religiosas o laicas, con dignos médicos y dotaciones económicas suficientes y sobre todo con una nueva organización y gestión125. En este sentido, lo mismo que la pobreza se seculariza, también el modelo corporativo disperso de obras pías, cofradías y hospitales heredado ya no sirve por ser arbitrario y obsoleto. Además, ya no encaja en el ideario dieciochesco el fervor y entusiasmo de los antiguos cofrades. Y es más, este

123 VALLEJO GARCIA-HEVIA, José María, La Monarquía y un ministro, Campomanes, Madrid, 1997; del mismo autor, Campomanes y la acción administrativa de la Corona (1762-1808), Oviedo, 1998. 124 MUÑOZ MACHADO, Santiago, “Discurso sobre las ideas de Pero Rodríguez Campomanes”, en Revista de Administración Pública, 159 (2002), pp. 13-44. 125 MUÑOZ MACHADO, Santiago, “El reformismo del último tercio del siglo XVIII. La figura de Campomanes”, en Reformistas y Reformas en la Administración Española, III Seminario de Historia de la Administración, Madrid, 2005, pp. 31-59.

tipo de marginación, representada por los expósitos, es considerada el origen de la mendicidad y de la vagancia de los adultos que el nuevo Estado trata de perseguir por ser contraria a los intereses de orden público y de la comunidad política porque el mendigo agrede al Estado ya que ni produce, ni practica la ética pública, ni se integra socialmente, ni tiene vecindad ni arraigo laboral, ni como súbdito contribuye fiscalmente126. A propósito de las cofradías gremiales, hermandades de socorro y de piedad y otras, en 1772 existían unas 25.581 cofradías en España, y un desorden derivado de la falta de legalidad de muchas ya que carecían de la preceptiva aprobación regia o eclesiástica y además eran foco de continuos abusos cometidos en su seno por muchas de ellas. Campomanes aprovecharía la denuncia del obispo de Ciudad Rodrigo para ponerlas en el punto de mira y acabar con las mismas. El medio se lo sirvió en bandeja la queja episcopal. De manera inmediata, solicitó consulta a los metropolitanos del reino y al procurador general, y el Consejo Real autorizó para que el expediente abierto fuera ampliado con nuevos informes y concluyera en una propuesta de regla general única127. 126 CARASA SOTO, Pedro, Historia de la beneficencia en Castilla y León. Poder y pobreza en la sociedad castellana, Salamanca, 1991, p. 12. 127 En 1772 se forman providencias para que se remitan al Consejo de Castilla por parte de la totalidad de cofradías los libros de acuerdos, reglas y ordenanzas de gobierno interno. El Procurador General del reino, cerrado el expediente, concluía con la propuesta de una sólo Junta mixta por diócesis formada por el ordinario del lugar, el corregidor, varios regidores y diputados del común del municipio. Vid. MUÑOZ MACHADO, Santiago, “El reformismo del último tercio del siglo XVIII.

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El propio fiscal Campomanes el 28 de junio de 1783 solicitaba extinguir las cofradías gremiales y sustituirlas por Montepíos y del resto se acordó, bien abolir aquellas carentes de legitimidad por no contar con la autoridad real o eclesial, dejando las demás –penitenciales, de socorro y piadosas- subsistir con la obligación de que redactasen nuevas ordenanzas así como cortasen de raíz todos los excesos detectados y eliminasen los gastos superfluos. El Consejo Real, evacuada la propuesta del entonces fiscal asturiano, acuerda aprobarla y la promulga por Resolución Real el 25 de junio de 1783, facultando a las Juntas de Caridad para que agrupasen el mayor número de las cofradías de socorro y asistencia supervivientes128. Esta es la letra del discurso sostenido por Campomanes; pero él iba más allá, como nos recordaría en su informe, que era necesario indagar y determinar el origen y la entidad del problema de la pobreza, de la mendicidad, de la exposición existente en el reino para seguir proponiendo medidas y así poderla erradicar. Plantea entre otras acciones: la creación y dotación de hospicios129, casas de expósitos, hospitales y casas de

La figura de Campomanes”, en Reformistas y Reformas en la Administración Española, III Seminario de Historia de la Administración, Madrid, 2005, p. 37. 128 Novísima Recopilación, I, 2,6. 129 Novísima Recopilación, VII, 38,4 (Resolución del Consejo sobre la construcción y disposición material de los hospicios de 21-VII-1780). Se trata de una disposición orientadora que marca directrices generales sobre la erección de estos centros de acogida para huérfanos y mendigos discriminando los espacios según género y edades: oficinas, almacenes, patio, huerta, fuentes o cauces de agua y una “promocionada capilla o iglesia”.

misericordia, la fundación de un fondo pío beneficial y la organización de juntas generales y parroquiales130. Así las cosas, estos aires de secularización de la beneficencia anticipan el cambio y el relevo por la Administración pública de la gestión de otros servicios de carácter social como la educación y la sanidad apartando a las entidades religiosas, fundaciones, corporaciones y organizaciones privadas131. Fuera del artificio de algunas argumentaciones ilustradas de las que hicieron gala tanto el conde de Aranda como Pedro Rodríguez Campomanes, lo que se buscaba, como en otros casos, fue acabar con la injerencia de la jurisdicción eclesiástica en cuestiones que se entendía exclusivas del Estado. El pretexto fue la beneficencia, como lo será la educación o la sanidad. Esto es el fondo del debate más allá de que las cofradías fueran sustituidas por montepíos y juntas, que en muchos casos no alcanzaron más que una cambio formal. A fin de cuenten era lo único que cabía hacer en aquella sociedad. Por lo que respecta a la atención y cuidado de los niños expósitos con anterioridad en algunas de estas casas y hospicios ya había surgido un nuevo marco jurídico de tutela

130 MUÑOZ MACHADO, Santiago, “El reformismo del último tercio del siglo XVIII. La figura de Campomanes”, en Reformistas y Reformas en la Administración Española, III Seminario de Historia de la Administración, Madrid, 2005, p. 55.

131 Seguramente que en este campo asistimos a cambios más renovadores en la atención de pobres y necesitados. Vid. DOMÍNGUEZ ORTIZ, Antonio, Carlos III y la España de la Ilustración, Madrid, 2005.

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oficial colocando a su frente a juntas reales como en el caso de la de San José de Valladolid que contaba desde 1757, en tiempos de Fernando VI, con esta nueva organización ganando en recursos y en dotación asistencial132. A partir de entonces, y dentro del alto quehacer desplegado por el Consejo de Castilla, una de sus amplísimas facultades fue designar a las Juntas Reales de naturaleza mixta, compuestas ordinariamente por altos oficiales de justicia y canónigos que asumen con constancia y firmeza la causa pública133. Aparte de sanear la administración interna, suprimen la sempiterna limosna obligatoria por niño ingresado en el hospital, normalizan tanto el cuidado como el jornal de los conductores de los expósitos y de las amas de cría o nodrizas y abordan formación de los pupilos internos para que puedan ser autónomos y ventajosos en un futuro. Las Juntas Reales son ahora las protagonistas que desarrollan con mayor capacidad y eficiencia el servicio a estos pobres necesitados, eso sí una vez asegurados los títulos de rentas y censos e ingresos de sus antiguos titulares. En líneas generales coincide con el desfallecimiento y la evolución negativa de las cofradías a las que el tiempo y su fin decaído les habían devorado. Pero había triunfado la

132 EGIDO, Teófanes, “La cofradía de San José y los niños expósitos de Valladolid (1540-1757)”, en Estudios Josefinos, año XXVII, nº 53-54 (1973), p. 258. 133 La Real Junta del Hospital de Niños expósitos de Valladolid de 1757 estaba formada por los dos oidores más antiguos de la Real Chancillería, los dos canónigos de oficio más antiguos de la Santa Iglesia Catedral y todos ellos presididos por el Presidente de la Chancillería, según rezan las Ordenanzas de 1763.

razón sobre la costumbre y en estos centros asistenciales cobra fuerza el objetivo formativo para así eliminar los potenciales riesgos de una ulterior ociosidad y vagancia134. A los ilustrados no les gustaba de ninguna manera las distintas formas de caridad dispensadas por la Iglesia porque entendían incentivaban la pereza y la desidia del individuo. Igualmente proclamaban que había que arrancar la costumbre de la limosna, que hasta entonces había servido de una gran fuente de ingresos para las casas de expósitos. Esta posición radical entra de lleno en el pensamiento mordaz y refractario de Campomanes hacia el clero y las órdenes religiosas porque entendía o bien que la vida contemplativa era improductiva o bien que el control ideológico de los feligreses y la posición de dominio en la educación por parte de la Iglesia conllevaba un excesivo poder amenazador para el Estado. Fueron estos mismos ilustrados en el gobierno quienes aleccionaron y persuadieron a Carlos III de afrontar el control de ciertas fundaciones caritativas y de que el pueblo visualizara el gesto magnánimo de la Corona sobre aquellos súbditos “mas degradados de la escala social: los expósitos y huérfanos.” Las respuestas inmediatas vendrían de la negociación con el Papa Pío VI para habilitar las rentas de un fondo Pío beneficial y sumarlas a los ingresos de la Bula de la Cruzada y otros y así fundar casas de misericordia y reforzar

134 Para no observar el lastimero ejemplo de pedir “…los huérfanos, viudas y enfermos tienen derecho a que se les enseñe un oficio y a disfrutar de los socorros del Monte”.

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financieramente la precaria economía de los hospicios, hospitales y casa de expósitos135. Así una Real Orden, inserta en una circular del Consejo de 2 de junio de 1788, instruía a los rectores y directores de estos centros sobre la enseñanza que debían impartir en los centros con “la debida educación y enseñanza para que sean vasallos útiles”136 y buenos súbditos del Estado, y sobre todo, con un tono moralizante, conmina a los adoptantes les apliquen a oficios y servicios honrados sin menoscabo de su integridad física y moral. La instrucción en las primeras letras y el adoctrinamiento de las máximas y reglas de la religión católica constituyen los dos ejes obligatorios del aprendizaje y una constante reiterada en las disposiciones remitidas a los hospicios; entendidos ambos troncos como “principio y fundamento de nuestra felicidad” que por cierto ya había referido una Resolución anterior de julio de 1780 que se detenía con más detalle en el tratamiento de los niños y adultos recogidos137.

135 Real Cédula de 1 de diciembre de 1783. En la instrucción dirigida a los corregidores de 15 de mayo de 1788 se volvía a insistir sobre este extremo de que extremasen el celo de la administración de los caudales destinados a las casas de los menores desamparados. Vid. BARTOLOMÉ MARTÍNEZ, Bernabé, “La crianza y educación de los expósitos en la España entre la Ilustración y el romanticismo (1790-1835)”, en Revista Historia de la Educación, 10 (1991), p. 41. 136 Novísima Recopilación, VII, 37, 3 (Real Orden, Circular del Consejo, de 2-VI-1788). 137 Novísima Recopilación, VII, 38, 5- 6 (Real Resolución de 21-VII-1780).

Sin embargo, distingue entre la formación destinada al varón y a la hembra. La del primero, una vez asegurado el saber primario, se les explora y orienta “a qué oficio u arte de los que haya en dichos hospicios muestran inclinación y tienen proporción por su talento, edad y fuerzas…”. Advertida tal actitud, el aprendizaje se ajusta al oficio adjudicado bajo la dirección de los maestros asignados. Si su conocimiento ha sido evaluado externamente de manera positiva puede continuar la preparación en el grado de oficial dentro de dicho recinto hospiciano para su control, pero ya con un jornal determinado, cuya cuarta parte retendrá el hospicio afectado a la constitución de un peculio a su nombre hasta su definitiva salida del expósito del centro. Si muestra habilidad con el cultivo, se le entrega a un labrador acomodado para que le forme y le sirva, le alimente y le vista en un nuevo ámbito de vida fuera del recinto asistencial. En este régimen externo, es el labrador principal quien se hace responsable del menor tanto en su educación como en su instrucción, formando él el peculio a resultas de la compensación por su trabajo138. Otra segunda opción es la de aquél que por su voluntad manifestada o por la del padre desea desarrollar un oficio no contemplado en la oferta del hospicio o tuviera pariente o bienhechor externo en tal oficio que se

138 En la regulación se advierte una tipología de ingreso: niños procedentes de abandonos clandestinos de padres desconocidos, aquellos otros de padres acreditados que hubieran hecho entrega personal o de guardadores o simplemente los procedentes de la recogida oficial al citado hospicio. Vid. SEVILLA BUJALANCE, Juan Luis, Los niños expósitos y desamparados en nuestro derecho histórico, Córdoba, 2001, pp. 78-80.

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comprometía a acogerle; entonces el veedor elegirá entre los maestros con constancia de”habilidad y buenas costumbres”, para que enseñen al menor hasta su presentación al examen de oficial en dicho arte. Los comisarios del hospicio fijarán las condiciones de la entrega del niño139. Con distinto pormenor la resolución regia establece el régimen formativo de las mujeres menores. Después de una instrucción básica, igual que para los varones, sin embargo, su continuidad se dirige al aprendizaje de aquellas tareas que el cliché de la época señala para la mujer y su función en la sociedad: actividades domésticas del hogar, y las que más, a las habilidades de costura, hilado y cardado de tejidos. En la forma y fondo de la norma late la imagen que la sociedad de la época adscribe a la mujer destinada al “santo estado del matrimonio”, “cultivo en el ejemplo de las buenas virtudes, la suavidad del genio que necesita después la república de las madres y familias”140. Muchas de ellas, una vez realizado el peculio, ingresan como asistentas, otras permanecen en el hospicio o son puestas a disposición de sus padres o parientes propincuos porque ya se consideran autónomas y válidas socialmente. Debemos recordar que del siglo anterior ya contamos con sendas disposiciones sobre la formación instrumental de estos niños en un contexto de urgente penuria para atender la carestía de hombres de la Armada. Una pragmática de Felipe IV llama la atención de los administradores y superintendentes de los hospitales de expósitos y 139 Novísima Recopilación, VII, 38,5 (Real Resolución de 21 de julio de 1780). 140 Novísima Recopilación, VII, 38,6 (Real Resolución de 21 de julio de 1780).

desamparados para se apliquen a “otras artes, y particularmente al exercicio de la marinería, en que serán muy útiles por la falta que hay en este Reyno de pilotos”141, y proscribe el estudio de la gramática y el acceso a los cargos de relieve social. Otra segunda, en igual sentido, aunque aumenta los destinatarios, reitera la necesidad de que “los niños expósitos y huérfanos, para que empezando por el exercicio de grumete se habiliten y adiestren para marineros, artilleros y pilotos” 142 . Establece para ello en Cádiz una casa de recogida para todos los expuestos de Andalucía y del antiguo reino de Granada donde se les instruya hasta que cumplan la edad y se enrolen. Se justifica la medida en el declinar de la Armada del Océano y de la carrera de Indias con la escasez de navíos y sobre todo de marinería; de ahí el interés de la Corona para derivar a estos desamparados y reclutarles forzosamente para cubrir el cupo de la tropa. Más contundente resulta una circular del Consejo de 6 de marzo de 1790 que nos fotografía el estado miserable y desolador de algunas casas de expósitos por falta de asistencia y lactancia donde en las nuevas instalaciones no había disminuido perceptiblemente la excesiva mortalidad anterior. Ahora el alto órgano de gobierno de la Monarquía encarece a los obispos diocesanos y prelados exentos para que libren las providencias oportunas e insten a los rectores de estos centros a que tomen el celo oportuno para cubrir

141 Novísima Recopilación, VII, 37,1 (Pragmática de Felipe IV, Madrid 10-II-1623). 142 Novísima Recopilación, VII, 37, 2.

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esas necesidades143. Al mismo tiempo, deberán informar del censo de casas de recogida de expósitos en su diócesis, cuantas ordenanzas estuvieran en vigor, la cuantía de las rentas disponibles, las altas y bajas de los incluseros, lo concerniente al ramo de la administración; es decir, de todo lo referente al “método de gobierno, gastos y distribución; a cargo de quien, quales y quantos empleados, y sus sueldos; el número de amas, salarios, niños, etc”. De nuevo la iglesia tomaba relevancia. No se podía prescindir ni de su autoridad moral ni de su capacidad social porque era la institución que mejor información disponía y su red diocesana aún servia de auténtica plataforma real para evaluar el estado de situación, desde la conveniencia de fundar nuevas casas en los pueblos desasistidos hasta para proponer medios y arbitrios de gobierno ajustados. No obstante, no podemos olvidar que la determinación de medidas de mayor alcance no se tomó hasta los años finiseculares de la centuria en el reinado de Carlos IV concretadas en dos rúbricas: el régimen personal del expuesto, inspirado en un fin protector que significa un avance jurídico insospechado, y en la segunda, impone los criterios para la fundación de centros básicos de expósitos, su crianza y educación. En efecto, un Real Decreto de de 5 de enero de 1794, que se inscribe en ese balance triste e indigno en que vivían 143 El texto, depositado en la Biblioteca Nacional, Ms. 11267, está precedido de un memorial del recordado Antonio Bilbao que está detrás del proyecto. Algunos obispos lo interpretaron como una injerencia real y optaron por respuestas muy concisas y poco comprometidas; otros demoraron deliberadamente la remisión de las contestaciones.

estos niños, prescribía que todos los expósitos de ambos sexos sin padres conocidos sean equiparados en derechos y deberes a los hijos legítimos a todos los efectos civiles sin contradicción alguna ni nota de infamia con la simple inscripción “en la clase de hombres buenos del estado llano general, gozando los propios honores, y llevando las cargas sin diferencia de los demás vasallos honrados de la misma clase”144. Después de producir una legitimación regia a todos los expósitos indistintamente donde fuesen arrojados cuyo alcance ahora el rey Carlos la hace con carácter dispositivo y general145, además ordena de forma apremiante a las justicias de los distintos reinos que sancionen como injuria y ofensa a quien adjetivara a cualquier expósito con los epítetos de “borde, ilegítimo, bastardo, espúreo, incestuoso o adulterino“, le coaccionen judicialmente a retractarse y le impongan al acusado la multa proporcionada a la ofensa. También establece la igualdad penal pues deroga las penas extremas hasta ahora aplicadas a los desamparados de vergüenza pública, azotes, horca, el último suplicio, excepto que legalmente se contemplen para aquellos delitos “a personas privilegiadas”. Sin duda, esta resolución se inscribe en la legislación protectora que supone una espectacular mejora en los derechos del menor expósito al otorgarle unas expectativas jurídicas igualitarias en la estructura social estamental. 144 Novísima Recopilación, VII, 37,4 (Real Decreto de 5-I-1794). 145 Esta legitimación regia existía desde las Partidas (Partida IV, 15,4) ya que a requerimiento y petición previa del padre ante el rey o emperador, éstos puedan otorgarla. La prescripción fue ratificada por la ley XIII de las Leyes de Toro de 1505.

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La segunda Real Cédula de 1796, distribuida en treinta apartados, regula la formación de las casas de expósitos y su gobierno. Es muy rica en detalles y sobre todo en señalar el objetivo fundamental de impedir la plaga de “los muchos infanticidios por el temor de ser descubiertas… por cuyo medio las arrojan y matan”146. Con este objeto, ordena que las justicias de los pueblos no detengan, ni perturben ni examinen a las personas que conducen al menor a la casa de expósitos o a la entrega al párroco para así terminar con la práctica de que por temor abandonen al desvalido “de noche a las puertas de las Iglesias o de casas de personas particulares, o en algunos lugares ocultos, de que ha resultado la muerte de muchos expósitos”147. Abierta esta vía legal, prevalece el aseguramiento y protección jurídica del menor con el mínimo peligro y riesgo en la acción expositiva de la entrega. Conforme al derecho de Partidas, los padres perdían la patria potestad y cualquier otro derecho sobre el niño expuesto así como la acción reivindicatoria por “el hecho criminoso y execrable de haberlo expuesto”148. No obstante, se abría una vía excepcional si manifestaren posteriormente la paternidad ante la justicia real con la apertura de un expediente donde debía resultar bien probada la filiación legítima, la extrema necesidad de la exposición y en último extremo, pero de significación prevalente, obraba el interés superior del menor en todo “lo que pueda resultar favorable al expósito en lo sucesivo”.

146 Novísima Recopilación, VII, 37,5, 23 (Real Cédula de 11-XII-1796). 147 Ibídem, VII, 37, 5,24. 148 Ibídem, VII, 37, 5, 25.

Menos interesante resulta lo que podemos denominar como la geografía territorial de las casas de expósitos. Según los criterios impuestos por la norma, se recurre a la circunscripción eclesiástica para impostar el repertorio de centros de caridad. Como regla principal se establecía una o más casas matrices o principales de expósitos en cada diócesis según su extensión bajo la autoridad del obispo, sin perjuicio de permitir el mantenimiento de otros centros asistenciales en los partidos siempre que disten como máximo de 12 a 14 leguas de aquella, y sitúa a los párrocos u otra persona eclesiástica delegada a su frente para que asegure el correcto funcionamiento149. Tampoco se prevé novedad en la existencia de otras formas jurídicas, cabildos, hermandades y cofradías, como gestoras de casas de expósitos para”continuar su educación, hasta que sean prohijados o aprendan oficio”150. Sin embargo, el obispo diocesano se coloca en una posición superior como supervisor general de la obra protectora del expósito y para nombrar los administradores y los ecónomos de los partidos, y ambos cargos deben recaer en persona eclesiástica de la mejor conducta151. Persuadido el monarca de la insuficiencia de la legislación de su padre y de las graves denuncias de falta de higiene y aseo, mala nutrición, deplorables condiciones de

149 Ibídem, VII, 37, 5, 1-2. 150 Ibídem, VII, 37, 5, 7. Por Real Orden de 13 de septiembre de 1799, Carlos IV se dignaba sujetar el gobierno y administración de la Inclusa de Madrid a una Junta de señoras en relación con la Sociedad Económica de la ciudad. 151 Ibídem, VII, 37, 5, 8.

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abrigo y escasez de vestido que padecen las criaturas en las casas cunas hasta el extremo de que muchos niños morían de frío y enfermedad, implantó medidas paliativas que redujese el triste final con especial atención al régimen de amas de crías o nodrizas y al tiempo de lactancia del menor que se establece no inferior a un año y no superior a seis; en todo caso se debía estar a lo dispuesto en el informe médico del menor una vez “atendida su complexión, y mayor o menor robustez”152. En la ejecución y seguimiento ordinario del gobierno de las necesidades de los abandonados, es el párroco el encargado de materializar todas las acciones básicas de atención y cuidado desde la llegada del expósito, su identificación, hasta la designación de la ama de cría, de buena salud y costumbre honesta, comunicada al ecónomo del partido, y el seguimiento del desarrollo personal del menor y la formación153. Cumplidos los seis años del niño, y no se hubiera encontrado persona conveniente y “con buenas condiciones” para la adopción, serán trasladado a los hospicios, casa de misericordia o de huérfanos o de niños desamparados que hubiera en la circunscripción diocesana, y en su defecto a la casa general para comenzar el aprendizaje de un oficio en el que ya había insistido con profusión su antecesor regio154. En suma, la legislación carolina sigue apoyándose en la Iglesia para la ejecución beneficial de los menores

152 Ibídem, VII, 37, 5,14. 153 Ibídem, VII, 37, 5, 10-16. 154 Ibídem, VII, 37, 5, 17.

desamparados por su arraigo popular y además brinda una organización tupida que cubre espacios dispersos, y además porque cuenta con la experiencia, unos recursos humanos cuantificables que además de jerarquizados ofrecían el compromiso evangélico con los pobres y desvalidos para garantizar la atención asistencial. Pero las relaciones institucionales de respeto y tenso equilibrio habrían de cambiar cuando las necesidades financieras de deuda pública y de la guerra y la osadía del omnipotente Godoy ganaron la voluntad regia. La Corona, de forma unilateral y con descubierta intención desamortizadora, dispone por Cédula datada el 25 de septiembre de 1798, casi dos años después de la anterior, que todos los bienes raíces de los hospitales, hospicios, casas de misericordia, reclusión y de expósitos se pongan en común en la Caja de Amortización155. Una desamortización sobre las “manos muertas” más débiles que el tiempo y la guerra arruinaron su ejecución; más esta última se convierte en un lastre insalvable ya que aparte de la destrucción de algunas casas, todas fueron víctimas de la pobreza y de la miseria secuelas del infortunio militar. El balance que podemos hacer no es otro que la propensión y el alcance de la reforma se quedaron muy pegados a la letra de las normas y no produjo los éxitos renovadores perseguidos por el legislador. A ello tampoco ayudó la coyuntura inestable de los últimos años y la

155 TOMÁS Y VALIENTE, Francisco, El marco político de la desamortización en España, Barcelona, 1989, pp. 38-47.

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debilidad de la Corona en manos del favorito Manuel Godoy, interesado sólo por la gran política y el enroque en el poder. Fuera de la pretensión jurídica de borrar jurídicamente la infamia de ilegalidad del niño expósito en 1794, pudo más el clima social controlado por esa corriente elitista de moda que seguía martilleando las conciencias y colocando fronteras culturales y mentales así como marcas de origen con los expedientes de limpieza de sangre156. Habrá que esperar al Estado constitucional de 1812 para que residencie en los municipios todos los asuntos del ramo de la asistencia social y en especial la protección y ayuda de las casas de expósitos aunque la gestión se encomienda a Juntas de Caridad, dependientes en muchas ocasiones de las Sociedades Económicas de Amigos del País o integradas en Juntas Generales de Beneficencia, sin que en ambos casos existan discrepancias en militar fervientemente en el esquema ideológico y económico liberal, que relegaba y desplazaba constitucionalmente la actividad eclesiástica que

156 Un autor ya citado, Juan Antonio Trespalacios y Mier, en su Discurso sobre que los niños expósitos……; expone fielmente el tono restrictivo del acceso de los expuestos a la carrera eclesiástica, pero sí en cambio, admite la oportunidad de un cupo de expuestos para los colegios de Náutica, Cirugía y ”demás escuelas de Artes y Oficios en el que el Rey Nuestro Señor costea a sus expensas alumnos, escogiendo de éstos los que fueren más a propósito, más saludables y de mejores disposiciones de ánimo y cuerpo”. La cita se toma de BARTOLOMÉ MARTÍNEZ, Bernabé, “La crianza y educación de los expósitos en la España entre la Ilustración y el romanticismo (1790-1835)”, en Revista Historia de la Educación, 10 (1991), p. 41, nota 56.

había pautado hasta ahora la antigua organización asistencial de las casas de expósitos157.

157 CARASA SOTO, Pedro, Historia de la beneficencia en Castilla y León. Poder y pobreza en la sociedad castellana, Salamanca, 1991, pp. 13-16.

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Desafios, trajetórias e perspectivas para a escolarização em tempo integral

Juares da Silva Thiesen∗

Jéferson Silveira Dantas∗∗ Resumo: Este artigo é resultado da palestra proferida pelos professores doutores Juares da Silva Thiesen e Jéferson Silveira Dantas no dia 24 de março de 2015, por ocasião do XXI Congresso Internacional de Antropologia Ibero-Americana, ocorrido no município de São José/SC, tendo como discussão central os desafios da implementação da educação integral na rede municipal de educação. Palavras-Chave: Educação integral; Escola; Currículo. ∗ Graduado em Estudos Sociais pela Universidade do Oeste de Santa Catarina - FUNDESTE (1987) e em Geografia pela Universidade do Oeste de Santa Catarina - UNOESC (2000). É Mestre em Educação - Ensino Superior pela Fundação Universidade Regional de Blumenau - FURB (1995). É Doutor em Ciências Pedagógicas pelo Instituto Central de Ciências Pedagógicas -ICCP - Havana - Cuba/2002 e Doutor em Engenharia e Gestão do Conhecimento pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC (2009). É Professor no Departamento de Estudos Especializados em Educação do Centro de Ciências da Educação da Universidade Federal de Santa Catarina (EED/CED/UFSC). E-mail: [email protected]. ∗∗Historiador e Doutor em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professor no Departamento de Estudos Especializados em Educação do Centro de Ciências da Educação (EED/CED/UFSC). Conselheiro Titular do Conselho Municipal de Educação de Florianópolis/SC. Membro e pesquisador do Núcleo de Estudos sobre as Transformações no Mundo do Trabalho (TMT). E-mail: [email protected].

Introdução

O presente texto resulta de nossa participação em mesa de trabalho com a temática da Educação Integral no XXI Congresso Internacional de Antropologia Ibero-americana, realizado em São José, Santa Catarina, Brasil, entre os dias 23 e 25 de abril de 2015. Sem desconsiderar o amplo e complexo conjunto de elementos conceituais, jurídicos e políticos que abarca a problemática da educação integral no Brasil atualmente, demos centralidade nas questões mais diretamente relacionadas com as escolas de Educação Básica dos sistemas públicos de ensino, especialmente na configuração de seus Projetos Pedagógicos e curriculares em termos de (re)definição de seus tempos, espaços e conhecimentos.

Com este propósito, organizamos o presente texto que inicialmente apresenta e discute criticamente aspectos normativos e políticos da chamada agenda da educação integral com destaque à análise do que vem sendo proposto pelo Estado brasileiro nas políticas e programas de ampliação do tempo escolar. Numa segunda seção apontamos algumas das implicações desta agenda política do/no território do currículo escolar.

Convém destacar que o texto inscreve-se no conjunto das pesquisas que realizamos na universidade no campo da educação, todavia não se configura como resultado de pesquisa específica sobre esta problemática, razão pela qual

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não há nele apresentação de aspectos de natureza metodológica.

Educação de tempo integral, escola de tempo integral e formação humana integral: desafios e perspectivas

No âmbito do Plano Nacional de Educação (PNE), Lei 13.005, aprovado em junho de 2014 em cumprimento ao artigo 214 da Constituição Federal (CF), tenciona-se em sua sexta meta (num total de 20 metas), “oferecer Educação em Tempo Integral em, no mínimo, 50% das escolas públicas, de forma a atender 25% dos alunos da Educação Básica” (AGUIAR, 2014, p. 10), até o término de 2024. Entretanto, talvez fosse essencial problematizar de que forma o Estado garantirá recursos aos entes federados (sobretudo os municípios) no que concerne à priorização da escola pública em tempo integral. Aliás, muito antes de tratar da escola pública integral ou de uma perspectiva de formação humana integral, deveríamos sempre nos perguntar: que concepção de escola e de educação almejamos para crianças e jovens, especialmente das camadas mais empobrecidas da população brasileira?

Ora, adotar uma perspectiva política e pedagógica tendo como enfoque a educação integral exige uma profunda discussão sobre a fixação dos currículos, condições de trabalho, espaços arquitetônicos satisfatórios e interativos, e uma formação acadêmica (inicial e continuada) densa dos

professores envolvidos, assim como processos de gestão que promovam o diálogo entre estudantes, familiares, professores, coordenação pedagógica e demais instâncias de deliberação coletiva escolar. Infelizmente, somos obrigados a reconhecer que a dualidade educacional é uma herança nefasta que até hoje permanece em nosso país, fruto de uma imensa e inabalável desigualdade social. Dualidade que possibilita aos filhos das elites dirigentes uma educação onde os conhecimentos de todas as áreas estão efetivamente sistematizados; e aos filhos da classe trabalhadora uma educação aquém do que demandam, justamente, aqueles que têm quase inviabilizado o acesso a outros espaços, situações e relações favorecedoras da apropriação dos conhecimentos socialmente valorizados.

Após o processo de transição democrática a partir da década de 1980, com o fim da ditadura civil-militar (1964-1985) e uma nova Constituição em 1988, o Brasil se deparou com um enorme contingente populacional de analfabetos, por não ter priorizado o enfrentamento histórico da desigualdade social, da concentração de renda e da permanência do dualismo educativo. Na acepção de Frigotto e Ciavatta (2003), apenas 20% dos seres humanos usufruem da riqueza que é produzida no mundo, enquanto 80% apropriam-se dessa riqueza de forma residual.

Com a reforma política neoliberal adotada no Brasil a partir da década de 1990, o acesso e a permanência na escola pública regular formal eram assegurados também por programas de pouco impacto educativo, ‘preocupados’ com a

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melhoria do fluxo escolar, porém, sem qualquer qualidade formacional. Um bom exemplo do que destacamos aqui foi o famigerado programa classes de aceleração (SHIROMA; MORAES; EVANGELISTA, 2002).

Em tal momento histórico, a formulação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), aprovada e promulgada em dezembro de 1996 (BRASIL, 1996), foi o resultado de um embate entre o Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública e o lobby dos empresários da educação. A redação da LDBEN é, nesta direção, lacunar e ambígua, permitindo discernir implicitamente a desresponsabilização do Estado com o caráter público da educação em todos os seus níveis e modalidades. A LDBEN ainda que assinalasse em sua redação a perspectiva de que as escolas públicas, paulatinamente, se tornassem escolas de tempo integral, não deixava suficientemente claro como se daria tal processo. Aliás, tudo parecia realmente bastante nebuloso em tal contexto, já que as campanhas publicitárias do governo Cardoso (1995-2002) com o apoio de determinadas Organizações Não Governamentais (ONGs), defendiam o ‘voluntariado’ como ação coletiva no lugar de investimentos financeiros robustos nas escolas de educação básica, desvirtuando o que é de responsabilidade estatal e transferindo tais encargos para a sociedade civil. Não por acaso, o Estado neoliberal em sua atuação no campo educacional atende crianças e jovens empobrecidos a partir de um ‘olhar piedoso’ e ‘clientelístico’, configurando assim uma ‘escola pobre’ para ‘pobres’.

Se, por um lado, o aumento do tempo na escola pode significar um “aprofundamento de experiências cotidianas compartilhadas e o enriquecimento da vida intra-escolar e a estabilidade de seus quadros profissionais” (CAVALIERE, 2009, p. 58), não podemos perder de vista que tal atendimento aos estudantes, especialmente das classes populares, não pode se transformar em mero “atendimento, com sentido limitadamente assistencialista, ou em mero ‘consumo’, isto é, ocupação com atividades desconectadas de um PPP, organizados como uma espécie de mercado” (CAVALIERE, 2009, p. 58).

Assim, a discussão do fator ‘tempo’ na escola está relacionada à própria Organização do Trabalho Pedagógico (OTP), que pode se dar de forma seriada ou em ciclos, mas nunca dissociada de seu desenho curricular. Isto significa dizer que ao tratarmos do currículo da educação básica não podemos olvidar de uma pergunta central: “O que queremos que as crianças e jovens expostos ao processo de escolarização se tornem?” (GALIAN; SAMPAIO, 2012, p. 406). As autoras referenciadas fazem também uma importante e assisada reflexão sobre o que os artigos 34 e 87 – parágrafos 2º e 5º, respectivamente – da LDBEN (BRASIL, 1996) trazem em relação à ampliação progressiva da jornada escolar do ensino fundamental para o regime de tempo integral, ainda que tais artigos não façam qualquer menção aos demais níveis de escolarização na educação básica em período integral. Em outras palavras, fica sob a responsabilidade da escola a proposta educativa para o regime de tempo integral, retirando da alçada do Estado o dever de garantir tal direito.

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Destarte, o currículo na perspectiva da educação integral não se refere apenas às questões técnicas ou às novas linguagens, mas essencialmente, àquilo que se está deixando de lado na formação dos/as estudantes que mais necessitam deste capital escolar. Evidencia-se aí, que as relações que envolvem ‘cultura e currículo’ explicitam e expressam relações sobre ‘cultura e poder’, presentes nas práticas pedagógicas e nas proposições dos conteúdos curriculares; ampliar o tempo de crianças e jovens na escola está inextricavelmente associado à busca do direito pleno de aprendizagem de todos e, para tanto, a reconfiguração dos tempos, dos espaços e dos diferentes conhecimentos devem se fazer presentes. A relação da escola com a cultura local e com outras instâncias educativas exigirá de todos os seus sujeitos envolvidos uma articulação inédita na organização do trabalho pedagógico.

Por outro lado, a desgastante e degradante condição de trabalho dos professores e professoras – que não possuem em seus planos de carreira ‘dedicação exclusiva’ para atuarem numa única escola e na perspectiva da formação humana integral – aliadas às precarizadas condições das escolas públicas e ao esvaziamento dos conteúdos nos processos de escolarização –, impossibilitam uma educação em tempo integral 158.

158 O que não significa afirmarmos que as escolas privadas se encontrem em condições muito superiores (do ponto de vista pedagógico e mesmo estrutural) em relação às escolas públicas. Isto pode criar a falsa ideia de que as escolas privadas são ‘naturalmente’ melhores do que as unidades de ensino públicas, o que não corresponde à realidade.

A década de 1990 foi pródiga no que se refere ao desmonte da escola pública no Brasil, especialmente quando as teorias pedagógicas hegemônicas ganharam espaços relevantes nas escolas voltadas aos filhos das classes trabalhadoras. O enfático discurso neoliberal de que os professores precisam ser apenas ‘mediadores’ do conhecimento, retiraram desses profissionais a condição fundamental de serem agentes de mudança e, sobretudo, profissionais atentos à intencionalidade da organização do trabalho pedagógico.

Ao nos referirmos às teorias pedagógicas hegemônicas, estamos tratando das amplas e heterogêneas correntes pedagógicas associadas ao lema ‘aprender a aprender’, das quais fazem parte o assim denominado construtivismo, a pedagogia das competências, a pedagogia do professor reflexivo, a pedagogia dos projetos, a pedagogia multiculturalista e aquela que originou o ‘aprender a aprender’, ou seja, o escolanovismo (SANTOS, 2013). Tais configurações pedagógicas ganharam terreno a partir do relatório apresentado pela UNESCO em 1996 e intitulado Educação: um tesouro a descobrir, coordenado por Jacques Delors (presidente da Comissão Europeia entre as décadas de 1980 e 1990) – que defendia, dentre outros princípios, a ideia de que um conjunto de saberes era necessário para a adaptação funcional dos indivíduos num mundo cada vez mais ‘incerto’ e ‘competitivo’ (LAVOURA; MEIRELES, 2013).

Tais observações de esvaziamento do conteúdo escolar e, consequentemente, de desqualificação do trabalho docente,

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vão a passos largos aniquilando a autoridade dos professores e a intencionalidade do processo pedagógico, já que estes profissionais são os responsáveis diretos pela socialização da produção científica de forma acessível aos estudantes. Ainda que concordemos que os conteúdos trabalhados na escola devam ser significativos e bem planejados pelo corpo docente, não podemos acolher que os processos de escolarização se estabeleçam por meio da ‘opinião dos estudantes’, pois isto apenas tonifica o senso comum e a inutilidade da escola.

Assim, se desejamos combater o lema ‘aprender a aprender’, temos de problematizar os efeitos das teorias hegemônicas de aprendizagem nas escolas públicas que, ao esvaziarem os conteúdos das diferentes áreas do conhecimento, reduzem a escola a um espaço de socialização, sem proposição pedagógica; e, de forma mais preocupante, a um espaço de contenção dos filhos da classe trabalhadora. Em outras palavras, se a escola pública integral tiver como foco apenas a ampliação do tempo ou da jornada escolar, sem efetiva ampliação do acesso aos conhecimentos socialmente valorizados, e sem conexões pertinentes com os desafios do mundo do trabalho no âmbito da sociedade capitalista, perder-se-á a chance de fortalecer a formação de crianças e jovens que dependem da escola para se apropriarem de tais conhecimentos.

Porém, para não repetirmos a melopeia do “fatalismo pedagógico”, consideramos que para se obter avanços significativos nas formulações científicas, políticas e

pedagógicas, uma escola pública integral necessita estar atenta aos seguintes aspectos: 1) desenvolver um PPP que problematize as contradições e os desafios da classe trabalhadora no âmbito da sociedade capitalista vigente, onde os diferentes campos epistemológicos dialoguem por meio de uma perspectiva curricular que não dissocie o trabalho da educação; 2) que o corpo docente tenha dedicação exclusiva para atender as crianças e jovens da classe trabalhadora, reforçando os laços afetivos com as comunidades escolar e local, estabelecendo ainda os engajamentos empíricos necessários para que se torne uma comunidade efetivamente investigativa; 3) que os diretores escolares possam ser eleitos de forma democrática por toda a comunidade escolar; 4) que todas as instâncias deliberativas da escola funcionem de forma efetiva (APP, Conselho Deliberativo, Grêmio Estudantil e também o Conselho de Classe Participativo), e não se inviabilizem como entidades burocratizadas ou sem função deliberativa; 5) por fim, que a relação entre a escola e a família não se dê apenas de forma pontual, mas que se constitua como uma ação estratégica objetivando o fortalecimento dos vínculos pedagógicos e afetivos, assim como a sensação plena de pertencimento a todos os espaços de socialização da instituição escolar.

A educação integral como agenda política e como ampliação de direitos à formação humana: implicações do/no território do currículo

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No âmbito do expressivo debate teórico e dos movimentos da política educacional e curricular que se faz hoje no Brasil em torno da temática da educação integral é possível situar pelo menos três contextos predominantes: o estatal que se movimenta e orienta-se na ideia de ampliação da jornada escolar como indução à formação integral sem alterar substancialmente os modelos de escola vigente; outro, de cunho privado, que associado ao primeiro toma carona nas propostas do Estado e invade os sistemas públicos de ensino com as chamadas ‘soluções pedagógicas e curriculares’ e um terceiro, de natureza acadêmica que procura compreender estes movimentos à luz das diferentes perspectivas teóricas.

Na reflexão que fazemos nesta seção de trabalho, não pretendemos dar conta de todos estes enfoques e movimentos da chamada agenda da educação integral no Brasil. A ideia é tão somente pontuar alguns aspectos relacionados a como vem sendo concebida a noção de formação integral, educação integral e ampliação de jornada escolar, especialmente tomando-se o currículo como território de materialidade dos processos educacionais e escolares e considerando-se os elementos já apontados no início deste texto.

A formação integral, inextricavelmente integrada à experiência humana, forma parte da histórica utopia social – ou utopia do sonho diurno como concebe Ernst Block (2005). Funda-se, portanto, na ideia da educabilidade humana como experiência e como projeto. Como parte da ação individual e coletiva dos seres humanos; constitui o movimento de

reconstrução simbólica do mundo e se expressa, na práxis, pelo trabalho e pela cultura.

Assim, no âmbito do trabalho e da cultura, a educação é expressão onto e sociocriativa do gênero humano. Quanto mais integral for a formação, maior será a possibilidade criadora e transformadora. Nesta perspectiva, a formação integral deve ser compreendida como parte dos processos civilizatórios, nos quais a escolarização ocupa lugar central.

A educabilidade, constitutiva da experiência humana coloca-se como um desejo individual e social que atravessa etapas da trajetória histórica e se configura como direito humano fundamental nas sociedades que se proclamam democráticas. Assim, a atual agenda da educação integral, precisa levar em conta este processo sócio-histórico.

A escola, instituição resultante deste desejo/necessidade humana, é constituída para ser espaço, lugar e território da institucionalização deste projeto de educabilidade em termos mais formais. Portanto, a escola é instituição que o tempo todo se adapta e ao mesmo tempo reage/resiste aos princípios de finalidades sociais colocados como relevantes e fundamentais por alguns grupos humanos, em geral pelos grupos políticos e economicamente hegemônicos. A escola é, portanto, a estratégia social que deve cumprir a finalidade educativa nos termos da formação humana e fazer isto atingindo níveis cada vez mais integrais tanto do ponto de vista metodológico quanto teleológico. É, pois, por esta razão que distintas perspectivas teóricas e movimentos político-ideológicos encontram algum consenso

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na genérica ideia de formação humana integral. As divergências, em geral, residem na escolha de caminhos para esta trajetória e na própria concepção do que seja formação integral.

O currículo, expressão material do desejo/direito da formação humana por meio da escolarização, constitui-se artefato instrumental e político que dá forma e conteúdo aos processos escolares. É no território curricular que os grupos sociais, sejam eles dirigentes, professores e estudantes, fazem escolhas para o projeto formativo. Não por acaso este território/arena mostra-se atravessado por tensionamentos de toda a ordem dada a intensidade de interesses que circulam em torno de sua constituição (MOREIRA, 2005; COSTA, 2005; ARROYO, 2011).

Como expressão material da educação formal o currículo evidencia potencialidade para cindir ou integrar a formação dos sujeitos e, tecido em meio aos distintos interesses de quem os propõe, tem contribuído para engendrar finalidades muito distintas. É, portanto, um movimento que expressa os embates travados no âmbito dos interesses sociais mais amplos e que insistentemente busca formas de resistência aos modelos fragmentários pela luta em torno da integração. Em suma, o currículo encontra sua configuração sempre provisória em meio às contradições e convergências resultantes dos interesses dos coletivos que o prescrevem e desenvolvem.

Como bem apontam Arroyo (2011) e Sacristán (2000), na escola tudo gravita em torno do currículo e na construção

espacial do sistema escolar; o currículo é o núcleo e o espaço central mais estruturante. Portanto, qualquer projeto escolar de formação humana esteja ele ancorado em perspectiva de formação mais ou menos integral, encontrará suas bases materiais no território curricular, daí ser este um espaço considerado uma arena político-pedagógica. Não é sem razão que defendemos o Projeto Politico Pedagógico escolar como espaço de escolha e definição das finalidades formativas mais amplas e a integração curricular como caminho metodológico para o alcance desta finalidade.

Entendemos que o desafio da formação integral não pode ser alcançado apenas no âmbito da integração pelos redesenhos curriculares, ainda que sem isso os processos tornem-se mais difíceis. Para o entendimento do que supõe “sujeito de formação integral” faz-se necessário pensar o currículo em pelo menos três dimensões: a social, a epistemológica e a pedagógica.

Em perspectiva mais ampla, é preciso enxergar a dimensão sociopolítica do currículo como cenários em disputas por projetos societários e pela manutenção de hegemonias econômicas e culturais, ou seja, é preciso que compreendamos o território curricular como arena de forças que se movem em torno de interesses distintos. No caso de sociedades como a nossa, as lutas se configuram na relação de forças entre resistência e manutenção do sistema socioeconômico vigente, como apontado anteriormente. Sobre este aspecto trabalhos como o de Michael Apple, Michael Young e Henry Giroux, contribuem sobremaneira. Não temos

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dúvidas que por esta ótica torna-se possível enxergarmos os movimentos da chamada pauta da educação integral desde em perspectiva ampliada.

No âmbito epistemológico do território curricular, o desafio está em compreendermos os movimentos do conhecimento (científico e escolar) e seus processos de significação especialmente nos âmbitos da produção, distribuição e apropriação pelos sujeitos. Sobre este aspecto Santomé (2013) adverte que com base em um conhecimento no qual os debates epistemológicos estão continuamente na agenda, podemos exercer uma maior vigilância para evitar os preconceitos com os quais muitas máquinas científicas foram construídas, as quais, algumas vezes de forma intencional e outras com seus efeitos previstos funcionaram como instrumentos de exploração e marginalização de numerosos grupos sociais e de povos inteiros.

