EDUCAÇÃO E SAÚDE: UM ENFOQUE CULTURAL … · Esse cenário é reflexo de um processo histórico...
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EDUCAÇÃO E SAÚDE: UM ENFOQUE CULTURAL DA
MEDICALIZAÇÃO
Daiane Kutszepa Brambilla1
Ana Cristina Costa Lima2
INTRODUÇÃO
O presente trabalho faz uma aproximação entre saúde, educação e cultura, a fim de
compreender e analisar o crescente processo de medicalização da infância. A modernidade é
marcada pela institucionalização da vida, na família, na saúde e na educação (FOUCAULT,
1991, 2014). Este é o modelo cultural vigente, ainda que passados mais de dois séculos. No
Ocidente, a partir do hemisfério Norte, o liberalismo funciona como verdade para a economia,
a biologia e a filologia – pensando as categorias de conhecimento conceituadas por Foucault,
em As palavras e as coisas, ao falar da morte do homem.
A proposta de análise deste artigo é focada na medicalização da infância, hoje no
Brasil e as possibilidades de por meio do Programa Saúde na Escola (PSE) ela se intensificar
ou possibilitar um salto de qualidade pela educação permanente em saúde, no SUS. A
reflexão que segue não pretende ser abrangente, mas focar no território de abrangência da
atenção básica em saúde, no SUS, na intersetorialidade com educação básica, conforme
propõe o Decreto Presidencial n°. 6.286, de 5 de dezembro de 2007.
Para introduzir o tema, é preciso situar o contexto escolar moderno. A instituição
escolar modela ou pretende modelar pessoas, por meio de técnicas psicopedagógicas de
comportamentos aceitáveis, corretos, adequados, normais. Portanto, isso se processa sem que
a maioria dos adultos envolvidos tenha plena consciência de que serve a uma filosofia de vida
e a um modelo econômico-ideológico de submissão para formação de capital humano.
O molde comportamental da escola prioriza o comum, uniforme e homogêneo. Esse
processo é decorrente de um modelo disciplinador, por meio do qual se desenvolveu uma
cultura dominante moderna, em que as diferenças não são toleradas e a diversidade muitas
vezes é diagnosticada como doença.
1 Enfermeira, Mestranda do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciências da Saúde. 2 Psicóloga, Doutora em Ciências Humanas Professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde da
Unochapecó.
Há padrões de comportamento ideais, definidos por uma normatividade social, que
definem as características institucionais da escola, de enquadre pela obediência, para formatar
um adulto útil ao sistema econômico. Esse cenário é reflexo de um processo histórico que se
iniciou no século XVIII e que instaurou a disciplina como uma tecnologia de poder, como nos
faz entender Michel Foucault (2002; 2014).
O sistema educacional está configurado de tal maneira, que promove a educação
baseada na adaptação disciplinar. Para isso, naturaliza a exclusão, como parte do sistema
(FOUCAULT, 1980). A construção da disciplina e a naturalização da exclusão formam a
cultura dominante no ambiente escolar, com poder de segregação e marginalização. Assim,
com a afirmação da norma, tem-se o domínio sobre o comportamento, trabalha-se pelo
controle da sociedade, respaldado por saberes científicos que encontram justificativas
diagnósticas nas manifestações infantis não normais ou anormais.
No contexto das políticas públicas no Brasil, educação e saúde vivem aproximações e
afastamentos ao longo dos anos. Esse meio é construtor de cultura ou culturas. O conceito de
cultura não é algo estanque, ele se reconstitui no processo de estudo da História. Mintz (2010,
p. 223) define cultura como “uma propriedade humana ímpar, baseada em uma forma
simbólica, relacionada ao tempo, de comunicação, vida social, e a qualidade cumulativa de
interação humana, permitindo que as ideias, a tecnologia e a cultura material se ‘empilhem’
no interior dos grupos humanos”. Kuper (2002, p. 36) afirma que, a “cultura sempre é
definida em oposição a algo mais. Trata-se da forma local autêntica de ser diferente [...]”.
