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    EDUCAO E EMANCIPAO: CRTICA AOS FINS E AO SENTIDO DA EDUCAO ATUAL NA PERSPECTIVA DAS CONTRIBUIES

    FREIRIANAS

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao, Mestrado em Educao, da Faculdade de Educao, da Universidade de Passo Fundo, como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Educao, sob orientao do Professor Doutor Eldon Henrique Mhl.

    Passo Fundo 2011

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    Minha segurana se funda na convico de que sei algo e de que ignoro algo a que se junta a certeza de que posso saber melhor o que j sei e conhecer o que ainda no sei. Minha segurana se alicera no saber confirmado pela prpria experincia de que, se minha inconcluso, de que sou consciente, atesta, de um lado, minha ignorncia, me abre, de outro, o caminho para conhecer.

    (Paulo Freire)

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    RESUMO

    A educao dimensiona-se pelos fins que a orientam e pelo sentido atribudo ao pedaggica que desenvolve. O presente trabalho objetiva esclarecer em que termos a educao instrumentalizada e dirigida prioritariamente ao mercado diferencia-se quanto ao

    sentido e finalidade da educao proposta por Paulo Freire e, alm disso, investigar quais so as relaes pedaggicas que podem contribuir para a definio dos fins e do sentido da

    educao na perspectiva emancipadora. De carter bibliogrfico, com prioridade para as obras de Paulo Freire, a pesquisa se constitui pelo dilogo crtico reconstrutivo, que acontece tambm com as contribuies de autores como Gilberto Velho, Jos Eustquio Romo, Carlos Rodrigues Brando, Valter Esteves Garcia e Benno Sander. O texto parte da crtica

    tendncia atual de estabelecer, como fins prioritrios da educao, a adequao ao mercado, o que implica torn-la um instrumento de manuteno e reproduo das relaes opressoras e

    antidialgicas, em termos adotados por Freire, como uma educao bancria. Em contraposio, analisa-se o sentido de educao proposto por Freire, amparando-se na tese de que a educao um ato poltico, que sempre mantm um potencial capaz de contribuir de forma decisiva para o processo de emancipao do homem, sustentado nos princpios

    pedaggicos do dilogo e da conscientizao. Por fim, procura-se reconstruir criticamente indicativos que orientem a educao emancipadora que compreenda o homem como um ser consciente de sua inconcluso e vocacionado para ser mais. A investigao refora, por fim, a

    tese de que a educao deve ter como principal finalidade a emancipao dos indivduos e que a obteno de tal sentido depende de uma prtica pedaggica que considera cada ser humano

    como sujeito capaz de agir e transformar o mundo.

    Palavras-chave: educao, fins, sentido, emancipao, Paulo Freire.

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    ABSTRACT

    The education can be sized up by the purposes that guides it and by the means attributed to the pedagogical action developed. This study aims to explain in what terms the

    instrumental education and the education guided to the market differentiates itself as the sense and the aims from the education proposed by Paulo Freire and, beyond this, to investigate

    which are the pedagogical relations that can contribute to define the aims and the sense of education in an emancipated perspective. The bibliographic character gives priority to texts from Paulo Freire, the research constitutes itself by reconstructive and critic dialogue that also happens with the contributes of authors like Gilberto Velho, Jos Eustquio Romo, Carlos Rodrigues Brando, Valter Esteves Garcia and Benno Sander. The text comes from the criticize to the current tendency to establish as priority aims to education the appropriation to

    the market, what implicates take it as an instrument of maintenance and reproduction of oppressor and anti dialogical relations, in terms adopted by Freire as a bank education. In

    contraposition, the sense of education proposed by Freire is analyzed supporting itself in the thesis that the education is a political act, that always maintain a potential capable to contribute in a decisive way to the process to emancipation of a man, supported in pedagogical principles of dialogue and consciousness. Finally, it looks for to reconstruct critically indicatives that guide the emancipated education that understand the man as a human being conscious of his/her in not concluded and that he/she has vocation to be more. At the end, this investigation reinforces the thesis that the education has to have as main aim

    the emancipate of individuals and that the obtaining this sense depends on of a pedagogical practice that consider each human being as a subject capable to act and to change the world.

    Key-words: education, purposes, sense, emancipated, Paulo Freire.

