EDUCAÇÃO E FELICIDADE

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I Forum Municipal de Educação de Votuporanga - 2011 Palestra “É possível ser feliz trabalhando com educação” EDUCAÇÃO E FELICIDADE Prof. Darley Miranda Com raríssimas exceções, a queixa mais freqüente e justa daqueles que trabalham com educação municipal no país inteiro se refere a salários e condições de trabalho. De um modo geral, ganha-se mal, trabalha-se muito e em condições aquém das mínimas necessárias, faltam funcionários, existem poucos recursos para capacitação e o modelo de gestão não valoriza, nem reconhece ou incentiva a equipe. Por esses motivos, os pleitos do funcionalismo em relação às essas duas dimensões salários e condições de trabalho são legítimos e devem ser debatidos nos fóruns adequados. Mas, o que fazer enquanto as demandas por melhorias substanciais nessas duas dimensões não são atendidas? Como se comportar enquanto as coisas não melhoram? Vejamos a seguir a carta de uma professora que trabalha na rede municipal e não vê mais possibilidade de melhorias. A carta diz assim: “Já não agüento mais. Faz quase 10 anos que meu salário praticamente estagnou. Trabalho numa escola que fica num bairro pobre, onde estudam crianças sem estrutura familiar e os pais não estão nem aí para elas. A equipe está desfalcada, a diretora é incompetente e a escola tem problemas de manutenção e segurança. Como é possível trabalhar com empenho e satisfação? Admito que atualmente faço o mínimo necessário. Mas, ainda assim acho que trabalho mais do que me paga esse salário ridículo. Com base nela, arrisco representar uma espécie de “engrenagem da infelicidade na educação”, com as três condições necessárias para manter um contínuo mal-estar ligado ao trabalho: Essa professora me fez lembrar dos trabalhos do Dr. Viktor Frankl, psiquiatra vienense criador da Logoterapia. Consta que ele, ao ouvir as queixas de pacientes que haviam perdido tudo na guerra, lhes perguntava: “se está tudo tão ruim e sem sentido porque você não se mata?”

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O estado de bem-estar permanente é passível de ser alcançado pelos profissionais da educação independente das condições sob as quais trabalham. Ter compromissos com algo ou alguém no futuro, saber escolher pensamentos eficazes e estar disposto a se doar sem esperar retribuição, são as três condições básicas para garantir sentimentos de bem-estar. A consequências natural desses sentimentos será uma pré-disposição para comportamentos altruístas, generosos e afetuosos na escola.

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I Forum Municipal de Educação de Votuporanga - 2011 Palestra “É possível ser feliz trabalhando com educação”

EDUCAÇÃO E FELICIDADE

Prof. Darley Miranda

Com raríssimas exceções, a queixa mais freqüente e justa daqueles que trabalham com

educação municipal no país inteiro se refere a salários e condições de trabalho. De um modo

geral, ganha-se mal, trabalha-se muito e em condições aquém das mínimas necessárias, faltam

funcionários, existem poucos recursos para capacitação e o modelo de gestão não valoriza,

nem reconhece ou incentiva a equipe. Por esses motivos, os pleitos do funcionalismo em

relação às essas duas dimensões – salários e condições de trabalho – são legítimos e devem ser

debatidos nos fóruns adequados.

Mas, o que fazer enquanto as demandas por melhorias substanciais nessas duas dimensões

não são atendidas? Como se comportar enquanto as coisas não melhoram? Vejamos a seguir a

carta de uma professora que trabalha na rede municipal e não vê mais possibilidade de

melhorias. A carta diz assim: “Já não agüento mais. Faz quase 10 anos que meu salário

praticamente estagnou. Trabalho numa escola que fica num bairro pobre, onde estudam

crianças sem estrutura familiar e os pais não estão nem aí para elas. A equipe está desfalcada,

a diretora é incompetente e a escola tem problemas de manutenção e segurança. Como é

possível trabalhar com empenho e satisfação? Admito que atualmente faço o mínimo

necessário. Mas, ainda assim acho que trabalho mais do que me paga esse salário ridículo”.

Com base nela, arrisco representar uma espécie de “engrenagem da infelicidade na

educação”, com as três condições necessárias para manter um contínuo mal-estar ligado ao

trabalho:

Essa professora me fez lembrar dos trabalhos do Dr. Viktor Frankl, psiquiatra vienense criador

da Logoterapia. Consta que ele, ao ouvir as queixas de pacientes que haviam perdido tudo na

guerra, lhes perguntava: “se está tudo tão ruim e sem sentido porque você não se mata?”

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Obviamente sua intenção não era piorar o estado já lastimável das pessoas. Pretendia com isso

despertar no paciente a identificação de “razões para viver”. Pensando nisso, considerei

perguntar à nossa professora: “se as coisas estão desse jeito, porque você não pede demissão

e vai embora?”. Apesar de parecer rude e agressiva, a pergunta teria apenas a intenção de

ajudá-la a identificar as “razões para continuar trabalhando”. Respostas como: “eu gosto de

crianças”, “preciso ter alguma atividade fora de casa” ou “estou querendo fazer uma pós-

graduação” poderiam dar início a uma lista enorme de motivos até chegar àqueles que

confeririam sentido à permanência dela na escola. Essa lista garantiria sua disposição para

continuar se esforçando “apesar de tudo”. Com isso, os efeitos das circunstâncias sobre seu

estado de ânimo seriam menores. Os compromissos com “algo ou alguém no futuro”

descobertos pela professora ao elaborar sua lista seriam os motivos que a deixariam

estimulada para o trabalho, apesar de sua insatisfação com as condições do momento.