Para Veiga-Neto (2003) é mais apropriado utilizar o termo culturas, uma vez que são
inúmeras as diferenças no interior de uma sociedade humana, como as étnicas e religiosas, de
gênero e de orientação sexual, entre outras.
No entanto, se são várias as culturas, são fortes os interesses institucionais. Assim,
quer seja pela disciplina ou pela força, instaura-se uma normalidade social, um processo
homogeneizador, que funciona como cultura dominante e naturalizada. Para isso, as
diferenças precisam ser toleradas, mas em seus espaços próprios de exclusão, verdadeiros
guetos de tolerância. A normalidade social moderna, como percebemos em Foucault, tem um
código biopolítico, em plena vigência.
Mas além de entender o processo, há de se respeitar a seguridade social, que deve se
efetivar pelas políticas públicas e atender à população pelos serviços públicos e privados.
Aqui tratamos da intersecção entre atenção básica no SUS e a educação básica municipal,
como espaços de ação do PSE. Isso deve incluir a voz de movimentos sociais e de conselhos
de saúde, que denunciam injustiças, desigualdades e discriminações, reivindicando igualdade
de acesso a bens e serviços e reconhecimento político-cultural (CANDAU, 2011).
A reflexão aqui se trata de entender, como Ribeiro (2015) destaca, que o
reconhecimento da diversidade de culturas e das identidades múltiplas é a chave para se
desvelar e confrontar o processo de homogeneização cultural, que têm como veículos
privilegiados o sistema educacional e os meios de comunicação de massa.
Candau (2011, p. 241) explica, que a cultura escolar dominante foi constituída a partir
da “matriz político-social e epistemológica da modernidade, que prioriza o comum, o
uniforme, o homogêneo e que são considerados como elementos constitutivos do universal”.
Logo, existe na instituição escolar padrões para moldar o comportamento de todos que a
compõe. Esses padrões estão ancorados, majoritariamente, na normatividade instituída no
século XIX, na constituição de diferentes áreas do conhecimento, em especial a biologia, a
medicina e a psicologia.
Neste sentido, Candau (2011) coloca que: “a modernidade abordou a diversidade de
duas formas básicas: assimilando tudo que é diferente a padrões unitários ou ‘segregando-o’
em categorias fora da ‘normalidade’ dominante”. Nesta concepção, o aluno negro, pobre, com
conflitos familiares, ou outra situação que foge a regra é rotulado como o ‘diferente’, o
‘anormal’, considerado um problema a resolver na sala de aula. Esses diferentes, ou se
adaptam à cultura dominante imposta no ambiente escolar, e se adaptam padrões
estabelecidos ou serão segregados, e marginalizados em sala de aula.
Ao discutirem a escolarização e a exclusão, Tunes e Pedroza (2011, p. 23) apontam,
que a "padronização é uma forma de afirmação da normalidade e negação da diversidade". O
sistema educacional está configurado de tal maneira que promove a exclusão de quem não se
adapta a padronização estabelecida, negando a diversidade e as distintas capacidades de
aprendizagem.
Tendo em vista a problemática apresentada, o objetivo desta revisão de literatura
narrativa (não exaustiva) é identificar como se constituem historicamente as raízes das
interfaces socioculturais para a medicalização da educação.
EDUCAÇÃO E SAÚDE: UMA RELAÇÃO NECESSÁRIA
A inserção da saúde no ambiente escolar é um tema amplamente discutido, tornando-
se pauta de políticas públicas e subsídio para elaboração de programas de saúde no cenário da
escola. Nos últimos anos, através de políticas interministeriais de educação e saúde, a
promoção de saúde adentra o espaço institucional da educação básica (BRASIL, 2014). O
Decreto Presidencial n°. 6.286, de 5 de dezembro de 2007 cria e institui o Programa Saúde na
Escola (PSE).