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    SUMRIO

    INTRODUO ..................................................................................................................................... 6

    1 PROBLEMAS DA EDUCAO ATUAL: DOS FINS E SENTIDO ............................................................ 13

    1.1 Sociedades complexas: uma nova configurao social ................................................................ 16

    1.2 Os problemas da educao nas sociedades complexas ............................................................... 26

    1.3 As consequncias para a educao .............................................................................................. 30

    1.3.1 Instrumentalizao da educao .......................................................................................... 30

    1.3.2 Teoria e prtica: a prxis em crise......................................................................................... 31

    1.3.3 Formalismo educacional: condutas reais e normas prescritas em desacordo ..................... 36

    1.4 Racionalidade monolgica: a negao da conscincia dos oprimidos ......................................... 42

    1.4.1 Educao bancria ................................................................................................................ 47

    1.5 Processos pedaggicos: reveladores dos fins e do sentido da educao .................................... 49

    2 FINS E SENTIDO DA EDUCAO: CONCEPES FREIRIANAS E PROPOSTAS CONTEMPORNEAS

    PARA A EDUCAO .......................................................................................................................... 60

    2.1 Concepes que fundamentam a pedagogia freiriana ................................................................ 61

    2.1.1 Concepo de homem .......................................................................................................... 61

    2.1.2 Concepo de humanizao.................................................................................................. 62

    2.1.3 Concepo de conscientizao ............................................................................................. 63

    2.1.4 Concepo de libertao ....................................................................................................... 66

    2.1.5 Concepo de dilogo ........................................................................................................... 68

    2.1.6 O mtodo Paulo Freire .......................................................................................................... 70

    2.2 Propostas contemporneas para a educao .............................................................................. 73

    2.3 Algumas aproximaes entre as concepes freirianas e as propostas do Relatrio para a

    Unesco ................................................................................................................................................ 82

    2.4 A conscincia da prpria inconcluso e a vocao humana para o ser mais como sentido da

    educao em Paulo Freire .................................................................................................................. 89

    3 INDICATIVOS PARA A EDUCAO NA PERSPECTIVA EMANCIPADORA .......................................... 94

    3.1 Exigncias para o ato de ensinar .................................................................................................. 96

    3.2 Educao: um ato poltico .......................................................................................................... 105

    3.3 Relaes dialgicas como o ncleo fundante das prticas educativas democrticas ............... 108

    3.4 A formao permanente dos educadores .................................................................................. 118

    CONSIDERAES FINAIS ................................................................................................................. 126

    BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................................ 132

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    INTRODUO

    Busca-se, neste trabalho, constituir uma crtica aos fins e ao sentido da educao atual e, a partir dela, apresentar indicativos para uma educao emancipadora tendo por base as

    concepes de Paulo Freire. Objetiva-se tambm compreender a viso instrumental e mercadolgica predominante na educao contempornea em confronto com a concepo emancipadora da educao proposta por Freire, entendida como processo mais abrangente de formao do ser humano.

    Lanar-se busca, pesquisa dessas questes no uma deciso que tenha sido tomada apenas para cumprir a proposta do momento acadmico vivido. H um profundo significado pedaggico, poltico e tico na definio deste tema. A experincia vivida no

    cotidiano dirio da escola pblica, vivenciando as diferentes experincias, seja na docncia em sala de aula, na coordenao pedaggica ou na gesto administrativa da escola, despertou

    o desejo de compreender melhor as prticas e as relaes que, nela, se do, assim como as razes, ou pelo menos parte das razes, que as justificam. Se se vivenciam e observam-se situaes perante as quais questionamo-nos se, de fato, a educao tem contribudo para a formao de seres humanos mais humanos, mais conscientes, capazes de atuar criticamente, de construir saberes permanentemente, porque, em alguns pontos da trajetria de formao, existem desencontros, lacunas e problemas que precisam ser identificados num momento

    inicial para, assim, serem tratados com o objetivo, primeiro, de compreend-los e, a partir de ento, pensar e criar formas de buscar a sua superao. Um olhar mais atento, o desejo de aprofundar a reflexo e o estudo sobre as referidas prticas e relaes apontam a necessidade de melhor examinar a realidade tendo como sustentao o dilogo com o conhecimento terico j sistematizado.