Sem dúvida alguma o currículo escolar desempenha função importante, no que se refere à produção, distribuição, socialização e apropriação do conhecimento humano. Não seria absurdo afirmar que parte significativa de produção da chamada ‘injustiça cognitiva’ (LAS CASAS, 1984; SANTOS, 2007) tem sua base material situada no território curricular. Como apontado anteriormente, a escola burguesa moderna, por meio de seu currículo, dualizou as esferas de acesso ao conhecimento construindo e legitimando dois modelos de escola – a de elite e a dos trabalhadores – cada uma com seu currículo.

No campo do pedagógico, o desafio é o da organização dos percursos formativos por via da estruturação dos desenhos curriculares. Os redesenhos curriculares, organizados na perspectiva da formação integral, precisam levar em conta a possibilidade concreta de interfacear as fronteiras fixadas do conhecimento e dos saberes sem a perda das identidades construídas nas áreas e disciplinas científicas. Não obstante alguns esforços venham sendo empreendidos neste aspecto, o caminho da integração curricular, na prática, ainda está por ser feito. Este caminho supõe pelo menos duas tarefas: a integração dos conhecimentos e a redefinição dos tempos e espaços escolares em termos cronológicos/físicos e subjetivos de aprendizagem.

Para Marise Ramos (2005), há uma necessidade de redefinir a relação entre conteúdo e método na integração de conhecimentos considerados gerais e específicos. Considera importante compreender o que significam as disciplinas no processo histórico de construção de conhecimentos, suas especificidades em temos científicos e escolares e os pressupostos epistemológicos que subjazem à forma hegemônica de organização curricular. Nos redesenhos curriculares na perspectiva da formação integral os professores e gestores precisam enfrentar o desafio do diálogo interdisciplinar e encontrar as possibilidades de integração sem a perda das identidades disciplinares constitutivas da produção do conhecimento científico.

Ainda no âmbito pedagógico, faz-se necessário considerar que a ampliação do tempo e dos espaços escolares

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não podem justificar, por si mesmos, ações de mudança nas finalidades formativas. O que se observa, em geral, nos projetos de educação integral sem a devida discussão epistemológica e política, é a adoção de concepções que confirmam o chamado “mais do mesmo” (ARROYO, 2011). Torna-se cada vez mais comum no Brasil, especialmente nos sistemas municipais de educação, a ampliação da jornada escolar mantendo-se o mesmo formato curricular da escola de tempo parcial. Em muitos casos agrega-se ao conjunto dos componentes curriculares convencionais, outras atividades de natureza cultural, esportiva ou tecnológica sem a devida integração com os componentes na Base Nacional Comum. E o mais grave é que este acréscimo ocorre no chamado contraturno, legitimando-se a ideia de duas escolas em uma.

Como já fizemos referência em outro texto (2006), a ampliação do tempo pedagógico da escola deve significar muito mais que a extensão do modelo que todos conhecemos. Deve implicar em uma nova construção curricular, com base na integração como princípio de organização pedagógica da escola, na flexibilidade como dinâmica da produção da matriz curricular e da interdisciplinaridade como concepção para o trabalho pedagógico dos educadores.

A ideia de currículo integral supõe uma lógica que contemple a articulação das diferentes atividades e experiências desenvolvidas pela escola ou em outros espaços educativos, sejam elas convencionais ou não, formais ou não formais, disciplinares ou não. Entendemos que os sistemas escolares devem superar a concepção ainda corrente que

acrescenta ao currículo atividades de natureza extracurricular, atividades complementares ou ainda a conhecida parte diversificada. Esta concepção é altamente marcada pelo modelo reprodutivo dicotomizador de um paradigma técnico-burocratizante que remonta os anos 1970.

Outro aspecto importante no âmbito pedagógico está na possibilidade que a escola tem em dinamizar os espaços/tempos de aprendizagem para as crianças. Na medida em que haja maior flexibilidade no desenvolvimento das atividades em torno dos eixos que estruturam a matriz curricular, a escola pode buscar outros espaços na comunidade, sobretudo estabelecendo interfaces com outros setores do poder público e da sociedade civil.

A escola como espaço social e integral de aprendizagem e desenvolvimento não pode ficar em seus intramuros. Ela se tornará mais educadora na medida em que se aproximar da realidade social e nela interferir. A produção de conhecimento e sua socialização ou negação para determinados grupos ou classes não são alheios ao conjunto de práticas e relações que produzem os homens num determinado tempo e espaço. Pelo contrário, nelas encontra a sua efetiva materialidade histórica (FRIGOTTO, 1993, p. 63). Nesse sentido, entendemos que o currículo deve contemplar não só um conjunto de ações desenvolvidas na escola, mas pela escola, independente de seus limites de fisicalidade. Somente a ampliação do tempo pedagógico, a dinamização de suas ações e a resignificação de seus espaços permitirão

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que a escola possa avançar na direção de uma formação mais integral para seus estudantes.

Reafirmamos nosso entendimento que o currículo constitui espaço fundamental e base material para redimensionar a formação humana, todavia não pode ser visto como locus exclusivo dos processos de mudança. Faz-se necessário que haja envolvimento de outros sujeitos e de outros coletivos em outros espaços e dimensões da sociedade. É preciso, como já destacamos, investimento de recursos financeiros e humanos; que sejam oferecidas pelo Estado condições objetivas de trabalho aos professores; que a formação inicial e continuada dos professores seja repensada, redimensionada e reposicionada em termos de importância política e social.

Os cenários descritos pelos pesquisadores que estudam e discutem a problemática da educação integral mostram com evidência que os movimentos colocados em marcha visando esta perspectiva de formação do Brasil estão em meio a muitos desafios. É preciso que enfrentemos o problema da qualidade na formação dos professores; o avanço desenfreado da lógica de mercadorização da educação por dentro dos próprios sistemas de ensino público; as dificuldades nos processos de priorização, distribuição e aplicação de recursos financeiros na educação; a preparação de gestores educacionais e escolares para enfrentar as novas demandas pedagógicas decorrentes das atuais reconfigurações escolares, familiares e culturais em geral, além de tantos outros desafios que se apresentam.

Entendemos que o complexo projeto da formação humana “integral” continua sendo um grande desejo coletivo colocado novamente na pauta política como mais um importante desafio da educação. Um desejo que apesar de tão antigo quanto a própria existência, ainda não aprendemos suficientemente como realizá-lo. Segue, no presente, sendo um dos muitos elos que liga o passado ao futuro.

Abstract: This article is the result of the lecture given by doctors in Education, Juares da Silva Thiesen and Jéferson Silveira Dantas, on March 24, 2015, during the XXI International Congress of Anthropology Latin American, held in São José / SC, with the central debate the challenges of implementing the comprehensive education in the municipal education. Keywords: Comprehensive education; School; Curriculum REFERÊNCIAS AGUIAR, Márcia Angela da Silva et. al. Planejando a próxima década: conhecendo as 20 metas do Plano Nacional de Educação. Brasília: MEC/SASE, 2014. ARROYO, Miguel. Currículo, território em disputa. Petrópolis: Vozes, 2011. BLOCH. Ernst. O Princípio Esperança. Vol. I (Tradução de Nélio Schneider), Vol II (Tradução e notas de Werner Fuschs)

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A EDUCAÇÃO EM SAÚDE E AS SUAS NUANCES ANTROPOLÓGICAS

Luciana Maria Masiero159

RESUMO: A educação em saúde busca transmitir conhecimentos para que as pessoas possam, através dos seus recursos e com o apoio social, conhecer os seus problemas e decidir sobre a ação mais apropriada para manter uma vida saudável. Geralmente está volta para os hábitos de vida de uma população, como a alimentação, a higiene, o saneamento básico, a vacinação, as noções do corpo, de saúde e de doença. Contudo, na elaboração de estratégias de educação em saúde algumas questões importantes sobre a história de vida e crenças dos indivíduos não costumam receber a atenção merecida. No sentido de aprimorar essas estratégias, o antropólogo deveria receber um papel de destaque, pois possui um tato especial para a observação e a escuta, facilitando a investigação do processo saúde-doença e proporcionando possíveis soluções para os problemas socioculturais envolvidos. Além disso, o antropólogo poderia investigar tanto os fatores ambientais e econômicos como também as crenças e os valores que influem em determinadas atitudes efetivando, assim, a educação em saúde do grupo investigado. O objetivo deste estudo é refletir sobre a atuação do antropólogo na formulação de estratégias e programas de

159 Doutoranda em Ciências Sociais, linha de antropologia, Universidade de Salamanca, bolsista da CAPES. Email: [email protected] . Lattes: http://lattes.cnpq.br/0355475012995052

educação em saúde. Também visa entender a relação das experiências em saúde e em doença dos sujeitos com a cultura, suas representações e subjetividades através de uma análise das possíveis influências nos programas de educação em saúde já estudados. Palavras-chave: educação em saúde; antropologia; saúde; doença; cultura.

1 INTRODUÇÃO

A educação em saúde é definida como uma atividade planejada que objetiva criar condic oes para produzir as mudancas de comportamento desejadas em relac ao a sau de (GAZZINELLI et al, 2005). Nesse planejamento a visão de saúde se amplia, proporcionando ao sujeito uma autonomia que implica em autocuidado, mas também em uma dimensa o politica emancipatoria. Isto porque centraliza a necessidade de enfrentamento dos processos que determinam a saúde, a doenca e os sofrimentos da populac ão (BUCHABQUI; PETUCO, 2006, p.34). Foi buscando entender esses processos que as ciências sociais e a antropologia integraram-se com a área da saúde.

Neste sentido, Nunes (2006), fez uma revisão da trajetória das ciências sociais na América Latina afirmando que este campo na saúde começou a se estruturar a partir da segunda Guerra Mundial. Para ele, foi um período de mudanças políticas, econômicas e avanços universitários que permitiram que verbas governamentais fossem destinadas a pesquisas sociomédicas. Contudo, somente na década de 1970

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que essa área avançou com mais visibilidade no processo saúde-doença no Brasil, tardiamente em relação aos Estados Unidos e Europa. Segundo Donnangelo (1983, p.31), nesta época a doenca adquire um especi fico significado social.

Além disso, em 1980 as cie ncias sociais em sau de passaram a articular-se com o campo da sau de coletiva avançando cientificamente. Essa relação possibilitou estudos sobre medicina preventiva, medicina comunita ria, poli ticas de sau de, as relacoes com o Estado e organizacao dos servic os de sau de (NUNES, 2006). Atualmente, a area apresenta grande variedade tema tica, como por exemplo ética me dica, relacoes de ge nero, poli ticas de sau de, estudos da histo ria social no processo saúde-doenca e, também, em educação em saúde.

Pensa-se ser essencial na integralidade de uma educação em e para a saúde o conhecimento de todos os processos da história de vida de um indivíduo. Para atingir este fim, a escuta e o diálogo são ferramentas essenciais para a busca de informações sobre crenças, valores e significados que certas condutas e doenças podem representar para uma determinada população. As estratégias de educação em saúde, portanto, podem ser elaboradas em conjunto com antropólogos que ademais de serem especialistas no estudo das culturas e simbologias, podem contribuir com sua habilidade nos trabalhos de campo, que seria a coleta dessas informações em saúde.

Alguns modelos de educação em saúde consideram que os comportamentos ou cuidados inadequados dos indivíduos são decorrentes de um de ficit cognitivo ou

cultural, cuja superac ao pode dar-se por meio ações corretivas e/ou educativas provenientes de informações científicas externas ignorando a subjetividade e a responsabilidade do indivíduo (SMEKE; OLIVEIRA, 2001). Contudo, é importante destacar que também existe uma preocupação nesses modelos acerca das soluc oes exteriores para que não se transformem em uma nova forma de subordinac ao social. Ou como diz Laplantine (1991) que não reforce o modelo exógeno do adoecimento que faz com que pensemos que um agente externo é o causador da doença e que ele deve ser combatido como um inimigo para poder realmente curar-se.

Desta maneira, este estudo possibilita a reflexão sobre a formulação de futuras estratégias e programas de educação em saúde (sanitária, curativa e preventiva) através das habilidades científicas do antropólogo na compreensão das culturas e dos comportamentos de um determinado grupo ou população (HARRIS, 2006). Além disso, poderá fomentar ideias sobre a implementação de palestras e cursos acerca da Atenção Primária em Saúde (APS) dentro das escolas e nas comunidades, como por exemplo, nos postos de saúde e nos hospitais públicos.

A APS funciona de acordo com as necessidades de saúde de cada região, visando a integralidade e fortalecendo as ações tanto curativas como preventivas do indivíduo, da família e da comunidade (MATTA; MOROSINI, 2010). Portanto, suas principais ações são baseadas na educação em saúde voltada para a prevenc ao e proteção, a distribuicao de alimentos e nutric ao apropriada, tratamento de água e esgoto,

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saúde materno-infantil, plano familiar, imunizac ao e fornecimento de medicamentos.

Portanto, o objetivo deste estudo é refletir sobre a atuação do antropólogo na formulação de estratégias e programas de educação em saúde. Também visa entender a relação das experiências em saúde e em doença dos sujeitos com a cultura, suas representações e subjetividades através de uma análise das possíveis influências nos programas de educação em saúde já estudados. Para este fim, será feita uma revisão bibliográfica sobre a educação em saúde, as ciências sociais e a antropologia. Serão utilizados materiais da Universidade de Salamanca, bem como bases de dados de revistas cienti ficas, como a RedaLyc, a Dialnet e o Google Scholar160.

2 SAÚDE E DOENÇA

Para tratarmos de educação em saúde é fundamental a clara compreensão do conceito e das representações simbólicas das palavras saúde e doença. Esta dualidade mesmo parecendo oposta, possui uma ligação tão estreita que o significado de uma por muito tempo foi considerado mediante a ausência da outra. Ou seja, as primeiras noções de boa saúde eram explicadas pelo fato da manifestação da doença estar ausente. A primeira definição elaborada pela Organização Mundial da Saúde (OMS, 1948)161, conceituava a

160 Disponível em: http://redalyc.uaemex.mx, : http://dialnet.unirioja.es e http://scholar.google.com. 161 Disponible en: http://www.who.int/about/definition/en/print.html

saúde como a ausência de enfermidades ou invalidez. Assim, a doença só tinha significado médico e social quando percebia-se que havia algum desequilíbrio no seu estado de saúde ou, por assim dizer, quando encontrava-se ameaçada pela doença.

Sem embargo, com o tempo este conceito passou a ser visto como demasiado simplista, aprimorando-se, pois, com aspectos mais globais. Neste sentido, a OMS definiu a saúde como o perfeito estado de bem-estar físico, mental e social (OMS, 1989). Contudo, esta contextualização, apesar de mais ampla, sofreu diversas críticas, pois alguns autores consideravam o perfeito estado como algo utópico e difícil de mensurar (SEGRE; FERRAZ, 1997).

Mesmo assim, se observa que estas definições ainda não constituem todos os aspectos associados à saúde. Ou seja, existe um caráter subjetivo que ultrapassa a ausência da doença e as sensações de bem-estar físico, mental e social. Segundo Masiero (2015, p.33), esta subjetividade está relacionada a um equilíbrio mente-corpo que somente se completa com sentimento de felicidade e contentamento individual.

Por outro lado, também se afirma que a cultura acabou transformando as pessoas em eternas infelizes, pois a busca por um objetivo nunca se acaba apenas é substituindo por outro desejo, sendo impossível se contentar em sociedade (FREUD, 1999). Portanto, as subjetividades ligadas aos conceitos de saúde-doença deveriam ser representadas de maneira pessoal, sendo a pessoa responsável por definir-se saudável ou não.

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É importante destacar que as questões de saúde e doença possuem diversas conotações. Suas definições abrangem aspectos da mitologia, da religiosidade, da ciência, da economia, da educação e da cultura. Antigamente as interpretações sobre a cura de algumas doenças eram associadas ao misticismo, a magia e a superstição. Na Grécia antiga a visão popular da doença atribuía as suas curas aos Deuses Apolo, Esculápio, Higéia e Panaceia. Contudo, a escola do pai da medicina, Hipócrates de Cós (460 a.C.), apesar da sua devoção aos deuses vista em seu famoso juramento162, passou a olhar a cura das doenças com uma visão mais científica. Para ele, os estados de saúde e doença eram baseados no equili brio de quatro fluidos ou humores: a bile amarela, a bile negra, o fleuma e o sangue. Ou seja, a saúde era um equilíbrio entre esses elementos e a medicina buscava harmonizar o corpo que se encontrava enfermo passando a obter um olhar mais científico.

Outro grande médico que reutilizou esta teoria para explicar a saúde e a doença foi Cláudio Galeno (129-199). Para ele, os humores de Hipócrates explicavam também os temperamentos no estado de saúde e as doenças tinham causas endógenas que levavam ao desequilíbrio corporal através da constituição física e dos hábitos de vida. Somente séculos mais tarde sua teoria foi criticada por Paracelsus que afirmou que as doenças não eram endógenas, mas sim provocadas por agentes externos no organismo e que por isso,

162 Juramento de Hipócrates. Disponível em: www.ordemdosmedicos.pt/send_file.php?tid=ZmljaGVpcm9z&did=02f039058bd48307e6f653a2005c9dd2>

deferiam ser combatidas por remédios químicos como metais e minerais (CASTRO; ANDRADE; MULLER, 2006). Por outro lado, para as civilizações assírias-babilônicas as doenças adquiriam aspectos de religiosidade sendo vistas como manifestações do demônio. Além disso, os médicos ou curadores eram associados aos Deuses, sacerdotes, reis, xamãs, curandeiros ou barbeiros (CASTRO; ANDRADE; MULLER, 2006). Estas representações simbólicas de “homens de cura” podem ser encontradas nos quadros, desenhos e esculturas. Segundo Calder (2008), a mais antiga representação de homem curador foi encontrada na França, na caverna de Trois Frère em meados de 14.000 a.C. no período paleolítico com o corpo de homem e cabeça ou máscara de cervo, na figura 1.

Figura 1: Caverna de Trois Frères (França), de 14.000 a.C.163.

163 Fonte: www.merveilles-et-lieux-sacres-du-monde-antique.net/pages/paleolithique/grotte-des-trois-freres-14000-b-c.html

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Também é possível observar as visões de

determinadas épocas acerca da saúde e da doença através da arte. De acordo com Reyero (2005), as pinturas que simbolizam as enfermidades eram muito presentes nas artes plásticas. Segundo ele, no final Idade Média eram carregadas de religiosidade, caridade e sofrimento onde os Santos eram os principais curadores reforçando o poder da igreja. Ou seja, a doença era um castigo e a cura a salvação da alma.

Na época da peste durante o antigo regime espanhol, as pessoas seguravam desenhos de São Cristovão, Cosme e Damião, São Roque e São Sebastião para que lhes protegesse da peste (PORTÚS; VEGA, 1998, p. 359). Os Santos Cosme e Damião são considerados os padroeiros dos médicos, pois realizavam a cura sem cobrar no período medieval. Os irmãos médicos ficaram conhecidos pelo relato lendário de seus feitos, principalmente o de um transplante da perna gangrenada do branco Justiniano por uma perna de um negro etíope que havia sido morto recentemente (Figura 2). Segundo De Sousa (1981), o milagre aconteceu porque o transplante foi um êxito na época, pois incrivelmente não teve nenhuma rejeição.

Figura 2: Fran Angelico ou Giovanni da Fiesole, A cura de Justiniano por Cosme e Damião, 1438, Museu de São Marcos, Florença.

Por outro lado, os médicos eram representados nas

pinturas como homens de grandes saberes científicos, porém geralmente eram pintados acompanhados de reis ou rainhas (Figuras 3 e 4). Também é interessante ressaltar que alguns artistas, como Francisco Goya e Thèdore Géricault, representaram algumas doenças laborais como manifestação de injustiças sociais, bem como a loucura gerada em resposta às fortes pressões sociais (Figuras 5 e 6). Além disso, as doenças também foram retratadas por artistas como uma degradação do corpo, com feridas, deformidades, feições características e dores físicas e emocionais demostrando a debilidade, o sofrimento e a rejeição humana (REYERO, 2005). Desta maneira, os grandes heróis não podiam ter deformidades, incapacidades ou loucuras. Um

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exemplo disso, também está nas crianças espartanas que quando nasciam com defeitos eram rejeitas por não serem perfeitas e portanto, indignas de se tornarem guerreiros.

Figura3:Antoine JeanGros, Bonaparte visitando a los apestadosdeJaffa,1804,MuseodelLouvre,Paris.

Figura 4: Francisco de Goya, Autorretrato con el doctor Arrieta(1820),MinneapolisInstituteofArts,Minnesota.

Figura 5: Francisco Goya, El albañil herido, 1786 – 1787, Museo del Prado, Madrid

Figura 6: Thèdore Géricault, La loca, 1822-1828, Museo de Bellas Artes de Lyon, França.

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Neste sentido, Aristóteles também considerava a todo

ser defeituoso como incompleto, inacabado, mutilado, mal nascido ou um monstro (LASCAULT, 1973, p. 248). Porém, a política justificava os feridos de guerra como bem feitores e os reis também eram vistos como curadores. Até mesmo na Bíblia se encontra uma passagem desprezando as pessoas que possuíam alguma incapacidade física:

Diga a Arão: Pelas suas gerações, nenhum dos seus descendentes que tenha algum defeito poderá aproximar-se para trazer ao seu Deus ofertas de alimento. Ninguém que seja cego ou aleijado, que tenha o rosto defeituoso ou o corpo deformado; Ninguém que tenha o pé ou a mão defeituosos, ou que seja corcunda ou anão, ou que tenha qualquer defeito na vista, ou que esteja com feridas purulentas ou com fluxo, ou que tenha testículos defeituosos. Tem defeito, não poderá aproximar-se para trazê-las ao seu Deus. (...) Não se aproximará do véu nem do altar, para que não profane o meu santuário. (BÍBLIA, LEVITÍCO, 21, p. 17-23).

Com estas representações das enfermidades através

da arte se pode observar os diversos símbolos relacionados com a sua cura, como por exemplo, a religião e a fé, o poder dos nobres, o médico como o detentor do saber e, por fim, as injustiças e pressões sociais que afetavam o corpo, seja os acidentes laborais, a loucura, a pobreza e a desnutrição. Além disso, é importante destacar que os curadores eram vistos quase como Deuses e o seu saber e poder de cura eram respeitados, admirados e, muitas vezes, considerados como

atos milagrosos. O corpo perfeito tinha um significado de saúde e as suas deformidades e enfermidades eram motivos de rejeição social por simbolizarem castigo, dor e pecado da alma.

Atualmente em nossas sociedades modernas, o corpo “imperfeito”, se é que se pode chamá-lo assim, possui uma maior aceitação social. Os aspectos religiosos já não têm tanta força e as enfermidades passaram a conter um significado de luta, coragem e superação. Além disso, a medicina e os tratamentos em saúde avançaram muito cientificamente a ponto de possibilitarem uma esperança diante da doença que antes era vista como uma condenação de vida. Dessa forma, as sociedades também buscam, de maneira singela, criar meios de acessibilidades nos locais públicos para que todos possam frequentar e desfrutar de uma cidadania independente de suas limitações físicas.

No entanto, os cuidados com a apare ncia do corpo se transformam em ideais que parecem sobrepor-se à saúde de maneira preocupante. As práticas corporais ganham espac o e permitem a aproximacao de valores sociais e e ticos relativos à estética do corpo, possibilitando o surgimento de hábitos que visam modelar o corpo, adequando-o a s normas sociais (LUZ, 2003). Ou seja, com a popularização de tratamentos estéticos motivados pelo expressivo culto ao corpo, modificar algo que não agrada passou a ser rotina e quase um imperativo moral (ANTONIO, 2008). Neste sentido, as cirurgias plásticas estão cada vez mais populares e os transtornos relacionados ao corpo devem ser observados de maneira especial dentro da educacao em saúde.

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Partindo deste pressuposto, Ferreira (2010, p. 70), afirma que a sau de passa a ser um guarda-chuva simbo lico no qual tudo cabe. Para ele, ter sau de na o se restringe a evitar as doencas, a preservar-se, a na o correr riscos, nem a permanecer na normalidade me dica. Para ele, a doenc a está inscrita na ordem da doenc a tradicional fazendo com que a construcao de uma imagem ideal se de a partir de para metros que esta o ale m do corpo, mas em uma ordem social (FERREIRA, 2010, p. 70-75). Ou seja, ter sau de passa a ser igualmente cuidar da forma, do peso, da aparencia (da pele, das rugas, dos cabelos brancos), da alimentac ao, da dieta ou do cuidado com as calorias, da manutenc ao da beleza e da juventude. Goldenberg (2007) também aponta que os cuidados com a forma física acabam transformando os sujeitos em eternos insatisfeitos e chama a cultura do corpo atual como uma “cultura narcisista”.

Neste sentido, os transtornos como o narcisismo, as depressões e as hipocondrias, os transtornos dismórficos corporais, a bulimia e anorexia estão a cada dia mais comuns. Christopher Lasch (1999) apontou no livro “La cultura del narcisismo”, como as mudanças socioculturais influem em transtornos psicológicos e diz que o narcisismo:

(…) mais que um transtorno de caráter ou uma patologia psiquiátrica, junto com a mudança de personalidade que este processo costuma produzir, o narcisismo deriva de mudanças muito específicas de nossa sociedade e nossa cultura: a burocracia, a proliferação de imagens, as ideologias terapêuticas, a racionalização da vida interior, o culto ao consumo e, em último caso, as mudanças de vida familiar e

os padrões de socialização. (LASCH, 1999, p. 55, tradução minha)

Neste sintido, observa-se que alguns transtornos

psicológicos podem ser desencadeados por influências sociais, sendo assim, importante conhecer os aspectos culturais dos grupos sociais para entender o processo saúde-doença. Além do narcisismo, segundo Martí Tusquets (2004), existem doenças ou “falsas” doenças provocadas pela sociedade. Para ele, ocorre um fenômeno socioclínico em diferentes culturas que faz com que as pessoas mesmo estando saudáveis, sintam-se geneticamente e fenomenologicamente doentes (TUSQUETS, 2004, p.13). Ele também aborda temas como as neuroses sociais, os “analfabetos da saúde” e as falsas doenças causadas por pressões culturais. Para simbolizar sua teoria, ele cita o quadro “O doente imaginário” (Fig. 7) do pintor francês Honoré Daumier (1673), baseado na obra teatral de Molière, Le malade imaginaire, que causou um forte impacto nas sociedades acerca das enfermidades imaginárias que passaram a serem vistas com maior seriedade.

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Figura 7: Honoré Daumier. O enfermo imaginário (Le malade

imaginaire), 1863, Museo de Arte da Filadelfia.

De acordo com Le Breton (1999), atualmente existem diversos medicamentos que regulam o humor e a qui mica corporal, fazendo do corpo um campo de testes de produtos qui micos que controlam a relac ao das pessoas com o mundo. Assim, mesmo sem estar doente, as pessoas tomam reme dios para dormir, para ficar acordados, ficar em forma, tornar-se ene rgico, melhorar a memoria, o rendimento, a performance sexual, suprimir o estresse, a ansiedade, regular a depressa o, aumentar a capacidade muscular, controlar a fome, a tristeza ou a alegria. Ou seja, com as exigências sociais, o corpo necessita de complementos químicos para cumprir suas funções diárias e ser uma máquina confiável (LE BRETON, 1999).

Assim, a doenca constitui uma situacao-problema que afeta a vida cotidiana, causando ruptura e desordem, exigindo dos indivi duos medidas normalizadoras, que lhes permitam enquadrar a experie ncia geradora de ruptura em esquemas interpretativos e reintegra -la, assim, a zona na o questionada da vida cotidiana (LIRA; NATIONS; CATRIB, 2004, p.150). Nesse aspecto, as relações saúde-doença estão conectadas aos contextos socioculturais. Isto significa dizer que os profissionais envolvidos na educação em saúde precisam desenvolver uma compete ncia cultural para ouvir as narrativas dos clientes e evitar os filtros dos esquemas de anamnese (BOEHS et al., 2007). Ou seja, aprender a ouvir livre de preconceitos os processos subjetivos que a saúde e a doença representam na experie ncia corporal de cada indivíduo influenciados pela sua cultura.

3 EDUCAÇÃO EM SAÚDE Somente são educativos os processos de criação de normas, de instituição de linguagens, de conceitualizações de formas de interação de adultos, crianças e tecnonatureza. A educação existe quando tem-se um projeto cultural singular. (DENIS; BIXIO, 1980, p.199) Um dos principais objetivos da educação em saúde é

permitir às pessoas definirem seus próprios problemas e necessidades. Partindo deste pressuposto, é fundamental que as informações sobre saúde difundidas em sociedade possibilitem uma conscientização coletiva para que, assim, problemas individuais e, logo coletivos, sejam resolvidos. Ou seja, é preciso compreender o funcionamento básico do corpo

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humano dentro de um contexto sociocultural para que o entendimento do processo saúde-doença seja completo. Desvendando significados, a antropologia da saúde tem abordado o feno meno da doenc a a partir de duas perspectivas: uma através do processo experimentado pelos doentes e a outra a partir da experie ncia de como os profissionais de sau de atuam e compreendem esta manifestação no exerci cio de suas pra ticas (LAPLANTINE, 1999).

De acordo com Gazzinelli et al (2005), a educacao em sau de deve apresentar uma articulac ao entre representacoes sociais e a experie ncia da doenc a em si. A representacao social incluirá uma análise tanto da dimensa o da experie ncia individual como da coletiva dos sujeitos com relação à saúde e a doenca. Desta maneira, a educação em saúde busca transmitir informações para que as pessoas possam, através dos seus recursos combinados com o apoio social, conhecer os seus problemas e decidir sobre a ação mais apropriada para manter uma vida saudável.

Neste sentido, entender o significado da palavra educação para logo compreender sua atuação em saúde, parece-me fundamental. O termo educação tem sua origem etimológica do latim educare que significa conduzir, criar, cuidar e alimentar, ou seja, vem do exterior, de fora. Contudo, também pode significar fazer sair, arrancar, extrair e portanto, provém do interior, de dentro. Diante dessas duas etimologias aparentemente contraditórias, acredita-se que o conceito de educação teve sua primeira definição associada a

um processo de ajuda externa164, assim o aluno era “sem luz” e o professor “professava” as suas teorias. Por outro lado, também criaram-se conceituações tratando a educação com um processo que se inicia a partir do sujeito que se educa através de uma condução de disposições já existentes (DOMINGUEZ, 1996, p.49).

No entanto, as duas contextualizações, uma externa e uma interna, poderiam responder a uma mesma realidade, pois em uma ação educativa é necessário tanto conhecer as disponibilidades pessoais do sujeito como o contexto sociocultural em que se está inserido. Além disso, esse processo deve ser contínuo. De acordo com a Unesco (1979):

O processo educativo transcorre ao longo da vida de um indivíduo de forma permanente, consistente na aquisição de habilidades, valores, desenvolvimento de atitudes e conhecimentos provenientes da vida diária, das influências educativas e recursos do seu próprio meio ambiente, provenientes da família, dos vizinhos, do trabalho, da recreação, dos meios de comunicação e em geral do seu ambiente social. (UNESCO, 1979, p.91).

Através das suas conferências, a Unesco discute

aspectos relevantes no âmbito da educação, como por exemplo, o direito de todos à educação obrigatória e gratuita. Também debate temas como a importância da universalidade, a igualdade de oportunidades, o direito à participação e inclusão e o direito a uma educação de qualidade permitindo um aprendizado por toda a vida. Com

164 Nassif, 1975, p. 6 citado por Dominguez, 1996, p.49

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este fim, o informe elaborado pela Comissão Internacional sobre a educação do século XXI para a Unesco se baseava em quatro pilares: Aprender a conhecer; Aprender a fazer; Aprender a viver juntos e Aprender a ser (UNESCO, 2005, p.30-37).

Além disso, tentando aprimorar aspectos educativos surgiram novas formas de educação: a informal, a popular e a aberta. Ambas possuem o objetivo de integrar toda e qualquer pessoa, necessitando, assim, de profissionais diferenciados e capazes de adaptar seu ensino para todas culturas, ambientes e sociedades (FREIRE; NOGUEIRA, 1993).

Nesta linha, Dominguez (1996) também escreveu sobre os espaços educativos e os três tipos de educação: a formal, a não formal e a informal. Para ele, a educação formal responde a modelos de educação estruturados, intencionais e institucionalizados. Já a não formal faz referência a uma atividade educativa organizada e sistemática que é levada a cabo fora do sistema escolar ou formal. Por outro lado, a educação informal refere-se ao processo de toda uma vida a partir do qual cada pessoa adquire e acumula conhecimentos, habilidades, atitudes através da experiência diária e pela exposição ao meio ambiente (DOMINGUEZ, 1996, p.136). Assim, é no sentido de adaptação sociocultural da educação que as ciências sociais e a antropologia entram em cena.

Atualmente, as ciências sociais buscam compreender as diferentes dimensões que o processo educativo abrange. Os primeiros aspectos analisados são fatores psicobiológicos ou internos como o desenvolvimento interno, a maturação, o

crescimento e a personalidade. Já a segunda dimensão aborda os aspectos socioculturais como a interação com o meio, a história de vida e a socialização do indivíduo. Contudo, como os fatores são encontrados em ambas dimensões, as ciências sociais devem observar as duas características para que a educação em saúde seja analisada globalmente e de forma mais integradora.

Além dessas dimensões observadas, é importante ressaltar que existem dois modelos diferentes de educação em saúde (SILVA et al., 2010). Um mais hegemônico que capacita o educando no autocuidado através de uma transmissão vertical do conhecimentos e outro que se baseia na relação dialógica com a população através de uma transmissão horizontal ou também chamada de educacao popular. Para os autores, o desafio da atualidade é fazer com que a formação de novos profissionais da saúde seja voltada para a educação popular, através do diálogo e trocas de experie ncias entre os profissionais e os educandos.

No estudo de Bricen o-Leon e Vlassof (2000) foram elaboradas teses sobre educac ao em sau de com a finalidade de fomentar a participacao comunita ria. Ao descreverem os fatores de intervenção das doenças tropicais, apontaram que se conhecem muito sobre como combater o parasita e o vetor, porem muito pouco sobre o ser humano que deveria ser o foco de todos os estudos. Como a educacao em sau de é um campo multifacetado, para o qual convergem diversas concepcoes que espelham diferentes compreensoes do mundo demarcando distintas posic oes poli tico-filosoficas sobre o homem e a sociedade. Também reflete no seu modo de

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pensar na saúde e na doença devendo estas serem referências nas estratégias de educação em saúde em todo o desenvolvimento do ser humano, seja na cura, na prevenção ou na promocao (MACHADO et al., 2007).

Considerando a prevenção e a promoção em saúde como partes essenciais da educação em saúde, são prioritárias as ações para a sua conservação. Conhecer os diversos fatores que podem influir na preservação de uma vida saudável associados aos aspectos sociais, culturais, econômicos, biológicos e ambientais são os principais pontos a serem analisados, pois o indivíduo responde de acordo com o meio em que vive. Desta maneira, entender os aspectos simbólicos envolvidos nos cuidados do corpo são primordiais já que interferem de maneira decisiva na saúde coletiva e individual.

A educacao em sau de no processo de conscientizac ao individual e coletiva de responsabilidades e de direitos a sau de, estimula também às acoes que, geralmente, atendem aos princi pios de Atenção Primária em Saúde (APS) e também aos do Sistema Único de Saúde (SUS) do Brasil. A universalidade, a equidade e a integralidade são as bases constitucionais deste sistema que junto com a regionalização, a descentralização e participação da população, busca promover o direito à saúde para todos (LEI n. 8.080, 1990). A partir deste enfoque, a educação em saúde visa promover, previnir e tratar através da eleição de estrate gias dida ticas que conduzam a uma “transformacao” dos indivi duos socialmente inseridos no mundo, ampliando sua capacidade de compreensa o da complexidade dos determinantes de ser

sauda vel ou não (MACHADO et al., 2007). Porém, respeitando seus costumes, valores e crenças.

Assim, de maneira resumida, se pode dividir a educação em saúde em três etapas. A primeira busca o desenvolvimento de uma consciência social. Segundo Paulo Freire (1990, p.85), esta conscientização só existe quando os homens, não mais receptores, mas sujeitos do conhecimento alcançando uma consciência crescente tanto da realidade sociocultural que dá forma a suas vidas, como de sua capacidade de transformar essa realidade. Para ele, o educador, e neste caso o profissional em saúde e também o antropólogo, deve conhecer a realidade na qual estão inseridos os educandos e o processo educativo só é efetivo se o conhecimento compartilhado é significativo para todos os atores envolvidos. Ou seja, esta é a etapa crucial para interpretar o comportamento individual acerca da realidade social para, enfim, compreender a construção da identidade coletiva compartida que afeta a saúde e as representações da doença.

O segundo passo, é organizar as informações obtidas na primeira etapa para desenvolver estratégias de educação em saúde. O conhecimento prévio do grupo em questão facilitará a escolha do melhor método para transmitir as mensagens de saúde sem ser autoritariamente. A última etapa da educação em saúde é a aplicação e a gestão do planejamento objetivando transformar a realidade em saúde. Portanto, é a fase fundamental, onde todas as expectativas para a adaptação dos hábitos e atitudes visando a melhora dos problemas deverão ser sanadas.

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A Organização Mundial da Saúde (OMS) elaborou um manual sobre educação sanitária para ajudar profissionais da saúde a fomentar a educação em saúde apropriada para cada grupo (OMS, 1989). Esta obra aborda diferentes formas de como estabelecer boas relações através de uma linguagem clara baseada no respeito, na observação e na escuta. Também trata de elementos de planificação e de métodos para auxiliar na difusão das informações apropriadamente. Estes elementos são baseados na elaboração de objetivos, na ação de coleta de dados, na avaliação dos resultados e na construção de métodos de ensino de acordo com a cultura da comunidade em forma de ensaio. Assim, a educação em saúde funciona de forma similar à antropologia aplicada, pois esta também busca através de suas investigações culturais, encontrar soluções práticas para problemas sociais e econômicos contemporâneos, inclusive no tocante da saúde (GUERREIRO, 2007; HARRIS, 2006; MAIR, 2007).

As técnicas para transmissão das ações em saúde e, também troca de conhecimentos com as populações, variam de acordo com os recursos disponíveis e com a forma de comunicação do grupo em questão. Entretanto, segundo a OMS (1989), as principais metodologias utilizadas são: cartazes, filmes, revistas, debates, palestras, seminários e cursos. Também recomenda-se a utilização de provérbios, fábulas, contos, canções, fotografias e materiais de demonstração que auxiliem no entendimento do assunto de maneira lúdica através de suas próprias crenças. Ressalta-se, também, que a linguagem deve ser simples e de acordo com o nível de conhecimento do grupo. Os meios de comunicação

como rádios, televisão, jornais e internet também podem ser utilizados como ferramenta de ensino. Mais uma vez, é importante destacar que os meios de transmissão das informações dependerão sempre de cada grupo.

Além disso, Denis e Bixio (1980) consideram fundamental que a educação e saúde e, principalmente, os conhecimentos sobre o corpo sejam cada vez mais lúdicos, começando dentro do espaço escolar. Ele considera a educação física umas das primeiras ferramentas para a consciência do corpo através da psicomotricidade de Piaget, porém crítica a pedagogia dirigida e institucionalizada que busca um corpo político ensinado. Para ele, a medicina pode provocar receios, pois apela a uma visão protetora do corpo, convertendo-o em objeto de prescrições moralizantes. Portanto, deve-se buscar uma educação em saúde pedagógica, porém mais informal, com representações multidisciplinares de médicos, antropólogos e professores, evitando, assim, a distância do grupo com o profissional envolvido.

Desta maneira, torna-se fundamental para o profissional que trabalha na educação em saúde conhecer o contexto sociocultural da população em questão para, assim, atender as necessidades básicas eficazmente. De acordo com Ghisleni (2010) este profissional precisa desenvolver o conhecimento contextual de onde se propõe a atuar e ainda utilizar e desenvolver o conhecimento reflexivo para então ser capaz de articular os diferentes saberes e poder transformar-se em um facilitador do processo de autocuidado sem assumir uma figura autoritária de imposição de determinados

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saberes científicos. Sabe-se, contudo, que como os hábitos e crenças fazem parte da vida das pessoas pode ser muito difícil mediá-los. Para isto, se necessita muita sensibilidade e preparo para transmitir aos indivíduos a informação de que certas atitudes podem ser prejudiciais à saúde, sem desrespeitar os seus saberes, experiências, sentimentos e simbologias.

Partindo deste pressuposto, a educação em saúde buscará analisar os hábitos que estejam afetando negativamente a saúde através de um trabalho trans, inter e multidisciplinar entre médicos, antropólogos, profissionais e agentes de saúde. E, logo, todos juntos reflexionarão para formular soluções possivelmente efetivas, mas que evitem que ocorra uma mudança brusca de crenças e valores nas comunidades. Mercer (1986), apontou uma caracteri stica comum a me dicos e cientistas sociais que é a necessidade de denunciar, conhecer e contribuir para a soluc ao dos problemas me dico-sociais através de um modelo da histo ria natural da doenc a. Para este fim, é importante que os profissionais criem um sentimento comunitário marcado pela convergência de interesses, necessidades, valores e responsabilidades compartidas com outras pessoas que convivem dentro de um mesmo espaço (KISNERMAM, 1984, p. 70)

Portanto, para uma melhor eficácia das mudanças, ou melhor dizendo, das adaptações de comportamentos dentro dos grupos, necessita-se saber como as pessoas serão orientadas nesta ação. Ou seja, a transformação de seus hábitos e dos comportamentos devem ser planificados com

uma grande sensibilidade, para que sejam transmitidos naturalmente, sem mudanças bruscas ou desrespeitosas na vida cotidiana e sem interferência nos seus valores, crenças e costumes. Assim, os profissionais envolvidos na educação em saúde precisam ter uma disposição para observar, escutar, comunicar de forma clara sem preconceitos e devem buscar integrar o grupo de maneira participativa. Essa transformac ao deve ser espontânea e não impositiva seguida de acompanhamentos antes, durante e posteriores de todas as modificações geradas na vida cotidiana, para assim se assegurar que os objetivos foram alcançados de forma positiva e que não causaram prejuízos socioculturais.

4 O ANTROPÓLOGO NA ÁREA DA SAÚDE

Em uma palavra, o ofi cio do antropo logo teria como principal caracteri stica a capacidade de desvendar ou de interpretar evide ncias simbo licas. (Oliveira, 2007, p.10)

Segundo Harris (2006, p.2), a antropologia é o estudo da humanidade, dos povos antigos e modernos e de seus estilos de vida. Além disso, como este campo é demasiado amplo, a antropologia se divide em diferentes linhas que abordam os variados aspectos da experie ncia humana. Para o autor, de uma maneira resumida se pode segmentar a antropologia em quatro grandes grupos: a antropologia cultural, a arqueologia, a linguística antropológica e a antropologia física. Antropologia cultural, ou social, se ocupa do estudo da descrição e interpretação das culturas, ou seja,

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das tradições, costumes, hábitos, valores e símbolos aprendidos no passado e no presente através de comparação e etnografia. Já a arqueologia busca vestígios de culturas passadas para desvendar os mistérios da evolução humana. Já a linguística busca reconstruir a história do desenvolvimento das línguas e sua influência na vida e nas culturas e a antropologia física que se fundamenta na origem animal e na natureza biologicamente determinada do ser humano.

Neste caso, focaremos nossa atenção para antropologia cultural e social que englobam outras tantas sublinhas, como por exemplo, a antropologia aplicada, a urbana e a da saúde. Como este estudo trata da educação em saúde nos limitaremos em abordar a antropologia da saúde, do corpo e da educação. Antes disso é importante destacar como e onde o antropólogo pode atuar, para assim, compreender o seu papel dentro da área da educação em saúde.

De acordo com Oliveira (2007), o trabalho do antropologo esta marcado pelo foco em situac oes sociais empi ricas concretas, e bem delimitadas geograficamente, mas por meio das quais sa o discutidas questo es de maior abrange ncia, em sintonia com aspectos universais da vida social. Portanto, se busca entender de uma maneira universal as visões individuais e coletivas a partir de uma interpretação holística, ou seja, observar como as diversas sociedades se vêem e qual o significado simbólico de suas atitudes, sem

etnocentrismo e comparando-as com outras (DUMONT, 1985, p.201-236).

Além disso, uma das características do antropólogo é a sua prática no trabalho de campo e na etnografia. Malinowski (1976), em Nova Guiné, e Boas (1883/2004), com os esquimós, foram os primeiros antropólogos a realizarem um trabalho de campo que se baseou na imersão do antropólogo durante um período de tempo em uma comunidade ou grupo de estudo para conviver, observar, escutar e dialogar com o outro. Segundo DaMatta (1981) o antropologo precisa, num primeiro momento, fazer um esforco para transformar o exotico em familiar, para dar um sentido lo gico e coerente a s pra ticas que esta observando. Assim, esse estranhamento faz com que o antropólogo se liberte de qualquer preconceito e esteja aberto a vivenciar como um nativo, mudando também as suas antigas concepções e compreendendo as diferentes culturas. Lévi-Strauss (2003) também explorou essa transformac ao do exótico em familiar em suas interpretac ões antropológicas.

Resumidamente, o trabalho de campo seria a participacao do antropólogo na vida de um grupo para coletar informações que sirvam para a sua investigação (HAMMERSLEY; ATKINSON, 1994, p.3). Utiliza como ferramentas de trabalho um diário de campo, gravadores, câmeras de video e máquinas fotográficas quando lhe é autorizado. Posteriormente organiza seus materiais e descreve a sua experiência através da etnografia. Para Bazta n (1995, p.3), a etnografia é o estudo descritivo da cultura de

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uma comunidade ou de alguns de seus aspectos fundamentais através de uma perspectiva global de compreensão. Neste sentido, Clifford Geertz (1986), afirma que a escrita deve ser uma tradução formal das experiências vividas com o maior número de informações possíveis, ou seja, deve ser uma descrição densa.

Desta maneira, entendendo a antropologia como uma maneira de interpretar o mundo social, se observa a dimensão empírica e simbólica que existe no trabalho do antropólogo (OLIVEIRA, 2007). Podendo, assim, acessar às representac oes, às visões de mundo, aos valores e às crenças do grupo estudado pela conexão da história com a cultura e pelo ponto de vista do nativo. No entanto, a maioria dos antropólogos se encontram em atividades acadêmicas, porém existe um número crescente na área da antropologia aplicada nos diversos campos das relações humanas, inclusive na área da educação e na saúde (HARRIS, 2006, p.8). Neste sentido, a Associac ao Brasileira de Antropologia (ABA) 165 tem sido estimulada a ampliar o espac o de participacao dos antropologos que atuam fora da academia e, eventualmente, a rediscutir a definic ao de suas categorias de associado que aumenta a cada ano no Brasil.