O PSE é reflexo das discussões acerca da amplitude do que vem a ser promoção à
saúde e da reorientação do modelo assistencial com foco na Atenção Básica, que tem como
proposição a política intersetorial sob uma perspectiva de articulação de saberes e promoção
de saúde integral (BRASIL, 2009).
Os focos de atenção do PSE se concentram no fortalecimento da relação entre as redes
de saúde e educação e motivam a comunicação entre elas, por meio de ações integradas de
promoção de saúde da criança e do adolescente. O PSE tem como proposição a política
intersetorial sob uma perspectiva de articulação de saberes e promoção de saúde integral. Do
mesmo modo em que se pode entender o PSE como uma estratégia para amalgamar o
instituído, os profissionais envolvidos podem desenvolver ações baseadas na potência do
conceito ampliado de saúde (MINAYO, 1998).
Se, historicamente, a escola é marcada pela disciplina e controle comportamental
biologicista, faz-se necessário discutir a potencialidade que a legislação oferece para se
desenvolver o PSE como instrumento de fortalecimento intersetorial e promotor de saúde, e
não como coadjuvante na perpetuação do modelo biomédico e de ortopedia de
comportamentos (FOUCAULT, 1991), em defesa da patologização e medicalização da
infância.
EDUCAÇÃO: DISCIPLINAR E HOMOGENIZAR
A escola se constrói na modernidade institucional e disciplinar, com a
responsabilidade social de controle e adaptação do sujeito para influir o desejo de futuro, qual
seja formar-se capital humano (ROSA, 2009). O capital humano mantém o sistema de
verdade hegemônico e a força de trabalho útil ao establishment. Se o sacrifício é totalizante, o
investimento é setorizado, privado, não público.
Os mecanismos de controle e adaptação são desenvolvidos a partir de padrões pré-
estabelecidos, idealizados para promover a uniformização dos sujeitos na instituição escolar.
Esses padrões exercem um poder de adestramento, que produz seu sentido na obediência e se
mostra deficiente na repulsa que hoje os atores envolvidos na escola básica sentem entre si.
Entre pais e educadores, entre estes e alunos e por aí vai.
A partir do século XVIII, a disciplinarização institucional, como no panóptico de
Bentham (FOUCAULT, 1991), se mostra pelo rearranjo arquitetônico com a construção de
prédios cercados, fechados em si mesmos, que se constituíram na lógica de que tudo deveria
ser vigiado e controlado. Destaca-se a institucionalização da escola, pela separação em classes
e fileiras, numa organização que classifica a partir de saberes e capacidades, em detrimento de
método de ensino e relações humanas e, posteriormente, por idade e ciclos de vida, como na
escola atual (HASHIGUTI, 2009). Ao mesmo tempo, dividiu-se por classes sociais, etnia,
sexo, e o ensino se diferenciou em verdadeiras castas.
Por fim, não se pode esquecer o ápice do poder escolar, a avaliação. No decorrer do
tempo, foi se configurando na sociedade a economia do exame. O exame foi sendo inserido
nas instituições escolares e hospitalares, e tornou-se instrumento utilizado para criar a ilusão
da diferenciação entre os indivíduos. Neste processo, de instauração de exames, vieram
também punições e recompensas, ou seja, formas de repreender e adestrar os indivíduos num
sistema de funcionamento (FOUCAULT, 2014; REY, 2013).
A educação disciplinar na modernidade construiu a instituição hierárquica totalitária.
Ressalta-se, que esse sistema se utiliza do discurso médico na instituição escolar, isto é, no
campo da educação formal, para plantar sementes de formação de indivíduos cumpridores do
saber instituído.
Neste contexto Meira (2009, p. 1), coloca que:
para esses “marginalizados por dentro”, vítimas de práticas de exclusão “brandas”, a
escola permanece como uma espécie de “terra prometida” ou uma miragem que se
mantém sempre presente no horizonte, mas que recua à medida que se tenta
aproximar dela.