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    Paulo Freire, no decorrer de sua vida e obra, enfatiza a sua convico de que a realidade no simplesmente dada como algo esttico, cabendo ao homem simplesmente adaptar-se. Na sua obra Pedagogia da Indignao: cartas pedaggicas e outros escritos, Freire questiona: [...] se possvel desviar leitos de rios, fazer barragens, se possvel mudar o mundo que no fizemos, o da natureza, por que no mudar o mundo que fazemos, o da cultura, o da histria, o da poltica? (FREIRE, 2000, p. 98). Na Pedagogia da Autonomia: saberes necessrios prtica educativa, o estudioso denuncia:

    A ideologia fatalista, imobilizante, que anima o discurso neoliberal anda solta no mundo. Com ares de ps-modernidade, insiste em convencer-nos de que nada podemos contra a realidade social que, de histrica e cultural, passa a ser ou a virar quase natural. Frases como a realidade assim mesmo, que podemos fazer? ou o desemprego no mundo uma fatalidade do fim do sculo expressam bem o fatalismo desta ideologia e sua indiscutvel vontade imobilizadora (FREIRE, 1996, p. 21 22).

    Para Freire, o ser humano tem potencial para se transformar em agente de mudana, capaz de intervir no mundo, de produzir um sentido para a prpria existncia. Assim sendo, as prticas educativas no podem permanecer na viso ingnua da realidade, nem reprimir o potencial criativo do aluno. So necessrias prticas reflexivas que permitam uma apreenso

    crtica da realidade, visando conscientizao necessria ao processo de libertao. A educao, que se d em uma perspectiva emancipadora e dialgica, retoma os fins e o sentido

    no considerados, ou esquecidos, pela educao bancria em seus moldes tradicionais. Eis que fins e sentido passam a ter uma nova perspectiva, voltando-se para uma dimenso mais humanizadora, em que se valoriza as relaes dialgicas, a identidade cultural e a formao tica como tarefa fundamental. Distante de ser um simples meio de manipulao das pessoas,

    a emancipao compreendida como um projeto transformador das relaes de opresso. Na perspectiva emancipadora, os fins e o sentido da educao esto fundamentalmente atrelados

    com a dignificao do ser humano, o que implica assegurar-lhe o direito de ser sujeito, participar na definio do sentido de sua existncia e na conquista das condies para uma

    vida digna. Nesse sentido, a participao ativa e dialgica princpio pedaggico fundamental na educao.

    A educao compreendida como uma das mais importantes bases da sociedade precisa ser constante e permanentemente pensada e repensada. Deve ser analisada e concebida

    criticamente. Dessa forma, faz-se necessrio reunir esforos para identificar e compreender

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    falhas e potencialidades nos processos educativos, sendo possvel, a partir deste ponto, reconstru-los.

    O desenvolvimento da educao no aconteceu isolado do crescimento do sistema capitalista que passou a influenciar e a dominar as relaes e a organizao da sociedade.

    Com esse sistema1, prosperaram os processos de produo que visam primordialmente gerao de lucros e acumulao de capital. Configurou-se, progressivamente, uma

    sociedade, onde os lucros ficam nas mos dos proprietrios e aos trabalhadores so pagos salrios pela mo-de-obra, o que refora o processo de excluso social, pois uma proporo cada vez maior de pessoas vai ficando a margem do sistema e os bens e os lucros acumulados com uma minoria.

    Tradicionalmente, a educao brasileira atendeu s normas desse sistema, voltando-se para a formao das elites, reforando a funo seletiva da educao. Dados recentes da rede

    de educao pblica, que atende s camadas populares, mostram uma das consequncias deste panorama excludente. Basta identificar que, muito recentemente, no ano de 20092, da populao brasileira com mais de 15 anos, 9,7% so analfabetos, o que significa 14,1 milhes de brasileiros que ainda no usufruam o bem bsico da leitura e da escrita. Dentre os maiores