Segundo Gusmão (2009) a existe ncia de um debate no interior da comunidade dos antropo logos, como a ABA, expoe uma preocupacao nos estudos antropolo gicos sobre a educacao. Para a autora, os programas de ensino e de formacao em diferentes a reas te m assumido a antropologia 165 Disponível: http://www.abant.org.br

como necessa ria, em raza o de seu escopo humanita rio e em raza o de seus me todos no campo das pesquisas, ou seja, as pesquisas etnogra ficas. Desta maneira, Silva (2001, p.9) afirma que a participacao de antropologos em diferentes projetos educacionais e em poli ticas educativas envolvendo os mais diferentes segmentos da populacao tem sido uma constante. E por que não incluí-los em projetos e políticas na área da saúde?

Contudo, Gusmão (2009) aponta que uma das dificuldades em torno de uma antropologia da educac ao no Brasil, é a ause ncia de antropo logos no campo do ensino e da pesquisa na a rea da educacao. Para a autora, o olhar para o ensino da antropologia não deve ser apenas em cursos de ni vel universita rio, mas também na Educac ao Basica a partir de conceitos antropolo gicos e dos temas transversais presentes nos Para metros Curriculares Nacionais (PCNs). Portanto, se deve buscar uma formac ao mais humanista utilizando a sensibilidade especial do antropo logo para compreender os aspectos da vida social, resgatar a cultura de modo crítico e, ainda, das pesquisas qualitativas e seu papel.

Assim, como os temas primordiais na educação em saúde se voltam para os hábitos de vida, como por exemplo, a alimentação, a higiene, o saneamento básico, a vacinação, as noções do corpo, de saúde e de doença. O antropólogo, familiarizado com o trabalho de campo, com as entrevistas, com a observação participante e com a etnografia coletará o máximo de informações acerca do grupo investigado.

Como o antropólogo possui um tato especial para a observação e a escuta, facilita, assim, a investigação do

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porquê as pessoas estão saudáveis ou doentes visando soluções para os problemas socioculturais envolvidos. Além disso, para que a educação em saúde seja efetiva, o antropólogo poderá investigar tanto os fatores ambientais e econômicos como também as crenças e os valores que influem nas atitudes, pois cada grupo social terá sua cultura refletida nas suas ações.

As ciências sociais no Brasil voltadas para a saúde tiveram seu primeiro trabalho em 1950, onde Nogueira escreveu o primeiro trabalho sociológico sobre a doença, principalmente sobre a tuberculose. Nessa época também, os antropólogos Charles Wagley e Kalervo Oberg associaram-se a projetos na area da sau de no Brasil (NUNES, 2006). Na década seguinte a Organizac ao Panamericana de Sau de (OPAS) já mostrava preocupação econômica no planejamento em saúde buscando estudos acerca do tema. Contudo, foi nos anos 70 que aumentaram significativamente os estudos sobre a organizacao das pra ticas de sau de e processo sau de-doenca, com base em abordagens das cie ncias sociais.

Gomes, Goldenberg e Marsiglia (2003), em revisa o sobre os encontros e congressos de cie ncias sociais em sau de realizados em 1993, 1995 e 1999, apontaram enfoques divididos nas áreas da antropologia, da sociologia e da epidemiologia. Na antropologia, destacaram-se temas ligados as praticas tradicionais e suas repercussões na racional medicina oficial. Estas pra ticas, designadas por “sistemas tradicionais”, passaram a ser referidas como “pra ticas alternativas” (p. 260). Além disso, Alves e Minayo (1994) e Canesqui (2003) publicaram reviso es detalhadas sobre a

producao em antropologia em saúde no Brasil, mostrando certa lentidão quando comparada com os Estados Unidos e Europa.

Arthur Kleinmann, me dico e psiquiatra, segue na antropologia da saúde a linha da fenomenologia interpretativa geertziana e o Interacionismo Simbo lico e apresenta um modelo denominado de Sistemas de Cuidado de Sau de. Em tal modelo, as atividades de cuidado a sau de sa o respostas sociais organizadas frente a s doencas e seus cuidados, e podem ser estudadas como sistemas de cuidado (BOEHS et al, 2007). Este modelo pode ser utilizado em políticas de educação em saúde onde o antropólogo contribuirá com suas interpretações na resoluções de problemas sociais relacionados à saúde.

Assim, dentro da educação em saúde, os antropólogo não devem apenas trabalhar com os aspectos da saúde e da doença, mas também com que temas como os cuidados com o corpo e a Atenção Primária em Saúde. De acordo com Bourdieu (2007), as noções de corpo são diferentes de acordo com o a classe social modificando a relação do indivíduo com seu próprio corpo. Para ele, quanto mais elevada a classe social maior será o interesse de cuidar e previnir o seu corpo. Por outro lado, as classes menos favorecidas pensam na força que o corpo pode proporcionar para o seu trabalho. Portanto, para as classes populares, procurar um médico pode ser o último recurso, pois interferiria nos seus dias laborais.

5 CONCLUSÕES

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O conceito de saúde e doença, bem como o engajamento nas políticas de promoção em saúde e nos tratamentos médicos dependem dos valores e crenças de cada indivíduo e também da sua família e da comunidade. A família é um fator decisivo na APS, pois escolhe o tipo de alimentação, a higiene e se irão ou não levar os seus filhos ao médico. Ademais, não é raro que as pessoas através de seus próprios atos possibilitem o desenvolvimento de doenças. Deste modo, o conhecimento dos motivos que levam as pessoas a adoecerem ou a prevenirem a doença pode facilitar na elaboração de estratégias e métodos de prevenção e promoção em saúde.

Como o antropólogo possui habilidades para compreender os comportamentos humanos, acredita-se que seja um profissional preparado para atuar de forma multi e transdisciplinar com os profissionais envolvidos da educação em saúde. Pensa-se, também, que através de seus conhecimentos poderá auxiliar de maneira importante na elaboração de estratégias e políticas de educação em saúde. Ou seja, a antropologia possui importantes nuances já que a observação, a escuta, o diálogo e participação são suas ferramentas comuns no seu trabalho de campo e poderão colaborar na interpretação das representações e experie ncias em saúde e doença dos grupos estudados.

Contudo, os profissionais deverão saber que a educação em saúde não poderá atrapalhar a rotina e nem modificar os valores do grupo estudado. Também deverão entender que não será fácil a tarefa de conscientizá-los a realizarem certas mudanças que estejam sendo prejudiciais.

Desta maneira, sugere-se que se deva começar uma educação em saúde desde a escola, com conteúdos inseridos dentro dos Para metros Curriculares Nacionais (PCNs) e ministrados por profissionais especializados e preparados com conhecimentos tanto de educação, saúde, como de antropologia.

Por fim, com as nuances antropológicas em educação em saúde não se busca ter um olhar impositivo e regulamentador para a medicina. Na verdade se busca uma consciência em sau de construi da sob os pilares da democracia, da autonomia e pelo respeito aos direitos humanos melhorando o Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro.

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ENDOCULTURAÇÃO: UMA ETAPA PEDAGÓGICA FRONTAL PARA REVITALIZAR CULTURAS: POR UMA SAÚDE CULTURAL ONTOANTHROPOS, BIOCRÁTICA

E SUSTENTÁVEL

Jaci Rocha Gonçalves166 Resumo: São reflexões praxiológicas sobre vivências universitárias exitosas junto a comunidades pluriculturais em situação de esquecimento ou vulnerabilidade sistemática nos últimos 45 anos de docência, mediações e interações. Com foco especial na recente vivência dos últimos 18 anos do programa de ensino, extensão e grupo de pesquisa Revitalizando Culturas da UNISUL-Universidade do Sul de Santa Catarina em Palhoça-SC, Brasil junto aos guarani-mbyá. Estudantes, docentes e participantes das comunidades excluídas fortalecem a saúde cultural ontoanthropo, biocrática e sustentável ao exercitarem de forma adequada a endoculturação como etapa pedagógica fontal para revitalizar

166 Jaci Rocha Gonçalves é graduado como teólogo e filósofo (PUC SP/MG). É mestre em Comunicação Social pelo CISOP, Roma. É mestre e doutor em Missiologia (Teologia e Culturas) pela Pontifícia Universidade Urbaniana (1986 e 1997). É professor da Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL) nas áreas de hermenêutica antropológico-cultural, ética na comunicação e experiência do sagrado na filosofia. É pesquisador do Núcleo de Pesquisa Revitalizando Culturas/UNISUL, nos projetos Mediações Culturais, Povos Originários e os eventos UniDiversidade, ReconheciNegro e Desafio Lixo Zero. É fundador de várias entidades filantrópicas e de trabalhos endoculturais junto a pessoas com deficiência, crianças de rua e povos originários. Atualmente reúne suas atividades na criação do IHS - Instituto Homo Serviens.

a cultura. Os acadêmicos crescem na arte de interagir e se habilitam na arte de realizar mediação intercultural adequada; os povos e grupos postos à margem no mundo globalizado constroem sua emancipação e garantem saúde cultural pela vivência do tripé: auto-estima, autonomia e sustentabilidade. Palavras chaves: educação cultural, participação endocultural, mediação.

Bom dia, Buenos dias, Good morning, Agujevete! É a primeira vez que compartilho um artigo e uma fala na academia com representação nacional e internacional. Daí muita emoção e preocupação em servi-los numa partilha adequada.

Faço-o em duas partes: uma narrativa praxiológica resumida de experiências acadêmicas e, segunda parte, o desdobramento do título em quatro lições extraídas e refletidas sobre essas vivências e, em específico, as do programa de ensino, pesquisa e extensão formativa Revitalizando Culturas, da UNISUL – Universidade do Sul de Santa Catarina. Em todas, nosso fio condutor é avaliar a medida de importância do aspecto endocultural nas relações culturais. Por ora, fiquemos com o conceito de relação endocultural como a tomada de consciência do valor de si como ser humano e de seu ethos cultural, quer seja de etnia ou grupo de pertença exitoso ou vulnerabilizado.

Estou com 65 anos de idade e nos últimos 45 anos tenho vivido momentos fortes com grupo de acadêmicos, colegas docentes e animadores de comunidades

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pluriculturais, em que o acento no aspecto endocultural tem se mostrado determinante para a construção da plena cidadania biocrática dos humanos e da natureza. A reflexão visa otimizar as relações por uma pedagogia cultural adequada no aprofundamento do tema central deste congresso: Educação, Ecoturismo e Cultura: desafios do mundo globalizado. Vamos, pois, à praxiologia, refletindo vividos históricos.

A primeira vivência é a lembrança das pessoas com deficiência mental no vale dos esquecidos em Piraquara (PR), quando por quase nove anos sistemáticos (1976-1984) foi despovoado um hospício onde uma população de 1200 pessoas empilhava-se em apenas 380 leitos numa dezena de pavilhões cercado de altos muros. No arco de tempo de apenas 15 anos, o hospício voltou passou a ser um hospital sem superpopulação e hoje se consolidou na modalidade de lares de pessoas com deficiência mental organizadas, no entorno de Curitiba e interior do estado do Paraná. Naquele vale do inferno os ditos “loucos” foram os sujeitos organizados que, unindo a equipes multidisciplinares e pluriinstitucionais, com acento na valorização da auto-estima e autonomia endocultural, protagonizaram a utopia factível da transformação de um anti-lugar em lugar vivível.

A segunda vivência é próxima do mesmo vale, no bairro Jardim Graciosa, do mesmo município de Piraquara (PR). Cerca de 1100 famílias foram obrigadas a deixar suas casas e seus terrenos já escriturados para obedecerem a uma nova lei ambiental de proteção de mananciais. Os terrenos e construções, embora legalizados, deveriam ceder espaço a

chácaras com 5.000 metros quadrados. A comunidade mudou, sim, mas dentro de um rígido processo de negociação diceológico e ético que garantia o direito adquirido de cada família. Durante cinco anos, equipes voluntárias organizadas de acadêmicos e docentes de cursos diversos e forças vivas endoculturais do Jardim Graciosa reivindicaram e garantiram um novo espaço, inclusive para os sem terra e os sem casa. Agora, após 40 anos, vivem com cidadania plena no município de Pinhais (PR).

Outros dois exemplos de vivência recentes são neste município de São José onde estamos e no bairro vizinho de Capoeiras, do outro lado do pequeno rio há cem metros deste auditório. São duas experiências também endoculturais: uma de crianças de rua e a outra de pessoas com deficiência também em estado de abandono. Em ambos se mantém um processo de organização há mais de 25 anos pela qualidade de vida auto-sustentável desses grupos vulneráveis: as crianças no Centro Educacional D. Orione e as pessoas com deficiência na Orionópolis Catarinense. Detalhe importante: em ambos, o exercício de reciclagem de resíduos sólidos – dito lixo - ajudou na sustentabilidade, algo inédito nos idos de 1987 e 1991 em termos de cuidado com a natureza buscando relações de sujeito-sujeito e sempre menos de sujeito-objeto.

Mas nesta incursão científica quero citar duas outras experiências exitosas de revitalização cultural que se processam atualmente, também elas animadas pelo apoio de universidades regionais públicas e particulares unindo o ensino e a pesquisa com a extensão formativas. O primeiro

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fato cultural é a luta pela cidadania universitária de pessoas cegas e com outras deficiências no estado de Santa Catarina, iniciada pelo programa Revitalizando Culturas desde o ano 2001. Criou-se depois departamento próprio na UNISUL com o nome de PPA - Programa de Promoção à Acessibilidade, em 2005. Nesse contexto, lembro dois exemplos em que o endocultural também foi determinante.

Jean Schutz, aluno de jornalismo do curso de Comunicação Social da UNISUL da unidade de Palhoça (SC), tornou-se o primeiro cego jornalista de Santa Catarina. Fez uma monografia praxiológica sobre a epopéia que foi conseguir o diploma universitário desde 2001. Apoiado nas leis, Jean pediu que a Universidade as obedecesse. “Foi o e-mail mais aparentemente mal-educado que recebi, mas que nos levou à consciência de obedecer à lei. Estou feliz porque você nos encaminhou para uma maior autenticidade e inovação,” disse o reitor ao participar da apresentação do TCC de Jean, seis anos depois. (SCHUTZ, 2005). E mais, em seu estudo, Jean dialoga na forma de pesquisa com os públicos que com ele conviveram no período da graduação através de minuciosa reflexão interativa com a diversidade constitutiva desses públicos colegas, docentes, gestores, familiares, entidades para cegos e autoridades internas da UNISUL.

Outro exemplo é de Fernando Camuaso Segundo, também pessoa cega que veio ao Brasil com apoio do governo de Angola (África) para adquirir habilidades na ACIC – Associação Catarinense de Cegos. Por iniciativa própria, Camuaso inscreveu-se como candidato a uma das bolsas de

estudo do Programa UNISUL 40 anos. Ganhou a bolsa e tornou-se o primeiro cego jornalista de Angola. Sua defesa de TCC foi intercontinental – Palhoça e Luanda, por skype – e versou sobre os direitos da pessoa cega aqui e em Angola. Foi notícia nacional em seu país. Depois que Fernando fez a desobediência civil de ingressar na universidade, o governo angolano, então, mudou a lei permitindo a quem quisesse, incluir também os estudos universitários além do aprendizado apenas de habilidades, em sua vinda ao Brasil.

A última vivência, ponderar alguns aspectos sobre a endoculturação realizada com os povos originários, em especial os guarani-mbyá, cujo coral Tapé Mirim (Pequeno Caminho) se apresentou ontem aqui no XXI Congresso Íbero-americano de Antropologia Cultural. Interajo com esse povo de sabedorias multimilenares desde 1991, no início da Orionópolis Catarinense, entidade civil sem fins lucrativos e com acadêmicos da UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina e desde 1998, com a UNISUL – Universidade do Sul de Santa Catarina. Hoje o povo originário guarani já se reorganiza com tal autonomia que não precisa mais de porta-vozes não-índios. É povo que fala por si mesmo e que luta juridicamente pela recuperação de terras como espaços indispensáveis para sua tekó, ou seja, aldeia com o mínimo necessário de espaço e condições para conviver com a mãe terra e a terra-colo, como denominam o terrenal. No próximo dia 8 de abril deste 2015, os primeiros acadêmicos dos povos originários de Santa Catarina, Laklaño/ Xokleng, Kaingang e guarani se tornam pesquisadores pelo curso de Licenciatura Indígena do Sul da Mata Atlântica, na UFSC, FURB e

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UNOESC. Um feito histórico porque repara séculos de extermínio; um fato político que nega as negações e também afirma saberes endoculturais, diria o saudoso antropólogo Darci Ribeiro (2000).

A performance de afirmação destes sujeitos da comunidade externa às universidades só se realiza enquanto fruto da maturação de um olhar endocultural que constata em sua própria cultura histórias de resistência à autonegação de valores próprios. Para estimular e qualificar essa maturação de relações, o Revitalizando Culturas se tem alicerçado no cultivo de virtudes fundamentais inerentes a uma prática educativa crítico-criativa e solidário-pluralista. É a vivência que se faz sob a inspiração da trilogia em vista da reexplicitação cultural: auto-estima, autonomia e auto-sustentação.

Essa trilogia estimula o exercício da plena cidadania endocultural porque fortalece a etno–autoridade política e, no caso dos indígenas incide na recuperação de terras nos moldes constitucionais - artigo 231 da Constituição Brasileira em vigor - como ação prioritária permanente. Neste sentido, as ações do programa de extensão e grupo de pesquisa Revitalizando Culturas procuraram o reconhecimento e garantia da instituição acadêmica e a possibilidade de estabelecer convênios e otimizar programas e projetos utilizando um contexto metodológico de interdisciplinaridade e interatividade.

Analisemos mais um aspecto dessa vivência virtuosa na aliança com o povo originário guarani-mbyá, ou seja, o que se desdobra da assistência à libertação por uma

resistência solidário e pluralista. De fato, o encontro da UNISUL com o povo originário guarani-mbyá de Palhoça, em 1998, foi a pedido do governo para socorrer o insucesso do FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador). A primeira ação prática foi socorrer e assistir com roupas, alimentos e promover as vendas de seu artesanato. Mas, em seguida, eles mesmos sugeriram outro caminho: gravar um CD.

Pareceu um momento do imponderável (MALINOWISKI, 1922), à primeira vista. No entanto, este caminho estético desencadeou, na verdade, um processo de resgate do ethos cultural (jeito específico de ser) deste povo e que prossegue até hoje. Um imponderável semelhante à flechada certeira de seus guerreiros. Na ocasião, a UNISUL soube ouvir, refletiu e foi para além do assistencial. Seguindo o tripé orientador explicado acima, acompanhou o paulatino soerguimento deste povo. Acolher o pedido de gravar um CD significou um caminho de revitalização profundo, ou seja, de permitir a reafirmação identitária da riqueza de sua diversidade cultural desde o ser ético deste povo reexplicitado em sua etnoestética.

Um exemplo etnográfico desta reexplicitação, entre tantos, são os títulos que deram aos próprios CDs desde a primeira produção em 1998: todos têm nos títulos a palavra sagrado (marae-ÿ) em língua autóctone. A partir daí e unida a outras entidades originárias e de outras comunidades167, a

167 Cf. O impresso do III CD “ mbyá” do grupo musical Nós Naldeia. Eles incluem música em guarani de autoria indígena parece que pela primeira vez no Brasil, com garantia de direitos autorais para os mbyá. É um grupo

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UNISUL promoveu a construção de infra-estruturas para a espiritualidade – a construção das Opy (casas de reza, de conselho político e de saúde holística); facilitou a promoção de cursos específicos para agregar valor à arte e artesanato – construiu as Ogá-guaxu – casas de vendas e trocas; Casas de Nutrição e Escolas aculturadas.

Na área de autonomia, participou da criação do CEPIN – Conselho Estadual dos Povos Indígenas e de Associações Indígenas para superar tutelas historicamente indevidas. Na região do litoral catarinense foram multiplicadas as aldeias. Elas se estendem desde o Paraguai e sul da Bolívia passando pela Argentina Ocidental, descendo até o Uruguai triangulando com o Brasil pelo litoral atlântico até o Espírito Santo. Nesse triângulo sagrado, os guarani seguem o mapa multimilenar de seus caminhos sagrados denominados Peabiru. As organizações deste povo têm adquirido consistência jurídico-contábil conforme se pode verificar em estudos nascidos da extensão e adquirindo cidadania reflexiva em Trabalhos de Conclusão de Curso (TCCs) e monografias como em ciências contábeis. Aí, por exemplo, se discutiu o perfil multicultural d’O contador pluralista, sugestivo título da monografia de Ivo da Silva Jr, após a surpreendente descoberta como acadêmico nas visitas de extensão da existência de uma etnomatemática guarani-mbyá.

No momento atual, a autonomia e emancipação guarani se mostram no processo de homologação que devolve a única terra tradicional guarani nas adjacências do que há dez anos interage e divulga temas das culturas indígena, negra e do popular regional.

Morro dos Cavalos, em Santa Catarina. É o momento mais difícil chamado desinstrusão de posseiros. Constitui-se assim um fato histórico inédito. Além disso, a devolução de outras áreas em florestas foram feitas na forma de aquisição com o dinheiro do Banco Mundial como medida mitigadora pela duplicação da Br 101. Também aí, foi oportuna a interação com a academia que lembrou o contexto de reparação pelo extermínio das populações originárias assumido pelo Banco Mundial que estava passando despercebido pelas autoridades não-indígenas.

A emancipação cultural se afirma, sobretudo, nas organizações endoculturais que reafirmam os valores como religião, sistema político, medicina, lazer e economia de reciprocidade. A qualidade de vida mudou porque o ethos cultural se recompôs. Ver os povos originários voltarem à terra-mãe, terra-colo, é como se retomassem a vida no próprio útero da vida bem na linha de cultura biocrática que acenamos no título desta reflexão. Os trabalhos desenvolvidos na área da saúde exigem tempo longo. Há fatos como o exemplo do primeiro Encontro de Parteiras Guarani, ocorrido no litoral sul de São Paulo, em 2007, que confirmam a reciprocidade guarani. As parteiras guarani convidaram para participar apenas uma docente de naturologia, a profa. Marcela Flueti e uma acadêmica dentre todos os djurá (não-índios). Ratifica-se sempre mais que toda revitalização só é fecunda quando os sujeitos são assumidos como protagonistas no processo, ou seja, que tenham uma presença a partir do endocultural. Nesse caso exemplar, são os guarani-mbyá que sugerem, se organizam, escolhem o

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quefazer desde montar uma associação ou dar as cartas da programação decenal como esses dois exemplos histórico-cronológicos: Carta aos Governantes de 1999 e a carta que atualmente indica o itinerário da aliança que é a Carta Mais Dez: 2011-2020 com a lista de demandas no intercâmbio cultural.

Cabe ao Revitalizando Culturas, como ambiente de aprendizagem, promover mediações e estimular as interações. Todas as ações em todos os passos do processo demandam sutilezas e timing, ou, como dizem os gregos, o momento kairológico, o momento oportuno. Neste sentido, a pauta temática para a etnografia é o dia-a-dia, o cotidiano com seus imponderáveis; o que exige rigor metodológico constante na construção do acervo etnográfico pela coleta de informações audiovisuais – atualmente eles próprios fazem uso das tecnologias que facilitam a manutenção da oralidade. As coletas fotográficas, fonográficas transcritas e elaborações acadêmicas de viés etnológico que foram produzidos em artigos de jornal, sistematização de pesquisas no CNPQ em níveis de graduação, de mestrado e doutorado; publicação de autoria indígena a partir das etnografias como o livro Palavras do Xeramõi de Adão Karaí Tataendy e o rol de produções interdisciplinares e transdisciplinares. O grande volume de informações e de produções pode ser uma tentação ao desperdício das riquezas autóctones. Como antídoto, tem valido o apriori de não vivenciar situação sob a perspectiva de parceria, mas de aliança – cujo caráter de fidelização e continuidade lhe são inerentes.

Como conseqüência do processo, há um impacto econômico positivo: A realidade econômica das aldeias hoje em dia ainda é precária entre os guarani-mbyá. Parte da sustentação vem através de programas do governo, como por exemplo, merenda escolar, ajuda de ONGs, projetos ou doações espontâneas ou através de serviços de mão de obra desqualificada. O artesanato continua a alternativa mais consistente que as aldeias conseguiram para manter sua sustentabilidade econômica e, ao mesmo tempo, estético-religiosa. Toda a produção cultural etno-estética de CDs, DVDs, apresentação de corais, valor agregado aos artesanatos pelas etiquetas culturais atingem duas metas: fortalecem e divulgam a cultura e complementam a renda. A criação de etnoestruturas para educação, saúde e direitos políticos consolidam outra forma de reunir recursos endoculturais. Importa continuar as mediações em busca da emancipação através de produções científicas, embasando-as nas ciências.

Ser fiel a uma metodologia adequada que auxilie na ida a campo e sustente uma boa pesquisa etnográfica na qual o observador tenta ao mínimo produzir seu impacto e a atenção é levada à escuta imparcial. Todas as ações sejam planejadas e traçadas sob o tripé: autonomia, auto-estima e sustentabilidade; sempre a partir do que eles julgam como necessário.

A complexidade é constante e exige postura crítica para amenizar o impacto da mediação. O grupo de originários se revitaliza e se reafirma como grupo na mesma sociedade que o marginalizou; de outro lado, o povo brasileiro se percebe nos hábitos dos originários e consegue

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perceber a profundidade dessas culturas; e reconhece neste contexto as suas próprias raízes. O programa prepara também os impactos no colegiado, no mundo acadêmico realizando um permanente trabalho de mediação cultural, promovendo diálogo constante, nos moldes explicados acima como educação para relação de aliança, continuada e praxiológica.

A possibilidade de replicação em outras condições não se fecha no contexto histórico dos povos originários mas pode ser aplicado a outros grupos humanos reféns da falta de emancipação, autoestima, autonomia e sustentabilidade, desde que o processo mantenha os rigores científicos interdisciplinares e transdisciplinares.

Nessa partilha praxiológica sobre os 18 anos com os povos originários e outros, misturamos a um tempo descobertas e aprendizados multilaterais das subjetividades envolvidas. Os resultados aparecem em posturas de crescimento pluralista e consciência das dificuldades e possibilidades de crescermos também como mediadores culturais. Bem na direção daquela revolução do olhar descrita assim por Proust: "A verdadeira arte da descoberta não está em achar novas coisas, mas enxergá-las de maneira diferente." (Apud GONÇALVES, 2013A, p. 38). E a nós mesmos como educadores e aprendizes.

Diante desses resultados exitosos de experiências vividas por docentes, estudantes e comunidades, emergem quatro lições de leitura antropológico-cultural-praxiológica e que in brevis vos descrevo desdobrando os elementos do título.

1ª lição: Endoculturação como caminho pedagógico.

O foco maior é sobre a necessidade sine qua non de valorizar a Endoculturação como etapa indispensável do caminho pedagógico fontal no processo de educação e revitalização da cultura. As experiências resumidas acima são apodíticas no sentido de revelar que a etapa de endoculturação parece mesmo um caminho fontal de saúde. O recém-falecido, o ativista jesuíta das CEBs (Comunidades Eclesiais de Base) e antropólogo Marcelo Azevedo conceitua a endoculturação ou enculturação como “todo o processo pelo qual uma pessoa é introduzida à sua cultura e nela interage, assim como o termo paralelo – socialização – enfatiza a relação da pessoa no seu contexto social.” (AZEVEDO, 1986, p. 414). A participação efetiva do sujeito cultural nas buscas de seu grupo de pertença garante a transformação histórica porque neste envolvimento exercita sua pertença ativa e sua cidadania ativa e responsável. Não confundir com a inculturação que “é o processo de evangelização pelo qual a vida e a mensagem cristãs são assimiladas por uma cultura, de modo que não somente elas se exprimam com os elementos próprios da cultura em questão, mas se constituíram em um princípio de inspiração, a um tempo norma e força de unificação, que transforma e recria essa cultura.” (AZEVEDO, 1986, p. 415) Um processo de evangelização pelo qual se lança numa cultura a semente evangélica de modo que a fé possa nela germinar e desenvolver-se segundo o gênio próprio dessa cultura. A

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endoculturação é processo de retorno da cultura para sua própria originalidade.

Desta forma se torna conditio importante porque neste seu agir, liga-se visceralmente ao seu ethos cultural. Nosso sábio Marcelo Azevedo (1986) também aponta esse território como um espaço ético-filosófico de jeito de ser profundo do sujeito inserido em seu grupo, comunidade ou etnia. Assim, “o ethos cultural é o modo particular de viver e de habitar eticamente o mundo que uma comunidade histórica tem, enquanto tal, em sua história.” (AZEVEDO, 1986, p. 413). O ethos cultural assemelha-se a um DNA coletivo como um verdadeiro diferencial característico da sua diversidade cultural, de seu modo característico de ser na unidade histórica universal.

Em mergulhando para refazer seu próprio ethos cultural pelo exercício autônomo da endoculturação, o sujeito individual e seu grupo empreendem uma ação de fortalecimento e de saúde ética na fonte porque é como se o próprio povo se pegasse no colo e acreditasse na importância de seu jeito próprio de ser para si e para o Outro no mundo.

Nos exemplos históricos diversificados que lembramos aqui, a ação provêm de dentro do grupo porque consciente de sua dignidade de sujeito histórico indispensável. A própria interação dos que vem de fora para uma atuação solidária sob um propósito e ideal acadêmico, religioso ou ideológico, só é honesta eticamente se animar esse processo de fortalecimento endocultural que leva à revalorização da auto-estima e da indispensável visão da diferença como riqueza.

Facilitar esse mergulho em sua própria diferença identitária é, também, garantir as condições de emancipação simétrica nas novas relações com o Outro diferente cultural. Esse Outro, por mais ardiloso que pareça, não mais pode anular ou desvalorizar a relação adequada e uma interação saudável com a identidade cultural revitalizada, com o ethos cultural revigorado. Seja de uma cultura vulnerabilizada no grupo das vítimas estereotipadas como migrantes de periferia, doentes mentais amontoados em hospícios, crianças de rua, pessoas com deficiência em estado de abandono ou povos originário condenados sistematicamente ao extermínio. Assim, facilitar uma revitalização identitária, garantindo mais uma diversidade com seu ethos cultural próprio, é salvar no cenário das demais diversidades humanas mais um ethos social irrepetível e biocrático que é riqueza para todos.

2ª lição: O ethos cultural e a saúde ontológica.

Embora premidos pelas tiranias de tempo e de espaço,

não podemos deixar de fazer aqui um recorte de leitura metafísica sob o apoio da ontologia - a ciência do ser - para verificar qual o alcance de uma repercussão interativa quando visamos revitalizar um ethos cultural pelo processo da endoculturação. Vamos constatar que o ethos cultural e a saúde ontológica de todo humano estão constitutivamente ligados. Nosso apoio teórico aqui o filósofo espanhol, falecido aos 96 anos em 2011, Adolfo Sánchez Vásquez em texto de sua obra de maturidade Filosofia e Circunstâncias.

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Vásquez (2002) em sua fala na Universidade Autônoma do México que o acolhera em seu exílio, retoma Martin Heidegger, um dos fundadores do existencialismo, em que revê esse ponto chave de seu clássico Ser e Tempo de 1927: "Nur solange Dasein ist, gibt es Sein" ("Só há Ser enquanto o Ser-aí é"). Em sua Carta sobre o Humanismo, de 1946, Heidegger, o filósofo do ser, volta ao tema do esquecimento do ser refazendo seu conceito após a tragédia nazista e suas atrocidades. Sánchez Vásquez (2002) esclarece os estudantes que Heidegger mantém a primazia e transcendência do Ser, só que em novos termos. Vejamos: em Sein und Zeit (p. 212 apud SÁNCHEZ VÁSQUEZ, 2002) se diz com intenção e conhecimento de causa - há o Ser: es gibt das Sein. Este há, porém, não traduz exatamente es gibt. Pois o es que aqui gibt (se dá) é o Ser mesmo. O gibt (se dá) designa, não obstante, a essência do Ser, essência que dá, que outorga sua verdade. O dar-se a si mesmo ao aberto, por meio do aberto, é o Ser mesmo. Com a fórmula es gibt (se dá), Heidegger evita deliberadamente dizer que "o Ser é". Assim, a expressão de Ser e Tempo, antes citada, reformula-se agora nestes termos: "Só se dá o Ser enquanto o ser-aí é." Mas significa isso a afirmação da independência do Ser com o respeito ao homem? Vejamos novamente as relações entre o homem e o Ser.

O Ser, já nos disse Heidegger, é transcendente, anterior a todo desvelamento e a todo projeto do existente humano. Mas, por sua vez, não vem, não ilumina, não se deixa mostrar a não ser no ser-aí, isto é, no homem enquanto este assume sua ec-sistência. O Ser é sua própria iluminação mas só se

ilumina ao homem que, em sua existência extática, consegue corresponder. Neste sentido, pode-se até falar de uma dependência do ontológico ao ôntico (do Ser ao ente que é o homem), já que o Ser não é (ou, mais precisamente, não se dá) sem este ente privilegiado (o humano) que está à escuta de sua voz. Que o homem seja o "aí" do Ser significa, então, que é o ente pelo qual o Ser "se dá", se produz como iluminação.

Mas se o Ser é sua própria iluminação, o homem só é tal enquanto responde à verdade do Ser por ele desvelada. O que o define essencialmente não é, portanto, seu trato dos entes, mas sim o estar voltado para o Ser. Por isso, Heidegger vê na ciência, na técnica ou na prática, expressões do trato humano com os entes ou do domínio dos homens sobre eles, que implicam uma alienação ou esquecimento do Ser. (SÁNCHEZ VÁSQUEZ, 2002, pp. 386-387). Portanto, todos os humanismos, devem voltar sua centralidade para aquilo que o Ser é, no mais sagrado aí do Ser que é o humano enquanto permite ao Ser Mesmo o seu gibt - o sagrado do Ser enquanto ser que se dá - no seu aí, nesse território em que se comunica na sua voz que é o Dasein - o modo-de-ser-e-de-estar-no-mundo próprio do humano como ser-que-está-aí-e-sabe-que-está-aí -.

Observemos que essa consciência de permitir ao ser o seu gibt é constitutivo do ethos de todo humano, de seu jeito de ser específico; que o torna capaz de efetivar a unidade na diversidade que também o constitui e ao universo. Por isso, a relação com o sujeito cultural na endoculturação alcança raízes do essencial em nosso jeito humano de ser. Não se relacionar de forma coerente, significa contribuir para um desequilíbrio ontológico, ou seja, podemos abalar a essência

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da complexidade do Dasein. A ação cultural pode ser saudável ou mortal. Porque a humanidade do humano se plenifica nesta permissão que faz ao Ser de se “profanizar”, de se mostrar na consciência e responsabilidade pessoal e coletiva.

Sobre o objetivo de uma adequada pedagogia endocultural, arrisco a analogia com o rio que se religa à fonte e em cujo leito a vida se permite fluir porque o Ser vital se relaciona, se desvela, se mostra e se esconde no mistério a um só tempo tremens et fascinans (terrível e deslumbrante), de Mircea Eliade e Rudolf Otto (apud GONÇALVES-IUNSKOVISKI, 2015), um modo-de-ser cuja característica é se dar como ser enquanto o ser-aí é.

Por fim, vale lembrar a qual humanismo ou cientista cabe a responsabilidade de estimular essa manifestação do es gibt (do enquanto se dá do Ser). Vale, como caminho de resposta para nosso propósito a convocação de Mircea Eliade (1995, p. 20) quando avalia que “os modos de ser sagrado e profano dependem das diferentes posições que o homem conquistou no Cosmos. Por isso, interessam não só ao filósofo, mas também a todo investigador desejoso de conhecer as dimensões possíveis da existência humana.” E, em nosso caso, nesse congresso, a todo pesquisador/a interessado nas relações possíveis e adequadas que restaurem a saúde ontológica do ethos cultural especialmente nestas áreas da humanidade em que os sistemas, impiedosamente, mais produzem o matar que o viver tanto humano quanto ecossistêmico. Todo esforço para refazer essas relações

desumanas e de epidemia do não-ser é, pois, urgente urgentíssima. 3ª lição: A endoculturação e a saúde do humano como ánthropos.

Além de propiciar esta saúde ontológica do humano ao permitir o es gibt - enquanto o Ser se dá - no seu aí, ou seja, a sua pessoa como território do ser -, ocorre também refletir sobre a repercussão saudável que uma justa endoculturação pode animar no ser do humano enquanto Ánthropos, radical da ciência razão de ser deste congresso com mais de duas décadas. De fato, Άντθρωπος (ánthropos) é composto pelo prefixo Άν - todo aquele que – e do verbo Τρέφω (tréfo), que significa crescer. Assim, os antigos davam o nome de ánthropos ao ser humano como um ser que cresce, que desenvolve, é bem nutrido, educado, tem força e está disposto à interação cultural. É o oposto de átrofos, ser que está impedido de crescer, que definha, atrofia, vive da autonegação de si e de seu coletivo. Portanto, ánthropos é o humano enquanto ser que inclusive enfrenta o átrophos, a atrofia.

É útil para nossa pesquisa sobre a importância do exercício endocultural, observar, num estudo comparado, que esse mesmo sentido de ánthropos pode-se encontrar também entre os sábios latinos da Antiguidade de onde herdamos a palavra “humano”. Em latim homo, do substantivo humus, significa terra fértil. Assim, humus=homo=humano; portanto, os humanos nascem para ser como o humus, terra fértil. Como se vê pela filologia, os sentidos de homo e de ánthropos se

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encontram, embora elaborados em lugares e culturas diferentes. Em ambas as culturas, por esta arqueologia de saberes, o humano é visto como ser que cresce, ser que previne e supera atrofias, ser que nega negações e, sobretudo, afirma e troca as riquezas de sua diversidade cultural. (PEREIRA, 1990, p. 51).

As descrições anteriores de experiências culturais exitosas encontram aqui ponderações para além do ético-ontológico de estímulo à saúde do ontos - do ser enquanto se dá -, que integra assim todo humano porque vinculado, consciente de ser Pastor, Peregrino, Guardião e também o território onde o ser pode se dar, em nosso caso, fazendo história de relações culturais adequadas. Agora, pela análise filológica de ánthropos e de humus confirmamos que os exercícios de endoculturação se pautam como indispensáveis porque toda a relação com as culturas vulnerabilizadas, condenadas à autonegação, alguns exemplos dos quais vimos acima, exige a participação do sujeito como ser protagonista insubstituível de sua própria história. Não se trata, pois, de fazer para o Outro vitimado e nem em seu lugar, mas com ele.

De fato, é nesse aí, território chamado ánthropos, que o ser se ilumina, fecunda, pare o viver, cria, recria, passa no crivo e responde a suas necessidades iguais de modos sempre diferentes. É o cultural próprio do ánthropos, do homo. Encaminhar para este modo cultural de fazer significa também permitir que aflore o mais adequado modo do Ser enquanto se dá naquele humano individual com possibilidades de repercussão no coletivo.

Por isso, no caso do estímulo à endoculturação, o etnopsiquiatra François Laplantine (2005), fiel discípulo de Claude Lévi-Strauss, sugere que toda ação etno-profissional não se confunda, antes de tudo, com a transformação das sociedades com quem interage e sim, “auxiliar uma determinada cultura na explicitação para ela mesma de sua própria diferença.” Bem de acordo, pois, com a própria filologia de endoculturação – imergir para dentro do próprio ethos cultural, dando-se conta da riqueza de seu modo diverso e digno de estar-no-mundo-com-os-outros, mesmo em condições assimétricas contra as quais lutar.

Uma segunda sugestão indispensável para Laplantine (2005), enquanto escreve sua reflexão Aprender Antropologia no nordeste brasileiro, é ter bem clara a urgência de preservação dos patrimônios culturais locais ameaçados devido sobretudo às negações dos valores de certas culturas esquecidas. “A etnografia e a etnologia tem lutado contra o tempo para que a transcrição dos arquivos orais e visuais possa ser realizada a tempo, enquanto os últimos depositários das tradições ainda estão vivos. Mais que isso, importa, sobretudo, a restituição, aos habitantes das diversas regiões nas quais trabalhamos, de seu próprio saber e saber-fazer.” (LAPLANTINE, 2005, p.7)

Isto supõe uma ruptura de concepção assimétrica da pesquisa, baseada na captação de informações, numa etnografia sem etnologia e sem, por isso, a justa endoculturação. Não há, de fato, antropologia sem troca, isto é, sem itinerário no decorrer do qual as partes envolvidas chegam a se convencer reciprocamente da necessidade de não

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se deixar perder formas de pensamento e atividade únicas, dada a irrepetibilidade própria do cultural.

Neste contexto de reciprocidade cultural, por fim, Laplantine (2005) insiste que toda aproximação de pedagogia cultural, sobretudo no ensino e pesquisa imersos na extensão formativa, “deve não fornecer respostas no lugar dos interessados, e sim formular questões com eles, elaborar com eles uma reflexão racional sobre os problemas colocados pela crise mundial - que é também uma crise de identidade.” O trabalho endocultural “não é uma atividade de luxo, e nunca substitui os projetos e as decisões dos próprios atores sócio-antropológicos.” (LAPLANTINE, 2005, p. 8) Hoje, este tipo de pesquisa tem como vocação maior a de propor não soluções, mas instrumentos de investigação, que poderão ser utilizados como apoio para reagir ao choque da transculturação ou etnocentrismos que insistem na violência negadora das particularidades econômicas, sociais e culturais de um povo ou de um grupo específico.

Para completar essa terceira lição podemos novamente passar a palavra para a observação participante de Malinowiski (1977) quando alertava que o fato de conhecer bem a teoria científica e estar a par de suas últimas descobertas “não significa estar sobrecarregado de ideias preconcebidas. Se um homem parte numa expedição decidido a provar certas hipóteses e é incapaz de mudar seus pontos de vista constantemente, abandonando-os sem hesitar ante a pressão da evidência, sem dúvida seu trabalho será inútil.” (MALINOWSKI, 1977, pp. 17ss). É a visão que nos permitiu brindar com o conceito dos imponderáveis da vida real –

vivenciados no aparente e ingênuo pedido de gravar um CD na aldeia guarani-mbyá e que desencadeou um processo de volta ao ethos cultural pelo caminho revolucionário e criativo da etno-estética e que prossegue.

4ª lição: Saudavelmente biocrático-sustentáveis.

Neste vivido histórico tão rápido de quase 50 anos, o chão que sustenta e inspira as ações descritas, como um undeground comum, é a vida como valor. Por isso, o termo biocrático no título do artigo e ao longo destas reflexões. Em algum lugar de diálogo com Paulo Freire, cuja citação eu perdi, encontrei o termo biocrático. A filologia de biocracia tem estrutura do grego bios (vida) + cratos (governo). Portanto, biocrático é alguém que se deixa governar pela vida como valor, vida de todos e de tudo. Quando em antropologia cultural lemos nossos clássicos, percebemos o batimento de vidas em suas etnografias e etnologias. Desde Edward Tylor, Durkheim e Marcel Mauss; Bronislaw Malinowski, Evans-Pritchard, Franz Boas e Margaret Mead até Darcy Ribeiro, Claude Lévi-Strauss e Dina Dreyfuss, Roberto Damatta e Cliford Geertz – e uma imensa lista de trabalhadoras/es e pedagogos culturais famosos e anônimos, constatamos o quanto sobre o cuidado com a vida de todos e de tudo nos tem legado as escolas antropológicas.

Trata-se, na verdade, da autenticidade de toda ciência e ideologia porque é aí na instância do cuidado com a vida de todos os humanos e da natureza que deságua a finalidade delas. É uma exigência sempre mais comum. Neste sentido,

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vale retomar a pergunta para a ontologia de Martin Heidegger feita por Adolfo Sánchez Vásquez (2002): “Se Heidegger censurava em todo humanismo seu ‘esquecimento do Ser’, não se poderia censurar em seu próprio humanismo o ‘esquecimento do homem’, mas do homem real, tão monstruosamente rebaixado em sua dignidade, quase, quase diante de seus próprios olhos?” (SÁNCHEZ VÁSQUEZ, 2002, p. 394). Falava do contexto trágico do nazismo.

Podemos ouvir também o jovem pensador brasileiro, o publicitário Tiago Miguel Knob, dialogando com filósofos inseridos em contextos de ameaças à vida dos pobres mais pobres. A ética da vida aparece como sua justificativa para a dissertação de mestrado. Knob (2012, p. 12) escreve: “a obrigação de produzir, reproduzir e desenvolver a vida concreta de cada sujeito humano ético em comunidade é a referência última e o princípio fundamental deste trabalho.” E cita Enrique Dussel: “nosso trabalho começa quando vítimas de um sistema formal vigente não podem viver, ou foram excluídas violenta e discursivamente de tal sistema” (DUSSEL, 1998, p. 546). E valorizando a subjetividade endocultural, toma para si o ideal democrático participativo do vitimado, agora sujeito: “Quando as vítimas tomam consciência, se organizam, formulam diagnósticos de sua negatividade e elaboram programas alternativos para transformar tais sistemas vigentes que se tornaram dominantes, opressores, causa de morte e exclusão, se tornam sujeitos sócio-históricos, transformadores da realidade.” (DUSSEL, 1998, p. 546). E Dussel (1998) completa: “Para esses novos sujeitos sócio-históricos: movimentos sociais (p. ex.

ecológicos), classes (operários), marginais, um gênero (o feminino), raças (as não brancas), países empobrecidos periféricos, etc., a coação ‘legal’ do sistema vigente que causa sua negação e as constitui como vítimas, deixou de ser ‘legítima’. Toda ética é uma ética da vida, ou não é ética.” (DUSSEL, 1998, p. 546)

E sobretudo na dinâmica necrocrática do mercado, vale o testemunho de Franz Hinkelammert (2012), filósofo e doutor em economia, sediado há mais de 40 anos na periferia de San José da Costa Rica entre comunidades de empobrecidos, chamou a atenção para a necessidade urgente da sustentabilidade e o chamado “apartheid social provocado pela ‘irracionalidade da razão sistêmica’. E a maneira de conseguir isto é impedir você de viver. É uma racionalidade ocidental que é fatal e que nos está levando a um suicídio coletivo com apresentação de grandes êxitos de destruição incluindo também a morte de nosso planeta.” (HINKELAMMERT, 2012 apud FINN, 2014).

Franz insiste na ideia de que necessitamos de uma intervenção sistemática nos mercados para poder fazer compatibilidade do mercado com a vida humana. O mercado não pode destruir a vida humana do outro. Hoje temos o fenômeno da exclusão de metade das populações da terra pelo mercado; do mercado vem a destruição do ambiente. Uma sociedade onde todos e todas lutem pela vida de todos e também da natureza. (HINKELAMMERT, 2012 apud FINN, 2014).