Para Bourdieu (1997), estaríamos diante da dissimulação da dominação através de
práticas que produzem nas formas de aparência igualitária, a farsa do discurso
democrático.
Nesse sistema, os educadores atuam como agentes de reprodução econômica e cultural
de uma sociedade fragmentada que aliena, tomando do sujeito sua capacidade crítica, e
tornando-os dóceis e domináveis. Estes aspectos da educação, embora tenham sido
construídos historicamente, atuam de forma naturalizada, numa verdade cristalizada e
arbitrária (LUENGO, 2010).
Esse é um processo que vem se perpetuando ao longo da história a partir do
estabelecimento de critérios rígidos entre a normalidade e a patologia. Ao se pensar a partir de
Georges Canguilhem, não há normal ou patológico em si, a anomalia e a mutação são normas
de vida possíveis, devendo-se pensar o contexto em que elas estão inseridas e quão
adaptativas elas seriam àquele contexto. Para Canguilhem, o biológico é apenas elemento do
ser humano, não devendo excluir a complexidade que o permeia (LIMA, 2015).
Nesse sentido, é necessário estar atento ao fato de que comportamentos considerados
patológicos podem ser classificações reducionistas, isolando a atitude e o sujeito, sem levar
em consideração a normalidade social e a normatização da infância medicalizada (LIMA,
2015).
Para Foucault (1998, p. 8), “o pensamento classificatório se dá um espaço essencial. A
doença nele só existe na medida em que ele a constitui como natureza; e, no entanto, sempre
aparece um pouco deslocada com relação a ele, por se oferecer em um doente real, aos olhos
de um médico previamente armado”.
Neste sentido, o olhar do médico é tomado pelo pensamento classificatório, e “dirige-
se ao que há de visível na doença, mas a partir do doente, que oculta este visível, mostrando-
o; consequentemente, para conhecer ele deve reconhecer” (FOUCAULT, 1998, p. 8).
A medicalização da infância encontra campo vasto no espaço próprio de
institucionalização escolar, regulados por políticas públicas e definidos pelo Estado e pela
iniciativa privada. Este espaço de poder-saber é legitimado e autorizado pelos pais para a
formação social e aprendizado das letras e números básicos de seus filhos.
A educação, assim como todas as áreas sociais, vem sendo medicalizada em grande
velocidade, destacando-se o fracasso escolar e seu reverso, a aprendizagem, como
objetos essenciais desse processo. A aprendizagem e a não-aprendizagem sempre
são relatadas como algo individual, inerente ao aluno, um elemento meio mágico, ao
qual o professor não tem acesso - portanto, também não tem responsabilidade
(COLLARES; MOYSÉS, 1994, p. 26).
Medicalizar os alunos significa reduzir os acontecimentos e fenômenos sociais,
culturais e políticos a questões individuais de ordem biológica e/ou psicológica, que podem
produzir pessoas normais e pessoas doentes. Nesse ambiente de patologização da infância e
da adolescência, o ambiente escolar produz subjetividades de exclusão social, isto é, constrói-
se o anormal (FOUCAULT, 2002).
Ribeiro (2015, p. 34) destaca que “os termos medicalização, naturalização,
biologização, psicologização e patologização relacionam-se entre si e configuram-se em uma
rede de compreensão reducionista, descontextualizada e a-histórica dos fenômenos humanos”.
Essas expressões se dão em um contexto onde há dificuldade de acesso das crianças pobres
aos bens culturais, há manutenção de um ciclo de marginalização de conflitos sociais.
Caracterizam-se por culpabilizar a criança, sem rever a dinâmica do processo de ensino-
aprendizagem, não acolher as diferenças e singularidades dos comportamentos humanos e por
serem geradoras de situações socioculturais e históricas perversas.