Mas, ainda assim os pequenos aborrecimentos do cotidiano continuariam perturbando nossa

professora podendo abalar a força dos seus motivos, a sua “motivação”. Para encarar esses

aborrecimentos com outra perspectiva, ela poderia seguir as recomendações do Dr. Gerald

Kushel, psicólogo americano criador de um método chamado “Centering” que ensina a

“escolher pensamentos eficazes”. Segundo o Dr. Kushel, independente do que aconteça “fora

de mim”, eu posso escolher como processarei os fatos “dentro de mim”. Posso escolher “como

pensarei” cada coisa que aconteça comigo de modo a ficar num estado que me permita agir de

forma eficaz. Então, a professora poderia escolher outros pensamentos para descrever a

situação que vive. Para começar, dentre outras coisas a professora poderia comparar seu

momento atual com situações bem piores que já viveu anteriormente ou que poderia estar

vivendo atualmente. Segundo um sem-número de estudos científicos recentes, usar a

tendência natural para a comparação pode ser um “truque” interessante desde seja feita em

relação a situações e características negativas. Além disso, ela poderia “escolher”

pensamentos como: “ao invés de focar em problemas sobre os quais não tenho controle,

estou me concentrando em melhorias possíveis no meu trabalho de sala de aula”, no lugar de

“as condições são tão ruins que não tenho o que fazer enquanto elas não melhorarem”.

Essas duas condições – “ter compromissos com algo ou alguém no futuro” e “escolher

pensamentos eficazes” – certamente aumentariam os sentimentos de bem-estar da nossa

professora e a deixariam mais predisposta a adotar comportamentos altruístas, generosos e

cooperativos na escola. Esse fato encontra explicação nos trabalhos de vários estudiosos que

identificaram relação de causa-efeito entre sentimentos de bem-estar e comportamentos

solidários. Mas para o sociólogo canadense Jacques Godbout , o “paradigma da dádiva” inverte

essa relação (ou mantém com ela uma espécie de “hierarquia entrelaçada”). Ou seja, “atos

gratuitos”, sem espera de retribuição e que não sejam praticados porque se ganha alguma

coisa com eles, produzem prazer e colocam em funcionamento o “ciclo virtuoso da dádiva”

(dar, receber, retribuir). O trabalho do Dr. Godbout demonstra que nem tudo na sociedade

pós-moderna pode ser pensado dentro do “paradigma do mercado” (tudo é mercadoria e tem

um preço) ou do “paradigma do estado” (tudo é uma questão de direitos e obrigações).

Algumas coisas continuarão sendo feitas não pelo seu valor de uso ou valor de troca, mas pelo

seu “valor de vínculo”. Assim, nossa professora ao invés de se sentir “explorada” porque nutre

sentimentos afetuosos pelas crianças e não ganha nada com isso, poderia agir mais

espontaneamente em relação a elas, “sem esperar nada em troca”. Arrisco dizer que em

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atividades como saúde, educação e serviço social, é necessária uma atuação profissional

baseada na idéia de que “nem tudo tem um preço” e que “nem tudo é uma questão de

direitos e obrigações”. Assim, minha idéia de “engrenagem da felicidade na educação”,

baseada nos trabalhos de Viktor Frankl, Gerald Kushel e Jacques Godbout é a seguinte:

A questão toda então é saber o que a nossa professora poderia efetivamente fazer para

garantir os tão desejáveis sentimentos de satisfação pessoal independente das circunstâncias.

O esquema abaixo propõe o estabelecimento de uma relação entre “atitude mental”, “reação

diante da vida” e “estado interior”.

Como nossa atitude mental é resultado de condicionamentos, para mudá-la é necessário um

processo de treinamento contínuo com foco nos três “fundamentos profundos da felicidade na

educação”: a dádiva, o sentido e o centramento. Curiosamente, essa espécie de “treinamento

mental”, que poderia mudar a atitude das pessoas, não faz parte da programação de nenhuma

instituição que se dedique à capacitação de profissionais da educação.

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A ilustração abaixo apresenta o comportamento generoso, cooperativo e afetuoso na escola

como conseqüência do sentimento de contínuo de bem-estar experimentado pela equipe

escolar, a partir da disposição para doar-se sem esperar receber retribuição, do

estabelecimento de compromissos com algo ou alguém no futuro e pela habilidade de

escolher pensamentos eficazes.

Um treinamento capaz de produzir uma mudança de perspectiva como essa teria um valor

inestimável já que formaria equipes “dispostas a se sentirem felizes independente das

circunstâncias” e, por conseguinte, mais abertas, criativas e comprometidas com o trabalho.

Alguns certamente identificarão nessa ou qualquer outra proposta uma visão manipuladora e

conformista. Para esses vale a pena relembrar a necessidade de “não perder a ternura jamais”

– particularmente nas questões que envolvem as crianças, os pais e a comunidade, mesmo

que se “endureça o jogo” na luta legítima por melhores salários e condições de trabalho.

Referências bibliográficas

Frankl, Viktor Emil, Em Busca de Sentido, 26ª edição, Petrópolis, Vozes, 2008.

Godbout, Jacques T. O Espírito da Dádiva. 1ª. edição, Rio de Janeiro, FGV, 1999.

Kushel, Gerald. Libertação Interior. 2ª. edição, São Paulo, Melhoramentos, 1982.