Quanto mais reflito nas experiências narradas acima e vejo os sujeitos ocuparem virtuosamente o espaço virtual,

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como es gibt (enquanto nelas o Ser se dá), tanto egressos da universidade, colegas docentes e sobreviventes das revitalizações endoculturais, mais dou razão ao novo pedido de Knob (2015) em anotações sobre seu doutorado na Europa:

Tenho a impressão, talvez, de faltar um equilíbrio entre a necessidade de uma ciência social crítica de excelência, e o desenvolvimento daquela vida humana que essa mesma ciência social crítica dialoga ou tenta dialogar; por exemplo, [...] só poderei ter excelência em minha tese e paz em meu coração se ela desde já nos ajudar diretamente a impedir em São Miguel Arcanjo (periferia de São Paulo – Brasil) que a criança experimente o crack. Penso ser este um detalhe fundamental a ser debatido. [...] Acredito que daremos um salto ético e qualitativo em nossos estudos e reflexões, em nossa ciência social, quando conseguirmos aprofundar esta percepção. Não se trata de uma tarefa simples, porém, em minha opinião, é uma obrigação ética caminharmos nesse sentido.

Podemos, por fim, deixar falar biocraticamente sobre a

importância do endocultural a Julián Marías quando diz que “a experiência da vida é um saber superior, que pode colocar-se ao lado dos mais altos e radicais”. (FERRATER, 1986, p. 19) Que a experiência de vida é uma experiência que, ao ser apresentada verbalmente, é objeto de narrativa e não de explicação. É uma experiência que se faz na solidão, porém, fazendo um recuo sobre a convivência. É uma experiência num contexto – e numa história. É uma experiência sistemática, já que a vida humana é sistema. A experiência da vida é a forma não teórica da razão vital, quando se aplica à totalidade do real e não às coisas. Para Aranguren, há algo em

comum à experiência da vida e à sabedoria: o fato de serem vividas, ambas, a partir de dentro. Mas elas não são estritamente sinônimas: são somente experiência da vida e sabedoria da vida. A experiência da vida se adquire vivendo, porém, não significa que seja uma série desconexa de experiências: “a experiência da vida tem caráter unitário” (FERRATER, 1986, p. 1100).

Luc Ferry (2013) lembra que no século XX, o humano foi reconhecido como sagrado por lhe ser possível na iluminação do Ser acender a clareira do Ser nos entes que coexistem com a humanitas do homo humanus que emerge quando o humano vivencia sua identidade de servidor da verdade do Ser. Para nossa mundialidade que está sensível sempre mais aos indispensáveis ethos culturais das localidades. Construir um perfil de consciência da essencialidade do endocultural no ver e fazer do educador. Isso significa ajudar a crescer em auto-estima negando as negações de valores impostas à comunidade local. E mais, afirmando ações de reparação visibilizando o receituário de saberes e fazeres para campos vitais como culinária, medicinas, artes, fé, história com as características locais. Refazem suas posturas de autonomias retomando a riqueza de sua diversidade cultural nos mais variados aspectos – de crenças, mitos, arte, medicina, economia, cosmovisão, sistema jurídico, política e outros elementos. Esses aspectos são interligados pela educação endocultural que media o processo do dialético – avaliação crítica, num momento, ao analético – criatividade utopizada, noutro instante. O seu momento analético é lutar pela utopia do mais-ser adotando o

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tripé de toda libertação cultural: emancipar-se pela auto-estima, autonomia e sustentabilidade cultural. Termino com o testemunho de nosso colega Luiz Alberto Marques, doutor em antropologia cultural. Quando faleceu prematuramente, em fevereiro de 2010, deixou-nos, entre outras obras, o primeiro de seus cadernos: Antropologia Cultural aplicada à Pedagogia (2006). O pesquisador orienta alunos de vários campos de saberes para fazer etnografia, estimulando o protagonismo de sujeitos locais. Trabalhou na América Latina, Europa e África. “Eu gosto de ver meus alunos participando da Revolução do Olhar, em curso na humanidade”, repetia com freqüência nos encontros do grupo de ensino, pesquisa e extensão formativa Revitalizando Culturas/UNISUL.

Figuras 1 e 2- Prof. Dr. Luiz Alberto Marques com o cacique guarani-mbyá José Benite na nova aldeia Kury-i, de Biguaçu (SC), na visita etnográfica com acadêmicos participando da construção da Opy (casa de reza, de conselho político e de saúde holística). Coincidência histórica: a visita foi em setembro de 2007, mês da Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas, após 30 anos de luta junto à ONU.

Segundo o professor Luiz Alberto, o horizonte ético do pesquisador antropológico é focar as vivências comunitárias em sua micro-história, promovendo a importância da riqueza local no contexto da mundialidade. A necessidade desta revolução do olhar, privilegiando o que aparentemente não conta, é descrita como testamento no final da apresentação de seu livro. Parece fazer a simbiose de seu ethos de pessoa e de pesquisador/educador bem à altura da temática deste Congresso:

Vivemos o início de um novo século, num tempo de instantaneidades, modelos de sociedade ainda em construção (...) pouco se sabe sobre a história da formação dos nossos cotidianos o que em antropologia denomina-se “traços culturais” e com isso, por vezes, alimentamos estereótipos e preconceitos com relação aos ocupantes de determinados espaços. (...) Rever origens, perceber raízes, identificar modos de vida não representa um ´simples` exercício de olhar para outros tempos, mas sim de ir ao encontro dos primórdios de nossa identidade como grupo e como sociedade (...) e perceber que mesmo que as fisionomias e as paisagens mudaram, na essência ainda cultivamos costumes que fazem parte de uma espécie de legado cultural dos que aqui nos antecederam, a quem, mesmo imperceptivelmente, estamos ligados.

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A Antropologia Cultural, representada através dos Cadernos de Cultura, tem este propósito: buscar em tempos distintos mas num mesmo espaço de vida, modos de organização econômica, social, política e cultural propondo estabelecer pontes entre o presente vivenciado por todos nós e um passado, por vezes nem tão remoto como possa aparecer, mas que depositários de alguns valores e atitudes, que, mesmo inconscientemente, os reproduzimos em fragmentos. (MARQUES, 2010, 17 v. online).

Agradeço e desejo a tod@s os pedagogos culturais que prossigam nesse jeito biocrático que permite sempre mais o ES GIBT (O SER ENQUANTO SE DÁ) em seu Dasein. Com o fôlego e sabedoria semelhantes a um mestre de Salamanca cuja postura de escuta por 40 anos junto aos maias e astecas do México me tem inspirado: Bernardino de Sahagun. Exemplo de educador endocultural fez a escuta das ancestralidades daqueles povos originários numa histórica etnografia, cuja etnologia foi impedida de publicação por vários séculos. É por isso que ando atrás de seus escritos para aprender tamanho fôlego que desejo a todos nós docentes, acadêmicos e comunidades junto às quais somos Homo Serviens, biocráticos. Obrigado. Riassunto: Queste sono riflessioni prassiologiche su alcune esperienze esitose del vissuto universitário nel contesto delle comunità pluriculturali in situazione di olvido o di vulnerabilità sistemática negli ultimi 45 anni di insegnanza, mediazioni ed interazioni. C’è un punto focale nel vissuto recentíssimo degli ultimi 18 anni del programa di estensione ed il gruppo di ricerca Revitalizando Culturas e, dell´UNISUL - Università Del Sud di Santa Caterina, in

Palhoça, Brasile con il popolo guarani-mbyá. Studenti universitari, i docenti e partecipanti delle comunità scludenti rinvigoriscono la salute culturale ontoanthropo, biocrática e sostenibile attraverso l’exercizio adeguato dell’endoculturazione come una tappa pedagogica fontale per rivitalizzare la cultura. Gli universitari crescono nell’arte del fare interativo e se abilitano nell’arte di realizzare una mediazione interculturale adeguata; i popoli ed i gruppi esclusi del mondo cosidetto globalizzato costruiscono la sua emancipazzione e garantisconno loro salute culturale atraverso il vissuto di queste tre tentacoli: autoestima, autonomia ed sustentabilità. Parole-chiavi: educazione culturale, partecipazione endoculturale, mediazione. REFERÊNCIAS AZEVEDO, M.C. Comunidades Eclesiais de base e inculturação da fé. São Paulo: ed. Loyola, 1986. CAMUASO SEGUNDO, Fernando Domingos. O sujeito cego no mercado de trabalho: implicações legais/sociais da sua inclusão e participação. Palhoça: TCC de jornalismo – Unisul, 2010. DUSSEL, Enrique. Ética da Libertação no mundo da globalização e da exclusão. Petrópolis: Vozes, 1998. ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: na essência das religiões. Col. Debates. São Paulo: Martins Fontes, 1995. FERRY, Luc. Do amor: uma filosofia para o século XXI. Rio de Janeiro: DIFEL,

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2013. FREIRE, Paulo. Ação Cultural para a liberdade e outros escritos. 5ª. Ed. São Paulo: Paz e Terra, 1981. ________. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 25ª. Ed. São Paulo: Paz e terra, 1996. ________. Pedagogia da indignação. São Paulo: Ed. Da Unesp, 2000. ________. Conscientização. São Paulo: Cortez&Moraes, 1979. GONÇALVES, Jaci Rocha. Antropologia: ciência do ánthropos. Palhoça: Texto complementar de Antropologia Cultural UnisulVirtual, 2013A. ________. O cultural do ánthropos e as escolas antropológicas. Palhoça: Texto complementar de Antropologia Cultural UnisulVirtual, 2013. ________. Unisul - Povos Originários: Dez anos de uma aliança. WWW.unisul.br/sic. ________. Etnografias guarani 1998-2008. Programa Revitalizando Culturas. Palhoça: Unisul, 2008. GONÇALVES, Jaci Rocha – IUNSKOVISKI, Roberto. Filosofia da religião e filosofia cristã. Palhoça (SC): UnisulVirtual, 2015. HINKELAMMERT, Franz Josef. Crítica à razão utópica. São Paulo: Ed. Paulinas, 1994. KNOB, Tiago Miguel. Análise do Tratado Constitutivo da UNASUL sob o prisma de uma Ética da Vida. Uma reflexão filosófica social sobre um “dever ser” para os países integrados da América do Sul. São Paulo (SP): Dissert. Mestrado USP, 2012.

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ANTROPOLOGIA E EDUCAÇÃO: OLHARES CRUZADOS E INTERDISCIPLINARES

Donizete Rodrigues168 INTRODUÇÃO

O tema desta mesa de trabalho pressupõe três importantes conceitos que são, porém, muito complexos: educação, ciência e desenvolvimento social. Não estando habilitado para falar de ciência e desenvolvimento social (há colegas aqui na mesa e na audiência com melhor gabarito para o fazer), a minha (pequena) contribuição será sobre o conceito de Educação. Faço-o, principalmente, utilizando a minha experiência na lecionação de uma disciplina de pós-graduação, sobre Antropologia da educação, na Universidade de Brest (França), onde fui professor visitante (Rodrigues, 1998). NOTAS HISTÓRICO-TEÓRICAS Sobre este tema, ou seja, uma reflexão sociológica e antropológica da Educação, uma das orientações teóricas mais relevantes é a Escola Sociológica Francesa - com início em finais do século XIX e início do século XX - com grandes destaques para Émile Durkheim (1858-1917) e, posteriormente, Pierre Bourdieu (1930-2002), nomeadamente na construção do importante conceito de habitus.

168 Professor Associado com Agregação do Departamento de Sociologia da Universidade da Beira Interior e Investigador Senior do CRIA-Centro de Rede de Investigação em Antropologia. Portugal.

Nos anos de 1930, nos Estados Unidos, no contexto da escola de Cultura e Personalidade, a antropóloga Margareth Mead (1901-1978) faz da educação objeto de estudo privilegiado. Com uma preocupação educacional-pedagógica, na sua etnografia, buscava entender - tanto no contexto das sociedades primitivas (com a valorização da oralidade na transmissão do saber) quanto nas sociedades complexas (no caso a sociedade norte-americana), como valores, gestos, atitudes e crenças eram inculcados nas crianças pelos adultos, com o objetivo de formá-las para viver dentro da sua sociedade. Com um grande interesse na relação entre Antropologia e Psicologia, estudou as formas de aprendizagem existentes, os modos de transmissão de conhecimento das gerações mais velhas para as mais novas e a própria formação da personalidade (individual) e das ditas “personalidades culturais” (Mead, 1936). Na década de 1960, a Antropologia, com a “morte do primitivo”, perde o seu objeto próprio de estudo - as sociedades ditas primitivas (sem escrita) - entra em crise e retorna a casa, ou seja, aos países centrais (Europa e Estados Unidos) produtores de teorias antropológicas. Escrevendo sobre o lugar da Antropologia, Claude Lévi-Strauss (1908-2009), pensador francês com grande influência na formação das ciências sociais no Brasil, explica que a Antropologia emerge de uma forma específica de colocar problemas - no início a partir do estudo das chamadas sociedades simples - tendo no seu desenvolvimento se voltado também para o estudo das sociedades complexas, com o sentido de entender a cultura e a vida social (Lévi-Strauss, 2011).

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No início, como uma ‘ciência das sociedades primitivas’, a Antropologia praticamente não abordava a questão da educação. Mas esta situação muda com o retorno a casa, ou seja, com o estudo das sociedades complexas, exigindo, para isso, uma forte aproximação com a Sociologia e a inevitável releitura das obras de Durkheim. A ANTROPOLOGIA DA EDUCAÇÃO

Esta disciplina surgiu na década de 1960 e, como vimos, fortemente influenciada pela Escola sociológica francesa e, principalmente, pela escola antropológica culturalista norte-americana. Na década de 1970, ela enveredou com determinação nos estudos sobre educação, com trabalhos etnográficos sistemáticos. O enfoque atual da Antropologia da educação são as instituições educativas como palco de fenômenos culturais. A Escola é um importante meio de acesso aos valores abrangentes da sociedade, dada a função de transmissão de valores, própria do sistema escolar, examinando os conflitos de cunho étnico e cultural que ocorrem na sociedade, ou ainda, investigando os processos de aprendizagem e os efeitos do ensino em contextos multiétnicos e multiculturais.

Esta disciplina estuda a dimensão social e, particularmente, a dimensão cultural do fenómeno educação. Mas, atenção. Quando os antropólogos falam de educação, não estão a falar de processos formalizados de ensino, tema tão caro à sociologia, mas sim de processos sociais de aprendizagem. Não podemos esquecer que a educação apresenta-se de maneira diferenciada em todas as sociedades

do mundo, ou seja, há diferentes formas culturais de transmissão de saber. Neste contexto, um conceito fulcral que devemos entender é o que é educação? O CONCEITO DE EDUCAÇÃO

Para abordar o conceito de Educação, devemos, em primeiro lugar, dar voz a quem sabe. Vou então recorrer a um clássico da Sociologia - o mestre Émile Durkheim. Para este sociólogo francês, a educação consiste numa socialização metódica da nova geração pelas gerações adultas. É desta forma que a sociedade se forma e se reproduz ao longo do tempo, que constrói a sua memória coletiva - processo denominado de reprodução social (Durkheim, 1922).

Como vimos, Durkheim identifica educação com socialização ou endoculturação (no sentido antropológico), enquanto ação unilateral dos velhos para os novos e enquanto predomínio do social sobre o individual. Portanto, educar envolve uma geração de adultos que sabe, outra de jovens que aprende e um processo de aprendizagem entre eles; o problema é entender esse processo e é aqui que entra a Sociologia e a Antropologia da educação.

Devemos agora atualizar o discurso e, para isso, vamos recorrer a um outro famoso membro da escola sociológica francesa: Pierre Bourdieu. Influenciado, principalmente, pelas suas reflexões sobre as contribuições sociológicas de Karl Marx, este antropólogo e sociólogo francês afirma que os valores e a reprodução do conhecimento não são consensuais na sociedade moderna. É preciso compreender as relações

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existentes entre aquilo que a escola, enquanto instituição oficial, valoriza e ensina e os objetivos e a ideologia de quem está no poder. O que Bourdieu está a dizer é que não podemos esquecer que a questão do poder desempenha um importante papel no processo educacional e que o ensino preserva a desigualdade social. Considerando que há desigualdades de poder na interação ou relação social, não há neutralidade ou independência na educação, esta terá sempre uma intencionalidade, uma tentativa de moldar o outro (Bourdieu, 1998).

Outra ideia defendida por ele é que as ações pedagógicas exercidas pela família e pela Escola, às vezes não são complementares, mas sim conflituosas, pois, nesses casos, há um distanciamento muito grande entre a socialização, no âmbito restrito da família - o que Bourdieu denomina de pedagogia particular - e o ensino formal, intencional e organizado, que é a Escola. Outro importante conceito que deriva da discussão sobre educação, no qual Bourdieu tem também um papel de relevo, é o de habitus. - O conceito de habitus. Desenvolvido na Filosofia por Aristóteles (século IV a.C) e na Teologia por São Tomas de Aquino (século XIII), o termo habitus é utilizado pela primeira vez na sociologia por Durkheim (1922), para significar as competências adquiridas pela criança no decurso da sua educação ou socialização.

Seguindo Durkheim, para Bourdieu (1992) habitus é um instrumento conceptual que auxilia pensar a relação, a mediação entre os condicionamentos sociais exteriores e a

subjetividade dos sujeitos. É um sistema que envolve maneiras de sentir, pensar, agir, que são interiorizadas e incorporadas pelos indivíduos, em função das suas específicas condições de vida e trajetórias pessoais. Embora seja visto como um sistema engendrado no passado e orientando para uma ação no presente, é um sistema em constante reformulação; está, portanto, em constante construção ao longo do tempo. No sentido antropológico, o habitus refere-se às práticas e ações próprias de uma cultura. É uma noção que auxilia a pensar as características de uma identidade social, ou seja, é uma matriz cultural que predispõe os indivíduos a fazerem suas escolhas no contexto do grupo/sociedade onde está inserido. Aplicado ao processo educativo, habitus refere-se às disposições duráveis, matriz de percepções, juízos e ações que configuram uma "razão pedagógica", ou seja, à lógica e às estratégias que uma cultura/grupo desenvolve para transmitir seus valores. Bourdieu (1998) considera que o estudo do ‘habitus’ permite não somente entender os comportamentos individuais, como mostrar de que forma os modelos de comportamento são interiorizados pela educação, participando assim na reprodução social. Remete para as aprendizagens dos modelos de conduta, dos modos de perceção e de pensamento, adquiridos durante a socialização, onde a instituição escola tem um papel muito importante. - Antropologia da educação e diversidade cultural

Após esta (breve) discussão teórico-conceptual sobre Antropologia da educação e habitus, é pertinente voltarmos

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agora a atenção para a questão da educação e diversidade cultural; como exemplo, abordarei o caso dos ciganos no contexto educacional da sociedade portuguesa.

Partindo do pressuposto que a Antropologia da educação está orientada também para o estudo dos grupos étnicos, através da sua inclusão (ou não) numa determinada sociedade, o objetivo aqui é, a partir de uma reflexão teórica e conceptual de educação, discutir o modelo educacional multicultural da sociedade portuguesa, realçando um estudo de caso resultante da minha etnografia: a comunidade cigana. A minha discussão é baseada nas ideias de Pierre Bourdieu, nomeadamente no seu livro coletivo La Misére du Monde (1993), onde fala do sistema educacional oficial como forma de inclusão/exclusão social.

Em primeiro lugar, vejamos o modelo bourdiano de topologia social aplicado à situação da sociedade portuguesa. Na lógica da topologia social, o espaço geográfico é socialmente hierarquizado: centro/periferia; zonas urbanas ricas/zonas urbanas pobres; população pobre, espacialmente concentrada (enclaves étnicos), a viverem em zonas urbanas degradadas e “guetizantes” e em péssimas condições habitacionais; está é a situação predominante das minorias étnicas em Portugal, nomeadamente os ciganos e imigrantes oriundos de países africanos de língua portuguesa. Seguindo ainda as ideias de Bourdieu, há nas sociedades contemporâneas uma dualidade de relações no sistema educacional, materializada da seguinte maneira: a) sociedades multi-étnicas-culturais heterogéneas, com sistema oficial de ensino homogéneo e b) a ideia de que quanto maior o

capital simbólico-económico maior o sucesso escolar - e o seu contrário. Vejamos o caso de Portugal. - Escola e multiculturalismo em Portugal: o caso dos ciganos

Devido à grande diversidade étnica da sociedade portuguesa, nomeadamente a partir de finais da década de 1980, com a entrada massiva de imigrantes - facto associado à presença de uma expressiva comunidade de ciganos (30-50 mil indivíduos), presente em Portugal desde o século XVI - o governo português criou, em 1991, o Secretariado Coordenador dos Programas de Educação Multicultural. A ideia era criar um grupo de estudo multidisciplinar (com uma expressiva participação de antropólogos e sociólogos) sobre esta recente diversidade étnica e cultural na sociedade portuguesa e tentar encontrar/propor um modelo educacional adequado/adaptado a esta nova realidade. Resolveu o problema? Então vejamos os dois (antagónicos) modelos:

O modelo educacional público, através da classe de professores, apresenta conteúdos programáticos e pedagogias predominantemente orientados para crianças brancas, de classe média, meio urbano e de confissão católica. No modelo (cultural) de aprendizagem cigano, há a categoria de educadores informais: avós, pais e irmãos (mais velhos) e a valorização da oralidade em detrimento da escrita. Numa perspectiva antropológica, há ainda a questão cultural da denominada ‘liberdade cigana’: a não valorização da escolaridade a partir do 4º ano e o abandono da escola. No caso das meninas acresce a proibição de se misturar com os

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meninos após a menarca (1ª menstruação), por volta dos 10-12 anos de idade, e do casamento precoce. A comunidade cigana apresenta ainda um alto grau de pobreza, de discriminação social e de iliteracia no contexto familiar.

Uma das consequências desta situação é o latente conflito entre esses dois modelos. No “modelo cigano”, a escola é considerada por estes como um ambiente hostil, não há integração, há indiferença, desinteresse e consequente insucesso escolar (reprovação). Esta realidade vem reforçar o estigma social (no sentido preconizado por Goffman) de que há um défice cognitivo/”atraso” dos ciganos.

Na questão dos enclaves étnicos e concentração de alunos ciganos numa única escola, há duas possibilidades: a) separação, com turmas mono-étnicas: com professores/as membros do grupo étnico, programas educacionais e práticas pedagógicas específicas para as minorias. Verifiquei esta situação numa etnografia que fiz numa comunidade cigana na Roménia. b) modelo tradicional misto: inclusão social das minorias étnicas, interação no processo de aprendizagem, com a utilização de mediadores - que são membros do mesmo grupo étnico.

Na verdade, essa é uma questão muito complexa e, por isso, não há unanimidade na academia (antropólogos e sociólogos) sobre esta questão. Mas há um consenso: não há um modelo melhor do que o outro; a solução pedagógica depende muito das especificidades de cada situação. E isso coloca-nos uma questão importante: houve um fracasso da educação multicultural em Portugal?

Com base nas minhas experiências etnográficas com minorias étnicas, do meu ponto de vista há duas soluções possíveis: a) criar um modelo multicultural, com atividades educativas que valorizem os conhecimentos/saberes dos diferentes grupos étnicos, respeitando a diversidade cultural existente nas escolas; b) estudar todas as variáveis no processo de educação multicultural: etnia, religião, classe, género, língua capital simbólico/económico/sistema educativo e trajetórias de vida no espaço social. Para finalizar, gostaria de realçar a pertinência atual de uma ampla e aberta discussão/debate sobre estes dois modelos educacionais e de aprendizagem no contexto das sociedades contemporâneas, cada vez mais multiétnica e multicultural. BIBLIOGRAFIA Bourdieu, Pierre (1992). Pierre Bourdieu avec Löic Wacquant; réponses. Paris, Seuil. Bourdieu, Pierre (1993) (Dir.). La Misére du Monde. Paris, Seuil. Bourdieu, Pierre (1998). Escritos de Educação. Petrópolis, Vozes. Durkheim, Émile (1922). Éducation et Sociologie. Paris, PUF. Lévi-Strauss, Claude (2011). L’anthropologie face aux problèmes du monde moderne. Paris, Éditions du Seuil. Mead, Margareth (1936). “Culture and personality”. American Journal of Sociology, nº 4, pp. 84-87. Rodrigues, Donizete (1998). «Do Oral ao Escrito: um discurso antropológico da educação», in Carreira, Teresa & Tomé, Alice (eds.). Éducation au Portugal et en France: situation et perspectives. Paris, L’Harmattan, pp. 99-106

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EDUCAÇÃO E CULTURA

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EDUCAÇÃO E PRÁTICAS INTERCULTURAIS NA FRONTEIRA BRASIL-BOLÍVIA

Antônio Hilário Aguilera Urquiza169

Resumo: O presente texto é relato de experiência a partir de assessoria ao Programa Escolas Interculturais de Fronteira (PEIF), o qual tem como objetivo “contribuir para a formação integral de crianças, adolescentes e jovens, por meio da articulação de ações que visem à integração regional por meio da educação intercultural das escolas públicas de fronteira, alterando o ambiente escolar e ampliando a oferta de saberes, métodos, processos e conteúdos educativos” (MEC, Portaria nº 798, 2012). Trata-se de um Programa com ampla gama de ações, envolvendo inicialmente a formação de professores dos dois lados da fronteira, particularmente os municípios de Corumbá/Brasil e Puerto Quijaro/Bolívia. A origem institucional destas preocupações de tratar as diferenças culturais e linguísticas nas fronteiras a partir da educação situa-se no ano de 2005, esforçando-se para a construção de uma Identidade Regional multilíngue e Intercultural no

169 Doutor em Antropologia pela Universidade de Salamanca. É Professor Adjunto da UFMS, Professor do Programa de Pós-graduação em Antropologia (PPGAnt) da UFGD e professor colaborador do Programa de Pós-graduação em Educação da UCDB. Líder do grupo de pesquisa (CNPq): Antropologia, Direitos Humanos e Povos Tradicionais. Pesquisador do CNPq. Contato: [email protected]

marco de uma cultura de paz e de cooperação interfronteiriça, a partir de um modelo de ensino comum em escolas de zona de fronteira, com o desenvolvimento de um programa para a educação intercultural, com ênfase no ensino do português e do espanhol. O Programa Escolas Interculturais de Fronteira (PEIF), Brasil-Bolívia, implantou-se em 2012, a partir de intensas negociações, entre agentes (secretarias de educação, universidades, consulados) de ambos países, com a intenção de iniciar-se as ações a partir da capacitação de professores de escolas públicas da região e segue até o presente. Através de reflexão crítica tendo por base a antropologia o texto pretende problematizar esta relação intercultural, o diálogo de saberes, no contexto de fronteira entre Brasil e Bolívia. PALAVRAS–CHAVE: Educação intercultural; fronteira; Antropologia e Educação; diálogo de saberes; PRIMEIRAS CONSIDERAÇÕES

O presente texto é resultado preliminar da experiência do autor na assessoria ao Programa Escolas Interculturais de Fronteira (PEIF), o qual tem como objetivo “contribuir para a formação integral de crianças, adolescentes e jovens, por meio da articulação de ações que visem à integração regional por meio da educação intercultural das escolas públicas de fronteira, alterando o ambiente escolar e ampliando a oferta de saberes, métodos, processos e conteúdos educativos” (MEC, Portaria nº 798, 2012). Trata-se de um Programa com ampla gama de ações, envolvendo inicialmente a formação de professores dos dois lados da

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fronteira, particularmente os municípios de Corumbá/Brasil e Puerto Quijaro/Bolívia.

A origem institucional destas preocupações de tratar as diferenças culturais e linguísticas nas fronteiras a partir da educação situa-se no ano de 2005, quando se institui o Programa Escolas Bilíngue de Fronteira (PEBF), entre Brasil e Argentina e, posteriormente, Brasil e Paraguai. Este foi um esforço para a construção de uma Identidade Regional multilíngue e Intercultural no marco de uma cultura de paz e de cooperação interfronteiriça, a partir de um modelo de ensino comum em escolas de zona de fronteira, com o desenvolvimento de um programa para a educação intercultural, com ênfase no ensino do português e do espanhol.

O Programa Escolas Interculturais de Fronteira (PEIF), Brasil-Bolívia, implantou-se em 2012, a partir de intensas negociações, entre agentes (secretarias de educação, universidades, consulados) de ambos países, com a intenção de iniciar-se as ações a partir da capacitação de professores de escolas públicas da região. O parágrafo primeiro da Portaria nº 798 (MEC, 2012) institui que:

As Escolas Interculturais de Fronteira são as escolas públicas Estaduais e Municipais situadas na faixa de fronteira e instruídas pelo "Modelo de ensino comum de zona de fronteira, a partir do desenvolvimento de um Programa para a educação intercultural, com ênfase no ensino do português e do espanhol", da Declaração Conjunta de Brasília, firmada em 23 de novembro de 2003 pela Argentina e pelo Brasil, e do Plano de Ação do Setor Educativo do MERCOSUL 2006-2010.

Dessa forma compreende-se que o foco das ações está nas escolas públicas situadas na faixa de fronteira, dentro de uma visão geopolítica mais ampla, de impulsar um processo de integração dos países desta região da América do Sul, tendo em vista as características e potencialidades em comum, acentuando a concepção de fronteira como espaço de trânsito e intercâmbios, mais do que separação e divisão.

O termo "fronteira", segundo Tassinari (2002, p. 52) evoca várias noções do senso comum, como a de "fronteiras da civilização", as "terras de ninguém" habitadas apenas por "selvagens", prontas para serem "desbravadas" e colonizadas; “fim do mundo”. Na verdade quando falamos em fronteira, lembramo-nos do processo de formação da própria identidade nacional dos países colonizados. Essa imagem radicaliza a diferença entre os colonizadores e os povos originários, cada qual habitante de um espaço diferenciado, e também evidencia uma situação de conquista e opressão dos primeiros sobre os segundos, a partir de uma guerra pela posse do território. De alguma forma, é essa a imagem que está presente em noções antropológicas como a de "frentes de expansão", utilizada pela antropologia brasileira nas décadas de 1950 e 60: o avanço de segmentos da sociedade nacional, com claros propósitos econômicos desenvolvimentistas, sobre áreas antes habitadas somente por índios. Tendo em vista que a realidade é dinâmica e ambivalente, essa noção fica cada vez menos possível.

Tendo em vista esta multiplicidade de sentidos, inicialmente é importante retomar o conceito de fronteira, que abrange mais do que sua especificidade colocada

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historicamente pela área da geografia, como sendo aquela que demarca o território de um estado ou nação. Segundo esta acepção, fronteira teria um entendimento como algo que delimita, demarca e especifica território, separando e dividindo: de um lado um território, diferente do que ficou do outro lado da fronteira. Podemos chamar esta concepção de noção física ou geográfica de fronteira.

Nas ciências sociais usualmente trabalhamos com um conceito mais elástico de fronteira, o qual pode ser entendido de forma mais abrangente, como sendo situações de fronteira, ou ainda, situações limite, o que nos reporta para aspectos sociais, econômicos, culturais e sendo assim, também podem ser aspectos imaginados e representados culturalmente. Ao tratar dos povos indígenas em situação de fronteira, vamos tomar o primeiro sentido como ponto de partida, mas, iremos também, privilegiar as noções relacionadas à segunda conceituação de fronteira. Neste sentido, podemos dizer que as fronteiras são construções históricas e culturais. São processos social e historicamente – vale dizer, simbolicamente – produzidos. Devem ser concebidas mais como abertura e atualidade, do que como dado ou acabamento. São locais de mutação e subversão, regidos por princípios de relatividade, multiplicidade, reciprocidade e reversibilidade. Quando trata, por exemplo, das fronteiras étnicas e culturais, Fredrik Barth (1969, p. 21) afirma que essas “Fronteiras podem persistir apesar do que figurativamente pode ser chamada de 'osmose' de pessoal através dela”, ou seja, mesmo havendo trânsito de pessoas

pelas diferentes fronteiras identitárias, elas mantém suas identidades.

No caso de Corumbá, segundo Souchaud & Baeninger (2008),

A cidade é um lugar estratégico de articulação dos fluxos de bens, pessoas e informações, configurando o denominado corredor bi-oceânico, que agrega as duas margens litorâneas do continente, isto é, o sudeste brasileiro com os portos peruanos e chilenos do Pacífico, passando pelo eixo de concentração do povoamento boliviano Santa Cruz–Cochabamba–La Paz.

Podemos constatar que em relação à migração

boliviana no Brasil, a cidade de Corumbá ocupa espaço estratégico, por ser um “corredor”, e não somente, mas por ser a segunda maior concentração de população boliviana no Brasil, perdendo apenas para a cidade de São Paulo.

Ainda segundo estes autores:

Com relação à imigração boliviana em Corumbá, é importante ressaltar que o censo demográfico de 2000 registrou 789 domicílios com presença boliviana (mesmo que os filhos ou cônjuges sejam brasileiros), representando 3,4% do total dos domicílios e englobando uma população de 3.240 pessoas (SOUCHAUD & BAENINGER, 2008).

Estes números confirmam a importância não

apenas quantitativa da presença de migrantes bolivianos na sociedade e, consequentemente, no sistema educacional do Município de Corumbá, mas demonstra também, qualitativamente o quanto esta presença é dinâmica e influencia as políticas públicas deste município.

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A partir desta realidade dinâmica que é a vida em situação de fronteira, o Programa Escolas Interculturais de Fronteira segue alguns princípios básicos:

I - Interculturalidade, que reconhece fronteiras como locus de diversidade e que valora positivamente as diversas culturas formadoras do Mercosul, promovendo a cultura da paz, o conhecimento mútuo e a convivencialidade dos cidadãos dos diversos países-membros. Esta convivencialidade se realiza com a atuação conjunta de docentes dos dois países em cada uma das Escolas Interculturais (princípio do cruze), gêmeas ou próximas; II - Bilinguismo, que prevê que o ensino seja realizado em duas línguas, o espanhol e o português, com carga horária paritária ou tendendo ao paritário, com uma distribuição equilibrada dos conhecimentos ou disciplinas ministradas em cada uma das línguas. Prevê, ainda, pelo respeito ao sujeito do aprendizado, a presença na escola de outras línguas regionais, conforme a demanda; III - Construção comum e coletiva do Plano Político-Pedagógico das Escolas-Gêmeas, respeitando as tradições escolares dos países envolvidos e incluindo as demandas culturais específicas da fronteira no currículo (Art. 2º; Portaria 798, MEC, 2012).

Percebemos que os princípios básicos passam pelo

conceito e prática da interculturalidade, elemento teórico-prático que vem perpassando todas as atividades de capacitação de educadores do Programa, assim como a noção expandida de bilinguismo, tendo em vista que nesta faixa de fronteira os idiomas vão muito além do espanhol e português, sendo muito presente o guarani, aimará, quéchua, entre outros.

AS ESCOLAS NA FRONTEIRA

Assim que passamos o posto de fronteira, um imponente edifício da Receita Federal e, naquele momento, com ostensiva presença do Exército Brasileiro170, viramos à esquerda, em uma estrada de terra, ladeando o pequeno córrego que serve de marco geográfico de separação física entre Brasil e Bolívia. Uns cinco quilômetros adiante e já estamos em meio a uma ampla região de assentamentos (Taquaral, Urucum, entre outros), conforme mapa abaixo, onde se encontra a Escola Municipal Rural EUTRÓPIA, que atende basicamente crianças dos assentamentos do lado brasileiro e crianças do lado boliviano, nesta área com fronteira seca entre os dois países, desde a educação infantil até os últimos anos da educação fundamental. Encontramos uma escola reformada, com 08 salas de aula, além das salas de apoio (secretaria, coordenação, informática etc.), espaço para lazer e quadra coberta. Esta escola, por suas características – além da proximidade com a linha de fronteira física, recebe 50% de alunos oriundos da Bolívia e outros 50% da região brasileira de assentamentos – foi escolhida para acolher a primeira experiência de intercâmbio e prática intercultural de fronteira. Segundo o coordenador pedagógico, além da diversidade linguística e cultural das crianças, percebe-se que nas segundas e sextas feiras há uma acentuada ausência de crianças do lado boliviano, fenômeno que eles constatam na escola, mas, para o qual ainda não 170 Operação ÁGATA VI – Proteção conjunta das fronteiras brasileiras (a partir de julho de 2012);

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possuem uma explicação plausível. Outra forte característica desta escola é o dinamismo da direção em impulsionar a constante formação dos professores: vários cursando pós-graduação e especialização, sendo alguns deles originários da longa luta de conquista da terra através da reforma agrária na região. Mapa: Fronteira Brasil-Bolívia na região do Programa (PEIF)

Fonte: http://www.mapas.org.br

Voltando pelo mesmo caminho e, após deixar o

transporte do lado brasileiro, apenas após passar a pequena ponte, seguimos menos de 100 metros para encontrarmos a Escola Rural “La Frontera”, do lado boliviano, um amplo edifício, com apenas 3 anos de construção, porém, com estrutura física comprometida e em alguns lugares com risco de desabar. Amplas salas, laboratório de informática, quadra coberta e a possibilidade da ampliação e melhoria do espaço

físico. Fomos surpreendidos pela notícia de que como parte da política de educação, todos os professores bolivianos receberam um noot book, contendo os elementos básicos da reforma educacional aprovada pelo governo federal. Assim, os professores são motivados a ler e estudar esta nova legislação, além de cursarem a licenciatura modular, também proposta pelo governo. Em menor proporção, também nesta escola há significativa presença de alunos do lado brasileiro, ou filhos de pais brasileiros que vivem do lado boliviano, intercalando a prática de duas ou três línguas, conforme as circunstâncias.

Esta foi a escola escolhida, do lado boliviano da fronteira para iniciar a experiência do Programa de Escolas Interculturais de Fronteira, inclusive iniciando, ainda neste ano, o intercâmbio semanal de professores: um dia na semana uma professora boliviana vai na escola EUTRÓPIA dar aulas em espanhol e uma professora brasileira vai para a escola “La Frontera” dar aulas em português.

CONSIDERAÇÕES ACERCA DO REPERTÓRIO LINGUÍSTICO DAS CRIANÇAS NA FRONTEIRA

Mato Grosso do Sul apresenta-se como região de uma grande diversidade demográfica caracterizando múltiplos aspectos culturais. Além de possuir a segunda maior população indígena do país, com aproximadamente 70 mil índios, esta região está encravada no coração da América do Sul, recebendo fortes influências culturais de outras regiões brasileiras e dos dois países fronteiriços: Paraguai e

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Bolívia. Ao redor de 50% de sua população é composta de “pardos e negros”, além de possuir, atualmente, vinte e uma (21) comunidades quilombolas certificadas pela Fundação Cultural Palmares (FCP).

Após alguns meses de atuação na capacitação de professoras/es das escolas de fronteira (Corumbá – Puerto Quijaro), passamos a visualizar que, do ponto de vista do repertório linguístico dos envolvidos, o Programa deveria atuar com dois públicos distintos: as crianças bolivianas, as quais são, em algum nível, bilíngues, ou mesmo trilíngues (Espanhol, português e, em alguns casos, uma língua nativa: guarani, aimará, quéchua, entre outras). Estas crianças razoavelmente bem a língua portuguesa e muitas a falam com facilidade, pois em muitos casos, seus pais são brasileiros que vivem na Bolívia. Além disso, segundo depoimento da maior parte dos educadores bolivianos participantes das capacitações, estas crianças, desde pequenas, têm uma grande exposição à língua portuguesa através da mídia: novelas, notícias, futebol, etc. Dessa forma, notamos uma maior disponibilidade das crianças bolivianas em situação de fronteira para o aprendizado do português. Apesar deste domínio da oralidade, possuem dificuldade para o domínio da escrita da língua portuguesa. Assim, para estas crianças e suas comunidades escolares “o ensino bilíngue significa o reconhecimento de uma situação de fato, e significa avançar para possibilitar o acesso à forma escrita do português, paralelamente ou sequencialmente ao letramento em espanhol” (MEC, 2008, p. 13).

Constatamos, ainda, uma relação assimétrica entre as línguas nesta região de fronteira, assimetria relacionada com a hegemonia política e econômica do Brasil entre os países da América do Sul. Dessa forma, conforme depoimentos dos/as professores/as cursistas, a função social do português apresenta-se de maneira mais clara para as comunidades escolares bolivianas envolvidas no Programa, pois, entre outros motivos, essa língua é utilizada no cotidiano, ou seja, é parte importante do repertório comunicativo local, em especial no comércio e meios de comunicação. Esta percepção gerou polêmica entre os educadores participantes do Programa, pois se por um lado reforma a situação de hegemonia econômica e cultural brasileira, despertando sentimentos de baixa autoestima da população, particularmente das crianças, por outro lado, favorece o acirramento do sentimento nacionalista boliviano, em alta neste momento político do país, que possui um presidente indígena (Aimará), favorecendo o compromisso em ressaltar os valores e características do país, o que propicia maior autoestima coletiva.

Por outro lado, no entanto, as crianças brasileiras das escolas envolvidas no Programa Escolas Interculturais de Fronteira (PEIF), são quase todas monolíngues em português, o que poderá dificultar o trabalho dos/as professores/as bolivianos/as no início do programa de intercâmbio, porque muitos destes alunos não entendem, muitas vezes, elementos mínimos necessários em sala de aula. Neste contexto, para o sucesso do programa verificou-se ser necessário:

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Um período de ‘sensibilização linguística’ para as crianças brasileiras perceberem o porquê do aprendizado do espanhol e desenvolverem uma atitude positiva frente a este aprendizado. É neste período, coincidente com o primeiro ano de exposição à segunda língua, que a criança vai desenvolver o gosto e a vontade de aprender esta língua e vai perceber sua função social (MEC, 2008, p. 13).

Como vimos anteriormente, o mesmo não ocorre

com as crianças bolivianas, que a partir de sua situação sociolinguística, dominam bem a oralidade da língua portuguesa. Neste caso, a ênfase é a valorização da língua portuguesa escrita e da própria espanhola como distintivo étnico e, nos casos dos que falam uma língua nativa, o motivo ainda é dar maior reforço na língua materna, tendo em vista tratar-se de grupos sub-representados e minoritários. Neste sentido, segundo depoimento do professor Jorge171 (professor de matemática da escola de “La Frontera”), na reforma da educação, o governo boliviano, propôs uma nova concepção teórica cunhada de intraculturalidade, com a meta de dar ênfase nas interações culturais internas aos próprios grupos étnicos do país (mais de 30 grupos) e a população em geral, antes de estender esta política para as línguas e contextos culturais de outros países. Constata-se o alto teor nacionalista desta medida, como forma de resistência e reação aos séculos de dominação colonial sofrido por este país, tanto que outro conceito atualmente em alta na formação de professores bolivianos para a implantação da reforma educacional é o de

171 Nome fictício;

uma educação descolonizadora, libertadora e revolucionária (WALSH, 2009). AS PRÁTICAS INTERCULTURAIS NA FRONTEIRA

A partir do apresentado até o momento, torna-se importante considerar a noção de que as fronteiras são constructos históricos, quase sempre, sem mesmo possuir elementos geográficos de separação (rios, montanhas, etc.), como o caso desta região de fronteira onde se desenvolve o Programa (PEIF). Historicamente, antes da criação fictícia das fronteiras dos estados nacionais, os grupos étnicos transitavam nos dois lados das fronteiras que dividem atualmente o Brasil da Bolívia. Assim, conforme preconiza a legislação internacional, estes povos originários e atuais possuem o direito de transitar livremente por estas fronteiras, tanto geográfica como sociocultural.

Apesar das fronteiras fixadas (fronteiras territoriais, jurídicas, econômicas, culturais e identitárias, entre outras), novos ordenamentos jurídicos, nacional (como a Constituição Federal de 1988) e internacional (Carta dos Direitos Humanos da ONU de 1948; Convenção 160 da OIT e a Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas de 2007), dão conta de propor outra realidade, a qual toma estes povos como sujeitos e cidadãos, com a possibilidade de trânsito entre as fronteiras.

Vemos, dessa forma, que as fronteiras permanecem, pois o ordenamento jurídico traz novos avanços e conquistas, mas, no caso brasileiro, ainda permanece a inoperância das políticas de garantias de direitos a estes

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povos, em especial às crianças que estão em espaços de fronteira política, entre os dois países e várias línguas.

Neste caso, “a atitude das crianças frente à nova língua e suas motivações positivas para o aprendizado advém das suas experiências pessoais de contato com falantes da segunda língua, no nosso caso o contato com o/a ou os/as professores/as” (MEC, 2008, p. 14). Por isso, no âmbito do Programa, percebemos a maior facilidade para trabalhar o português entre as crianças bolivianas, que o inverso, o espanhol entre as crianças brasileiras.

Esta vivência inicial com a língua em situação escolar, precisa assegurar o gosto e o interesse pela língua a partir de uma série de atividades lúdicas e prazerosas que vinculem o aprendizado da língua com motivações positivas para o futuro. “As atitudes positivas das crianças precisam, de certo modo, ser acompanhadas de atitudes positivas por parte dos pais”. Por isso as escolas têm procurado sensibilizar os pais dos alunos, seja apresentando-lhes as professoras do outro país que trabalham com seus filhos, seja possibilitando que participem nos eventos binacionais da escola, ou até mesmo em atividades corriqueiras conduzidas pela professora do outro país na segunda língua, como uma atividade na horta, uma observação de campo, uma entrevista com uma pessoa da comunidade relevante para as crianças ou um ensaio para representar uma obra de teatro, entre outras possibilidades.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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WALSH, Catherine. Interculturalidade críticae pedagogía decolonial: in-surgir, re-existir e re-viver. In: CANDAU, Vera Maria (Org.). Educação intercultural na América Latina: entre concepções, tensões e propostas. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2009. p. 12-43

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A FORMAÇÃO DOCENTE NA EDUCAÇÃO INFANTIL E A PEDAGOGIA

INACIANA EM UM COLÉGIO CONFESSIONAL

Jeanice Schmidt Bulik / José Carlos da Silva172

RESUMO: A escolha do tema, Formação Docente e a Pedagogia Inaciana, foi motivada pela necessidade de entender como as instituições de ensino da Companhia de Jesus no Brasil, em particular o Colégio Confessional em análise, concebem o professor, ou seja, o que é “ser um educador inaciano”. Busca-se também entender de que forma esta pedagogia está presente no trabalho de formação do professor da Educação Infantil e no cotidiano da escola. Para a realização da pesquisa, foi aplicada uma entrevista com os professores da Educação Infantil contendo perguntas abertas e fechadas. Em um universo de nove professoras, que atuam no setor infantil da escola, oito professoras responderam as entrevistas. Diante disso, organizou-se o material e foi feito a análise das entrevistas.