Ressalta-se que a instituição escolar desde os seus primórdios está organizada para o
controle social da aprendizagem, para tanto estabelece normas rígidas de organização e
funcionamento, e desde modo desde o seu surgimento tem reinado como absoluta. No
entanto, “vivemos, hoje, a aurora de um novo modo de organização da cultura: a era das
imagens técnicas, da digitalização, do mundo. Delineia-se no horizonte uma valorização
crescente do saber fazer em detrimento das certificações escolares [...]” (TUNES; PEDROZA,
2011, p. 12). Neste cenário, a instituição escolar está vulnerável, e precisa sofrer uma
transformação, que implique radicalmente em uma mudança de foco, não cabendo mais
necessitando remédios universais. “O ensinar e o aprender serão compreendidos como
constelações infinitamente diversas, uma atividade de criação muito mais artesanal” (TUNES;
PEDROZA, 2011, p. 12).
Em síntese, configurou-se historicamente o pensamento classificatório,
homogeneizante, e estabeleceu-se a concepção de que nem todas as crianças reúnem as
condições necessárias para aprender os conteúdos escolares, ou seja, esses apresentam
dificuldades de aprendizagem. Desta forma a escola embora esteja acessível a todos, não
permite que todos desfrutem igualmente, em decorrência de problemas individuais (TUNES;
PEDROZA, 2011).
No contexto escolar e na sociedade em geral, a uniformização tem incitado a
classificação e discriminação dos sujeitos e a consequente exclusão daqueles que não se
enquadram ao padrão estabelecido. O século XX tratou, em especial a partir de 1980, com o
Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais ˗˗DSM III, e hoje com o DSM 5˗˗,
de diagnosticar o diferente como portador de patologia. A padronização e a classificação
institucional estão a serviço de pressupostos políticos, econômicos, mercadológicos, entre
outros. É importante a problematização, uma vez que tais padronizações e classificações –
normal x anormal; adequado x inadequado – fazem parte da compreensão naturalizada do ser
humano, possuído de uma natureza humana estandartizada (LIMA, 2015).
A educação, desta maneira, nega a diversidade e a complexidade cultural apresentada
pela interconexão entre biológico e psicológico no contexto da economia e da história, na
formação de crianças na instituição escolar.
MEDICALIZAÇÃO NO CONTEXTO ESCOLAR
Para Collares e Moysés (1994, p. 25), o termo medicalização deve ser compreendido
como:
[...] processo de transformar questões não médicas, eminentemente de origem social
e política, em questões médicas, isto é, tentar encontrar no campo médico as causas
e soluções para problemas dessa natureza. A medicalização ocorre segundo uma
concepção de ciência médica que discute o processo saúde‑doença como centrado
no indivíduo, privilegiando a abordagem biológica, organicista. Daí as questões
medicalizadas serem apresentadas como problemas individuais, perdendo sua
determinação coletiva. Omite‑se que o processo saúde‑doença é determinado pela
inserção social do indivíduo, sendo, ao mesmo tempo, a expressão do individual e
do coletivo.
Quanto à prática de patologizar e medicalizar o ambiente escolar, Brzozowski e
Caponi (2013) ressaltam que a medicina vem sendo utilizada como escoadouro de alguns
problemas crônicos, principalmente os de ordem comportamental, que aparecem
predominantemente na escola. Pela ilusória resolubilidade, a psiquiatria, as neurociências e a
indústria farmacêutica ganham força e legitimação social para se responsabilizar por esses
problemas.
A psiquiatria do desenvolvimento afirma que os transtornos mentais começam na
infância e propõe pesquisas e intervenções em escolas e serviços de saúde, para alertar e
capacitar professores e profissionais de saúde a identificar as crianças em risco de desenvolver
transtornos mentais e aquelas que já apresentam sinais e sintomas de comportamento
desviante. Dessa maneira, a proposta teórico-científica da psiquiatria do desenvolvimento é
identificar e tratar distúrbios mentais de maneira preventiva, antes mesmo de a doença se
instalar (LIMA; CAPONI, 2011). Nessa lógica, o vídeo analisado no artigo citado, faz
associação de ladrão, bandido, assaltante com doença mental; a proposta é reduzir um
problema social e cultural a uma explicação racional e biológica. E, neste contexto, torna-se
função do professor, além de disciplinar, denunciar aqueles que apresentam com desvio da
normalidade, cuja conduta poderá indicar um futuro adolescente delinquente (LIMA;
CAPONI, 2011).
Por meio da medicalização da vida, resultante de biopolíticas de desenvolvimento das
ciências da saúde, o sócio-cultural torna-se biológico. Deste modo, traduz-se um quadro
complexo, que abrange questões psicológicas e sociais, pela diagnose de distúrbios mentais
e/ou de neurotransmissores e também por validação de doenças psiquiátricas definidas por
vieses de pesquisas a serviço da indústria química de psicotrópicos (WHITAKER, 2010).
Neste contexto, o fracasso escolar individualizado é parte do entendimento do ser humano por
meio do DSM (CORCOS, 2011), chamando a atenção o reducionismo humano e o
adoecimento psicossocial promovido pelas instituições de educação e de saúde, já que os
problemas são tratados no campo psiquiátrico, medicamentoso e pela psicologia
comportamental-cognitiva, de adequação de conduta (BRZOZOWSKI; CAPONI, 2013;
LIMA, 2015).
A medicalização da infância é preocupação crescente no Brasil, uma vez que dados
citados na recomendação do Ministério da Saúde indicam que o país se tornou o segundo
mercado mundial no consumo do metilfenidato (prescrito para desvio de conduta de crianças),
com cerca de 2.000.000 de caixas vendidas no ano de 2010, e apontam para um aumento de
consumo de 775% nos últimos 10 anos (BRASIL, 2015).
Segundo o Boletim de Farmacoepidemiologia do Sistema Nacional de Gerenciamento
de Produtos Controlados (SNGPC), a estimativa de prevalência de Transtorno do Déficit de
Atenção com Hiperatividade (TDAH) em crianças e adolescentes varia muito no Brasil, de
0,9% há 26,8%. Ressalta-se que não existe nenhum exame confiável que identifique o
transtorno (BRASIL, 2015). A questão é complexa e preocupante, pois crianças e
adolescentes estão sendo medicalizados sem um diagnóstico confiável.
Vale destacar que, “a atenção é uma função psicológica que deve ser constituída ao
longo de processos educativos na infância e cujo desenvolvimento depende da qualidade dos
mediadores culturais oferecidos pelos adultos” (MEIRA, 2012, p. 138). Em assim sendo, a
atenção é uma característica do desenvolvimento infantil que será construída ao longo dos
anos, e neste processo é importante que os professores auxiliem no desenvolvimento da
consciência e do controle sobre seu próprio comportamento, a fim de que a criança consiga
focalizar sua atenção assimilação dos conteúdos escolares.
Apesar da necessidade evidente de uma atenção à saúde do educando em uma
perspectiva ampliada e integrada, que procure abranger a complexidade do desenvolvimento
humano e seu contexto social, as políticas de saúde implementadas na atualidade estão
apoiadas em um modelo médico que prioriza ações unificadas. Contudo, essas ações
descaracterizam as necessidades específicas e as subjetividades dos adolescentes, o que, com
relação à sua saúde, mostra-se insuficiente (MINAYO, 1998).
Neste contexto, de nada adianta viver em uma época de projetos governamentais que
anunciam como meta a educação para todos os cidadãos e a inclusão social na escola, quando
na verdade apesar de quase a totalidade estar na escola, continuam sendo marginalizados,
como destaca Hashiguti (2009, p. 51): “de nada adianta incluir para excluir novamente”.