Palavras – chave: formação docente, Pedagogia Inaciana, Educação Infantil

172 Jeanice Schmidt Bulik é Orientadora Pedagógica e especialista em currículo e desenvolvimento cognitivo – Brasil E-mail: [email protected]; José Carlos da Silva é professor do Centro Universitário Municipal de São José, Brasil. E-mail. [email protected]

INTRODUÇÃO

O Colégio Confessional de tradição religiosa inaciana173, escolhido como campo de análise, faz parte de uma rede internacional da Companhia de Jesus, fundada por Inácio de Loyola (1534-1556)174. O Colégio é uma instituição com 2.891 alunos matriculados, sendo que 160 são alunos da Educação Infantil, criada no ano 2000. A instituição desenvolve suas atividades de ensino há mais de um século no Estado de Santa Catarina. Seu Projeto Político Pedagógico revela o compromisso de “formar seres humanos melhores e voltados para a transformação de uma sociedade mais justa, solidária e cristã”175, fundamentado na Pedagogia Inaciana, que tem como base cinco pilares: o contexto, a experiência, a reflexão, a ação e a avaliação. A escolha do tema, Formação Docente e a Pedagogia Inaciana, foi motivada pela necessidade de entender como as instituições de ensino da Companhia de Jesus no Brasil, em particular o Colégio Confessional em análise, concebem o professor, ou seja, o que é “ser um educador inaciano”. Busca-se também entender de que forma esta pedagogia está presente no trabalho de formação do professor da Educação Infantil e no cotidiano da escola. Para a realização da pesquisa, foi aplicada uma entrevista com os professores da Educação Infantil contendo perguntas 173 Os autores optaram por não revelar o nome da instituição escolar. Assim, decidiu-se chamá-lo de Colégio Confessional. 174 Atualmente, essa rede reúne aproximadamente 1500 unidades de ensino em mais de 60países. 175 Colégio Confessional. Projeto Político Pedagógico, 2011, p.14.

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abertas e fechadas. Em um universo de nove professoras, que atuam no setor infantil da escola, oito professoras responderam as entrevistas. Diante disso, organizou-se o material e foi feito a análise das entrevistas. Na primeira parte do trabalho, analisou-se historicamente a ausência de uma política educacional para a formação de professores na Educação Infantil no país, principalmente a partir dos governos militares (1964-1984). A ausência de uma política educacional para este segmento chega até o governo de Fernando Henrique Cardoso - (FHC) (1995-1998/1999-2002), que é marcado pela política neoliberal, dependência dos organismos financeiros internacionais, abertura comercial, liberalização financeira, privatizações, mercantilização no ensino e baixos investimentos para a educação, sobretudo para a Educação Infantil. Por último, analisaram-se a Pedagogia Inaciana e sua inserção, mostrando como sua educação está presente na ação pedagógica dos seus educadores, especialmente dos professores da Educação Infantil.

A POLÍTICA DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES NA EDUCAÇÃO INFANTIL No final da década de 1970, os governos militares (1964-1985) vinham perdendo força e legitimidade frente à sociedade civil organizada e a setores do empresariado nacional. Movimentos sociais foram surgindo nas grandes periferias dos centros urbanos. Eram lutas por moradia,

saneamento básico, creches. Conflitos no meio rural se espalhavam e tinha a reivindicação da reforma agrária para os trabalhadores sem terra. Os sindicatos de trabalhadores também saíram às ruas para pedir melhores condições de trabalho, salário e liberdade sindical. A crescente turbulência social no governo militar mostrava a sua incapacidade de resolver os problemas sociais e, em especial, o problema da Educação Infantil no país. Os convênios com as entidades sociais filantrópicas, que cuidavam das crianças de 0 a 6 anos, “para que as mães pudessem trabalhar”, não atendiam a grande demanda das famílias176. No período militar, o que se observou, em termos de política educacional para crianças pequenas, foi um modelo de educação compensatória a fim de atender às populações mais pobres que viviam nas periferias dos grandes centros urbanos 177 . O modelo foi uma estratégia para tentar minimizar os altos índices de mortalidade infantil, combater a pobreza e orientar mães e/ou voluntários ou responsáveis por instituições assistenciais que cuidavam de crianças no país.

O fracasso para a educação e socialização das crianças nos governos militares não previa contratação de

176 A UNESCO e a UNICEF, nos anos de 1970, desenvolveram um acordo de cooperação para orientar ações de expansão da Educação Infantil nos países do chamado Terceiro Mundo. Os recursos financeiros para viabilizar o material pedagógico, os brinquedos, os espaços físicos, formação de professores, etc., eram praticamente inexistentes. 177 Tal política foi dirigida pela Legião Brasileira de Assistência (LBA) com recursos públicos (VIEIRA, 1999,p.30).

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professores qualificados. As professoras eram constituídas, por voluntárias e leigas, sem qualquer formação adequada. As diretrizes para a Educação Infantil elaboradas pelo Ministério da Educação eram de um perfil profissional feminino, amoroso e disciplinado, em detrimento de uma formação profissional especializada. O fracasso da política governamental de Educação Infantil no Brasil, na década de 1970, foi se arrastando até os anos de 1980. A ausência de uma política de Estado para a Educação Infantil persistiria também na década seguinte. O governo Fernando Henrique Cardoso-FHC (1995- 1998 /1999-2002) foi seguindo a cartilha dos organismos financeiros internacionais, principalmente a do Banco Mundial (BM), para adotar a política de redução da presença do Estado na economia, abertura comercial e financeira, privatizações e redução dos gastos públicos em todos os setores. A Educação Infantil, em especial, não ficou de fora desta política neoliberal do governo FHC. O BM recomendava que o governo investisse em políticas para atender às crianças pobres. No entanto, os recursos financeiros continuavam extremamente baixos para atendê-las em creches domiciliares das periferias das grandes cidades do país178. A política de formação continuada de professores da Educação Infantil é uma trajetória que começou no contexto das políticas neoliberais da década de 1990. Até então, a

178 O BM determinava reduzir os gastos com as universidades públicas. Eram elas que tinham o papel de formar professores. As instituições de ensino privadas fariam isso. Assim, ocorre uma proliferação de instituições de ensino superior privadas no governo FHC.

formação era quase que exclusivamente de responsabilidade dos municípios. Percebe-se, a partir de então, o surgimento de programas de formação inicial e continuada de educadores de Educação Básica nas redes públicas no país. Antes do referido período, as políticas públicas educacionais de formação eram mais voltadas para ações de caráter higienista do que propriamente de formação179. Todavia, foi a partir dos anos 90, que o interesse governamental e acadêmico pela Educação Infantil entra na agenda do país. No meio acadêmico, especificamente, observam-se grupos de estudos sobre Educação Pré-escolar e seminários debatendo o tema sobre os desafios da Educação Infantil180. No meio governamental, as Leis de Diretrizes e Base da Educação Nacional (LDBEN) de 1996, a Resolução do Conselho Nacional de Educação, de 2003, o Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990, davam suporte jurídico e colocavam no centro da agenda das políticas educacionais o direito das crianças à educação. Tais medidas normativas significavam o reconhecimento da importância da necessidade do docente qualificado para atuar na educação de crianças de 0 a 6 anos de idade. A ideia de qualificação de docentes para esta faixa etária surgiria somente no governo do presidente Lula (2002-2009), quando foi publicado o Decreto nº 6.755, de

179 Pode-se dar como exemplo deste tipo de política higienista a que foi desenvolvida pelo Departamento Nacional da Criança, vinculada ao Ministério da Educação e Saúde nos anos de 1940. Para uma análise desta política, ver Vieira, 1988. 180 Destaca-se o Grupo de Trabalho sobre Educação Pré-escolar da Anped.

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29 de janeiro de 2009, onde, finalmente, seria implantada a Política Nacional de Formação de Professores. Apesar da existência de normatizações para a Educação Infantil no Brasil, verificaram-se, ainda, graves problemas sociais deixados pela longa ausência de uma política para este setor. O cenário continua bastante desolador no que tange à educação de crianças pequenas. Segundo os dados da Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílio (PNAD/IBGE) de 2004, revelados por Fullgraf, a população infantil de zero a seis anos atinge cerca de 21,9 milhões de crianças, sendo que apenas 40,4 % delas frequentam uma instituição de Educação Infantil ou Ensino Fundamental. Os dados ainda mostram que, das crianças de zero a três anos, apenas 18,1% têm creche. (FULLGRAF, 2012, p.60). A maioria das chamadas creches, gerenciadas por entidades filantrópicas, comunitárias ou conveniadas, apresentam condições muito precárias de funcionamento para seus alunos e professores181. Os professores, por exemplo, não contam com supervisores ou suporte pedagógico para desempenhar seus trabalhos. A formação continuada de professores para a Educação Infantil é algo ainda muito distante das políticas públicas educacionais dos governos (municipal, estadual e federal) ou mesmo para muitas instituições privadas de ensino infantil no país.

181 De acordo com Campos, dados do Censo Escolar de 2005, indicam que 95% das 96.420 creches e pré- escolas são financiadas pela esfera pública municipal. Já as instituições privadas sem fins lucrativos - filantrópicas, comunitárias e confessionais - são 11.303. A grande maioria destas instituições também depende de recursos públicos (CAMPOS, 2007, p.34).

A LDB nº 9394/96, em seu artigo 87, mostra uma dúbia redação que precarizou a formação dos educadores, uma vez que desencadeou uma proliferação de cursos rápidos para educadores a distância. Diz o artigo: “Até o fim da década, na educação, somente serão admitidos professores habilitados em nível superior ou formados por treinamento em serviços”. Tal normatização fez surgir os cursos a distância para a formação de professores em universidades públicas e privadas no país182. Para muitos profissionais da educação183, o processo de formação docente começa antes mesmo de terminar o curso de licenciatura. Inúmeros educadores já trabalham na educação e, assim, a autoformação ocorre no dia a dia do trabalho escolar. De acordo com Pereira, vários educadores constroem suas identidades a partir do cotidiano escolar. Muitos deles nem imaginavam ser professores ( PEREIRA,1996 ). Dessa forma, eles aprendem o ofício de sua profissão no dia a dia da sala de aula, com acertos e erros.

Os indicadores da educação no país revelam, como já afirmado, uma ausência do Poder Público na política de formação e capacitação de professores. Os cursos de licenciatura formam ainda poucos licenciados e, muitas vezes, de qualidade duvidosa.A

182 Os programas de formação, conforme Freitas, com raríssimas exceções, não apresentam projetos pedagógicos direcionados para a escola. A qualidade teórica e metodológica destes cursos é extremamente comprometida pelo reduzido tempo para a formação (FREITAS, 2002, p.99). 183 Destacam-se Ostetto, 2012; Moraes, 2007; Palma Filho, 2008; Souza, 2005.

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política do governo de formação em cursos a distância não tem contribuído para melhorar os índices de aprendizagem escolar184. A falta de acompanhamento pedagógico é, certamente, um problema que as instituições escolares no país enfrentam. Martin Carnoy percebeu que nos países da América Latina, especialmente o Brasil e o Chile, os professores têm grande autonomia em sala de aula, ou seja, eles são raramente acompanhados pelo supervisor escolar. São também pouco avaliados pelos diretores ou coordenadores pedagógicos pelo seu desempenho profissional (CARNOY, 2009, p.140). Martin Carnoy ainda lembra que o Brasil, nos últimos 10 anos, tem adotado estratégias para melhorar o desempenho escolar. A supervisão “indireta”, ou seja, buscar a maior participação da família é um exemplo deste esforço de tentar melhorar o aprendizado dos alunos. Outro exemplo é o pagamento de bônus para os professores das escolas que tiverem melhor desempenho de seus alunos em provas. Para ele, o esforço é positivo, no entanto, não há ainda evidências de que o incentivo financeiro aos educadores tenha melhorado o aprendizado (IBIDEM). A formação de professores apresenta muitos problemas e desafios no campo das políticas educacionais. Diante deste quadro adverso, as escolas devem oferecer formação 184 O Brasil ficou na penúltima colocação de um ranking de educação que comparou as “habilidades cognitivas e de desempenho escolar” de 40 países. De acordo com o estudo “The Learning Curve” (A curva de aprendizagem), Finlândia e Coréia do Sul estão no topo desse universo. O Globo, 27/11/2012.

permanente para seus educadores, não apenas porque a profissão exige, mas pelo fato de grande parcela dos educadores não apresentarem formação adequada para atuarem na área. Sabe-se, também, que muitos profissionais da educação apresentam uma formação bastante duvidosa nos cursos que são oferecidos atualmente no país pelas instituições de ensino superior.

A PEDAGOGIA INACIANA NO COLÉGIO CONFESSIONAL

Nos dias de hoje, ser educador, antes de tudo, significa ser um transmissor de saberes interdisciplinares, conhecer bem teorias e metodologias para poder aplicá-las no seu trabalho pedagógico. O educador, segundo Milanesi, deve ser um “profissional culto”, ou seja, um ser dotado de habilidades, métodos e técnicas. O paradigma do “professor culto” predominou nas décadas de 30 a 60 do século passado no país. Nos anos 60 e 70, o paradigma que dominou foi o professor técnico (paradigma taylorista), ou seja, o educador que desenvolve suas atividades escolares de forma instrumental e aplica as teorias e métodos para a solução dos problemas (MILANESI, 2008, p.18). Esse modelo de formação profissional, como percebeu Milanesi, é parte constitutiva da racionalidade técnica, que privilegia o saber teórico em detrimento do saber prático. Tal modelo tecnicista de educação foi refutado por Giroux, pois o considera como “ideologias instrumentais”, que limitam a capacidade criadora do professor e reduz o educador a

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simples executor de tarefas burocráticas e cumpridor de programas curriculares(GIROUX,1992,p.12). Para Giroux, historicamente as instituições de ensino têm se omitido em seu papel de educar os docentes como intelectuais. Ele acredita que isso ocorre devido à absorção da racionalidade tecnocrática, que separa teoria e prática, ignorando ações pedagógicas reflexivas e criativas do professor. O docente tem pouca autonomia do seu trabalho. As escolas de formação, segundo ele, estão mais preocupadas em instrumentalizar os educadores para o domínio de técnicas pedagógicas, anulando, assim, a criatividade e a crítica (IBIDEM, 1992, p.23). O educador vem se tornando um mero agente operacional, ou seja, reprodutor de tarefas, de aplicação de conteúdos e, portanto, acrítico e apolítico. O resultado de uma gestão democrática pode ter efeitos positivos para o meio escolar. Quando todos caminham para o mesmo objetivo, certamente eles poderão ser atingidos com maior facilidade. A democratização nas escolas é ainda bastante restrita, ou seja, nem todos os segmentos participam ou são chamados para participar. Em uma sociedade adultocêntrica, por exemplo, as crianças e os adolescentes não são ouvidos. Elas são consideradas “incapazes de participar”. Assim, são os adultos que vão decidir o que é melhor. A racionalidade técnica busca criar uma ideologia no corpo docente para impedir a participação crítica da produção de projetos políticos e curriculares. Apple percebeu uma tendência crescente da perda da autonomia dos professores

no desenvolvimento e planejamento dos currículos. Surge uma produção de “pacotes” curriculares, ou seja, o professor é orientado a proceder determinadas tarefas escolares e transmitir os conteúdos já previamente classificados (APPLE, 1996, p.54).

O paradigma inaciano parte da realidade concreta da vida de cada aluno. É a chamada “educação personalizada”. O educando é entendido como o ator principal do processo de educação. Já o professor é o que busca ser o instrumento facilitador, companheiro do processo de aprendizado, da realidade social e da justiça. Cabe a ele ser, como revelou uma das entrevistas com uma professora da Educação Infantil do colégio em análise, um ser comprometido com a espiritualidade, o respeito à diversidade cultural, ao ser humano, a justiça e os ensinamentos inacianos.

Devemos oferecer ao educando os instrumentos para que ele possa compreender criticamente a realidade social do mundo da vida, proporcionando a ele uma visão crítica da sociedade, suas contradições e antagonismos. Acredito que as diretrizes pedagógicas inacianas têm o compromisso de despertar o interesse de levar a missão de evangelizar, a serviço da fé e da justiça, possibilitando, desta forma, a construção de uma sociedade mais justa e que respeite a diversidade cultural, religiosa e étnica185.

185 Entrevista com uma professora da Educação Infantil, em 8 de julho de2014.

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Outro elemento do paradigma inaciano é conceber a educação como processo que deve se desenvolver de forma “ativa e participativa”, ou seja, o aluno aprende o que descobriu e experimentou em suas atividades escolares. Considera, portanto, que a ação do sujeito é parte constitutiva do conhecimento. A educação inaciana concebe o ser humano como “sujeito do mundo”, um ser consciente e dinâmico, capaz de fazer mudanças e transformações. Tal paradigma fundamenta-se em cinco dimensões. A primeira dimensão situa a realidade em seu contexto. “A contextualização consiste em situar o sujeito – é aquele aspecto da realidade que se quer experimentar, conhecer, apropriar e transformar – em sua circunstância” (SUBSÍDIO PARA A PEDAGOGIA INACIANA, 1997, p.16). A segunda dimensão é experimentar vivenciando, ou seja, despertado os “sentidos”: ver, ouvir, tocar. “Surgido dessas mesmas sensações externas, da memória, da imaginação, da afetividade (PROJETO EDUCATIVO COMUM DA COMPANHIA DE JESUS NA AMÉRICA LATINA, 2005, p.20).

A terceira dimensão é refletir sobre essa experiência. Tal paradigma “é o que mais apropriadamente recolhe a atividade intelectual. É o lugar em que se dá a apropriação e, por conseguinte, sua humanização” (IBIDEM, 2005, p.21). “Refletir” significa questionar o que se viveu na experiência, qual foi o seu significado, que relação pode ser feita com sua vida e seu cotidiano. O processo de reflexão se distingue em dois fundamentos

essenciais: o entender e o julgar. “Entender” significa, para a Pedagogia Inaciana, o momento em que o aluno e a aluna descobrem o real significado da experiência e conseguem estabelecer relações entre os dados tocados, cheirados, vistos e ouvidos. Em outro sentido, o sujeito consegue conceitualizar, problematizar, ser capaz de formular hipóteses e teorias (IBIDEM, 2005,p.21).

A quarta dimensão é agir consequentemente. É entendida como manifestação para a transformação da pessoa e da realidade social em que vive. A quinta, e última dimensão, é avaliar a ação e o processo desenvolvido, na qual acontece a revisão de processos e a ponderação e pertinência dos resultados. Essas dimensões são sucessivas e ocorrem simultaneamente, interagindo durante todo seu processo de desenvolvimento (IBIDEM, 2005, p.24). O educador inaciano é aquele que acredita que a criança é um ser em constante evolução, isto é, toda criança pode aprender, mesmo com limitações que possa ter. Com base nos princípios inacianos, o professor e a professora são seres humanos que devem respeitar o tempo de cada educando, pois, conforme os princípios pedagógicos inacianos, “todos podem aprender”. Para que o processo de aprendizagem ocorra na educação inaciana, é preciso que professor e aluno estabeleçam um diálogo de respeito e estima. Ambos devem procurar enfrentar os desafios e obstáculos que possam surgir em seus trabalhos. As instituições educativas da Companhia de Jesus, como a instituição em análise, na figura de seus educadores,

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seguem, como já afirmado, as diretrizes dos ensinamentos de Inácio de Loyola186. Os supervisores pedagógicos são orientados pela direção pedagógica para transmitir os fundamentos dos paradigmas inacianos. Duas professoras do Ensino Infantil, ao serem questionadas sobre como é seu trabalho e se elas se sentiam como educadoras inacianas, responderam:

Procuro constantemente pôr em prática as cinco etapas do paradigma pedagógico inaciano, procuro estar voltada para uma educação centrada em valores permanentes, visando à formação integral do ser humano a fim de formar líderes a serviço dos demais e, acima de tudo, procuro dês envolver o meu trabalho junto à comunidade escolar, observando os preceitos básicos: zelo, honestidade, sigilo e competência sempre em busca do melhor187.

Considero-me uma educadora inaciana por partilhar dos princípios desta pedagogia, por acreditar que precisamos trabalhar a formação integral do ser, buscando compreendê-lo em sua totalidade, desenvolvê-lo em diferentes aspectos. Creio que, para construirmos um mundo melhor, mais solidário e fraterno, temos a missão de contribuir formando crianças com valores permanentes baseados no amor e respeito ao próximo, desenvolvendo a solidariedade e a cooperação188.

186 Nos Colégios da Companhia de Jesus, a Ratio Studiorium é um documento dos princípios normativos e educacionais de Inácio de Loyola. Esse documento histórico foi escrito em 1552, reformulado em 1591, e teve a sua publicação definitiva em 1599. Para uma análise deste documento, ver Marins, 2009. 187 Entrevista realizada pelos autores em 16 de julho de2014. 188 Entrevista realizada pelos autores em 17 de julho de2014.

Nas entrevistas com os educadores, surgem também outros ensinamentos inacianos. Constatou-se, por exemplo, uma preocupação para colocar em prática o diálogo intercultural, o ecumênico e o inter-religioso. Percebeu-se, também, a preocupação em construir uma sociedade mais justa, sem discriminação e mais igualitária. Portanto, os princípios da pedagogia inaciana aparecem no cotidiano escolar para “formar homens e mulheres para os demais e com os demais”.

Um dos objetivos da Pedagogia Inaciana propõe uma formação de “homens e mulheres para os outros”, com uma visão humana e cristã. Nesta formação não há espaço para o preconceito, pois na sua base há uma proposta na qual o ajudar o outro é essencial. Com educadores formados neste pensamento, o cotidiano escolar estará voltado para uma visão igualitária. A cada comentário ou ação discriminatória, o educador inaciano saberá mediar a situação de uma forma ética e humana189. Considero-me uma educadora inaciana por partilhar dos princípios desta pedagogia, por acreditar que precisamos trabalhar a formação integral do ser, buscando compreendê-lo em sua totalidade, desenvolvê-lo em diferentes aspectos. Creio que, para construirmos um mundo melhor, mais solidário e fraterno, temos a missão de contribuir formando crianças com valores permanentes baseados no amor e respeito ao próximo, desenvolvendo a solidariedade e a cooperação190.

189 Entrevista realizada pelos autores em 15 de julho de2014. 190 Entrevista realizada pelos autores em 14 de junho de2014.

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Observa-se que a formação docente nesta instituição jesuíta deve ser entendida como um processo permanente. No Colégio, a formação continuada é construída no cotidiano escolar, na relação com os outros, ou seja, com os professores, os alunos, os familiares, os funcionários e a comunidade em geral. O educador inaciano adquire saberes na sua vida escolar, já que é nesta relação que teoria e prática se complementam.

A formação, no Colégio, segundo a concepção inaciana, busca compreender e dar respostas à existência humana e seu compromisso com a sociedade e a justiça social. Constatou-se que o fato de o ser humano ser diferente não o impede de dialogar e buscar compreender o outro e trazer o sentido de suas experiências, as diferentes realidades que vivencia no cotidiano escolar. Logo, o educador inaciano deve procurar transmitir muito mais do que conhecimentos, mas algo a mais, que o faz transcender em sua espiritualidade, humanização e emancipação.

Ficou evidente que o Colégio busca sua missão religiosa e educacional, fundamentada nos princípios dos ensinamentos de Inácio de Loyola. Percebeu-se a busca de valores como promoção da justiça, comportamento ético, ação de cidadania, democracia, amor pelos demais, discernimento, honestidade, ações de solidariedade, integração, ações de sustentabilidade ambiental, inspiradas na pedagogia da fé e evangelização cristã. Tais fundamentos constituem a identidade desta instituição jesuíta, que

procura voltar seus esforços para a formação integral dos seus educadores e alunos. A aplicação do paradigma inaciano ocorre quando o professor da Educação Infantil abre as portas para a imaginação e a criatividade de seus alunos. O saber-fazer floresce espontaneamente para a vida, por meio do contexto, experiência, reflexão, ação e avaliação (grifos dos autores). O professor é o sujeito que criará as condições para o aluno encontrar informações e selecionar os fatos e dados que ele (aluno) considere realmente significativo. Em outras palavras, o educador é o que fornece as bases para que seu educando “aprenda como aprender”, pois é deste modo que começa a reflexão, ou seja, o valor essencial do que está se buscando e estudando. Sendo assim, o aluno estabelece reflexões críticas da realidade. É desta maneira que ele parte para a ação, isto é, a aplicação dos conhecimentos para a transformação e a organização em diferentes situações da vida.

CONCLUSÃO

Nos governos militares (1964-1984), e nos dois últimos governos, FHC (1995-2002) e Lula (2002-2009), percebeu-se uma ausência de políticas educacionais para a infância. As crianças pequenas foram, e ainda são, excluídas de ações governamentais para esta parcela da população. Percebeu-se, também, uma ausência de políticas de formação docente para educadores na Educação Infantil. Tal omissão

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educacional deixou um quadro desolador, com falta de professores qualificados, precarização das condições de trabalho, altos índices de repetência e evasão escolar no país.

Tais problemas colocam grandes desafios para a Educação Infantil, tanto para as escolas públicas, como para as escolas do setor privado. As instituições de ensino jesuítas, e, em particular o Colégio Confessional, também sofrem os reflexos da ausência do Poder Público com a educação dos pequenos. A precarização do trabalho docente, a falta de incentivo em programas de formação continuada, a proliferação de cursos de tempo reduzido e de qualidade duvidosa exigem uma política de formação para os educadores que estão chegando às instituições escolares.

Na Pedagogia Inaciana, constatou-se também que o professor é sujeito importante no processo de ensino-aprendizagem, já que ele estimula o aprendizado dos seus alunos. No entanto, o professor não é o centro do saber. Para ser professor inaciano é preciso ser educador, ou seja, estabelecer uma relação de interação com o aluno e estimulá-lo à imaginação. O educador, de acordo com os princípios inacianos, não pode ser o centro do processo de aprendizado, uma vez que isso criaria uma hierarquia, que se tornaria um abismo entre educador e educando. Por fim, verificou-se que o professor inaciano não pode ser apenas o especialista de conhecimentos teóricos e metodológicos, ele precisa, antes de tudo, “tocar a alma” do aluno e despertá-lo para a vida, tornando-o, desta forma, um

ser humano melhor e a serviço dos demais, como pregava Inácio de Loyola.

La formation des enseignants en éducation à l'enfanceet Pédagogie

ignatienne dans un CollègeConfessional

Résumé Le choix du thème, la formation des enseignants et de la pédagogie ignatienne, a été motivée par la nécessité de comprendre comment les établissements d'enseignement de la Société de Jésus au Brésil, en particulier le Collège Confessional dans l'analyse, conçoivent l'enseignant, ce est, ce qui est "d'être un éducateur ignatienne ". L'objectif est de comprendre aussi comment cette pédagogie est présente dans le travail de formation de l'éducation de la petite enfance enseignant et la routine de l'école. Pour la recherche, on a appliqué une entrevue avec les enseignants d'éducation préscolaire avec des questions ouvertes et fermées. Dans un univers de neuf enseignants qui travaillent dans la section des enfants de l'école, huit enseignants ont répondu aux entrevues. Par conséquent, nous avons organisé la matière et a été fait l'analyse desentretiens.

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Mots-clés: formation des enseignants, la pédagogie ignatienne, éducation àl'enfance

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TURISMO E CULTURA: TURISMO COMO FENÔMENO SOCIAL E ANTROPOLÓGICO

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TURISMO RELIGIOSO EM NOVA TRENTO/SC E OS RESIDENTES: UMA ANÁLISE DOS

PROCESSOS SÓCIO-CULTURAIS

Prof. Dr. Telmo Pedro Vieira191

O presente trabalho teve como foco de estudo os processos e mudanças sócio-culturais promovidos pelo fenômeno do Turismo Religioso no Santuário de Santa Paulina do Coração Agonizante de Jesus192, na localidade de Vígolo193 no município de Nova Trento – Santa Catarina. O principal objetivo foi o de lançar um paralelo entre as perspectivas dos residentes acerca de suas crenças, sentimentos e compreensões frente ao fenômeno religioso em questão, marcado pela fé e pelo turismo. Cabe ressaltar que

191Professor na Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC/SC. Doutor em Antropologia pela Universidade de Salamanca - Espanha. Mestre em Antropologia Social pela Universidade de Salamanca- Espanha. Pós- doutorado em Sociologia da Religião pela Universidade da Beira Interior- UBI, Portugal. Ex- Membro do Conselho Estadual de Educação de Santa Catarina. Ex Reitor da Universidade Municipal de São José/SC. Pesquisador na área da antropologia da Educação e da Antropologia da Religião. 192 Amábile Lúcia Visintainer nasceu em Vígolo Vattaro, na região do Trento, na Itália, em 16.12.1865 e faleceu na cidade de São Paulo no dia 19.07.1942. Sua família migrou para o Brasil no ano de 1875, estabelecendo-se em Nova Trento, SC. 193 O nome Vígolo dado ao bairro de Nova Trento/SC, foi uma homenagem dos seus primeiros habitantes como lembranças a Vígolo Vattaro, lugar da Itália de onde procederam em 1875. Dentre as famílias que ali foram assentadas, destacam-se a de Napoleão, pai da menina Amábile que se tornou Madre Paulina.

Nova Trento, por possuir dois santuários: o Santuário de Santa Paulina e o Santuário Nossa Senhora do Bom Socorro, foi reconhecida pela Lei Estadual nº 15.184 de 01/07/2010 a Capital Catarinense do Turismo Religioso. Este

Também se buscou analisar e identificar os tipos de atividades religiosas referentes ao Santuário em questão; procurou-se identificar qual a identidade deste local sagrado para moradores e religiosos, que aparecem durante os estudos de campo, que vêm nos últimos anos acompanhando seu crescimentos e as mudanças que a mesma vem adquirindo com a vinda de pessoas que não apenas visitam os espaços religiosos, como também buscam a cidade para compras, gastronomia e outras atividades de caráter turístico. Sendo, pois, considerados os Santuários lugares privilegiados na busca pelo sagrado, o Turismo Religioso torna-se um ato contemporâneo de oportunizar a experiência dessa sacralidade (OLIVEIRA, 2004). Neste sentido buscou-se compreender a relação dos visitantes, peregrinos e/ou turistas, com os residentes desses "territórios sagrados" e como eles vêem e como se relacionam com tais espaços e as pessoas que neles estão inseridas e envoltas por sua aura sagrada. Contudo, além de serem considerados espaços religiosos, essas localidades são também tidas como espaços turísticos, o que nos permite tecer algumas relações de significados entre ambos. Imbuídos desses aspectos – religiosos e turísticos – os lugares acabem por adquirir qualidades ambíguas – sagrado e profano, divino e humano, espiritual e material – que, como

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pontua Oliveira (2004), justifica as peregrinações e/ou viagens em busca de algo que está para além do habitual. Para compreender esses aspectos descritos acima, e a relação entre residentes e turistas na comunidade de Nova Trento/SC, recorremos aos conceitos e métodos antropológicos que serviram de base para esta pesquisa. A etnografia como método

Geertz vai defender no ensaio Descrição Densa: Por uma

teoria interpretativa da Cultura194 a cultura como um conceito semiótico (símbolos, signos, sinais), apoiando-se em Max Weber para quem o homem é um animal amarrado em teias de significado. Para Geertz, a cultura seriam essas teias que devem ser analisadas não se buscando uma teoria, mas a interpretação e o significado dessas teias.

Foi daí que a antropologia tornou-se uma disciplina de caráter interpretativo da cultura e não como explicadora de realidades totais. Toma-se como premissa que viver em um dado sistema cultural significa interpretá-lo. Sendo assim, o antropólogo pode buscar estas interpretações (de segunda mão, é claro) encontrando em seu próprio universo cultural de significados que possam interpretar a realidade estudada.

Geertz defende que a melhor maneira de compreender uma ciência não é buscando suas principais teorias, mas sim dando uma olhada naquilo que os cientistas fazem. No caso da antropologia, o que os antropólogos fazem é a Etnografia. 194 GEERTZ, Clifford.. 1989. “Por uma teoria interpretativa da Cultura”. In: A Interpretação das culturas. Rio de Janeiro, LTC.

Podemos pensar a etnografia como um texto em que os antropólogos ou outros pesquisadores que podem adotá-la, descrevem os fatos observados num determinado lugar (sociedade, tribo, bairro, país, etc.).

Mas não se trata de uma descrição qualquer que apresenta os fatos em superficialidade, mas sim uma descrição densa com o significado, a interpretação desses fatos. Ele cita como exemplo os dois garotos que piscam o olho direito: um pisca por se tratar de um tique nervoso involuntário; o outro como um sinal de conspiração. Os dois atos, se observados do ponto de vista fenomenológico, apresentariam nenhuma diferença. Para o behaviorista radical seria apenas a contração de um mesmo músculo. Mas sabemos que, entre um tique nervoso e uma piscadela conspiratória há muita diferença.

O TURISMO E A ANTROPOLOGIA

Pesquisar sobre Turismo, numa visão antropológica obriga, em primeiro lugar, a justificar a compatibilidade do objeto com a ciência que o estuda, coisas que parece até paradoxal desde que o turismo é, essencialmente, movimentos de pessoas. Mas a relação não é tão óbvia para todos. Há 50 anos apenas que, vencendo a resistência dos seus pares, alguns cientistas sociais ousaram abordar um tema que só agora, começa a gozar de certo prestígio acadêmico. No final do século XX, o antropólogo Dennison Nash, da Universidade de Connecticut, realizou um estudo de

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antropologia na área de turismo, publicando Anthropology fo Tourism ( Nash, 1996). Nesse livro o autor tenta uma explicação para a falta de produção nessa área dizendo que, para antropologia, o tema turismo sempre pareceu sem importância, sem relevância e sem valor científico. Ao fazermos um breve resgate histórico dos estudos antropológicos, vamos perceber de acordo com Nash (1996, p. I) que os primeiros estudos sérios realizados pela antropologia no campo do turismo devem-se a Theron Nuñez, que descreveu os impactos do turismo no México, num artigo intitulado Tourism, Tradition and Acculturation: Weekendism in a Mexican Village, publicado no Southwestern Journal of Anthropology. Nas décadas seguintes tivemos vários estudos que tratavam sobre turismo, na ótica da antropologia. Apesar de que na década de 70 a idéia que prevalecia e era difundida pelos organismos internacionais de desenvolvimento, era que estas atividades estavam destinadas a salvar economicamente os países do Terceiro Mundo Os estudos de antropologia estão, na atualidade, preocupados com os impactos de certas formas de turismo, especialmente o cultural e o étnico, e com a descaracterização e comercialização das culturas que estes provocam. O trabalho de Barbara Kirshemblat-Gimblett, Destination Culturale, tem todas as condições para se transformar num clássico a respeito do tema (Kirshenblatt-Gimblett, 1997).

No Brasil o interesse da antropologia e da sociologia pelo turismo tem aumentado a cada ano. Há coletâneas, como Olhares contemporânea sobre o Turismo, organizada por Célia M.

Serrano, Tereza M. T. Luchiari e Heloisa T. Bruhns195, onde, além destas, sociólogos e antropólogos como Beatriz Labate, Arlete Moyses Rodrigues, Edmilson Lópes Jr. apresentam suas pesquisas. Muitos outros pesquisadores e também muitas dissertações de mestrados e doutorados em antropologia continuam a pesquisar o tema.

Um grande percentual dos estudos sobre turismo, tanto no Brasil, quanto no exterior, tem focalizado, principalmente, os impactos na cultura, os processos de aculturação e a questão da autenticidade. Menos atenção tem recebido temas como: alteridade, constituição da diferença, relações de gênero, relações inter-étnicas no trabalho, modos de produção e representações sociais, por exemplo. Desde que no turismo estão sempre sendo colocados estranhos frente a frente, há o emprego de muita mão-de-obra feminina e de minorias étnicas excluídas e é uma atividade emblemática do capitalismo, os temas anteriormente elencados encontram, no turismo, um rico campo de pesquisa para esses grandes temas das ciências sociais. TURISMO RELIGIOSO: UMA RÁPIDA REFLEXÃO

Segundo a Organização Mundial do Turismo (OMT), turismo é um deslocamento para fora do local de residência por período superior a 24 horas e inferior a 60 dias, motivado

195 Esta pesquisadora não é cientista social, porém sua contribuição tem sido de enorme importância dentro das ciências sociais aplicadas ao turismo, nos estudos de lazer e meio ambiente.

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por razões não-econômicas (apud CARVALHO; VASCONCELLOS, 2006, p.8). Se “o homem é o resultado do meio cultural em que foi socializado”, como nos informa Laraia (2001, p.46), “[...] ele é um herdeiro de um longo processo acumulativo, que reflete o conhecimento e experiência adquiridas pelas numerosas gerações que o antecederam”. É de supor que, as grandes transformações pelo qual o mundo tem passado com a agilidade dos processos históricos, refletem no meio e no indivíduo. Se a cultura do homem perpassa por fatores psicológicos que guiam o comportamento do indivíduo e seu grupo (GEERTz, 1989), a religião é um dos fatores de identificação. Ela corrobora em fazer o homem como ser social e sentir aceito dentro do grupo ao qual pertence. Nesse contexto, as religiões somadas ao turismo tornaram um dos fenômenos sociais que mais tem se desenvolvido nos últimos anos.

Conforme Balderramas (2000, apud CARVALHO; VASCONCELOS, 2006), o turismo é um fenômeno social que consiste no envolvimento dos indivíduos ou grupos de pessoas que, fundamentalmente, por motivos de recreação, descanso, cultura ou saúde, saem do seu local de residência habitual e, por conta dessa ação, geram múltiplas inter-relações de importância social, econômica e cultural para o destino.

Farias ( 2013), nos diz que o conceito de "turismo religioso" tem sido objeto de discussão entre os cientistas e estudiosos não só o mundo do turismo e as instituições sociais, mas também por etnógrafos, antropólogos,

sociólogos, geógrafos, economistas. Por outro lado, vem sendo estudada e definida perspectiva eclesiástica, sendo pioneira em sua formulação nos anos 50 e 60 do século XX (SERRALLONGA e HAKOBYAN, 2011).

A denominação do turismo como religioso encerra várias discussões, que surgem na tentativa de compreender sua identidade, suas motivações, entre outros aspectos que o envolvem. Sob esse enfoque, o turismo religioso, assim como o próprio turismo, apresenta-se como um fenômeno múltiplo, de caráter complexo, abrangendo diferentes significados e motivações e podendo ser analisado e compreendido por meio de abordagens diversas (SCHNEIDER e SANTOS, 2012; CHRISTOFFOLI, 2007; DIAS, 2010). CONTEXTUALIZANDO O TURISMO RELIGIOSO NO BRASIL E EM SANTA CATARINA

“A busca por uma religiosidade é uma questão cada vez mais presente no mundo moderno. Quanto mais as pessoas se sentem perdidas, mais elas se apegam à religião. Geralmente, acontecimentos pontuais fazem com que as pessoas se aproximem mais da religião”, diz Samira Osman, professora de turismo do Centro Universitário Senac, em São Paulo.

Segundo Klintowitz (2001, p. 125): No inicio do século XX, acreditava-se que quanto mais o mundo absorvesse ciência e erudição, menor seria o papel da religião. De lá para cá, a tecnologia moderna se tornou parte essencial do cotidiano da maioria dos habitantes do planeta e permitiu que até

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os mais pobres tenham um grau de informação inimaginável cem anos atrás. Apesar de todas essas mudanças, no início do século XXI o mundo continua inesperadamente místico. O fenômeno é global e no Brasil atinge patamares impressionantes. [...]

Esta afirmação de Klintowitz está apoiada em pesquisa

da Revista Veja 196 , e apresentada no Blog de Reinaldo Azevedo 197 cujos resultados mostram que 86,8% dos brasileiros são Cristãos e, destes 64,6% constituem uma maioria de católicos, e os evangélicos já somam 22,2%. Dados como estes levaram a repórter Juliana Gouthier198 a firmar que “o pais do carnaval é também um pais de muita religiosidade”. Segundo levantamento da EMBRATUR199, 15 milhões de pessoas se deslocam anualmente no país por motivos religiosos, movimentando, no mínimo, R$ 6 bilhões por ano.

Para Gouthier, “toda essa motivação religiosa é um dos traços mais fortes da cultura do Brasil”. A repórter menciona o Frei Francisco Van der Poel, que há anos se dedica a 196 KLINTOWITZ, Jaime. Um povo que acredita. Revista Veja. São Paulo, Ed. 1731, n 50, dez 2001, p. 124-129. 197 Blog Reinaldo Azevedo – Análises políticas em um dos blogs mais acessados do Brasil. 29/06/2012 às 15h56min – Acessado no dia 12/04/2014:veja.abril,com.br/blog/Reinaldo/geral/o-ibge-e-a-religiao---cristaos-sao-868-do-brasil-catolicos-caem-para-646-evangelicos-ja-sao-222/ 198 GOUTHIER, Juliana. Fé faz o Brasil se multiplicar. Rio de Janeiro; Jornal do Brasil, 10 de set. de 2000, Caderno de Turismo, p. 8. 199 EMBRATUR ou Instituto Brasileiro de Turismo é o nome de uma autarquia especial do Ministério do Turismo do Brasil. Sua função é executar a Política Nacional de Turismo do governo do Brasil.Foi criada em 18 de novembro de 1996, durante o governo do presidente Castelo Branco.

pesquisar e escrever sobre manifestações populares, que aproximam a religião do aspectos cultural. Segundo Poel, “cultura é vida, religião é vida” .

Essa reflexão sobre as manifestações místicas e religiosas no Brasil faz evocar, criticamente, as considerações de Andrade (2000, p.79), cujo ponto de vista, ao que parece, consegue compreender, sob o aspecto turístico, aquilo que acontece coma cultura religiosa tipicamente brasileira:

[...] ressalvados o turismo de férias e o turismo de negócios, o tipo de turismo que mais cresce é o religioso, porque – além dos aspectos místicos e dogmáticos – as religiões assumem o papel de agentes culturais importantes, em todas as suas manifestações de proteção a valores antigos, de intervenção na sociedade atual e de preservação no que diz respeito ao futuro dos indivíduos e das sociedades.

Pesquisa feita pelo Ministério do Turismo do Brasil, em parceria com a Fipe (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas), em 2006, mostra que vem crescendo o número de turistas que se deslocam no país com motivação religiosa. Segundo dados da pesquisa, 3,2% do total de turistas viajaram, em 2006, por motivos religiosos; em 1998, esse percentual era de 2,7%.

O setor, no entanto, ainda precisa ser profissionalizado. “A organização do turismo religioso é algo recente e, mais recente ainda, é a sua profissionalização. O Ministério do Turismo tem só quatro anos”, explica Priscila Izawa, coordenadora da área de turismo do Centro Universitário.

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Existem muitos locais no Brasil onde o potencial para se desenvolver o turismo religioso é enorme, mas são pouco divulgados e conhecidos apenas regionalmente. É necessário que pesquisas sejam realizadas nesses locais no sentindo de orientar os trabalhos de planejamento para o desenvolvimento do turismo religioso. Numa tentativa de responder a essa demanda e aproveitar o potencial das festas religiosas no Brasil e buscando impulsionar e incrementar o truísmo religioso, a EMRATUR incentivou a criação de “Roteiros da fé”200, enfatizando as principais festas e atrações religiosas e criando roteiros regionais brasileiros. TURISMO EM SANTA CATARINA Buscando uma política de desenvolvimento do Turismo em Santa Catarina, e seguindo as orientações do MTur, os municípios passaram a seguir as diretrizes do Programa Nacional de Regionalização do Turismo e priorizam a gestão descentralizada, os investimentos em qualificação profissional e na infraestrutura e com resultado foi desenhado um novo mapa do turismo, apresentando os destinos turísticos que estão consagrados e os novos destinos, envolvendo 132 municípios com vocação turísticas do Estado.

O mapa da regionalização orienta a atuação de políticas investimentos do MTur pelo país”, diz Vinicius Lummertz, secretário nacional de Políticas de Turismo. Lummertz lembra

200 EMBRATUR – Instituto Brasileiro de Turismo. Roteiros da fé. In: Jornal do Brasil.2000

ainda que em SC o turismo responde por 12,5% do PIB, um dos maiores entre os estados brasileiros.

O novo mapa turístico de Santa Catarina dividiu o estado em 10 regiões com destinos específicos, ficando assim configurados: Caminhos da Fronteira, Caminho dos Cânions, Caminho dos Príncipes; Costa Verde & Mar; Grande Florianópolis; Grande Oeste; Encantos do Sul; Serra Catarinense; Vale do Contestado e Vale Europeu. Além das regiões catarinenses já consagradas pelo turismo, como as praias do litoral, o estado apostas em roteiros diferenciados, como por exemplo, a Serra Catarinense, onde são registradas as temperaturas mais baixas do país durante o inverno. SEGMENTOS TURÍSTICOS: TURISMO RELIGIOSO

Os segmentos turísticos, que estão presentes nas diversas regiões de Santa Catarina, estão divididos em turismo de Sol e Praia, turismo Religioso, Ecoturismo, turismo de Esportes de Aventura, turismo de negócios, turismo de eventos, turismo cultural, Enoturismo/Gastronomia, turismo da Saúde, turismo da melhor idade, truísmo Rural , turismo de entretenimento e turismo de compras.

Vamos focar nossa descrição no segmento do Turismo Religioso, nas diversas regiões apresentadas, apontando às localidades dos santuários que compõem esse segmento e também as romarias e eventos religiosos. Em Santa Catarina,

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há 22 santuários e uma centena de destinos de peregrinação católica que envolve 70 municípios. Para efeito de descrição dos santuários, das romarias, procissões e eventos de cunho religioso que fazem parte do segmento do turismo religioso, vamos acompanhar a divisão por regiões estabelecidas pela SANTUR do Estado de Santa Catarina, que possui 10 regiões/destinos201.

Na Região da Grande Florianópolis, destacamos a Procissão do Senhor dos Passos e o Santuário Mariano do Município de Angelina. A Procissão do Senhor dos Passos, que há 240 anos mantém-se como uma das maiores festas de fé e de religiosidade popular de Santa Catarina. Um dos momentos emocionantes da Procissão acontece ao sopé da colina do Hospital, quando a imagem do Senhor Jesus dos Passos faz um giro de 360 graus sobre si mesma, com se despedindo por mais um ano na cidade. Ao término da procissão as imagens retornam à capela do Menino Deus do Hospital de Caridade onde no decorrer do ano recebem as visitas, as orações e os pedidos de seus devotos. Já no município de Angelina, na região da Grande Florianópolis temos o Santuário Mariano, com uma Gruta dedicada a Nossa Senhora de Lourdes. A linda Gruta de

201 Regiões definidas pela SANTUR: Região da Grande Florianópolis; Região Encantos do Sul; Vale do Contestado; Costa Verde Mar; Região da Serra Catarinense; Região Vale Europeu. Região Caminho dos Cânions; Região Caminhos da Fronteira; Região Caminho dos Príncipes; Grande Oeste.