A discussão sobre a patologização do discurso escolar é importante, sobretudo ao
pensarmos sobre a posição ocupada pela escola na sociedade. Ao tratar de educação pelo
discurso médico, reafirma-se a disciplinarização e seus espaços de exclusão. No entanto, a
escola pode ser o lugar privilegiado para reflexões sobre as diferenças, pode ser um espaço
onde de expressão da diversidade (HASHIGUTI, 2009).
É importante salientar que a educação baseada no modelar, disciplinar e reforçar
comportamentos adequados, seguindo uma lógica considerada padrão ou normal, contribui
para que a criança se torne um adulto condicionado e reprodutor do modelo. Isso é
incompatível com autonomia e desenvolvimento de potencialidades do indivíduo e dos
coletivos.
Neste cenário, é importante destacar que o professor assim como a criança é alvo
dessas imposições sociais. Embora as práticas educativas tenham sido apontadas como
disciplinadoras, patologizadoras e medicalizadoras, sabe-se que o profissional também é
vítima e produto deste sistema político-social. Além de ter a formação universitária deficiente,
que não prepara adequadamente o profissional para trabalhar neste contexto, o professor
precisa corresponder a uma exigência de produtividade imposta socialmente, num país em que
há uma desigualdade social que gera visões distorcidas de sucesso e fracasso, influenciando a
conduta das pessoas nos diversos espaços sociais (LUENGO, 2010).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Evidenciou-se que em grande parte, o processo de medicalização da infância se dá de
maneira didática na escola, por meio da individualização de origem biológica e/ou psicológica
que responsabiliza o indivíduo por seu desvio da norma. E este é reforçado pelas instituições
de saúde, na prescrição e tratamento do fracasso escolar e os distúrbios de comportamento que
ocorrem na escola. A medicalização é um desdobramento do processo de homogeneização e
naturalização da existência e está arraigado na cultura escolar, na redução de questões sociais,
culturais e políticas complexas. Portanto, defender a desmedicalização do ambiente escolar é
defender, sobretudo, a não imposição da homogeneização escolar, permitindo desta forma,
que seja possível promover práticas de inclusão escolar, onde os alunos sintam-se realmente
acolhidos em suas diferenças.
O reconhecimento da diversidade de culturas e das identidades múltiplas deve ser
discutido como uma possibilidade de compreensão desmedicalizante, fundamental para
potencializar processos de aprendizagem mais significativos e produtivos e favorecer o
desenvolvimento do potencial de crianças. O estudo histórico das condições de educação e
adoecimento na atualidade pode contribuir para enfrentar a verdade majoritária da ciência
biologizante do comportamento e seus instrumentos de exclusão do indivíduo desde a
infância.
As diferenças são construtivas e assim devem ser percebidas pelos educadores. A
dimensão cultural deve ser respeitada e discutida como uma possibilidade de compreensão
desmedicalizante, ela é fundamental para potencializar processos de aprendizagem mais
significativos e produtivos tanto para os estudantes como para os professores.
As estratégias para superar e romper com o ciclo da medicalização no ambiente
escolar, envolve reivindicar da escola uma mudança de postura frente a esse panorama,
adotando uma postura acolhedora frente às diversidades, com vistas a promover as
potencialidades individuais, para que possa tornar-se realmente um ambiente que promova o
acolhimento e não a exclusão.
Como discutido no início do texto, a relação entre saúde e educação é importante e
necessária, tanto para a seguridade social da população, no estado de direitos como se
considerarmos o processo de medicalização escolar instaurado nas escolas brasileiras. Nesse
sentido, é possível compreender as políticas públicas – instauradas pelo Decreto Lei n°. 6.286,
de 5 de dezembro de 2007, que institui o PSE, com ações intersetoriais nas três esferas de
gestão – como possibilidade de refletir sobre o protagonismo no processo educativo e
implementar a concepção de diferença como sinônimo de normalidade e não como sinal de
patologia.
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