Angelina foi um presente de Frei Zeno Wallbroehl O.F.M.202

Na Região dos “Encantos do sul”, encontramos a comunidade de São Luiz, no município de Imaruí, sul do Estado de Santa Catarina, o Santuário Diocesano da Bem Aventurada Albertina203, onde nasceu em 11 de abril de 1919, Albertina Berkenbrock, filha de imigrantes alemães, a jovem foi assassinada aos doze anos de idade ao resistir uma tentativa de estupro. O primeiro sinal de santidade de Albertina ocorreu já no dia de sua morte. Segundo consta, o sangue jorrava de seu pescoço sempre que o agressor, ex-empregado do seu pai, aproximava-se do caixão.

A cerimônia de beatificação foi realizada na Catedral Diocesana de Tubarão no dia 20 de outubro de 2007, porque foi reconhecida pela igreja católica como jovem mártir.

Ela pode vir a ser a primeira Santa genuinamente brasileira, isto é, nascida em território nacional.

Na mesma região do sul do Estado de Santa Catarina, encontramos uma das maiores manifestações religiosa do

202 Frei Zeno (1866-1925) Missionário Franciscano, em suas andanças pelo sul do país, certa vez foi acometido de uma doença grave que o levou à beira da morte. Com muita fé bebia água da gruta de Lourdes (França), o maior Santuário Mariano do mundo, que visitara. Fizera promessa de construir uma gruta a Nossa Senhora se ela lhe devolvesse a saúde. Numa noite febril viu, em sonho, um local muito lindo, apropriado para uma bela gruta à Virgem mãe de Deus. Já com a saúde restabelecida, com ardor muito grande pôs-se a procura deste lugar nas cercanias de Angelina. Penetrou na mata virgem atrás da Igreja Paroquial. Depois de árdua subida, Frei Zeno exclama entusiasmado: “É aqui! Este é o lugar que vi em sonho!” À sua frente, entre paredes de rocha, estendia-se um corredor largo e longo, terminando num paredão com 12 metros de altura por onde descia rumorosa cascata. 203Dados Site: www.beataalbertina.com

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estado, é a festa de Santo Antônio dos anjos do município de Laguna204. A fé da população de Laguna ao Santo Antônio dos Anjos transformou-se numa das maiores características da cidade, todos os anos a partir do dia 1º de junho até o dia 13 (data festiva para o santo padroeiro) a cidade vive o carinho pelo santo padroeiro. Na igreja de Santo Antônio de Laguna, já foi realizado mais de 16 mil casamentos.

No extremo sul do estado, encontramos o Santuário Nossa Senhora de Caravaggio205, no município de Nova Veneza. No último domingo do mês de maio acontecem, em Caravaggio, Nova Veneza-SC, a grandiosa Festa e Romaria em honra a Nossa Senhora de Caravaggio. É uma grande demonstração de fé do povo. Durante todo o dia os devotos de Maria, dirigem-se ao santuário, a pé ou motorizados, vindos dos mais diversos lugares e nos mais diversos horários.

Já na região do “Vale do Contestado”, acontece todos os anos no último sábado do mês de fevereiro a Romaria Penitencial Frei Bruno 206 , no município de Joaçaba/SC. Acontece todos os anos no último sábado do mês de fevereiro. O percurso é realizado a pé pela multidão que vai da Catedral Santa Terezinha ao Cemitério Frei Edgar, onde está sepultado Frei Bruno; na chegada é realizada uma missa. O turista e romeiro podem ainda visitar a Catedral Santa

204Dados: Secretaria Municipal de Turismo – Laguna/SC - Fone: (48)3644-8700. www.laguna.sc.gov.br. 205 Fonte: www.novaveneza.sc.gov.br . 206 Fonte: Site: www.freibruno.com.br / www.joacaba.sc.gov.br

Terezinha, o Busto207 de Frei Bruno, localizado ao lado da Catedral o museu e o Túmulo do Frei Bruno.

Na Região “Costa Verde Mar”, encontramos o Santuário e Igreja Nossa Senhora dos Navegantes, na cidade de Navegantes208, aonde no dia 02 de fevereiro de 1658, uma bela imagem de Nossa Senhora foi trazida a Navegantes, na época um bairro da cidade de Itajaí, em uma embarcação por um pescador devoto, de nome Manoel Galeno. A imagem foi recebida pelos moradores com grandes festejos, o que passou a se repetir todos os anos, na mesma data.

As poucas famílias que ali residiam dependiam quase que exclusivamente da pesca. Ao sabor das ondas, defrontavam-se os pescadores com perigos do mar e invocavam a proteção de Maria, Mãe dos Navegantes, Estrela do Mar, para retornarem em segurança às suas casas. Em 1907, foi concluída a construção de uma Capela, tendo como Padroeira Nossa Senhora dos Navegantes, sob a proteção de São Sebastião e Santo Amaro. Eram tempos difíceis, pois raramente um padre atravessava o rio numa batera para aqui celebrar uma missa, confessar, batizar ou administrar um sacramento. Em 1962, é criada a Paróquia de Nossa Senhora dos

207 O monumento Frei Bruno é o terceiro maior do mundo em altura. Localizado num ponto de alto relevo da cidade, futuramente a estrutura terá o museu num andar, um restaurante panorâmico com vista para a cidade e um mirante. No último andar será fixado uma escultura da imagem de Frei Bruno, feita pelo artista Cláudio da Silva, da cidade de Joaçaba. 208 Fonte: Prefeitura Municipal de Navegantes/SC. www.navegantes.sc.gov.br .

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Navegantes e a cidade foi elevada à categoria de município. Posteriormente, em 1996, no ano do centenário da chegada da imagem, a Igreja Matriz é elevada à condição de Santuário. Dentro da Região Costa Verde, encontramos o município de Camboriú/SC, aonde acontece o Congresso Nacional de Missões dos Gideões Missionários da Última Hora209, evento promovido na última semana de abril de cada ano, o congresso nacional de missões já é tradição para o público evangélico de todo o país e simpatizantes em geral. É realizado no ginásio municipal de esportes Sen. Irineu Bornhausen e conta com a participação de aproximadamente cento e cinqüenta mil congressistas a cada edição do evento, o que serve para divulgação do nome da cidade e atração de investimentos na forma de turismo religioso210. Na Região da “Serra Catarinense” temos o Santuário Diocesano Nossa Senhora Aparecida211, no município de Bom Retiro. Inaugurado em 2004, propicia aos visitantes uma visão típica da paisagem serrana. Do Mirante do Pai Eterno, é possível observar o ponto mais alto de Santa Catarina, o Morro da Boa Vista, com 1.827 m. Em 12 de outubro há grande concentração de fiéis no local.

209 Gideões Missionários da Última Hora foi fundado em 1980 pelo Pr. Cesino Bernardino, seu atual presidente, tendo como vice-presidente o Pr. Reuel Bernardino. Nosso objetivo é o preparo e envio de missionários para as mais carentes localidades do Brasil e do mundo, com a finalidade única de divulgar o Evangelho de Jesus Cristo, tendo sempre em mente nosso slogan: unindo o Brasil para evangelizar o mundo! 210 Fonte: Site: www.gideoes.com.br 211 Fonte: Prefeitura de Bom Retiro/SC. WWW.bomretiro.sc.gov.br

Na Região “Vale Europeu”, encontramos três santuários, dois no município de Nova Trento e um no município de Brusque. Quanto ao Santuário de Madre Paulina, já descrevemos nos capítulos anteriores deste estudo. O Santuário de Nossa Senhora do Bom Socorro, foi construído entre 1899 e 1912 e fica localizado no Morro da Cruz, a 525 metros de altura. Lá, uma exuberante estátua em bronze de Nossa Senhora do Bom Socorro, doada pela Família Imperial da França e carregada pelos colonizadores até o alto do morro, recepciona os visitantes. Em cima da igreja um mirante possibilita uma visão panorâmica de todo o Vale do Rio Tijucas até seu encontro com o mar. Já no município de Brusque, no Vale de Azambuja, também conhecido como Vale dos Milagres, abriga a gruta com fonte de água, imagem de Nossa Senhora de Caravaggio, Museu Arquidiocesano – considerado um dos mais completos acervos de arte sacra popular do Brasil – e o Santuário de Azambuja212. Todo esse complexo religioso é visitado todos os anos no terceiro domingo de agosto, quando ocorre a Festa de Azambuja, que atrai mais de 80 mil visitantes.

ASPECTOS GERAIS E HISTÓRIOCS213 Localização – Mesorregião IBGE Grande Florianópolis

212 Fonte: Site: www.santuariosantapaulina.org.br 213 Fontes: Instituto Brasileiro de geografia e Estatística, 2013 – Governo do Estado de Santa Catarina, Secretaria de Estado do Planejamento, 2012 – Unidade de Gestão Estratégica do SEBRAE/SC (UGE), Estrutura organizacional das Coordenadorias Regionais – Federação Catarinense de Municípios (FECAM) – Santa Catarina Turismo S/A ( SANTUR).

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Coordenadoria Regional do SEBRAE/SC

Foz do Itajaí

Associação dos Municípios GRANFPOLIS – Associação dos Municípios da Grande Florianópolis

Secretaria de Desenvolvimento Regional de SC

SDR- Brusque

Área territorial (km²) 402 Distância da Capital (km) 78 Altitude (metros) 30 População Total 2010 – estimativa 2013

12.190 – 13.135

Densidade demográfica 2010 (hab/km²)

30,31

Data da fundação 8/8/1892 Colonização Italiana Gentílico Nova-Trentino Número de Eleitores 8.630

NOVA TRENTO E A PRESENÇA DAS IRMÃZINHAS DA IMACULADA CONCEIÇÃO

No final do século XIX, Nova Trento viu nascer no ambiente religioso da cidade, as Irmãzinhas da Imaculada |Conceição, resultante do fervoroso modelo de vida que Amábile Lúcia Visintainer conheceu e aplicou em sua vida. Assim começou a Congregação das Irmãzinhas da Imaculada Conceição na localidade rural do Vígolo, que, com o acompanhamento e aconselhamento dos padres Jesuítas apoiaram o processo de oficialização, visto que, fazia parte do processo de romanização “o investimento na criação de

seminários e no encaminhamento de ordens e congregações religiosas” (MARQUES, 2000, p.41.) 214 . Para a autora enquanto parte “do projeto de romanização da religiosidade local, buscou-se canalizar a fé através da construção de Santuários em pontos altos da cidade, bem como, na passagem do século em diversas cidades foram instaladas cruzes nos pontos visíveis e altos” (2000, p.73)

Essa situação vai se modificar somente com a beatificação de Paulina (Amábile Lúcia Visintainer) em 18 de outubro de 1991 pelo Papa João Paulo II, em Florianópolis/SC – Brasil e reforçada no dia 09 de julho de 1998, data comemorativa da festa litúrgica de Madre Paulina, quando se tornou público a transformação da Igreja de Vígolo (a comunidade onde Amábile viveu, distante 10 quilômetros do centro da cidade), como o Santuário de Madre Paulina, até ser construído o atual Santuário. Após isso, ocorreu Roma, em 19 de maio de 2002, a canonização (o reconhecimento da santidade), que permitiu incremento de visitantes (tanto devotos quanto turistas), sendo esse oi mais novo Santuário brasileiro. A partir daquele momento, Nova Trento deixa de ser um local de interesse apenas da comunidade, passando a ser destino de milhares de visitantes, em busca de Santa Paulina.

Durante o trabalho de campo observou-se que o local do Santuário comporta milhares de pessoas, ao seu entorno, onde possibilita espaços para estacionamento, como também um bom fluxo de veículos. O fluxo desses visitantes ocorre

214 MARQUES, A. M. Nova Trento In (canto) de fé, SC: UNIVALI. 2000

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durante todo o ano, mas é acentuado em períodos distintos, como o período de férias (Dezembro, janeiro e fevereiro), bem como nos períodos ligados as festas em homenagem a Santa Paulina, como os meses ligados à beatificação e à Canonização. O controle mais recente do número de visitantes se fez por meio de contagem de veículos e seus ocupantes, na primeira semana de janeiro de 2012, situando-se em torno de 70 mil visitantes mensais (NUNES, 2012), porém, a Administração do Santuário apresenta um número distinto, e indica que o número de visitantes de diários chega a 30 mil.

Apesar dessa transformação a cidade e o município de Nova Trento não modificaram radicalmente suas condições, pois, as estruturas urbanas bem como os acessos rodoviários (a ligação com a cidade de Brusque, e a ligação com a BR 101), e a estrutura de serviços, não se incrementaram, ou, se haviam, não se ampliaram, em face dos milhares de visitantes que a acessam diariamente. Nesse sentido não se observa a instalação de empresas turísticas na mesma proporção do acréscimo de visitantes, nem mesmo existe estrutura para que os mesmos mantenham-se por mais de um dia no local, visto que, só existe um único hotel ????? (de propriedade do Santuário), e, menos de uma dezena de pequenas pousadas ao longo dos acessos rodoviários. Esses problemas da infra-estrutura local atualmente são resolvidos pelo uso das cidade de Florianópolis, que, além de ser a Capital do estado concentra muitos hotéis e, empresas de transportes (para grandes e pequenos grupos, bem como famílias e individualmente), e, Balneário Camboriú que possui as

mesmas condições da Capital, todos, distantes não mais do que 150 quilômetros de Nova Trento, bem como, pelo aeroporto de Navegantes.

Nas margens da rodovia que dá acesso ao Santuário de Madre Paulina, encontramos uma pequena estrutura de comércio de alimentos, dos mais variados. Muitos dos pequenos comércios oferecem produtos da região, que tem como vocação gastronômica os produtos da cultura italiana, como queijos, vinhos, salames, etc. Também encontramos grandes espaços, que se transformam em estacionamentos, para o dia de festas e eventos religiosos. Percebe-se que muitas propriedades agrícolas, foram desmembrados em pequenos lotes urbanizados. No entorno do Santuário, também encontramos uma serie de lojas de lembrança do Santuário e da Santa Paulina (esculturas de santos, fotografias, pinturas, louças, terços, chaveiros, camisetas, etc.), e pequenos restaurantes, que atende aos pequenos grupos de turistas e romeiros. O maior restaurante, que chega atender a 5.000 mil refeições dia, pertencente ao Santuário.

A religiosidade impregnada em Nova Trento pode ser vista em qualquer canto da cidade. Ao todo, o município abriga 21 capelas (uma em cada bairro), mais a Paróquia São Virgílio, construída em 1942, no centro de Nova Trento. No entanto o que mais chama a atenção na cidade são os capitéis, espécie de minialtares encontrados às margens das ruas. Nova Trento possui mais de 30 Igrejas e Capelas O TURISTA/PEREGRINO E SUA CARACTERIZAÇÃO

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Buscando compreender a visão do visitante/peregrino/turista e assim estabelecer o perfil dos mesmos, apoiamos nossos dados na pesquisa realizada pelo convênio de cooperação Técnica entre a Prefeitura de Nova Trento e a Secretaria Municipal de Turismo, realizada no período de 19 a 25 de outubro de 2011. A amostragem estratificada e por unidades simples, com o nível de confiança estimado em 95% e um erro amostral máximo de 5%, com a amostra final definida em 411 (quatrocentas onze) entrevistas.

A pesquisa apontou os principais mercado emissores nacionais e internacionais. Dentro os destinos emissores nacionais temos:

Principais Mercados Emissores Nacionais ESTADOS PERCENTUAL

SANTA CATARINA 72,75% PARANÁ 12,65%

SÃO PAULO 7,54% RIO GRANDE DO SUL 4,87%

* Outros215 2,19%

O OLHAR DOS RESIDENTES (NATIVOS)

Diante das observações quanto à localidade, foco de nosso estudo, concordamos com o exposto por Oliveira (2004, p. 50) quanto ao fato de que, “partindo de um critério geográfico, identifica-se o meio rural como habitat

215 *Rio de Janeiro, Minas Gerais, Pará, Ceará, Mato Grosso do Sul e Piauí.

privilegiado para a construção do universo religioso mais tradicional.” Ou seja, tudo parece convergir para o estabelecimento de um território sagrado, onde o divino é mais facilmente acessado e encontrado.

Mas, e os residentes dessa região, desses lugar sagrados? Como vivem? O que sentem? O que pensam a respeito de tudo isso?

Durantes a pesquisa etnográfica conseguimos colher uma série de informações e opiniões dos residentes, quanto ao fenômeno do Turismo Religioso em Nova Trento. Buscando ampliar o campo de análise também transcrevemos algumas informações levantadas pela pesquisadora Renata Silva, no seu trabalho de campo na cidade de Vígolo, sobre turismo religioso no ano de 2003 e assim podermos traçar um paralelo domas opiniões colhidas 10 anos mais tarde.

Em 2003, o pensar do residente assim era expresso: Com relação ao tempo de moradia em Nova Trento, identificou-se apenas um entrevistado não ter nascido no município, vindo quando pequeno, os demais são oriundos da cidade de Nova Trento. Quanto ao gostar de morar em Nova Trento, obteve-se um total de 100% de respostas afirmativas, tendo como justificativa a tranquilidade que a cidade oferece a segurança, o orgulho cultural neotrentina, pela cidade ter futuro e pela proximidade com grandes centros urbanos. Quando a se mudar para outras cidades, prevaleceram as respostas negativas, com as seguintes observações: “tudo o que tenho está aqui”; “não vou trocar a tranqüilidade por agitação”; “porque valorizo a terra onde nasci e cresci (família)”; “dificilmente encontraria outra cidade com estas características”.

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Entretanto as respostas positivas quanto à mudança enfatizam a falta de opções de lazer e de compras; ou então por necessidades de emprego. Quase 70% dos entrevistados trabalham com atividades relacionadas ao turismo. Dentre elas tem-se: comercio, restaurante, hotelaria e pousadas. Estes entrevistados, afirmam trabalhar com estas atividades de 10 anos. [...] Os entrevistados foram unânimes quanto ao questionamento de existência de melhorias no município após a beatificação de madre Paulina em 1991. Identificaram como principais aspectos positivos os seguintes: a divulgação do município, o desenvolvimento do comércio, o aumento de emprego no município, o desenvolvimento geral do município, valorização da cultura italiana, a possibilidade de abrir um novo negócio, aumento de opções de lazer, a melhoria da educação e da preservação da natureza. [...] Os aspectos negativos ocorridos em Nova Trento, após a beatificação em 1991, foram percebidos por aproximadamente 53% dos entrevistados. As principais modificações foram: “vários comércios abriram e já fecharam”; “há muita gente de fora”; “invasão de ambulantes perto do Santuário Santa Paulina”; “roubos, assaltos e violências”; “ superpovoamento”; desrespeito aos costumes locais”; “exploração comercial”; destruição das vias públicas”; mais exigências para os novos empregos”; “ exploração de mão-de-obra de menores de idade”; e “a população local foi colocada de lado em relação aos turistas”. [...] Mais de 86% dos entrevistados acreditam que com a santificação de Paulina, a vida da comunidade melhorou, já que a “nossa cidade ficou conhecida pelo mundo todo e fortaleceu o nosso relacionamento com a Itália”. Outras justificativas também foram citadas como: “outras mentalidades e cultura sempre são positivas”; “a prefeitura na busca de atender bem aos turistas, fez

obras que melhoraram a vida dos moradores”; “houve uma valorização de mão-de-obra e dos terrenos e casa, o que faz com que os jovens fiquem em Nova Trento”; “parece que há mais fé”; e “novas perspectivas de emprego”. [...] A relação dos turistas com a comunidade foi considerada positiva por mais de 85% dos entrevistados, devido à hospitalidade do povo italiano. Os que afirmaram ser negativa declaram se sentirem invadidos com a presença dos turistas. Quando questionados sobre a instalação de novos moradores no município, 80% dos entrevistados afirmaram que conheceram turistas que vieram, primeiramente, para visitar o local e, alguns meses depois, retornaram para morar em Nova Trento. Isso se dá, segundo eles, pela tranquilidade do município. (Silva, 2004, p. 127-129)

Hoje, 2014 os residentes assim avaliam, agora numa

abordagem etnográfica, transcrevemos partes das falas dos moradores a respeito das mudanças sócio-culturais que vem ocorrendo:

[...]

Logo, as mudanças já começaram a aparecer na localidade após o processo de canonização, principalmente no campo do turismo religioso, Iniciativas tímidas visando a recepção dos turistas. O aspecto físico da cidade na verdade mudou muito pouco. O que mudou mesmo foi o bairro do Vígolo, onde Santa Paulina morava com a família e tudo aconteceu. Com a construção do Santuário, os imóveis, terrenos e casas foram supervalorizados. Pontos de vendas foram construídos ao redor da igreja original sem planejamento. As Irmãs que são responsáveis

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pelo Santuário, compraram os terrenos que circundam o mesmo, e tentam humanizar aquele espaço, no qual é um tanto quanto complicado, elas tem planos futuros de fazerem shoppings e serem as grandes donas de todo aquele espaço. Existe também uma exploração exagerada sobre os visitantes, inclusive com o próprio estacionamento que é terceirizado. O serviço de infraestrutura é ainda precário, principalmente no atendimento à saúde e segurança do turista. Ainda, constatando as mudanças ocorridas, a estrada que leva ao bairro do Santuário sofreu grandes transformações de barro a calçamento e de calçamento a asfalto. A grande sacada mesmo com relação à cidade foi a ampla divulgação que a mesma recebeu a nível nacional e mundial. A canonização em si foi muito positiva para a cidade e principalmente para a Congregação das Irmãzinhas da Imaculada Conceição. Os nativos em sua grande maioria praticam a Religião Católica Apostólica Romana e participam também das atividades religiosas do Santuário, recebem bem os turistas e percebem neles pessoas que podem trazer benefícios para a cidade. Falando economicamente os números não mudaram muito. A arrecadação com impostos em comércio oscila entre 5% ou 10% positivos. A longo prazo é possível que isso modifique, no entanto o turismo é uma atividade muito cara e a cidade não tem como arcar com a despesa de infraestrutura necessária para o desenvolvimento do turismo. O Secretário de Cultura e Turismo, Sr. Eluisio Antônio Voltolini, nos informou que juntamente com o estado e outros órgãos estão desenvolvendo projetos e planos para desenvolver o turismo religioso na região. Outro fator importante para o desenvolvimento da cidade é que o número de empregos aumentou, muitas pessoas movidas pela propaganda vieram para Nova Trento em busca de melhores condições de vida. Aumentou o número de empresas empregadoras e com isso a imigração. Porém, isto não é devido somente ao turismo. A boa fase econômica do país contribuiu

também. A instalação das empresas provocou busca de mão de obra em outras partes do estado e do país. Agora 80% das mulheres trabalham fora de casa, na indústria, serviços gerais, entre outros, auxiliando assim no orçamento do grupo doméstico. A população aumentou nos últimos anos com a oferta dos novos empregos em, ao menos 30%, de 10 mil habitantes em 10 anos, passaram a ter 13 mil, o que é bastante significativo, mas não por causa do turismo religioso. Com a vinda dos turistas, e também da nova mão de obra, aumentou o número de comércios e restaurantes. Nova Trento, também é uma cidade famosa pela gastronomia. Aos poucos os retratos culturais vão se alterando, a cultura local muito fechada vai se abrindo às culturas trazidas pela mão de obra vinda principalmente dos estados do Paraná e Rio Grande do Sul. Nenhum grupo cultural surgiu devido ao turismo religioso, o que sobressai é a festa de Santa Paulina e as romarias e peregrinações ao Santuário. O patrimônio cultural sempre foi a parte forte do município e por isso sempre sofreu incentivos do poder público. Com a canonização o patrimônio religioso/cultural ficou mais visível e, portanto, mais incentivado. Antes da canonização de Santa Paulina, as manifestações religiosas eras as tradicionais da igreja católica. Com a vinda da mão de obra para trabalhar nas empresas locais surgiram novas igrejas e com elas novas manifestações religiosas. Surgiram e continuam a surgir novas igrejas com as mais variadas designações: Assembléia de Deus, Igreja Quadrangular, entre outras. O número de fiéis oscila muito. Os fiéis até aumenta, mas a frequência aos sacramentos, na prática, não acontece na mesma proporção, por mais que as igrejas tentem evangelizar. O número de visitantes ao Santuário da Madre Paulina é de aproximadamente 60 mil pessoas por mês. Eles vêm de todas as regiões do país. Pertencem a todas as faixas etárias e prevalece o número de mulheres.

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Existem algumas campanhas comunitárias realizadas pelo Santuário como a coleta e distribuição de alimentos as pessoas carentes. No Santuário só atua a Congregação das Irmãzinhas da Imaculada Conceição e na Paróquia a Congregação dos Padres Jesuítas, até já existiram outras como a das Irmãs Catequistas, mas não prosperaram por lá. O perfil dos turistas que visitam a cidade podem ser caracterizados da seguinte forma: Religioso: Caracterizado pelos romeiros e peregrinos. São movidos pela fé, devotos da Santa Paulina. Normalmente se apresentam em grupos ou individualmente. Os peregrinos vem representando algum motivo específico. Os romeiros normalmente vem em busca de cura, de saúde ou algum outro benefício para si e sua família. Não tem grande poder aquisitivo. Costumam trazer sua própria marmita e raramente fazem compras. De lazer: Os que vem passear, conhecer o local e eventualmente participar de missas e outros eventos religiosos. Tem bom poder aquisitivo. Almoçam e fazem compras no local. Vem de várias partes do estado e até do país, mas raramente pernoitam na cidade, e quando o fazem, ocupam hotéis e pousadas da cidade ou região. Estrangeiros: Visitam o Santuário e permanecem na cidade por alguns dias. Hospedam-se no hotel do Santuário ou em pousadas da cidades. Tem bom poder aquisitivo. Normalmente relacionam-se com as autoridades locais. Residentes: Muito poucos visitam o Santuário. Quando o fazem, é exclusivamente para participar de missas, procissões, festas e outros eventos religiosos. Não é porque não acreditam na Santa Paulina, mas porque moram aqui e podem visitar o Santuário a hora que quiserem. Com relação aos políticos o Santuário é profissional. A Secretaria de Turismo do município tem boa parceria com o Santuário. Na verdade, a Secretaria de turismo só existe porque existe o turismo religioso. Convém também dizer que houve alguns momentos de tensão entre as autoridades políticas e o Santuário. Inclusive leis

foram criadas para organizar a atividade turística, principalmente com relação ao transito, sendo a mais importante delas a do Plano Diretor da Cidade. Falando um pouco mais sobre a tradição da cidade, ela é de forma principalmente oral e é muita rica em países de imigração europeia. A tradição de Nova Trento é oriunda da Itália, da região de Trentino. Os imigrantes trouxeram para cá seus costumes, usos, tradições e passaram isto para seus filhos. A parte mais forte é tradição religiosa da Igreja Católica Romana. Os pais passavam para seus filhos orações tradicionais como Ave Maria, Pai Nosso, Santo Anjo e ainda o costume de frequentar a missa dominical e os sacramentos do batismo, da comunhão, da crisma, do casamento e da confissão. Nova Trento foi um grande celeiro de vocações religiosas. Era costume as famílias dedicarem um filho ou filha para a vida religiosa. A agricultura era a atividade predominante e o hábito de entoar cânticos religiosos no trabalho era muito forte. Em dias de trovoada forte queimava-se palma benta para a proteção contra raios e ventos. A reza do terço antes de dormir era obrigatória. As melhores roupas eram usadas para a missa dominical e festas religiosas. No campo da cultura, praticava-se muito a musica trazida pelos imigrantes e o canto. A banda musical e os grupos do coral ainda existem hoje. Os templos religiosos eram construídos pela população com doação de dias de trabalho gratuito. O teatro era outra atividade muito praticada, principalmente com peças religiosas. O lazer se resumia às festas religiosas, ao jogo da moura, da bocha, do baralho e do futebol. A caça e a pesca eram a sobrevivência. A comida tradicional era a polenta, queijo de casa, linguiça e a ministra. A educação dos filhos era feita em casa no estilo tradicional de valores passados de pais para filhos. A educação escolar era oferecida pelos Padres e Irmãs no modelo tradicional da escolástica. Para finalizar segundo o nativo, Professor Moacir Facchini, o turismo religioso em si não produz riqueza e desenvolvimento

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econômico para a cidade, ele fica mais restrito ao desenvolvimento espiritual das pessoas, porém, não se tem notícias de prejuízos causados pelos turistas que visitam a cidade.

De acordo com o trabalho de campo, após ouvirmos os

residentes/nativos e suas observações e comentários a respeito do turismo Religioso, elaborou-se um quadro resumo intitulado “Diversos processos de transformações da comunidade local pelo turismo religioso”:

PROCESSOS DE TRANSFORMAÇÕES DA

COMUNIDADE LOCAL PELO TURISMO RELIGIOSO

Processos Políticos

Positivos Negativos • Divulgação da cidade a

nível nacional;

• Prestigio para os políticos da cidade – reconhecimento político/eleitoral;

• Aproximação das atividades políticas com as religiosas;

• Facilidade na captação de recursos públicos para projetos na cidade.

• Atualização do Plano Diretor em função das novas atividades turística e econômicas

• Criação de novas leis, com

• Aproveitamento midiático dos eventos religiosos somente com cunho eleitoral;

• A falta de investimento por parte do governo local e estadual na infra-estrutura da cidade e da região, principalmente nas vias de acesso, na saúde

• Ausência de uma estrutura pública de atendimento ao turista – Um posto de informação turística, ou de acolhimento ao turista.

objetivo de organizar principalmente o trânsito.

Processos Econômicos

Positivos Negativos • Desenvolvimento do

comercio local; • Aumento no número de

empregos

• Surgimentos de novos empreendimentos, como hotéis, pousadas, restaurantes, etc;

• Surgimento de empregos sazonais em períodos de festas e eventos;

• Valorização da mão-de-obra local;

• Valorização das propriedades (imóveis) e dos terrenos.

• Muitos ambulantes ao redor Santuários

• Muitos comércios abriram e já fecharam;

• Custo elevado de vida da população no período de eventos religiosos, ou mesmo turístico.

• Ausência de qualificação da mão-de-obra nos serviços do turismo religioso;

• Especulação imobiliária na região de Vígolo.

Processos Sociais

Positivos Negativos • Oferta de novos empregos;

• Inserção da mulher no mercado de trabalho, principalmente nas atividades do turismo;

• Uma maior atenção aos serviços básicos de saneamento, saúde e educação;

• Aumento da criminalidade; • Exploração de mão-de-obra

de menores de idade; • Superpovoamento;

• A população local foi colocada de lado em relação aos turistas.

• Congestionamentos em dias de eventos religiosos.

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• Aumento de opções de lazer.

Processos culturais

Positivos Negativos • Valorização da cultura

religiosa; • Divulgação da cultura

neotrentina; • Envolvimento da

população local nas atividades religiosas e culturais;

• Uma maior conservação do Patrimônio cultural-religioso;

• Divulgação da gastronomia e da culinária de base italiana.

• Fortalecimento do relacionamento com a Itália.

• Desrespeito aos costumes locais;

• Falta de orçamento a secretaria municipal de turismo e cultura;

• Falta de implementação de políticas direcionadas à cultura local.

• A falta de incentivos as atividades culturais dos grupos já existentes

• Descaracterização dos artigos religiosos produzidos na comunidade e o desrespeito aos costumes locais;

Processos Ambientais

Positivos Negativos • Implantação dentro do

espaço do Santuário de diversos equipamentos que preservam o ambiente local e leva o turista uma prática religiosa em harmonia com a natureza.

• A implantação do Turismo Ecológico, aproveitando a

• Poluição do solo por parte de turistas/peregrinos que visitam ao Santuário de Madre Paulina;

• Por estar dentro do bioma da Mata Atlântica, a ausência de políticas de conscientização dos turistas e da comunidade ao que se

presença dos turistas e dos romeiros no santuário.

refere a preservação de toda região do Vale do Tijucas.

• A poluição visual, dentro o espaço do santuário pela presença desorganizada das barracas do ambulantes.

Figura: Diversos Processos de Transformações da Comunidade

CONSIDERAÇÕES FINAIS A pesquisa que ora se conclui buscou refletir de que forma a Antropologia contribui para o estudo dos processos culturais nas localidades receptoras do turísmo religioso. Para isso, resgatou-se, de forma breve, o histórico da aproximação da Antropologia com o fenômeno turístico, procurando entender as interações culturais entre turistas e residentes dentro de um processo social.

Atualmente, a cidade de Nova Trento está inserida como o principal roteiro do Turismo Religioso de Santa Catarina, e teve o reconhecimento oficial, quando da aprovação pela Assembléia Legislativa do Estado, como a Capital Catarinense do Turismo Religioso. A cada ano que passa o número de fiéis, peregrinos e turistas, que vem visitar e conhecer o Santuário de Madre Paulina, aumenta, na maioria motivados pelo sentimento fundante do Turismo Religioso, a fé.

Diante da inserção do turismo religioso ocorreu, por conseguinte, um reconhecimento e valorização da população

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local com o sentimento de pertencimento da cidade com a primeira Santa do Brasil, Madre Paulina. Passando a cidade de Nova Trento/SC a ser reconhecida como a Cidade da Primeira Santa do Brasil, os residentes, utilizam tal referência para informar o local onde vivem.

Atualmente, a cidade tem mais de 13 mil habitantes e recebe cerca de 70 mil turistas por mês no Santuário Santa Paulina. A economia deixou de ser apenas rural e passa por um processo de diversificação. A cidade se reinventa também com a chegada de novos moradores, que buscam uma oportunidade melhor. Os turistas incrementam de forma lenta o comércio, a oferta de novas oportunidades de emprego, a inclusão das mulheres e dos jovens nas atividades ligadas diretamente ao turismo.

A infra-estrutura da cidade teve um acréscimo quando dos eventos da Beatificação e da Canonização de Madre Paulina. Depois, as mudanças que se fazem necessárias para o acolhimento dos turistas, que a cada mês aumenta, e com isso, as demandas sociais e de infra-estrutua, e de atendimento dos residentes, permaneceram nas promessas, provocando um certo desconforto na relação dos residentes e turistas.

Apesar de ser um estudo inicial e que precisa ser aprofundado, percebe-se que na verdade os residentes/nativos da cidade sede do santuário, que se beneficiam economicamente com a presença dos turistas, não estão precisamente interessados em receber os turistas, mas o dinheiro deles. Os turistas passam a ser um mal necessário. Mal porque sua presença provoca mudanças na rotina da

cidade e uma precarização dos serviços públicos antes oferecidos somente aos residentes; necessário porque o dinheiro faz falta. Os turistas, por sua vez, vêem no residente apenas um instrumento para seus fins. E com diz Barreto (2003): “o grande paradoxo do turismo é que essa atividade coloca em contato pessoas que não enxergam a si mesma como pessoas, mas como portadores de uma função precisa e determinada”.

No que tange ao fenômeno religioso, cabe ressaltar a religiosidade do povo de Nova Trento. Falar em religiosidade é falar em crenças e rituais de uma população e na relação dessa população com o sagrado. A interação entre turismo e religiosidade é problemática e precisa ser acompanhada pelos produtores culturais, técnicos e responsáveis pela formulação de políticas públicas, para que o turismo não venha a causar a substituição dos seus motivos e desvirtuá-la facilmente, se os pretextos para sua realização forem substituídos somente por interesses econômicos.

O risco maior de interferência negativa do turismo religioso, sobre os residentes, surge quando os produtores culturais tradicionais deslocam o foco de sua atenção para os turistas, encarando-os como motivo especial e objeto de toda atenção por se caracterizarem como oportunidade de lucro.

Finalizando, percebe-se que se existir uma gestão profissional do turismo religioso no município de Nova Trento/SC, tanto estadual como municipal, que contemple toda a cidade e toda a população, e não somente a comunidade de Vígolo, levando em conta a realidade social,

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cultural, econômica e religiosa de todos os munícipes, a relação dos residentes com o turismo religioso será positiva.

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PATRIMÔNIO E MEMÓRIA: CRIVEIRAS, MULHERES DE TRADIÇÃO SECULAR, NA LOCALIDADE DE TIJUQUINHAS, NO MUNICÍPIO DE BIGUAÇU

Ana Lúcia Coutinho216

O presente artigo apresenta uma descrição das técnicas da arte de tramar o crivo, trabalho diário executado pelas criveiras, mulheres de tradição secular, na localidade de Tijuquinhas217, no Município de Biguaçu (SC). Foca-se o viés da oralidade, seus saberes e fazeres, formas de organização, manutenção e vivência dessas mulheres no contexto urbano, com a finalidade de manter a identidade local. Suas relações na troca efetiva do saber e a incorporação relacionada a preservação do patrimônio cultural imaterial.

No caso em epígrafe a pesquisa está direcionado a um grupo de mulheres que nasceram e vivem no mesmo lugar por décadas, numa comunidade centenária, denominada Tijuquinhas, situada no Município de Biguaçu, a 17 Km da

216 Aluna do curso de Doutorado em Antropologia de Ibero-América da Universidade de Salamanca, pesquisadora da cultura popular e fundadora do Grupo Arcos Pró-Resgate a Memória Histórica, Artística e Cultural de Biguaçu. 217 Tem a sua origem na antiga Vila de São Miguel da “terra firme”. Muitas famílias residentes no local, no final do século XVIII, saíram desse espaço urbano e buscaram novas paragens, no sentido norte. Tijuquinhas surge dessa expansão. Na tradição oral e historiográfica o termo Tijuquinhas provém da linguagem Tupi-Guarani – tiyug (água) e ênk (podre), rio podre, água podre. Existe ainda mais de trinta e quatro significados para o referido nome. Uma sugestão é também ver o significado do nome Tijucas, que significa “o brejo, a lama, lama podre, líquido podre, charco, pântano. Tijucupana significa lamaçal, atoleiro”.

capital do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, oriunda do povoamento luso açoriano estabelecido no litoral na metade do século XVIII.

O cenário geográfico marcado por curvas, contempla a pequena planície emoldurada por morros e peraus. É banhada no lado leste pela baía inteiramente navegável, fronteiro a Ilha de Santa Catarina, as ilhas de ratones e a de Anhatomirim. A BR 101 e o rio Cachoeira corta o lugar e desagua na praia que leva o seu nome. Praia importante no processo de desenvolvimento das famílias que habitaram a comunidade até o final da década de 60. Dalí tiravam parte do sustento ligado a pesca de subsistência.

Até a década de 60 a relação das famílias está vinculada a pesca de camarão e da relação comercial com os pequenos entrepostos de pesca existente na comunidade, que também provém da troca comercial com lugarejos vizinhos: Caeiras, Armação da Piedade e de Ganchos, hoje Governador Celso Ramos. A agricultura também é parte da economia local, talvez, com relação a sobrevivência das famílias está a maior relação. Na atualidade os moradores vivem do comércio de flores desenvolvido pela pequena Colônia Holandesa, estabelecida na região, a partir de 1954 e de empregos públicos e privado na grande Florianópolis.

O cenário bucólico até a década referida, marca a vivência dessas mulheres e registra a atuação no ofício de produzir o crivo e uma insipiente relação comercial com outros lugares, através do trabalho intermediário, característica que se mantém até a atualidade. Essas mulheres pouco se distanciavam da sua terra natal. Em prosa

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e verso essas mulheres detentoras do saber secular escrevem a sua história através das peças que executam com habilidade e dedicação. O referido lugar é conhecido no linguajar popular das mais antigas, como a comunidade que detém o saber de inúmeras artesãs produtoras do crivo miudeiro, uma espécie de renda herdada das antepassadas mulheres açorianas que ali aportaram.

Poetas, comerciantes e pessoas da comunidade retratam no seu imaginário o trabalho dessas mulheres que na simplicidade cotidiana continuam a executar a arte secular de tramar um pedaço de tecido, preferencialmente de linho branco. Nas tarefas de execução para a elaboração das peças aplicam técnicas seculares repassadas de geração a geração. Com criatividade criam suas amostras (desenhos), por vezes, pré executados e elaboradas no papel quadriculado, que resultam ao final de sua composição trabalhos de fino trato, extremamente criativos.

As peças são elaboradas de diferentes tamanhos e formatos para ser utilizadas em múltiplas ocasiões e funções. Podem compor enxovais femininos, lembranças de casamentos e aniversários, peças decorativas ou para adornarem altares de igrejas, por exemplo. A produção não se constitui em série. Cada peça é peça única, fruto das horas livres dedicadas rotineiramente após ao trabalho doméstico. A execução da trama que resulta no crivo (forma de crivar o tecido), possui lugar especial na vida de cada uma delas e reflete-se em prazer como alimento da alma. Segundo a artesã Júlia Machado “não consigo ficar um dia sem tocar no meu crivo. O meu trabalho espontâneo é parte de mim e me enche

de orgulho, quando vejo a peça pronta. Meu orgulho está também quando presenteio alguém com a peça e a pessoa fica feliz, por que sei que a identidade das nossas mulheres está mantida através de arte”. Por sua vez, Eliete Anderson Bovee, acrescenta “é uma forma de passar o tempo e dessas mulheres ganharem um dinheirinho, para comprar o que desejam, nesta altura da vida”. Já, Marina Costa, menciona “fazer o crivo permite, também, que a gente se reúna com as amigas na maioria das vezes uma vez por semana. Conversamos e compartilhamos nossas coisas pessoais. Uma anima a outra na vida naquilo que sabemos fazer melhor, o nosso crivo”.

Essa relação que encontraram na terceira idade tem ajudado sobre maneira a manter a tradição e concluem informando que o resultado do trabalho proporciona também outras alegrias, como por exemplo, guardar os recursos para ser utilizado em pequenas viagens de lazer, presentear amigos, não tocar nos parcos recursos da aposentadoria e a lidar com mais alegria com a velhice. Algumas conseguem e utilizam “esse prazer” assim como denominam, para melhor viver. É arte tradicional um elemento que tem contribuído para manter as relações sociais e afetivas.

FORMAS DE PRESERVAÇÃO

Durante o processo de pesquisa constata-se que a mulher criveira possui uma relação distante com as políticas de preservação instituídas no país. Elas não se relacionam com os órgãos públicos federal, estadual e municipal de forma direta. Porém nas conversas percebe-se, que essas

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mulheres não estão à margem do processo de entendimento do que está ocorrendo com a cultural brasileira, quanto a política de patrimonialização dos saberes populares, vinculadas a política nacional de patrimônio imaterial, instituída pelo Programa Nacional do Patrimônio Imaterial, criado pelo Decreto 3.551/2000 e, mais recentemente, voltado para a criação da Lei dos Mestres, que tem como objetivo salvaguardar os saberes e fazeres de tradição oral. As informações a elas chegam através dos meios de comunicação, palestras e comunicações das lideranças locais, mas nem sempre conseguem vincular o quão é importante estar atentas a esses aspectos para a continuidade do saber.

Na simplicidade inerente a essas comunidades, compreender essas políticas e “internacionalizá-las” não se caracteriza como algo fácil no processo de sobrevivência dos saberes e fazeres. Para melhor ilustrar o parágrafo transcrevo o depoimento de Júlia Machado completado por Marina da Costa Silvy, ambas mestras criveiras: “sei que é importante existir um órgão federal e estadual, para cuidar da política de preservação, porém está muito distante de nós. Se perpetua um saber como o nosso, criando peças e formas de troca entre uma pessoa e outra. Repassando o conhecimento e também criando condições de venda, estimulando formas de mercado, para vender o nosso produto e não apenas com escritos publicados. Nosso saber é herança e tornou-se tradição na comunidade, porque se produz desde as primeiras pessoas que chegaram com os nossos antepassados açorianos em São Miguel. Quando estamos produzindo, por exemplo, pensamos que estamos mantendo a tradição das mulheres das nossas famílias e da nossa comunidade. Já fomos muito conhecidas e reconhecidas pela

qualidade do nosso crivo espalhado por comunidades mundo a fora” (Entrevista realizada em 20 de julho de 2013).

Na concepção dessas criveiras a política é distante porque foi criada nos bastidores distante da realidade em que vivem. Havia que se discutir na base, criar formas de preservação através da execução de oficinas remuneradas considerando a qualidade do trabalho e o esmero individual traduzido pelo conhecimento de cada uma. As mestras criveiras estão abertas ao diálogo e preocupadas com a manutenção do saber. Na linguagem de uma delas “nós produzimos com gosto e prazer. Temos orgulho de cada peça que terminamos”. A mestre Júlia completa: “hoje não gosto mais de vender minhas peças. Tenho muito ciúme delas. Gosto mesmo é de presentear os meus filhos, as noras, os netos e os amigos próximo. De vez em quando minhas peças alcançam outros lugares, outros oceanos. São presenteadas a autoridades para entregar a outras autoridades, por exemplo. As vezes são colocadas em desfile de modas, das escolas de designers da região. Mas segunda a criveira isso ainda não é suficiente para manter a tradição, porque é preciso repassar o conhecimento a outras pessoas e instituir formas de pertença a peças e os grupos na comunidade, porque faz parte identidade local.

E, continua “já produzi e vendi muitas peças, para famílias do Rio de Janeiro, Florianópolis e também para Argentina, Portugal, Açores, Estados Unidos, Canadá, Japão. Também produzi peças para o banquete de posse de um governador, na década de 50. Estas eram peças como toalhas de banquete. Eram peças grandes que demandavam tempo e muita dedicação. Já ganhei dinheiro para ajudar em casa, enfim para comprar coisas pessoais. Comprar

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roupas finas para me vestir e também as minhas filhas para as festas do Divino, de Natal, de padroeiro. Hoje é diferente. No meu caso produzo para me manter viva as minhas tradições como já mencionei. Nosso trabalho é lindo. Sei também que para criar formas de mercado para dar maior visibilidade ao nosso trabalho é muito difícil, porque implica numa série de coisas, envolve organização, liderança, recursos e disponibilidade das pessoas no ato de querer fazer e isso repito é muito difícil”. (Entrevista em 11 de novembro de 2013).

A criveira Marina da Costa Silvy completa “nós vendemos o nosso crivo, utilizando a boca a boca, e muitas fazem assim, outras preferem dar seus crivos para intermediárias vender, algo também comum na região. Não é o meu caso. Também acontece de deixarmos as nossas peças com os responsáveis dos grupos da Terceira Idade no qual pertencemos, para proceder à venda em feiras e lugares públicos. Fica tudo sobre a responsabilidade dela o que também facilita o nosso trabalho. Assim o nosso trabalho vai se mantendo enquanto estamos vivas”. (Entrevista de 11 de novembro de 2013).

No depoimento dessas mulheres consta-se que o trabalho desenvolvido é uma relação de amor e de apego com o seu saber com a sua identidade e m referencial as suas origens. Essa relação é composta por respeito e solidariedade. As atitudes estão empregadas das atitudes cotidianas dessas artesãs. O desenvolvimento da atividade, a vivência pode ser solitária ou coletiva, durante o processo de execução, todavia depende com exclusividade das atitudes que cada uma elas encaram o processo, ditado, muitas vezes, pelo tamanho da peça que pretende executar.

Segundo elas secularmente a forma de troca ou venda é a mesma, ou seja, através do próprio contato com as pessoas, que se institui através da excepcionalidade de suas peças ou, através, de uma pessoa intermediária que faz o referido papel. O papel da intermediária é importantíssimo no processo de continuidade, porque a mulher não precisa sair do seu ambiente de trabalho para buscar o mercado. A intermediária já possui os contatos que se multiplicam no processo de venda. A criveira (algumas) neste quesito não se expõem o ato de vender. Outro papel importante vinculado a intermediária está na distribuição dos tecidos e outros materiais para a execução das peças, entre uma casa e outra da comunidade. Muitas peças são distribuídas de acordo com a habilidade de cada uma, quanto as etapas de execução das peças.

Na mesma linha de raciocínio outra criveira, completa “...aqui não temos uma política pública para se manter essa arte. Temos o interesse de pessoas que admiram o trabalho, como do nosso Grupo da Terceira Idade ou do Grupo Arcos Pró resgate da Memória Histórica Artística e Cultural de Biguaçu, que tem incentivado a produção, inclusive, expondo as peças em feiras e levando o grupo a participar de desfiles comunitários a fim de divulgar e preservar o trabalho. Este último uma instituição cultural do nosso município que eleva a nossa cultura. A presidente é filha de uma mestra criveira e entende do trabalho, por isso nos anima e sempre que pode nos coloca em desfile e em feiras, repito. Outro fator importante é que gostamos de fazer. Não vivemos sem um bastidor nas nossas casas. Temos o gosto pelo fazer”. E continua com entusiasmo a sua narrativa, mencionando:

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“somos um grupo de mulheres, algumas, com pouca instrução, mas, que, desde pequenas produzimos as peças e, agora, após criarmos os filhos, possuímos todo tempo para continuar a produzir e manter o que aprendemos com as mulheres da família. É a nossa tradição que não pode morrer e tanto nos orgulha, porque foi através desses pedaços de tecidos finos, tramados com dedicação, que ajudamos em casa e aumentamos a renda familiar” finaliza, Júlia Machado.

Outra mestra continua “O crivo é como uma bússola para nós. O resultado do trabalho, a peça feita, hoje nos leva para encontrar com as amigas para discutir as coisas das nossas vidas; nos leva para conhecer pessoas e lugares e, ainda, permite mostrar a juventude o que aprendemos com as nossas mães e avós. Isso é muito bonito”, conclui, Marina da Costa Silvy.

Refletindo sobre o que foi mencionado pelas informantes conectei com o que escutei certa vez, de Bráulio Tavares, no Seminário Nacional de Políticas Públicas para Culturas Populares, “a tradição serve como bússola para quem viaja. A bússola aponta para o norte, mais isso não quer dizer que você tenha que viajar para lá. Ela apenas serve para diferenciar os pontos, apontar e mostrar onde estamos e para onde queremos ir”. Explica, apenas nos direciona para aquilo que queremos conectar.

Quando tratamos de fazeres e saberes de referência cultural como a arte de tramar o crivo por exemplo, significa dizer, que são múltiplas as formas implícitas impregnadas no saber dessas mulheres que tramam suas peças. Elas sem dúvida referenciam o que fazem ao longo da história, considerando que “toda atividade humana produz sentidos de lugar e esses lugares podem ser identificados e

delimitados pelos marcos e trajetos desenvolvidos pela população nas atividades que lhe são próprios” (INRC/Iphan).

A relação da política instituída de acordo com os depoimentos instituídos permite se afirmar que ainda se está distante de se manter a aproximação e se instituir uma política pública de preservação quando o município não reconhece o seu patrimônio cultural e não possui a coneção com as instituições. CRIVO REFERÊNCIA CULTURAL DE BIGUAÇU O município reúne um número significativo de criveiras na grande Florianópolis. Essas mulheres são descendentes dos primeiros povoadores açorianos que aportaram na antiga Vila de São Miguel da “terra firme”. Terra continental protegido pelo padroeiro o Arcanjo São Miguel. Os moradores do lugar desde o nascimento da vila eram ligados ao desenvolvimento da agricultura e à pesca de subsistência e a comercialização da caça a baleia.

O crivo é uma atividade exercida desde início do povoamento em 1750. É marca registrada de muitas famílias que compõe o lugar. No passado era muito raro ter uma residência ou outra que não tivesse uma mulher criveira. Esse fazer faz parte do contexto histórico doméstico local e se mantém através da oralidade.

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ETAPAS DO FAZER

O crivo é um processo de transformação centrado num pedaço de tecido branco (puro linho de preferência) que passa por cinco etapas distintas na sua confecção: a primeira delas se distingue por marcar o tecido; a segunda em desfiar o tecido; a terceira em tampar (tramar) o tecido de acordo com a mostra pré-escolhida; a quarta se prende ao urdir e a quinta e última etapa está o casear. Só após essa etapa é que a peça pode ser recortada do bastidor. Todas as três últimas etapas podem ser feitas simultaneamente, quando se trata de uma peça grande e as mulheres podem ficar ao seu redor.

A complexidade da execução está no desprendimento

das mulheres em laborar as amostras em papel quadriculado

para posterior execução das peças. O tecido após marcado é costurado num bastidor. Este um quadrado ou retângulo de madeira, feito de vários tamanhos pela própria criveira, dependendo do tamanho da peça a ser executada. AS AMOSTRAS

Realizadas com delicadeza imprimem um ritmo quando da elaboração das peças. Muitas executam baseadas em amostras antigas guardas com imenso carinho, durante anos. Os papéis quadriculados de tanto manusear, muitas vezes, encontram-se rasgados e os traçados dos desenhos quase apagados, havendo que refazer. Dificilmente, trocam suas amostras, para manter a originalidade de alguma mostra antigas. Outras nem tanto trocam sem nenhum problema instituído a solidariedade e a forma democrática para manter a tradição.

Na atualidade costumam copiar amostras de revistas que trazem modelos para ser executados nos bordados de ponto cruz. Mas criar ou executar desenhos antigos como a rosa de sete, os lírios, as margaridas, os cachos de uvas (toalhas para o enxoval religioso), faz parte do conhecimento na memória constituindo-se um pequeno acervo, muitas vezes referenda a relação cotidiana. OUTRAS FORMAS DE PRODUÇÃO

Na atualidade muitas mulheres criveiras criaram outras formas de executar as peças de crivo. Utilizando tecidos não muito finos. Três questões podem ser levadas em consideração. A primeira delas está centrada na dificuldade de encontrar o tecido denominado de puro linho; a segunda o

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alto preço do referido tecido e, a terceira está vinculada a idade avançada dessas mulheres, na maioria com mais de 70 anos, que optam por fazer peças pequenas, exigindo pouco tempo para a conclusão da peça debruçadas sobre o bastidor. Nessa perspectiva acrescentam outras alternativas, como por exemplo, elaboram a trama em tecidos considerados simples, não muito adequados, como nos tecidos denominados de panos de saco. A técnica de execução é a mesma, mas o resultado final não atinge a elaboração realizada no puro linho, levando a produzir com delicadeza as peças consideradas de fino trato, as miudieiras. A REUNIÃO UMA FORMA DE ORGANIZAÇÃO

Ainda é madrugada, quase manhã, quando a “líder” do Grupo da Terceira Idade de Tijuquinhas inicia o processo de arrumar o espaço, local já definido, para abrigar o grupo de mulheres, com mais de setenta anos, para mais uma jornada de convívio, troca de saberes, experiências e expectativas, quanto à sobrevivência deste saber secular.

Na memória dessas mulheres está implícita uma dinâmica singular de trabalho espontâneo, individual ou coletivo, que resume suas vivências. Estão unidas pelo saber e pela força conjunta de sobrevivência desse saber que se traduz no processo de transformação, centrado num pedaço de tecido conhecido como linho, material indispensável para elaboração das peças a partir de desenhos criados, como descrito anteriormente e transmitidos de geração a geração.

Embora as artesãs não participem de nenhum projeto que tenha a finalidade de assegurar a continuidade do saber,

possuem a consciência que manter a dinâmica do encontro é importante por razões distintas. A primeira está vinculada ao convívio social que estimula a liberdade, união e a convivência, compartilhado no seu dia a dia; a segunda traduz a relação de valorização do patrimônio imaterial, gerando um significativo grau de atratividade, pelas externalidades, que representa um olhar para o empreendedorismo e desenvolvimento do turismo local, vinculado a oportunidades de negócios, ainda que caseiro na forma de pensar e de se articular. Para a manutenção a forma de organização das mulheres criveiras é considerada como indutora do processo de inclusão social e reforça o sentido de pertencimento do lugar conduzindo a reflexão sobre a preservação do patrimônio cultural imaterial local. FAZER INDIVIDUAL E COLETIVO

A prática do fazer não se resume exclusivamente ao ato individual. O coletivo em muitos casos também é atribuído ao processo onde as peças são iniciadas com uma criveira e terminada por outra. Como por exemplo uma executa o ato de marcar, a outra caseia, a outra tapa e a outra urdi, completando as etapas. Entre elas escolhem a que melhor executam as etapas procedendo maior dinamismo na arte de produzir a peça. Em alguns casos a intermediária também interfere no processo, quando a mesma é a proprietária do tecido e deseja que a peça seja terminada com rapidez, distribuindo o tempo das etapas entre as artesãs. O ato de agir, neste caso, na maioria das vezes, está atribuído as grandes peças como as toalhas de banquete, lençóis e

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cortinas, enfim, as peças que demandam tempo para ser produzidas.

AS MESTRAS CRIVEIRAS

No caso específico desta pesquisa foi escolhida um grupo de mulheres do bairro citado, no início deste artigo, com mais de setenta anos de idade e, que, na sua trajetória de mulheres produtoras (artesãs) não interromperam o fazer desde a sua aprendizagem e, ainda, são residentes no mesmo espaço territorial que nasceram.

Foram entrevistadas 20 mulheres das quais apenas seis foram consideradas mestras pelos critérios pré estabelecidos: Júlia Machado (77 anos); Marina da Costa Silvy (82 anos); Maria Aparecida da Silva (84 anos); Divalma Silva (83 anos); Neusa da Rocha Rodrigues (78 anos); Norma Silva ( 85 anos), que continuam executam a arte de tramar o crivo, e ainda, produzindo o crivo miudeiro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considera-se de importância o comprometimento das instituições locais para a salvaguarda desse saber secular

instituindo com urgência uma política de preservação no município voltado para a criação do Centro de Referência da Mulher Criveira. O centro terá o objetivo de transmitir o saber as crianças e adolescentes para que a prática continue a fazer parte da história do lugar. Valorizar a oralidade e o conhecimento como forma de preservação e patrimonialização da arte de tramar o crivo afim de estimular a venda e garantir renda as famílias. REFERÊNCIAS Entrevistas: Júlia Machado, Marina da Costa Silvy e Eliete Anderson Bovee, em 11 de Novembro de 2013; Norma Silva em 12 de outubro de 2014; Maria Aparecida Machado, em 02 de novembro de 2012; Divalma Silva e Neusa da Rocha Rodrigues, em 16 de maio de 2012. Grupo da Terceira Idade de Tijuquinhas, em 10 de junho de 2011. Acervo fotográfico Ana lúcia Coutinho e André (Itú) Lima Site: Girafa Mania. Disponível em: <www.girafamamia.com.br/girafas/línguaguarani html-45k> Acesso em: 20 Jan. 2015. Universidade Federal de Santa Catarina. Disponível em: <http://www.ufsc.br/n e Silva Dcindio.html> Acesso em: 23 Jan. 2015.

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O ECOTURISMO SOB A PERSPECTIVA DO “DESENVOLVIMENTO COMO LIBERDADE” DE

AMARTYA SEN Otávio Augusto de Freitas Barcellos

Antônio Augusto Bonatto Barcellos RESUMO: Desenvolvimento econômico, inclusão social e sustentabilidade ambiental em perfeito equilíbrio, podem ser considerados os pilares de uma nova sociedade, nascida na pós-modernidade, a impor novos paradigmas normativos, sociais e ambientais, numa visão sistêmica e integrada. Dessa nova visão surge o turismo, e, em especial, o turismo ecológico, ou ecoturismo como exemplo de atividade econômica capaz de integrar, modo efetivo e equilibrado, os três pilares dessa nova sociedade, como modelo de atividade produtiva com grande capacidade de gerar desenvolvimento econômico, abrindo novas oportunidades sociais e de inclusão das populações aos bens de consumo e às suas necessidades básicas indispensáveis, tais como saúde, educação e cultura. Tais atributos são especialmente necessários para o exercício pleno da cidadania com dignidade, de maneira ambientalmente sustentável. INTRODUÇÃO

O presente trabalho procura demonstrar a possibilidade de se adotar, especialmente nos países em desenvolvimento, um modelo de atividade econômica sustentável que atenda a alguns pressupostos básicos da sociedade pós-moderna, tais como a sua vocação histórica e o

seu atual estágio de preservação ambiental, capaz de produzir desenvolvimento econômico e inclusão social num ambiente que se mantenha ecologicamente equilibrado. Para tanto, pode haver a necessidade de ruptura com pensamento cartesiano218 como método analítico, consistente na quebra dos fenômenos complexos em unidades menores a fim de compreender o comportamento do todo a partir das propriedades das suas partes. Dito pensamento transitou pela modernidade, trazendo consigo os seus principais postulados: o dualismo; a separação; o isolamento e estratificação das partes; o reducionismo; e, especialmente, o egocentrismo. A partir deste paradigma da simplificação do pensamento, não há como negar, ocorreram os grandes progressos do conhecimento técnico-científico da atualidade, mas este avanço trouxe consigo uma conseqüência nociva evidente e palpável, qual seja a crise ambiental sem precedentes na história da humanidade. Com efeito, a degradação do planeta experimentada nos últimos cinqüenta anos é muito superior a toda aquela praticada pelo ser humano ao longo do restante da história da humanidade. Atrelado ao pensamento cartesiano, a idéia reducionista de desenvolvimento como sinônimo de crescimento econômico, gerou grande parte do passivo ambiental hoje existente em termos de degradação dos ecossistemas mundiais indispensáveis à manutenção da sadia qualidade de vida.

A crítica que se faz ao pensamento cartesiano na pós-modernidade diz com o fato de se extrair o objeto de estudo 218 DESCARTES, René. Discurso sobre o Método. 2ª Edição. São Paulo : Martins Fontes, 1996, p. 15 e seguintes.

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do seu contexto e do seu conjunto, conduzindo à abstração e ao rompimento com o real. Esta fragmentação arbitrária quebra a sistemicidade e multidimensionalidade dos fenômenos econômicos, sociais e ambientais. O modelo metodológico cartesiano de pensamento obedece ao princípio da redução, que limita o conhecimento do todo ao conhecimento de suas partes, como se a organização do todo não produzisse qualidades ou propriedades novas em relação às partes consideradas isoladamente. Aliás, a complexidades dos fenômenos econômicos, sociais e ambientais atuais em uma “Aldeia Global”219, não mais indicam o uso de tal metodologia científica para compreender a multifária e cambiante sociedade atual, tecnológica, globalizada, interconectada por meios de transporte rápidos e eficientes e uma rede mundial de computadores inimaginável uma geração atrás.

No caso deste trabalho, a situação que se nos apresenta não é diferente. O autor da obra, “Desenvolvimento como Liberdade”, cuja expressão é o referencial teórico do presente estudo, reduz as idéias de desenvolvimento e de liberdade às suas expressões mais simples, quando, em realidade, nem desenvolvimento, nem liberdade, podem ser considerados em sua forma reduzida, como se verá. Desenvolvimento, compreendido de forma sistêmica e no sentido que o autor o utiliza, deve ser aquele que conduza à superação das desigualdades sociais, atenda às necessidades fundamentais,

219 Termo utilizado pelo filósofo canadense Marshall McLuhan, para indicar as novas tecnologias que interligam as pessoas e encurtaram as distâncias, reduzindo o globo terrestre a uma aldeia.

alcançando a todos o acesso irrestrito às novas oportunidades sociais, num processo inclusivo de todos para além do mínimo existencial, mas de forma efetivamente sustentável, no sentido da preservação do meio ambiente natural, indispensável à sadia qualidade de todas as formas de vida no planeta, para as presentes e para as futuras gerações. Liberdade, por sua vez, tanto se refere à literalidade do termo liberdade, como pode se referir aos direitos e às garantias fundamentais.

Desenvolvimento econômico, inclusão social e sustentabilidade ambiental em perfeito equilíbrio, podem ser considerados os pilares de uma nova sociedade, nascida na pós-modernidade, a impor novos paradigmas normativos, sociais e ambientais, numa visão sistêmica e integrada. Dessa nova visão surge o turismo, e, em especial, o turismo ecológico, ou ecoturismo, como exemplo de atividade econômica capaz de integrar, modo efetivo e equilibrado, os três pilares dessa nova sociedade, como modelo de atividade produtiva com grande capacidade de gerar desenvolvimento econômico, abrindo novas oportunidades sociais e de inclusão das populações aos bens de consumo e às suas necessidades básicas indispensáveis, tais como saúde, educação e cultura, para o exercício pleno da cidadania com dignidade, de maneira ambientalmente sustentável.

II – “Desenvolvimento como Liberdade”

“Não é incomum os casais discutirem a possibilidade

de ganhar mais dinheiro, mas uma conversa sobre esse

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assunto por volta do Século VIII a.C. é especialmente interessante. Nessa conversa, narrada no texto em sânscrito Brihadaranyaka Upanishad, uma mulher chamada Maitreyee e seu marido, Yajnavalkya, logo passam para uma questão maior do que os caminhos e modos de se tornarem mais ricos. Em que medida a riqueza os ajudaria a obter o que eles desejavam? Maitreyee quer saber se, caso “o mundo inteiro, repleto de riquezas”, pertencesse só a ela, isso lhe daria a imortalidade. “Não, responde Yajnavalkya, “a sua vida seria como a vida das pessoas ricas. Não há, no entanto, esperança de imortalidade pela riqueza.” Maitreyee comenta: “De que me serve isso, se não me torna imortal?”

Com esta reflexão extraída da filosofia indiana, utilizada para ilustrar a natureza das atribulações humanas e as limitações do mundo material, o ganhador do Prêmio Nobel de Economia de 1998 introduz suas considerações sobre a natureza do “desenvolvimento como liberdade”. Amartya Sen, economista indiano, laureado com o Prêmio Nobel de Ciências Econômicas de 1998, distinção instituída em Memória de Alfred Nobel, pelas suas contribuições à teoria da decisão social e do "welfare state" (“estado de bem estar”, objetivo a ser alcançado por qualquer governo em relação ao seu povo), escreveu sobre o “Desenvolvimento como liberdade”, com grande propriedade, atualidade e sem o ranço das ideologias maniqueístas que separam o globo em dois hemisférios opostos por diferenças de credo religioso, etnia, forma ou regime de governo, em Estado liberal ou social. A universalidade de seus conceitos e da sua aplicação prática é que determinam a importância da sua obra.

Previamente, impõe-se tecer algumas considerações acerca da terminologia utilizada pelo autor, a fim de equalizar e atribuir maior tecnicidade à linguagem científica deste trabalho, convém esclarecer que, em nossa ótica, Amartya Sen, com formação em economia, reduz os termos jurídicos liberdades, direitos e garantias ao sentido semântico e linguístico do primeiro deles, utilizando indistintamente a expressão simples “liberdade” para se referir tanto às liberdades, quanto aos direitos ou às garantias, todas instituições estruturantes e integrantes de uma mesma matriz principiológica que trata das liberdades, dos direitos e das garantias fundamentais, os quais são, na verdade, institutos complementares entre si, intimamente ligados, mas não são sinônimos. Para J.J. Gomes Canotilho220, há diferença entre direitos, liberdades e garantias em termos econômicos, sociais e culturais:

“É uma distinção particularmente importante no plano do direito constitucional positivo e no plano do direito internacional. Quanto ao direito constitucional vigente basta dizer que a estrutura classificatória básica assenta (cfr. Infra) na distinção entre “direitos, liberdades e garantias” (Titulo II) e “Direitos econômicos, sociais e culturais” (Título III)”.

“As liberdades estariam ligadas ao status negativus e através delas visa-se defender a esfera dos cidadãos perante a intervenção do Estado. Daí o nome de direitos e liberdades, liberdades autonomia e direitos negativos. Por sua vez, os direitos estariam ligados ou ao status activus ou ao status

220 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª Edição. Lisboa : Almedina, 2012, p. 395 a 397.

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positivus. Os direitos ligados ao status activus salientam a participação do cidadão como elemento activo da vida política (direito de voto, direito aos cargos públicos). Aqui radicam expressões como direitos políticos, direitos do cidadão, liberdades de participação (cfr. arts. 48º ss). Direitos são ainda as posições jurídicas do cidadão conexionadas com o status positivus: trata-se dos direitos dos cidadãos às prestações necessárias ao desenvolvimento pleno da existência individual. Daí a sua designação como direitos positivos ou direitos de prestação, modernamente conhecidos por direitos econômicos, sociais e culturais (cfr. arts. 58º ss)”. “As garantias traduziam-se quer no direito dos cidadãos a exigir dos poderes públicos a protecção dos seus direitos, quer no reconhecimento de meios processuais adequados a essa finalidade (ex. direito de acesso aos tribunais para defesa dos direitos, princípios do nullum crimen sine lege e nulla poena sine crimen, direito de habeas corpus, princípio non bis in idem)”.

No ponto, estabelecida a idéia de liberdades, direitos e

garantias como matriz normativa principiológica fundamental das regras a serem instituídas com vistas a promover a emancipação do homem na nova sociedade, surgida na pós-modernidade, com o viés da sustentabilidade, importante definir a diferença entre normas, princípios e regras. Para Josef Esser, citado por Humberto Ávila, “princípios são aquelas normas que estabelecem fundamentos para que determinado mandamento seja encontrado”. Ou seja, “o critério distintivo dos princípios em relação às regras

seria, portanto, a função de fundamento normativo para a tomada de decisão”.221

Para Juarez Freitas: “Por princípio ou objetivo fundamental, entende-se o critério ou a diretriz basilar de um sistema jurídico, que se traduz numa disposição hierarquicamente superior, do ponto de vista axiológico, em relação às normas e aos próprios valores, sendo linhas mestras de acordo com as quais se deverá guiar o intérprete quando se defrontar com antinomias jurídicas".222

Ainda sobre a interpretação das normas, Carlos Maximiliano leciona:

"Toda lei é obra humana e aplicada por homens; portanto imperfeita na forma e no fundo, e dará duvidosos resultados práticos, se não verificarem com esmero, o sentido e o alcance de suas prescrições. Incumbe ao intérprete aquela difícil tarefa. Procede à análise e também à reconstrução ou síntese. Examina o texto em si, o seu sentido, o significado de cada vocábulo. Faz depois obra de conjunto (...) Interpretar uma expressão do Direito não é simplesmente tornar claro o respectivo dizer, abstratamente falando; é sobretudo, revelar o sentido apropriado para a vida real, e conducente a uma decisão reta (...) incumbe ao intérprete descobrir e a aproximar da vida concreta,

221 ESSER, Josef. Grundsatz und Norm in der richterlichen Fortbildung des Privatrechts, apud ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 9ª Edição. São Paulo : Malheiros, 2009, p. 35. 222 FREITAS, Juarez. A Interpretação Sistemática do Direito. São Paulo : Malheiros, 1995, p. 41.

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não só as condições implícitas do texto, como também a solução que este liga às mesmas".223

Estabelecidas as bases normativas, regras e princípios,

procuramos utilizar a diferenciação entre os referidos princípios e regras em cada caso específico, quando possível fazer a devida distinção, deixando claro ao leitor que, quando da transcrição, a leitura que se há de fazer, especialmente por parte dos operadores do Direito, das referências às liberdades significa, na verdade: liberdades, direitos e garantias fundamentais. Feita esta advertência, passemos à análise da obra.

Demonstra o autor, na sua obra, que o desenvolvimento econômico, social e cultural pode ser visto como um processo de expansão das liberdades, dos direitos e das garantias reais que as pessoas desfrutam. Isto é, na visão do autor, o crescimento do PIB (Produto Interno Bruto) ou das rendas individuais pode ser um importante meio indutor do exercício pleno das liberdades, dos direitos e das garantias fundamentais desfrutadas pelos membros de uma sociedade. De outro lado, o exercício pleno dessas liberdades, direitos e garantias, depende também de outros determinantes, como as disposições sociais, econômicas e culturais, tais como os serviços de educação e saúde e os direitos civis, como, por exemplo, a liberdade de participar de discussões e averiguações públicas, o acesso irrestrito à Justiça. Na sua obra, afirma o autor, que “o desenvolvimento requer que

223 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro : Forense, 1984, p. 9-10.

removam as principais fontes de privação de liberdade”, sendo elas:

I - a pobreza e tirania; II - a carência de oportunidades econômicas; III - a destituição social sistemática; e, IV - a negligência dos serviços públicos e intolerância

ou interferência excessiva de Estados repressivos.

Segundo Amartya Sen, a despeito do aumento da

riqueza de bens materiais em termos globais, o mundo atual ainda nega direitos, liberdades e garantias elementares a um grande número de pessoas, provavelmente à maioria, quando afirma:

“Entretanto, vivemos em um mundo de privação, destituição e opressão extraordinárias. Existem problemas novos convivendo com antigos – a persistência da pobreza e de necessidades essenciais não satisfeitas, fomes coletivas e fome crônica muito disseminadas, violação de liberdades políticas elementares e de liberdades formais básicas, ampla negligência diante dos interesses e da condição de agente das mulheres e ameaças cada vez mais graves ao nosso meio ambiente e à sustentabilidade de nossa vida econômica e social. Muitas dessas privações podem ser encontradas, sob uma ou outra forma, tanto em países ricos como em países pobres”224. 224 SEN, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, pág. 9.

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Ainda, de acordo com o autor, a liberdade é essencial para a avaliação do processo de desenvolvimento através da aferição acerca do efetivo aumento do exercício das liberdades, direitos e garantias pelas pessoas. E isto porque o crescimento econômico, pelo aumento do PIB ou da industrialização não significam, necessariamente, progresso social e cultural com efetivo incremento do acesso às necessidades existenciais básicas, especialmente quando este aumento não for disponibilizado a todos, mas ficar concentrado nas mãos de um pequeno grupo hegemônico, concentrador de renda. Nesta hipótese, haverá crescimento econômico, mas não haverá, necessariamente, progresso social, cultural e econômico compartilhado.

Esta avaliação da liberdade também pode ser alcançada mediante a aferição da condição de agente livre que as pessoas desempenham, através do exercício efetivo da liberdade, do direito e da garantia de participar das escolhas sociais e da tomada de decisões públicas que impulsionam o desenvolvimento econômico e o progresso social e cultural e o acesso aos bens e serviços indispensáveis a uma existência digna. O autor utiliza o método empírico para buscar a solução de seu problema, baseado no referencial teórico do “Desenvolvimento como Liberdade”. A importância de considerar o aumento da liberdade como o principal fim do desenvolvimento econômico, embora o alcance total dessa perspectiva somente possa emergir de uma análise muito mais ampla, a natureza radial da idéia de “desenvolvimento como liberdade” pode ser ilustrada como alguns exemplos simples anotados pelo autor.

Apresentando exemplos, o autor faz expressa referência ao Brasil, ao relacionar a dissonância entre a renda per capita e a liberdade, direito e garantia individual a ter uma vida longa e viver bem, de forma digna: “Por exemplo, os cidadãos do Gabão, África do Sul, Namíbia ou Brasil podem ser muito mais ricos em termos de PIB per capita do que os de Sri Lanka, China ou do Estado de Kerala, na Índia, mas neste segundo grupo de países as pessoas têm expectativas de vida substancialmente mais elevadas do que no primeiro”.

E termina a série de exemplos com uma recordação de infância. Conta o autor que, quanto tinha dez anos, estava brincando no jardim de casa na cidade de Dhaka, hoje capital de Bangladesh, quando um homem entrou pelo portão gritando desesperadamente e sangrando muito. Fora esfaqueado nas costas. Na época, hindus e muçulmanos matavam-se nos conflitos grupais que precederam a independência e a divisão de Índia e Paquistão. Kader Mia, o homem esfaqueado, era um trabalhador diarista muçulmano que viera fazer um serviço em uma casa vizinha à de Amartya Sen, por um pagamento ínfimo, e fora golpeado na rua por alguns arruaceiros da comunidade hindu majoritária naquela região. Enquanto dava água ao agredido, o futuro economista pediu ajuda aos adultos da casa e, momentos após, enquanto o homem era levado para o hospital pelo seu pai, Kader Mia não parava de contar que sua esposa lhe advertira para não ingressar naquela área hostil, mas como precisava trabalhar para sustentar a família que não tinha o que comer, teve de se submeter. E conclui o autor a sua

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reminiscência da infância, qualificada como devastadora, com um pensamento instigante: “A penalidade por essa privação de liberdade econômica acabou sendo a morte, que ocorreu mais tarde no hospital”. Ressalta o fato de que a privação de liberdade econômica, na forma de pobreza extrema, pode tornar a pessoa uma presa indefesa na violação de outros tipos de liberdades, “pode gerar a privação de liberdade social, assim como a privação de liberdade social ou política pode, da mesma forma, gerar a privação de liberdade econômica”. 225

Liberdades, direitos e garantias de diferentes tipos podem fortalecer umas às outras. De nada vale a liberdade plena, no sentido da não intervenção Estatal, se não há acesso aos direitos fundamentais, tais como à educação, à saúde, à segurança pública, ou se o exercício pleno de umas (liberdades) ou de outros (Direitos fundamentais) não se encontram assegurados por um sistema legal garantista e estruturado publicamente que assegurem tal exercício de modo efetivo e concreto.

Com oportunidades sociais adequadas, os indivíduos podem efetivamente moldar seu próprio destino e ajudar uns aos outros. Não precisam ser vistos, sobretudo, como beneficiários passivos de engenhosos programas de desenvolvimento econômico, social e cultural. Existe, de fato, uma sólida base racional para reconhecermos o papel positivo da condição de agente livre e sustentável e até mesmo o papel positivo da impaciência construtiva. No ponto, são apontados

225 SEN, Amartya. P. 22 e 23.

cinco tipos distintos de liberdades, direitos e garantias, vistos sob o enfoque de uma perspectiva “instrumental”, e particularmente investigados nos estudos empíricos de Amartya Sen226:

1 - Liberdades políticas (que denomina de direitos

civis), referentes às oportunidades atribuídas às pessoas para determinar quem deve governar e com base em que princípios, além de incluir a possibilidade de fiscalizar e criticar as autoridades, de ter liberdade de expressão política e uma imprensa sem censura, “abarcando oportunidades de diálogo político, dissensão e crítica, bem como o direito de voto e seleção participativa de legisladores e executivos”;

2 - Facilidades econômicas (na forma de oportunidades outorgadas ao indivíduo de utilizar recursos econômicos com a finalidade de consumo, produção e troca), que podem ajudar a gerar a abundância individual e coletiva, além de gerar recursos necessários para investimentos em serviços públicos;

3 - Oportunidades sociais (na forma de serviços de educação, saúde, etc.), com efetiva influência na melhoria de vida dos indivíduos. O analfabetismo pode ser uma barreira à participação em atividades econômicas;

4 - Garantia de transparência (referente à necessidade de sinceridade que as pessoas podem esperar das interações sociais), isto é, a inter-relação de modo claro e sem segredos; e, finalmente,

226 Idem. P. 55 a 57.

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5 - Segurança protetora (uma rede de segurança social), a impedir que a população seja reduzida à “miséria abjeta e, em alguns casos, até mesmo à fome e à morte”. Inclui disposições constitucionais fixas (direitos e garantias sociais fundamentais), como benefícios aos desempregados e suplemento de renda para os necessitados, bem como medidas pontuais, como distribuição de alimentos em situações específicas de calamidade, de crise na economia globalizada.

Cada um desses tipos distintos de liberdades, direitos

e garantias gera novas oportunidades sociais e ajuda a promover a capacidade geral de uma pessoa e podem atuar complementando-se mutuamente. As políticas públicas visando ao aumento das capacidades humanas e das liberdades, dos direitos e das garantias substantivas em geral podem funcionar por meio da promoção dessas liberdades, direitos e garantias distintas e inter-relacionadas, como forma de promoção do desenvolvimento social, econômico e cultural. Na visão do “desenvolvimento como liberdade”, as liberdades, os direitos e as garantias instrumentais ligam-se umas às outras e contribuem com o aumento da liberdade humana em geral.

III – Desenvolvimento Sustentável

Estabelecidas essas premissas do desenvolvimento

econômico como fator de inclusão social e como agente indutor de novas oportunidades sociais e do exercício pleno

das liberdades, dos direitos e das garantias fundamentais para a existência digna, importante compreender que tal linha de atuação deve guardar íntima relação com a sustentabilidade, pois não basta fomentar o desenvolvimento econômico a qualquer custo, na medida em que, hoje, se há de compreender que desenvolvimento não é mais sinônimo de crescimento econômico, na mesma medida em que não mais se estabelece o grau de desenvolvimento de uma sociedade pela quantidade de automóveis em circulação; pelo número de celulares habilitados (o Brasil fecha 2014 com mais de 275 milhões de aparelhos habilitados, mais de um para cada habitante); ou pelo consumo de combustíveis fósseis, mas há de se estar atento à sustentabilidade desse desenvolvimento, ao IDH (Índice de Desenvolvimento Humano). Sustentabilidade está entendida como a conjugação de fatores que importem num equilíbrio entre o desenvolvimento social, econômico, cultural e ambiental, os quais devem vir atrelados, integrados, harmônicos e em perfeito equilíbrio dinâmico com vistas à preservação do meio ambiente indispensável à sadia qualidade de vida.

Com efeito, o desenvolvimento sustentável é um conceito sistêmico que se traduz num modelo de desenvolvimento global incorporados também os aspectos de desenvolvimento ambiental utilizados pela primeira vez em 1987, no Relatório Brundtland, elaborado pela Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, criada em 1983, pela Assembléia das Nações Unidas e que compreende “o desenvolvimento que procura satisfazer as necessidades da geração atual, sem comprometer a capacidade das

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gerações futuras de satisfazerem as suas próprias necessidades”, isto é, significa possibilitar que as pessoas, agora e no futuro, atinjam um nível satisfatório de desenvolvimento social e econômico e de realização humana e cultural, fazendo, ao mesmo tempo, um uso razoável e racional dos recursos da terra, preservando as espécies e os ecossistemas naturais não só para as presentes, como para as futuras gerações. O campo do desenvolvimento sustentável pode ser conceitualmente dividido em três componentes:

I – sustentabilidade ambiental; II – sustentabilidade econômica; III – sustentabilidade sociopolítica.

Esquematicamente temos:

Acerca do desenvolvimento sustentável, podemos considerar que, por volta do século XVII, novos valores passaram a ser incorporados à sociedade burguesa, formando o que se convencionou chamar de modernidade, período que se seguiu até meados do século XIX, quando a formação da sociedade industrial, como produto da primeira modernidade, trouxe consigo a promessa de progresso, de crescimento econômico e de bem estar social por meio do desenvolvimento técnico-científico, onde o acesso aos bens de consumo seria popularizado e massificado pela produção em larga escala.

Ocorre que o desenvolvimento alcançado por esta nova sociedade foi tratado, numa visão redutora, como sinônimo de crescimento econômico. Assim, o discurso desenvolvimentista e a ideologia consumista da pós-modernidade legitimaram a apropriação desmedida dos recursos ambientais num padrão sem precedentes na história da humanidade, o que resultou na combinação de diversas espécies de ameaças à sustentabilidade do planeta, dentre elas, os perigos que tipificam a sociedade industrial; os riscos produzidos pelas ações humanas; o consumismo em larga escala; o descarte de resíduos sólidos, líquidos e gasosos; as novas matrizes energéticas altamente poluentes, tais como a queima de combustíveis fósseis, a energia atômica; e, especialmente, os avanços científicos que trouxeram inúmeras facilidades, mas sem a necessária avaliação dos riscos: o uso de defensivos químicos na lavoura; o avanço dos cultivos de transgênicos; a radiação produzida pelas estações rádio-base e pelos aparelhos celulares são tecnologias que carecem do

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acompanhamento e avaliação de longo prazo. Hoje, um bebê recém nascido é monitorado por um aplicativo de celular colocado próximo ao seu rosto e que funciona como babá-eletrônica, transmitindo qualquer ruído, choro, ou movimento para os pais sem qualquer limite de distância, e, a partir de então, o aparelho celular se incorpora ao corpo do infante, como um apêndice integrante da personalidade e da mente do novo Homem para o resto de sua existência, produzindo radiação por longo tempo, ainda que de baixa intensidade como garantem os fornecedores dessas novas tecnologias.

Qual o resultado dessas novas tecnologias em organismos vivos ao longo do tempo? E mais, com o aumento da expectativa de vida das gerações que estão por vir para além de um século (Laurentino Gomes, na obra 1889227, refere que, em 1871, a expectativa de vida na Inglaterra atingiu 41 anos), quem garante a imunidade do nível de contaminação atualmente experimentado pela população global?

Se, por um lado, a visibilidade e a concretude dos riscos produzidos pela primeira modernidade advinha da previsibilidade dos riscos decorrentes do incipiente processo industrial, denominado risco calculado, cujos efeitos podiam ser contidos, mitigados ou recuperados, diferente é a fase atual de desenvolvimento econômico, de padrão técnico-científico que estamos vivenciando, com a transformação para a era da chamada “sociedade de risco” 228 , na qual as

227 GOMES, Laurentino. 1889. São Paulo : Globo, 2013, p. 10. 228 Termo cunhado pelo sociólogo alemão Ulrich Beck in “Sociedade de Risco: rumo a uma nova modernidade” (Risikogesellschaft: Aufdem

indústrias químicas, com o avanço da biotecnologia no campo dos hormônios utilizados na produção animal de larga escala para acelerar o crescimento e ganho de peso; a transgenia que modifica o núcleo, o DNA, das células vivas e o uso da tecnologia atômica como matriz energética globalizaram e potencializaram os riscos de forma invisível e com conseqüências ambientais absolutamente imprevisíveis, incontroláveis e de efeitos irrecuperáveis a curto prazo. Os efeitos nefastos da radiação persistem por uma geração.

Alguns aspectos básicos, importantes e significativos acentuaram a diferenciação da primeira fase da sociedade industrial moderna, lá do início da “revolução industrial”, da atual fase técnico-científica: agora as suas causas e conseqüências não se limitam no tempo ou no espaço e atingem indistintamente todas as classes sociais. Suas conseqüências são incalculáveis. Neste quadro, evidencia-se a completa e absoluta falência do paradigma desenvolvimentista pós-moderno e sua dita racionalidade, insuficiente para solucionar os problemas complexos atrelados à sociedade industrial consumerista globalizada. Não há fronteiras físicas limitadoras da poluição ambiental que atinge o planeta produzindo a degradação da camada de ozônio, o aquecimento global, com o conseqüente derretimento das calotas polares e elevação dos níveis dos oceanos.

Weg in eine andere Modern, no original em alemão, de 1986. Foi traduzido para o inglês em 1992 e para o espanhol em 1998 e possui atualmente tradução em português, pela editora 34).

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Neste cenário sombrio, nasce um dos novos paradigmas ambientais, denominado princípio da precaução, o qual, diferentemente da prevenção, está ligado àquilo cujo resultado já se conhece. Com efeito, é possível fazer a prevenção de uma catástrofe ambiental sazonal, como uma tempestade de granizo, mas não é possível fazer a prevenção de um efeito colateral desconhecido produzido por uma nova tecnologia, hipótese a ensejar a precaução como princípio balizador da proteção ambiental global. Portanto, se de um lado, a busca pelo desenvolvimento pode ser tida como fator indutor do exercício pleno de liberdades, direitos e garantias, de outro lado, não se há de perder de vista que este desenvolvimento precisa ser condicionado aos novos parâmetros éticos, a impor novos limites aos avanços técnico-científicos para que se amoldem à nova matriz de preservação ambiental, resumidamente, denominada de: sustentabilidade.

Discorrendo "sobre a necessidade de repensar a concepção kantiana individualista e antropocêntrica de dignidade e avançar rumo a uma compreensão ecológica da dignidade da pessoa humana e da vida em geral", ao direcionar o estudo, os autores da obra Direito Constitucional Ambiental, Ingo Sarlet e Tiago Fensterseifer, pontuam:

"Considerando aqui a premissa de que a matriz filosófica moderna para a concepção de dignidade (da pessoa humana) radica essencialmente no pensamento kantiano, qualquer tentativa de superação de tal "paradigma" teórico requer um diálogo com as suas formulações e argumentos. Embora não se possa aprofundar a discussão, enfatiza-se que a formulação central do pensamento kantiano, tal

qual apontado anteriormente, coloca a idéia de que o ser humano não pode ser empregado como simples meio (ou seja, objeto) para a satisfação de qualquer vontade alheia, mas sempre deve ser tomado como fim em si mesmo (ou seja, sujeito) em qualquer relação, seja em face do Estado seja em face de outros indivíduos229. Com tal entendimento, está-se a atribuir um valor intrínseco a cada existência humana, demarcando o respeito à sua condição de sujeito nas relações sociais e intersubjetivas".230

Essa realidade social pós-moderna, emergente de

novas necessidades, problemas e conflitos, impõe nova forma de pensar o direito positivo e a dogmática jurídica tradicional, ensejando a construção de um novo Estado de direito, voltado para a proteção ambiental, como forma de sobrevivência. Nesta perspectiva, nasce a crise ambiental, justificada pela racionalidade moderna, de matriz antropocêntrica, reducionista e fragmentadora, a gerar novos pleitos sociais por todo o planeta, inclusive no Brasil, e a necessidade de inclusão de uma nova forma proteção legal, incluída na Constituição, com a dimensão de direito fundamental de terceira geração ou dimensão, consistente no

229 KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura e outros textos filosóficos. São Paulo : Abril Cultural, 1974, p. 229, apud SARLET, Ingo Wolfgang e outro. Direito Constitucional Ambiental: Constituição, Direitos Fundamentais e Proteção do Ambiente. 2ª Edição. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2012, p. 64. 230 SARLET, Ingo Wolfgang e Tiago Fensterseifer. Direito Constitucional Ambiental: Constituição, Direitos Fundamentais e Proteção do Ambiente. 2ª Edição. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2012, p. 64

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direito de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Desde os meados do século passado, quando começaram a surgir os efeitos nefastos do desenvolvimento econômico em larga escala como decorrência do pós II Grande Guerra, os problemas ambientais se tornaram mais visíveis, palpáveis, calculáveis e com fácil identificação dos responsáveis. Mas os problemas cresceram de dimensão e de complexidade neste início de III Milênio, quando os danos ambientais tornaram-se invisíveis, de efeitos cumulativos e de difícil identificação dos responsáveis. Esta realidade deu azo a um novo modelo de Estado de direito, com nova perspectiva ética, novos princípios, novas funções e características próprias, o denominado Estado de Direito Ambiental, produto das novas reivindicações fundamentais do ser humano com ênfase na proteção do meio ambiente.

Neste sentido, Canotilho231, ao denominar este modelo como Estado Constitucional Ecológico, conceitua-o afirmando que, além de ser e dever ser um Estado de Direito Democrático e Social, deve também ser um Estado regido por princípios ecológicos instituidores de novos paradigmas sociais. Para a instituição desse novo modelo de Estado é necessária a transformação dos modos de produção, mas e acima de tudo, da relação paradigmática do homem com a natureza, do modo de se pensar o mundo e a interação com os recursos naturais e todas as espécies de vida do planeta.

231 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estado Constitucional Ecológico e democracia sustentada... (é referida no trabalho, mas não encontrei esta obra no Brasil e se encontrar por aí, gostaria de tê-la)

No prefácio à 1ª edição da obra Direito Constitucional Ambiental, Constituição, Direitos Fundamentais e Proteção do Ambiente, Antônio Herman Benjamin, Ministro do Superior Tribunal de Justiça, assim discorre sobre o chamado Estado Socioambiental:

"Por outro lado, o compromisso com um ambiente ecologicamente equilibrado há de ser conciliado com a progressiva realização dos direitos sociais, econômicos e culturais, de modo que, no assim chamado Estado de Direito Socioambiental - apoiado nos pilares da função social e ecológica da propriedade, na solidariedade intra e intergeracional e no princípio da proibição de retrocesso -, a noção de progresso e desenvolvimento somente faça sentido na perspectiva de uma sustentabilidade que integra, dinâmica e dialeticamente, os eixos do social, do econômico e do ambiental, de forma que nenhuma das três facetas assuma posição superior. A rigor, o novo paradigma não opera por hierarquia, mas por convergência, o que, claro, não exclui o entendimento de que tudo que se faz em favor e por conta da vida, em todas as suas formas e matizes".232

Fica bastante claro no excerto acima a necessidade de considerar outras esferas, que não a econômica, para o conceito de desenvolvimento. Todos os dados aportados, principalmente a ausência de correlação direta entre renda per capita e desenvolvimento, indicam a necessidade de

232 SARLET, Ingo Wolfgang e Tiago Fensterseifer. Direito Constitucional Ambiental: Constituição, Direitos Fundamentais e Proteção do Ambiente. 2ª Edição. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2012, prefácio à 1º Edição.

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pensar no desenvolvimento também como a promoção das liberdades humanas e garantir a fruição de um ambiente minimamente equilibrado. IV - Desenvolvimento do Ecoturismo como liberdade.

Pois bem, um dos maiores dilemas enfrentados pela

sociedade atual é promover o desenvolvimento econômico de forma sustentável de uma determinada sociedade ou grupo social, isto é, promover a melhoria da qualidade de vida com a preservação ambiental dos ecossistemas indispensáveis à manutenção de todas as formas de vida no Planeta neste início de Terceiro Milênio. Questão esta que pode ser alcançada por algumas comunidades através de uma matriz de atividade econômica sustentável: o turismo, especialmente o turismo ecológico, ou ecoturismo, cujo modelo a ser adotado precisa implementar ações efetivas e bem coordenadas, tais como aquelas que vêm sendo desenvolvidas em localidades com tal vocação histórica e geográfica, assim como é o caso de muitos países em desenvolvimento da América do Sul, e, em especial, do Brasil. Com efeito, o Brasil é um país historicamente vocacionado para o desenvolvimento do ecoturismo como fator de inclusão social, criador de novas oportunidades sociais, capaz de gerar riqueza sem degradação dos frágeis ecossistemas indispensáveis à sadia qualidade de vida.

A par desta vocação natural para o turismo, importante referir que, embora tardiamente, a proteção ao meio ambiente somente surge, no Brasil, com status de direito

e garantia fundamental constitucional, com a promulgação da Carta Republicana de 1988, a qual, no seu artigo 225, estabelece, com todas as letras:

Artigo 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo, essencial à sadia qualidade de vida, sendo dever do poder público e da coletividade protegê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Portanto, até por uma questão de sobrevivência, o

desenvolvimento econômico precisa ser tratado com uma visão voltada para a preservação ambiental. E, em alguns casos, desenvolvimento pode significar o retorno às origens. Muito se tem discutido acerca do significado da expressão desenvolvimento sustentável. Por vezes, o grau de degradação de um ecossistema atingiu tal ponto de destruição que, desenvolvimento, significa exatamente o retorno à origem, a recuperação de um ecossistema, e não o prosseguimento no processo de degradação ambiental que compromete a existência de diversas espécies ameaçadas de extinção.

A América Latina representa o exemplo mais emblemático de vocação histórica e geográfica da aplicação do turismo como atividade econômica sustentável, capaz de gerar desenvolvimento econômico para o financiamento dos processos de inclusão social com preservação ambiental. Apesar da sua extensão geográfica continental (21 milhões de quilômetros quadrados, ou 14% da superfície emersa da Terra), abriga cerca de 4% da população mundial (570

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milhões de habitantes, menos do que a população da Europa), e assim, graças à sua baixa densidade demográfica, tardia e reduzida industrialização (a América Latina foi, durante séculos, utilizada pelos povos colonizadores para atividade extrativa e para a produção primária de commodities: carne, couro, lã e grãos: milho, soja, arroz, que abasteciam os países desenvolvidos do Primeiro Mundo), manteve suas estruturas ambientais bastante preservadas.

A imagem abaixo, retirada de um artigo da revista Science 233 , mostra a transformação antropogênica da superfície terrestre. O antropoceno é um novo período geológico em que o homem é o principal responsável pelas alterações na superfície terrestre. Mesmo assim, o Brasil tem a quase totalidade de seu território como espaços pouco usados ao largo da história da humanidade.

233 Retirado da Revista Science, volume 334 de outubro de 2011. O quadro em si é uma adaptação da obra de: E. ELLIS, Proceedings of the Royal Society A: 369:1010 (2011).

O quadro acima demonstra que grande parte do território brasileiro tem menos de 100 anos de uso intensivo e outra grande parte é selvagem, como a Amazônia e uma parte do planalto central. Apenas alguns pequenos focos do território brasileiro sofrem uso intensivo há mais de 500 anos, uma grande vantagem em termos de preservação ambiental.

Outras regiões da América estão também absolutamente preservadas, tais como a Patagônia, a Cordilheira dos Andes, o Pampa Argentino, palco de uma beleza inóspita e aterradora pela sua grandeza e isolamento, panorama perfeito para o desenvolvimento do turismo de aventura. O Brasil não é diferente. Há locais intocados na selva Amazônica, com populações indígenas vivendo em condições de absoluto isolamento, como na Era Pré-Colombina, em áreas demarcadas com extensão superior a muitos países do planeta. Historicamente, o litoral do Sul do Brasil foi ocupado por imigrantes vindos do litoral de Portugal continental e, especialmente, do arquipélago dos Açores. Já o interior foi ocupado por imigrantes italianos, alemães, entre outras etnias em proporção bem menos numerosa em relação aos primeiros citados. Trouxeram, os imigrantes, a cultura, os costumes, a arquitetura, as festas, enfim, fatores e características que, hoje, são objeto de intensa procura turística, num verdadeiro retorno ao passado, num resgate das origens dos primitivos imigrantes.

Há de se ter cuidado especial com a visão de mercado. O mundo econômico liberal vê no turismo uma forma de se alcançar altos lucros, sem qualquer preocupação com a sustentabilidade de projetos ambientais. Entretanto, tal

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concepção gera preocupação pela falta de visão global do planeta como uma estrutura finita e interligada, mantida em situação de frágil equilíbrio dinâmico, onde a falta de uma diminuta estrutura orgânica afeta a existência de outra da qual vivia em harmônica simbiose e assim por diante, num processo de infinitas interações.

Neste início de III Milênio, agora mais evidente o “efeito estufa” provocado pelo aquecimento global, decorrente da queima de combustíveis fósseis e dos processos industriais altamente poluentes, lançando resíduos diretamente na atmosfera, sem contar a quantidade de outros resíduos (líquidos e sólidos) arremessados na natureza sem qualquer espécie de tratamento. A par dessa degradação do ambiente natural material, não se há de esquecer a degradação de valores culturais, sociais, artísticos, que também compõem o meio ambiente. Pois, sem um planejamento adequado, as conseqüências do desenvolvimento de qualquer atividade econômica, terão impacto negativo para a comunidade receptora e para o ecossistema local.

Como se sabe, o conceito de meio ambiente engloba o patrimônio cultural, que inclui o patrimônio artístico, paisagístico, arqueológico, histórico e turístico de um povo, enfim, os bens produzidos pelo Homem, de valor diferenciado para uma sociedade e seu povo e encontra seu fundamento constitucional no artigo 23, inciso III, da Carta Magna ao estabelecer a competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios para a proteção dos documentos, das obras e outros bens de valor histórico,

artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos. Já o artigo 24, inciso VII, define a competência da União, dos Estados e do Distrito Federal para legislar de maneira concorrente sobre a proteção do patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico. O meio ambiente cultural é tutelado especificamente pelo artigo 216 da Constituição Federal brasileira:

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I - as formas de expressão; II - os modos de criar, fazer e viver; III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.

Portanto, este estudo propõe o desenvolvimento da

atividade econômica no ramo turístico tendo por objeto a preservação não só do meio ambiente natural, como também do patrimônio natural, urbano, histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico e cultural brasileiro, e, em especial, através do ecoturismo, sempre levando em consideração o planejamento adequado, após amplo e abalizado estudo do meio ambiente e dos fatores locais, de

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modo a contribuir para a diminuição dos impactos ambientais causados à fauna e à flora locais, aos sítios de valor histórico, arqueológico, na medida em que o ecoturismo envolve, necessariamente, a relação entre a preservação ambiental e o crescimento econômico como alternativa para o desenvolvimento sustentável, pois, hoje, já temos as bases teóricas necessárias para propiciar uma visão daquilo que pode ser benéfico para a sociedade em relação às atividades ecoturísticas de menor impacto ambiental.

Ao contrário de outras atividades produtivas, o desenvolvimento da atividade econômica lastreada no ecoturismo depende da preservação e recuperação ambiental para se sustentar. Quanto mais preservada a área, maior a vocação para o turismo ecológico, sendo quatro as características fundamentais a justificar a existência do ecoturismo, a saber:

1) impacto ambiental mínimo; 2) impacto mínimo às culturas anfitriãs; 3) máximos benefícios econômicos para as

comunidades do país anfitrião; 4) satisfação "recreacional" máxima para os turistas

participantes. O autêntico ecoturismo, não é um produto ou serviço a

mais no mercado de consumo, mas precisa ser visto e tratado como um turismo de nova geração, regido por um conjunto de condições que superam a prática do turismo convencional de massa. O ecoturismo é uma nova concepção de turismo

que supera as práticas tradicionais, considerando-o como novo, devido às características que apresenta de conservação e o caráter educacional que encerra. Aliás, a correta educação e conscientização sobre o ecoturismo e sobre o local a ser visitado fazem parte justamente do conceito de formação dos atores para agirem ativamente em busca de suas liberdades.

Para Hovardas, Togridou e Pantis234, da Universidade de Tessalônica, a educação ambiental é uma peça chave para o desenvolvimento do ecoturismo. O Ecoturismo aliado à educação pode ser ferramenta fundamental para a mudança de comportamentos futuros e em angariar novos agentes de difusão de uma ideia de exploração sustentável do ambiente. Nesta mesma linha aponta Orams235, para quem o turismo baseado na natureza, sem um programa educacional estruturado, não basta para produzir resultados a longo prazo e causar efetivas mudanças de comportamento.

A questão também tem a ver com as novas modalidades de turismo “alternativo” apontadas por Rosana Eduardo236 em sua etnografia realizada em uma comunidade

234 HOVARDAS, T., TOGRIDOU, A. E PANTIS, J.D. Enviromental education as crucial component of the enviromentalist dimension of ecotourism: inducing short-term effects on environmental literacy with long-term implications for protected area management. in: Ecoutourism: Management, Development and Impact. A. Krause e E. Weir (editores), 2010, p. 89-111. 235 ORAMS, M.B. The effectiveness of environmental education: can we turn tourists into “greenies”? in: Progress in Tourism Hospitality and Research, 3, 1997, p. 295-306. 236 SILVA LEAL, R. E. “Minha agência é sua casa!”: uma etnografia do sistema alternativo de viagem e turismo da Região Metropolitana do Recife. Tese Doutoral. Universidade Federal do Recife. 2011.

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do Recife. Tratam-se de iniciativas comunitárias de proporcionar viagens de baixo custo e curta duração para pessoas com menor poder aquisitivo. Geralmente, tal tipo de turismo, muito comum em grandes regiões metropolitanas, é mal visto pelos locais receptores já que importam, ao fim e ao cabo, numa grande degradação ambiental sem uma contrapartida financeira rentável. A educação ambiental poderia possibilitar o desfrute das paisagens e estruturas de tais locais sem grande degradação ambiental, garantindo, mesmo às populações de baixa renda, usufruir do ambiente próximo de forma sustentável.

Tais atributos, portanto, tornam o ecoturismo diferente de qualquer outra atividade produtiva, uma visão de atividade econômica direcionada ao financiamento dos processos inclusivos das populações às novas oportunidades e a assegurar o exercício pleno dos direitos, liberdades e garantias fundamentais, com acesso aos bens e serviços indispensáveis a uma existência digna, ou seja, com planejamento voltado e adequado às condições da realidade local, com a preservação de todo o meio ambiente, inclusive sua cultura, história, estrutura social.

O ecoturismo como resposta aos problemas causados pela falta de um desenvolvimento sustentável, mostra-se uma alternativa válida, possível e viável em termos de atividade econômica de baixo impacto ambiental. Isto porque se considera que o ecoturismo pode vir a diminuir a exploração dos recursos florestais, indispensáveis à manutenção da biodiversidade, gerando lucro e receita necessários para administrar as áreas de proteção, e dessa forma contrapor o

discurso do desenvolvimento a qualquer custo. Em se pensando em ecoturismo, consideram-se como condições estruturais mínimas para o desenvolvimento sustentável dos recursos ou localidades turísticas, a adoção das seguintes medidas, efetivamente aplicadas, com grande sucesso, na unidade de conservação de Fernando de Noronha:

1 - restrição de acesso e crescimento; 2 – imposição de cotas e/ou custos extras que limitem

a instalação de equipamentos receptivos; 3 – delegação de poder de decisão às autoridades

competentes locais, responsabilizando-as pelas decisões que envolvem o desenvolvimento regional, para que seja efetivamente sustentável.

Essas medidas mínimas buscam dar base para a

formação do desenvolvimento sério de uma atividade verdadeiramente sustentável, pois somente através da utilização de critérios técnicos e científicos se poderá evitar a repetição de erros do passado, quando equivocados planos de desenvolvimento econômico sem base científica, como aqueles implantados a partir da década de 60 do século passado na Amazônia, impostos pelo Governo Federal e que acabaram resultando num completo fracasso, na medida em que representou a degradação ambiental sem qualquer reflexo no desenvolvimento regional, porque faltou, entre outros atributos, o envolvimento das comunidades locais, impactadas pelos projetos que tinha como único objetivo a “ocupação” da Amazônia, consolidando e incorporando, e

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fato, aquele imenso vazio demográfico ao território nacional como solo brasileiro. Se, de um lado, na época, a medida tinha interesse estratégico e geopolítico imediato, hoje, efetivamente ocupada a área, de forma atabalhoada, há de se retroceder para propor o manejo sustentável das áreas ocupadas, freando o desmatamento desordenado para a abertura de novas fronteiras agropastoris, através da instituição de mecanismo de regulação e controle, dentro do Sistema Nacional do Meio Ambiente (SISNAMA).

A - Experiências negativas

Experiências preocupantes ocorreram em áreas de

preservação permanente, onde a instituição de unidades de conservação e sua conseqüente demarcação, com a notificação dos ocupantes históricos para que deixassem a área, ao contrário do que se esperava em termos de preservação, causaram a sua degradação e, inclusive, pelos seus ocupantes históricos. Estudos de impacto ambiental junto às comunidades locais, demonstraram que os ocupantes históricas dos referidos sítios que se pretendia preservar, ao saber que deveriam deixar a área, simplesmente passaram a degradá-la e a permitir que outros o fizessem, pois o local já não representava o seu habitat. O retrocesso, ou seja, a autorização da permanência condicionada à preservação e à submissão a programas de educação ambiental e conservacionismo, acabou demonstrando ser a melhor forma de preservação: a manutenção das comunidades historicamente ocupantes das áreas, com um competente

trabalho de conscientização e educação ambiental das referidas comunidades, demonstraram ser mais úteis à idéia de preservação do que, simplesmente, a desocupação imediata e o reassentamento dos antigos ocupantes em outros locais, distantes de sua realidade social, comunitária, histórica e cultural.

Outro exemplo nefasto diz com a atividade extrativa vegetal e mineral que acabou degradando barbaramente ecossistemas de forma irreversível, prejudicando a atividade turística. Não se há de perder de vista que os recursos naturais são aquilo que se convencionou chamar cultivo de safra única. Uma vez esgotados os recursos naturais minerais de uma comunidade, estes não se renovam jamais, alterando a vocação histórica da localidade, sua cultura, sua ocupação, não raro, transformando o local onde se desenvolvia a atividade extrativa de um promissor pólo atrativo de riqueza e cultura, em um verdadeiro deserto. Foi assim no Brasil durante os ciclos da borracha e do Pau Brasil, da extração de ouro, prata e pedras preciosas nas Minas Gerais, e o será, em breve, quando esgotado o minério de ferro. Exemplo dessa atividade nociva recente foi o garimpo de Serra Pelada, onde o passivo ambiental deixou um rastro de destruição, com a contaminação de rios com metais pesados, especialmente mercúrio e uma cratera visível do espaço sideral.

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Serra Pelada na década de 80

Serra Pelada após o fim da atividade extrativa

B - Experiências positivas

Na verdade, o ecoturismo surge para oferecer uma opção de desenvolvimento sustentável às comunidades, proporcionando um incentivo para conservar e administrar as características regionais, como uma alternativa à extração voraz de recursos naturais, não renováveis.

O Brasil é banhado pelo Oceano Atlântico, desde o cabo Orange até o arroio Chuí, numa extensão de 7409 quilômetros, que aumenta para 9198 quilômetros se considerarmos as saliências e as reentrâncias do litoral, onde se alternam praias, falésias, dunas, mangues, recifes, baías, restingas e outras formações menores, algumas com uma beleza indescritível, outras importantes para o desenvolvimento de espécies endêmicas e migratórias. O litoral de formação geológica dramática das regiões Sul e Sudeste são palco de uma beleza cantada em prosa e verso. O litoral do Nordeste é o santuário ecológico para diversas espécies onde se desenvolvem projetos de preservação da tartaruga marinha (Projeto TAMAR: http://www.tamar.org.br/), especialmente protegidas na época da reprodução, evento com grande interesse turístico e cujos recursos gerados ajudam a manter o projeto.

Exemplo significativo de turismo ecológico estruturado, de ocupação sustentável de um espaço comum do povo, na dicção do art. 225 da Constituição Federal de 1988, com preservação ambiental, pode ser buscado em

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Fernando de Noronha. O arquipélago de Fernando de Noronha, conforme dispõe o art. 96 da Constituição do Estado de Pernambuco, é uma região geoeconômica, social e cultural instituída sob a forma de Distrito Estadual. A instalação de hotspot (tecnologia wi-fi de sinal aberto, acessível a todos em espaços públicos, inclusive na praça central); transporte adequado; reaproveitamento de recursos naturais renováveis locais; infra-estrutura mínima e adequada, tais como acesso à saúde, educação, cultura e a bens de consumo indispensáveis a uma existência digna; tratamento adequado de resíduos; limitação de acesso, com a implantação da taxa de ocupação de valor progressivo, capaz de inibir a longa permanência, facilitando o uso compartilhado, são fatores que têm se mostrado positivos na preservação daquele frágil e encantador ecossistema, localizado num arquipélago de diminutas ilhas de formação vulcânica a 350 quilômetros de distância do ponto mais próximo do continente. Modelo que pode, e deve, ser adotada em outras comunidades com vocação turística, respeitadas as peculiaridades e necessidades locais.

Hoje a economia de Fernando de Noronha depende do turismo, restrito pelas limitações do seu ecossistema delicado. Além do interesse histórico mencionado anteriormente, o arquipélago tem sido alvo da atenção de vários cientistas dedicados ao estudo de sua flora, fauna, geologia, etc. Em 2001, a UNESCO declarou o arquipélago de Fernando de Noronha e o Atol das Rocas como Patrimônio Mundial.

V - CONSIDERAÇÕES FINAIS

O desenvolvimento econômico, a par de representar grande fator de inclusão social, como geratriz de receita para o financiamento dos serviços públicos de qualidade e em quantidade suficientes e como fonte indutora do exercício pleno das liberdades, dos direitos e das garantias fundamentais, não pode estar atrelado à degradação do meio ambiente, mas devem circular num espaço ambientalmente preservado, naquilo que se pode denominar: desenvolvimento econômico inclusivo sustentável.

Os três conceitos, desenvolvimento econômico, inclusão social e sustentabilidade, podem, e devem, transitar no mesmo tempo e espaço, em situação de perfeito equilíbrio dinâmico, ora com preponderância de um, ora de outro; mas sem hegemonia estática de qualquer deles que possa importar retrocesso na busca do desenvolvimento econômico, no alcance de novas oportunidades sociais inclusivas ou na preservação ambiental.

Se de um lado vivenciamos o período de maior desenvolvimento técnico-científico e econômico da história da humanidade, com o avanço dos regimes democráticos e participativos como modelos de organização política, num momento de intensa ênfase ao predicado do exercício pleno dos direitos, das liberdades e das garantias fundamentais, no qual experimentamos o aumento significativo da expectativa de vida, na era da globalização das relações sociais pelo avanço extraordinário das comunicações e dos meios de transportes que encurtam distâncias, ainda vivemos num mundo em que grande parcela da população vive privada do

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mínimo existencial, em sistemas políticos de opressão absoluta, onde a violação sistemática dos direitos, das liberdades e das garantias fundamentais são a única realidade conhecida, representando grave ameaça à sustentabilidade e ao equilíbrio do meio ambiente, bem como à vida social, cultural e econômica dessas comunidades, com reflexos globais inevitáveis.

Daí a necessidade de se buscar o equilíbrio constante entre o desenvolvimento econômico, a inclusão social e a preservação ambiental, mediante a criação de novas atividades econômicas capazes de garantir uma vida digna, com o mínimo existencial em termos materiais, mas com a plenitude da liberdade, do exercício dos direitos e das garantias fundamentais, tudo convivendo num meio ambiente sadio e preservado para as presentes e para as futuras gerações, efetivando o postulado do artigo 225 da Constituição Federal que erigiu o meio ambiente à condição de direito fundamental.

Dentro desses pressupostos, guardadas as peculiaridades locais de um país relativamente novo, extenso e de população pouco densa, com belezas e recursos naturais preservados, uma das grandes reservas de água doce do planeta, de clima ameno, topografia dramática e exuberante, com mais de nove mil quilômetros de praias de águas tépidas e cristalinas, o ecoturismo desponta como a grande atividade econômica a ser desenvolvida neste início de III Milênio, pela sua grande capacidade de gerar riqueza com a necessária preservação ambiental, trazendo recursos econômico-financeiros necessários ao financiamento dos serviços públicos de qualidade e em quantidade suficientes para as

comunidades que souberem trabalhar com esta fonte inesgotável de receita, geratriz de novas oportunidades sociais e inclusão das populações no mercado consumidor, na cultura, na saúde, e na educação, assegurando o exercício das liberdades, dos direitos e das garantias fundamentais na sua plenitude, não só para as presentes, mas para as futuras gerações, dando concretude aos postulados básicos ambientais do “desenvolvimento como liberdade”, mas com sustentabilidade.

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366

RENDANDO AS HISTÓRIAS DO BILRO DE PENICHE

Gabriela Poltronieri Lenzi237

Peniche, terra dos pescadores e rendilheiras que no passado viveram de mãos dadas comigo, Redas de Bilros, dos quais fui o sustento quando o Mar era adverso à fartura do peixe ou a faina parava por causa do defeso (...). Ainda estou bem viva, embora já em poucas mãos. Mãos de rendilheiras que só por amor não querem separar-se de mim, o que prova que as suas raízes são a sua força. (Guilherme, 2010:9)

Resumo: Enquanto os homens da pequena cidade de Peniche, situada na região central de Portugal, ocupavam-se da pesca ou da agricultura, as mulheres complementavam a renda familiar produzindo as rendas de bilros. Entre o trançar dos fios de algodão que formam os desenhos das rendas, trança-se, também, a história dessa comunidade. Por meio da memória coletiva das rendeiras ainda presentes em Peniche, juntamente com a escola de rendas de bilros da localidade, pôde-se compreender, de modo empírico, a magnitude que esse artesanato teve e ainda tem para as pessoas que lá vivem.

Palavras-chave: Bilro. Renda de bilro. Rendas de Peniche. Escola de rendas de bilros. Aprendizagem da renda de bilros. 1 Introdução

Estima-se que a renda de bilros tenha surgido em

237 Aluna do Master em Antropologia pela Universidade de Salamanca, e-mail: [email protected]

Peniche por volta do século XVII. Todavia, por falta de documentos que comprovam, não é possível atestar com precisão tal colocação.

Quanto às rendas de bilros, não é fácil localizar, com exatidão, a data do seu aparecimento em Peniche, ainda que seja indiscutível que já no século XVII os bilros saracoteiam nas almofadas cilíndricas das mulheres penichenses a dar vida às formas mais ou menos ingénuas dos desenhos traçados sobre os piques238 cor de açafrão, dado que, pelo menos num testemunho datado de 1625, se registra a doação de uma renda (…). (Artesanato, 2015:s/p, grifo no original)

Em conformidade com Calado (2003:51), “Entre os que

defendem que as rendas terão sido importadas do Oriente através dos Árabes, há os que afirmam ter sido com estes, durante a sua permanência na Península (...).”

Como Portugal possuía particulares relações com diferentes países da Europa, também não se descarta a possibilidade do ensinamento de a renda ter sido trazida por meio marítimo. Em Bruges e Antuérpia, essa técnica de renda já era explorada. Assim, acredita-se na hipótese de que alguém dessas localidades conhecia essa arte e tenha descido em algum porto português e transmitido o conhecimento. (Calado, 2003)

Desde o princípio - em Peniche, Portugal - o ensinamento dessa técnica tem sido passado das anciãs às jovens e, posteriormente, as escolas de rendas de bilros, atualmente renovadas, tentam manter viva essa tradição,

238 “O pique é o cartão depois de picado e com o desenho riscado.” (Calado, 2003:121)

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apesar de seu quase desaparecimento. Em seu livro Amar Peniche, a autora Guilherme

(2010:9), uma das mais consagradas rendilheiras de Peniche, além de apoiadora assídua da localidade, traz a renda como personagem, numa demonstração de como se sentiria se pudesse falar: “Actualmente sinto a falta de crianças e jovens a rendilhar-me”.

Por meio de protetores da técnica, bem como de órgãos governamentais de Peniche, atualmente as Rendas de Bilro contam com a Escola de Rendas de Bilros, onde crianças e adolescentes podem aprender essa técnica considerada patrimônio cultural de Peniche, bem como onde antigas rendilheiras retomam o hábito de rendilhar.

Felizmente que, a par de outras iniciativas particulares, com o aparecimento dos Artesãos de Santa Maria (da responsabilidade da paróquia e atualmente extinta), da Escola de rendas de Peniche (da Câmara Municipal) e da constituição da Peniche – Rendibilros (Associação para a defesa e promoção das rendas de bilros de Peniche), esta arte foi sendo salvaguardada e dignificada, existindo um número considerável de penicheiras que sabem tecer renda de bilros ou se dedicam à sua confeção. (Artesanto, 2015:s/p, grifo no original)

As rendas de bilros são consideradas um patrimônio

cultural de Peniche, havendo não somente uma possibilidade de movimentar o turismo na região, mas também de repassar a aprendizagem dessa tradicional técnica à nova geração penichense, como afirma Calado (2003:284): “(...) a existência simultânea de escolas-oficinas oficiais e particulares será uma garantia de continuidade.”

Essa arte, que tinha como função gerar renda e companhia às esposas dos pescadores que frequentemente estavam ausentes, atualmente luta pelo seu não desaparecimento total da localidade. Sua permanência, nos dias atuais, remonta à identidade de cada penicheiro.

1.1 Metodologia

Por meio da etnografia, realizou-se um estudo de campo na Escola de Rendas de Bilros, na cidade de Peniche - Portugal - em final de outubro de 2014. Teve-se contato direto com as rendilheiras239, às quais se aplicaram entrevistas de modo dirigido indireto.

As entrevistas consistem no método qualitativo que busca evidenciar os detalhes de cada uma dessas entrevistas. Para Taylor e Bogdan (1987), a metodologia qualitativa se refere ao mais amplo sentido da pesquisa que produz dados descritivos e que relata as próprias palavras das pessoas, faladas e escritas, com a conduta de observação.

Uma análise de estudo de campo não tem sentido sem que haja intermédios emocionais e de pensamento do sujeito que realiza. Registrar as ações sem as interfaces mencionadas anteriormente não responderia às pretensões das Ciências Sociais que deseja não somente registros, mas também a compreensão das ações do homem em sociedade. (Frazer apud Malinowski, 1973:8)

Com base na colocação feita anteriormente, se teve como apoio, para descrever e interpretar a experiência vivida

239 Termo utilizado para quem faz rendas. (Calado, 2003)

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junto à comunidade de rendilheiras da Escola de Rendas de Peniche, a descrição densa, cujo processo foi utilizado pelo antropólogo. (Geertz, 1992)

Para Geertz (1992:24), a etnografia consiste na descrição densa e, posteriormente, em sua interpretação:

Hacer etnografía es como tratar de leer (en el sentido de ‘interpretar un texto’) un manuscrito extranjero, borroso, plagado de elipsis, de incoherencias, de sospechosas enmiendas y de comentários tendenciosos y además escrito, no en las grafias convencionales de representación sonora, sino en ejemplos volátiles de conducta

modelada.240

Assim sendo, se fez uso da descrição densa, tendo

outro enfoque narrativo, para que se cumprisse o propósito dessa descrição na qual o observador se coloca plenamente participante e incorporado à ação. (Velasco e De Rada, 1997:45-47)

Portanto, por meio desse estudo de campo, se coletaram relatos de sete senhoras rendilheiras, presentes na Escola de Rendas de Bilros da Câmara Municipal de Peniche, fazendo uso de câmera fotográfica, gravadores de voz, bem como de um diário de campo.

Em meio às entrevistas dirigidas indiretas, pôde-se viver a experiência de cada vai-e-vem dos bilros entre seus dedos, que foram acompanhados dessas histórias passadas de

240 “Fazer etnografia é como tratar de ler (no sentido de ‘interpretar um texto’) um manuscrito estrangeiro, confuso, castigado de elipses, de incoerências, de suspeitosas alterações de representação sonora, e, inclusive, de exemplos voláteis de conduta modelada.” (Tradução da Mestra)

geração para geração.

2 Bilros – ensinamento da técnica e o aprendizado de vida

Ao estudar empírica e teoricamente a renda de Bilro de Peniche, pode-se comprovar a sua relevância dentro dessa comunidade, tanto econômica, quanto social e cultural. Todavia, por falta de documentos que comprovem com exatidão, não é possível afirmar a data precisa, nem como essa técnica surgiu na localidade, conforme já se mencionou. (Calado, 2003)

Porém, a arte contida na renda não se limita ao vai-e-vem dos Bilros de uma antiga técnica, mas se estende a todo seu estilo de viver e de expressar-se. Por isso, o conto que expõe como surgiu em Peniche não poderia ser diferente: um conto poético escrito por Machado (1981:151-153), em A vida alegre, descreve, com doçura e genuinidade essa chegada à comunidade:

(...) Uma senhora muito sabida em contos, tradições, e lendas, disse-me, de uma ocasião, que todo o segredo daqueles tecidos, quem o ensinara a uma rapariga da terra fora a Virgem Maria em pessoa! (...). A rapariga andava namoradíssima, e triste de ser pobre e o seu noivo ser rico. Numa noite, estando ela a chorar, e a lastimar-se de sua sorte truz, truz à porta. Entrou uma senhora de sobrenatural beleza; sem soltar uma só palavra, depôs sobre os joelhos dela, bilros, e linha fina. Depois, e do mesmo modo, sem falar, principiou a fazer trabalhar os bilros, ensinando por seu exemplo a maneira de se servir de tudo aquilo e de conseguir os desenhos que pareciam estar a nascer-lhe debaixo dos dedos, formando toda a quantidade de malhas e flores bordadas, como jamais se havia visto.

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Quando a discípula aprendeu, por arte que já fizesse tal qual, o que acabavam de lhe ensinar, ia a romper a manhã... Então a divina figura desapareceu... Logo agradaram tanto as rendas e principiaram a vender-se com tal procura, que a pequena dentro em pouco tempo tinha, como o produto de venda delas, um dote tão taful que a família do noivo, que era bem remediada, teve grande satisfação de anunciar-lhe que consentia no casamento e aplaudia a união de tão formoso par. Nunca houve felicidade maior nessa vida do que a daquela gentil noiva. Feliz como esposa: dali ao tempo devido, feliz como mãe: e, sozinha no segredo de fabricar as rendas, ganhando lindamente, ganhando um dinheirão, ganhando o que queria. Numa noite que ela estava no seu serão, dá-lhe que dá-lhe, bilros para cá, bilros para lá, ao passo que o marido a contemplava com ternura e os filhinhos lhe brincavam aos pés, de repente entra naquela casa a mesma desconhecida que lhe revelara o segredo, causa de toda a felicidade em que viviam. Vinha, porém, triste e serena. Estão aqui a paz e a abundância, estão; - disse: - mas, a miséria e a fome andam por essas casas e ruas de Peniche. Vim eu a ti, mas tu não foste aos outros. Com isso, chorando, os anjos, de ti afastam a vista (...) E desapareceu. No dia imediato em diante, foi bater de porta em porta, e entrar de casa em casa, a pobre mulher que assim fora admoestada; e levando torçal e bilros, oferecia-se para ensinar a quem quisesse aprender a delicada arte de fazer rendas... Queres que eu te ensine, Maria? Queres tu, Joana? E tu, e tu, e tu, Rosalia, Gertrudes, Margarida? Queremos, sim, se queremos! As iniciadas quiseram também depois ter discípulas; e assim se estabeleceu em Peniche a indústria das rendas, modo de vida de quase todas as mulheres daquela terra encantadora e triste, cercada de rochedos fragosos que parecem estar dizendo que a natureza a defende como a providência (...).

Por meio desse conto, percebe-se que a arte da renda

de bilro é tida pela comunidade de Peniche (Figura 1) como um instrumento de fonte econômica que, por obrigatoriedade, deve ser repassado e ensinado. No entanto, não como uma obrigatoriedade forçosa, mas, sim, porque, para ser completa, para a arte das rendas de bilro de Peniche é necessária a junção dessas mulheres, como menciona Calado (2003:113):

(...) seriam milhares as mulheres penicheiras que, nas horas em que as lides domésticas lhe permitiam, se dedicavam ao trabalho da almofada, num recanto qualquer de suas casas ou ao ar livre, nos quintais ou à soleira das portas, em pequenos grupos de vizinhas, trocando experiências (...).

Figura 1: Rendilheiras trabalhando na rua – Peniche, Portugal, início do

século XX

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Fonte: Calado (2003:112)

Para que essa arte fosse repassada, existiam dois

caminhos: de geração em geração, dentro de cada família ou na vizinhança, ou por meio das escolas que ensinavam o ofício de rendeira. Certamente, essas duas fontes de ensino foram complementares dentro da arte de rendar com os bilros.

A essência dessa técnica encontra-se nas casas das rendeiras que, entre histórias e o sobe-e-desce dos bilros sonorizados pelo seu tic tic, inspiraram e ensinaram o amor por essa arte. Contudo, integrado ao despertar obtido dentro do lar, as “escolinhas populares” – que eram resultado de iniciativas privadas - ou como também eram chamadas “de sujeição” – onde as mestras tomavam conta das crianças por indisponibilidade dos pais e, assim, essas ficavam sujeitas à obediência total a essas mestras - vinham apoiadas ao cunho pedagógico, sendo que meninas com até dez anos de idade desenvolviam suas habilidades na arte de rendar (Figura 2). (Calado, 2003:133-135)

Figura 2: Oficina de renda de bilros de José de Oliveira,

onde é possível observar algumas meninas ainda bem pequenas a fazer bilros – Início do século XX

Fonte: Calado (2003:132)

Segundo Figueira (1865), Peniche contava com oito

escolas que ensinavam a confecção da renda de bilro. Essas escolas eram coordenadas unicamente por mulheres - naquele período, a renda era atividade completamente feminina – que, além das rendas de bilro, ensinavam a ler e a rezar. Por ser de iniciativa privada, cada aluna deveria pagar para aprender a fazer renda. Todavia, o valor para esse serviço era baixo. Se optassem por aprender a ler também, por exemplo, o preço a ser pago à escola subia.241

241 “(...) 80 réis ou quatro vinténs por mês é o mesquinho salário, que cada discípula paga por aprender a fazer renda, mas se aprende outras prendas e a ler. Esse preço varia até 200 réis.” (Figueira, 1865:9)

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As suntuosas voltas dos bilros pertenciam somente às mãos femininas que, desde os quatro anos de idade, iniciavam a se entrelaçar com as suas histórias. “Um saber transmitido pelas rendilheiras mais idosas (...) e uma prática continuada de amor-sacrifício transmitido por gerações de mulheres penicheiras como se fora a emanação inevitável de uma exigência telúrica.” (Calado, 2003:135)

Portanto, ao subir e descer os bilros, essas meninas mulheres aprendiam desde cedo, não somente a técnica das rendas de bilros, mas também o vai-e-vem de ser filha e futura esposa de pescador: uma saudade constante, embalada pelas ondas do mar, fugazmente recordada por cada ondulação de cada ponto. Os bilros imitam as ondas do mar para que as moças não sintam tanta melancolia.

3 A escola de Bilros e a passagem do ensinamento nos dias atuais

O som peculiar dos bilros misturava-se com as vozes das rendilheiras da Escola de Rendas de Bilro na poética Peniche. (Figura 3)

Figura 3: Escola de Rendas de Bilros de Peniche

Fonte: Gonçalves (2011:s/p).

“- De garota!” respondeu Dona Laura ao ser indagada sobre a data em que os bilros entraram em sua vida. Ao seu lado, Dona Celeste, com os dedos ágeis, fazia gestos de concordância com a cabeça: também Celeste aprendeu a trabalhar os bilros desde garota.

Aprender tal ofício na cidade de Peniche era obrigatório, como diz Celeste. Mas não uma obrigatoriedade imposta, e sim um costume, um passatempo carregado de prazer “- Nós não tínhamos televisão, não tínhamos os jogos que têm hoje (...)”

Aos poucos, outras senhoras tomavam seus lugares na almofada e participavam também da conversa. Seus dedos

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habituados aos bilros não só permitiam a conversa, como pareciam ser complementados por ela. (Figura 4)

Figura 4: Senhora tecendo uma renda de bilros

Fonte: Gabriela Poltronieri Lenzi – Realizada dia 29 de outubro de 2014 na Escola de Rendas de Bilro – Peniche.

Aprendiam a fazer rendas desde cedo, geralmente com

os mais velhos, tanto dentro de casa, com as mães, irmãs, tias ou avós, como também com vizinhas. O conhecimento doméstico que recebiam podia ser complementado nas escolas populares que ensinavam a arte das rendas.

“- Infelimente, na época não dava para viver disso (Bilros)

(...)”, afirmou Celeste, com o consentimento das outras rendilheiras. E assim, para poder sobreviver, encontravam outros trabalhos onde o ganho era garantido.

Após cumprir com os deveres de sustento familiar, a maioria, já jubilada, retomou as atividades com as rendas de bilros.

“- (...) faz dois anos que estou aqui na escola e tem me ajudado muito, tem ajudado muito a cabeça. Quando a gente senta aqui, não tem tempo de pensar em besteira. A gente pensa no desenho da renda... não se pensa em mais nada, porque se está concentrada em fazer a renda e mais nada (...)”, disse Laura.

Por meio das histórias contadas pelas mães e avós, percebe-se que a renda de bilros já foi uma forma de sustento familiar. Enquanto os maridos pescadores se encontravam no mar, as mulheres punham-se em frente as suas casas e rendavam os desenhos do pique.

“- Não dava muito dinheiro, mas pelo menos era alguma coisa”, relatou Natália, enquanto cerzia as rendas já acabadas.

Natália contou que, na época de sua avó, a artesã muitas vezes necessitava pedir o dinheiro adiantado da renda para sustentar a família enquanto esperava o regresso do marido de alto-mar.

“- Era uma ajuda pelo menos até que os homens retornassem”, concluiu.

Apesar de a maioria das senhoras presentes na Escola de Rendas de Bilros já saber a arte, por ter parado cedo, consequência de ter que encontrar um trabalho que rendesse mais economicamente, hoje pode dar continuidade ao desenvolvimento da técnica e da habilidade por meio dessa

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escola. Durante o verão, no período de férias, a Escola de

Rendas de Bilros de Peniche abre as portas para crianças e adolescentes que queiram aprender essa arte tão característica da cidade. Todavia, com uma novidade: um oficio unicamente feminino, atualmente, pode ser desenvolvido também por rapazes. Segundo Cristina, professora da Escola, geralmente há de 2 a 3 rapazes no grupo que é composto por, aproximadamente, 70 crianças.

Com felicidade, as rendilheiras da Escola de Rendas de Bilro de Peniche contaram as novidades de uma arte tradicional: as rendas que, antes, eram somente brancas como a espuma do mar, são encontradas, hoje, em diferentes cores e até em fios metálicos. As aplicações para a renda encontrou algo além do enxoval doméstico e das roupas litúrgicas, podendo ser vistas no cenário fashion, com aplicações em sapatos, roupas, bolsas, pulseiras, brincos, entre outros. Todos os anos, no mês de julho, Peniche apresenta um desfile de moda apenas com rendas confeccionadas na Escola de Rendas de Bilros. (Figura 5)

Figura 5: Folder da Mostra Internacional Rendas de Bilro de 2014 –

Peniche Fonte: Câmara Municipal de Peniche (2014:s/p).

Conforme visto, o ofício das rendilheiras de Peniche

não se sabe ao certo de onde veio. O que se sabe é que há 400 anos faz parte da vida das mulheres dessa cidade e nela criou um ponto único, uma maneira de ser penicheiro.

Os bilros contam a história de Peniche em cada tic tic característico quando fazem sua dança de trançar fios. Um labor que trouxe alegria, sustento e esperança aos corações partidos de saudade pelo marido em alto-mar, hoje é ator principal dessa comunidade que o respeita e exalta em gratidão.

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3.1 Interpretações

Ao tecer cada fio de algodão branco preso no bilro, tece-se, também, uma relação familiar, carregada de experiências e ensinamentos: a relação de mãe e filha. Como esse oficio é geralmente passado de geração em geração, fica para sempre na memória a ligação maternal, como se houvesse um fio de algodão eterno ligado aos umbigos das moças que aprenderam a fazer o bilro em Peniche. Todavia, não somente as moças, herdeiras de tal aprendizado, carregam esse sentimento consigo, mas também os rapazes, observadores assíduos da artista executando sua arte. Tal como proclama Calado (2003:9), em um poema no início de seu livro Histórias da Renda de Bilros de Peniche, “São as mãos de minha mãe – meu amor, minha alvorada – sulcando sonho e ternura nas ondas de uma almofada.”

A conexão que a renda de bilro tem com a imagem materna e feminina fica evidente já no conto A vida alegre (1881), de Machado, no qual o autor explica a aparição do bilro por meio do ensinamento da Virgem Maria, mãe suprema da Igreja Católica, que ensina a uma jovem moça, de família humilde, a tecer com os bilros, realizando, assim, rendas que garantiram um futuro casamento a ela. Assim como a Virgem Maria ensinou essa arte, também as possessoras de tal conhecimento deveriam fazê-lo: passar adiante a habilidade de tecer rendas.

Percebe-se, também, nas senhoras da Escola de Rendas de Bilros, uma vontade afoita de repassar o conhecimento dessa arte, além da felicidade com que acolhem quem lá se encontra com interesse de aprender e saber mais sobre o

oficio que carrega a identidade de Peniche, como coloca Dona Celeste, em entrevista: “É muito agradável poder mostrar esse trabalhos para quem se interessa.”

Também Dona Laura, ao ser questionada se ensinaria a confecção da renda, respondeu prontamente “- Ensina sim! Nós ensinamos aqui!” e depois completou: “- é importante não perder a tradição.”

Transmitir o conhecimento da renda é tido como fundamental na comunidade. Repassar esse conhecimento significa não somente manter viva uma tradição, mas também manter-se viva – sendo rendilheira – dentro de cada ponto marcado nos piques.

Nesse sentido, “(...) deve transformar-se este saber que estava a perder-se como atividade quotidiana, condenado a existir apenas no imaginário coletivo de Peniche, de novo em saber vivo, em vivencia real e identitária da nossa região.” (Ferreira apud Calado, 2003:267)

Atenta-se que não somente a renda em si é uma tradição em Peniche, mas também a maneira como esse oficio é transmitido e todas as histórias ligadas a ele.

As Rendas de Bilro de Peniche estão ligadas completamente ao mar e ao que ele tira e dá às rendilheiras da localidade. Durante as entrevista com as rendilheiras da Escola de Rendas de Bilros, ouviu-se muito a respeito do mar, dos maridos e pais pescadores que deixavam a casa e iam ao mar à procura do sustento da família. No lar, ficavam as esposas e as crianças, fazendo rendas de bilro, enquanto esperavam a volta do pescador. Além de um passatempo, era também uma fonte econômica caso o marido demorasse a

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regressar. Ressalta-se um provérbio popular da região segundo o qual “onde há redes há rendas” (Calado, 2003:27), referindo-se às rendas como labor das esposas solitárias dos pescadores.

Ao observar em silêncio aquelas senhoras rendilheiras, suas conversas graciosas e os dedos habilidosos, teve-se a nítida sensação de que todas eram uma, tamanha era a harmonia com que trabalhavam. Cada uma vista como um bilro, fazendo sua parte, tecem a renda: um corpo completo carregado de história, de cultura e de identidade.

4 Conclusão

Não somente as rendas tecidas com os bilros eram uma forma de fonte econômica para as mulheres de Peniche, como também um apoio, um consolo e um entretenimento aos corações desolados das esposas dos pescadores.

Hoje, a técnica da renda que vem do passado nos conta, através dos pontos feitos nos piques e nos desenhos, as histórias de bucólica Peniche de sempre, onde o som do mar e as conversas das rendilheiras, em perfeita harmonia, se unem em um arranjo e montam a trilha sonora da comunidade.

A renda por si só é a materialização da saudade deixada nos corações das esposas de Peniche. Vê-se essa renda como arte da localidade, arte ligada à técnica da perfeição na dança dos bilros. Porém, ousa-se dizer que, além de uma arte perfeita na união dos pontos e pelo cuidado existente na sua confecção, as rendas também são poesia e contos, inspiração para artistas literários da localidade, bem como música. As rendas de bilros são uma arte por completo,

uma expressão legítima e, por esse motivo, inegavelmente, devem ser respeitadas e mantidas como tal.

Certamente, a criação das escolas, desde o seu princípio, auxiliou tanto no desenvolvimento contínuo da perfeição dessa arte, bem como na continuidade dela. Atualmente, a Escola de Rendas de Bilro de Peniche prossegue com esses objetivos fundamentais. Todavia, conta com a redução considerável de rendilheiras, sendo que, nas últimas gerações, houve uma atenuação de mulheres que aprenderam a técnica. É bem provável que isso tenha ocorrido devido à forte industrialização do último século, possibilitando um ganho maior e mais garantido às mulheres de Peniche.

Nos dias de hoje, veem-se as rendas de bilros como um patrimônio cultural de Peniche, bem como um símbolo identitário da localidade, se não o maior deles. Isso fez com que as novas gerações se voltassem a sua manutenção, preocupando-se em não permitir seu desaparecimento.

BRAIDING THE TALES ABOUT THE BOBBIN FROM

PENICHE Abstract: While men from the little town of Peniche, located in central Portugal, dealt with fishing or agriculture, women supplemented the household income making bobbin lace. Amidst the cotton thread braiding that constitutes the lace design, the history of this community is also braided. Through the collective memory of the lacemakers still found in Peniche, along with the local bobbin lacemaking school, it was possible to conceive, in an empirical way, the importance that this craft had and still has for the people who live there.

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Keywords: Bobbin. Bobbin lace. Lace from Peniche. Bobbin lacemaking school. Bobbin lacemaking learning.

REFERÊNCIAS

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CALADO, M. 2003. Historia da renda de bilros de Peniche. Peniche: Edic a o do Autor.

CÂMARA MUNICIPAL DE PENICHE. 2014. Sociedade: Rendas de Bilros em mostra Internacional de 24 a 27 de julho em Peniche. Disponível em: <http://penicheonline.blogspot.com.br/2014/07/sociedade-rendas-de-bilros-em-mostra.html>. FIGUEIRA, P. C. C. 1865. A indústria de Peniche. Lisboa: Associação Promotora da Indústria Fabril, Biblioteca das Fabricas. GEERTZ, C. 1992. La interpretación de las culturas. Barcelona: Gedisa. GONÇALVES, P. 2011. Portugal - Peniche - Escola de Rendilheiras. Disponível em: <http://viajaredescobrir.blogspot.com.br/2011/08/portugal-peniche-escola-de-rendilheiras.html>. GUILHERME, I. 2010. Amar Peniche. Peniche: Edição da autora.

MACHADO, J. C. 1881. A vida alegre. Lisboa: Liv. e Tip. Editora de Mattos Moreira & Cia. MALINOWSKI, B. 1973. Os argonautas do pacífico Sul. São Paulo: Abril. TAYLOR, S. J.; BOGDAN, R. 1987. Introducción a los métodos cualitativos de investigación. (2ª ed., J. Piatigorsky trad.). Barcelona: Ediciones Paidós. VELASCO, H.; DE RADA, Á. D. 1997. La lógica de la investigación etnográfica. Madrid: Trotta.

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FICHA TÉCNICA

ISBN 978-85-67768-04-5 Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina – IHGSC Editores Angel-B. Espina Barrio Luiz Nilton Corrêa Telmo Pedro Vieira Comissão e Conselho Editorial Angel-B. Espina Barrio Luiz Nilton Corrêa Telmo Pedro Vieira Imágens e Fotografias Luiz Nilton Corrêa