    1 Na obra Karl Marx, organizada por Octavio Ianni, encontramos uma sntese da explicao de Marx para o

    modo de produo capitalista. Na concepo de Marx: Em essncia o capitalismo um sistema de mercantilizao universal e de produo de mais-valia. Ele mercantiliza as relaes, as pessoas e as coisas. Ao mesmo tempo, pois, mercantiliza a fora de trabalho, a energia humana que produz valor. Por isso mesmo, transforma as prprias pessoas em mercadorias, tornando-as adjetivas de sua fora de trabalho (IANNI, 1996, p. 8). Assim, Marx compreende que o capitalismo tem duas caractersticas bsicas que distinguem o seu modo de produo. Uma delas que os produtos que produz so mercadorias. No , no entanto, essa produo da mercadoria que distingue o capitalismo dos outros modos de produo, mas o fato de que ser mercadoria o carter que domina e determina os produtos. O prprio operrio vende uma mercadoria, o seu trabalho, por um salrio. A outra caracterstica a produo de mais-valia como objetivo principal da produo. Essas duas caractersticas principais, a mercadoria e a mais-valia so produto e condio das relaes de antagonismo, de dependncia e alienao do operrio e do capitalista, um em relao ao outro. A mercadoria representa tanto o produto do trabalho necessrio ao produtor trabalho pago ao produtor como o produto do trabalho excedente que trabalho no pago ao produtor do qual o capitalista apropria-se nos processos de compra e venda de fora de trabalho. Dessa forma, mercadoria e mais-valia no podem ser compreendidas isoladamente, mas, como produtos das relaes de produo que produzem o capitalismo (IANNI, 1996, p.9). Elas surgem e produzem-se como relaes antagnicas e nisto que est fundamentado o carter essencial do capitalismo. Para Marx, a mercadoria trabalho social sedimentado e alienado. O capitalista compra do operrio a fora do seu trabalho numa certa quantidade e, no entanto, faz com que ele produza maior quantidade, bem acima do que lhe pago em forma de salrio. O segredo da acumulao de capital a diferena entre o trabalho pago ao operrio e o trabalho no pago, o excedente que obrigado a realizar, o qual produz a mais-valia. Estas duas caractersticas implicam todo um processo social que os produtos percorrem e tambm interferem nas relaes entre os agentes da produo, que determinam a valorizao de seu produto e de sua reverso seja em forma de meios de vida ou de meios de produo (IANNI, 1996, p. 77). Se, por um lado, o trabalho trabalho social, por outro, a distribuio desse trabalho dentro da organizao social fica a cargo dos desejos e interesses dos produtores capitalistas, cujas aes pautam-se por interesses econmicos voltados aos lucros, acarretando em decises que podem ir destruindo, entre si, os prprios capitalistas. As relaes que acontecem entre os capitalistas compreendem-nos apenas como possuidores de mercadorias. 2 Dados consultados em 04 de abril de 2011, disponveis em: http://www.ibge.gov.br, de acordo com resultados

    de pesquisa do PNAD 2009 Pesquisa Nacional por Amostra de Domiclios.

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    de 15 anos, 20,3% possuem menos de quatro anos de escolarizao. Tambm em 20093, os ndices de reprovao, no ensino fundamental, chegaram a 11,1% e o de evaso a 3,7%. Esses ndices revelam fragilidades de uma realidade excludente de um sistema educacional que funciona como um dos meios de reproduo do sistema econmico e poltico instaurado.

    Dentre as ideias apregoadas pelo capitalismo, uma delas traz srias implicaes para o campo do sentido da vida humana e, especificamente, para o sentido da educao: tem valor

    aquilo que til e lucrativo. O imediatismo assume lugar de destaque e a educao passa a formar o aluno para que ele esteja apto a competir no mercado de trabalho, atravs do domnio de tcnicas e instrumentos como um dos pr-requisitos bsicos.

    A dimenso da formao crtica e emancipadora parece estar enfraquecendo nesse

    cenrio, do qual brotam minhas inquietaes como pedagoga e pesquisadora. Um dos pilares de sustentao para as prticas educacionais, que a definio dos fins e do sentido da

    educao, parece no estar presente no ncleo das discusses do campo educacional. Muitas questes so provocadoras de reflexo nesse contexto: Qual o sentido da educao atual? Quais so os seus fins? Quem ou o qu tem orientado os fins da educao? Em que termos os fins apregoados ou estabelecidos nos documentos expressam os fins reais que orientam a educao atual? Quais so os fins estabelecidos pela LDB e quais so os valores reais que predominam nas escolas e nos sistemas de ensino? possvel superar a concepo instrumentalizadora da educao e reconstruir, ou redimensionar, o sentido da educao nos dias de hoje? As atuais propostas de educao sinalizam para a possibilidade de uma educao crtica e emancipadora? Estar previsto nas legislaes educacionais que uma das

    finalidades da educao o pleno desenvolvimento do educando, suficiente? Dentre tantas inquietaes, situam-se as que me proponho a esclarecer neste texto: Em

    que termos a educao instrumentalizada e dirigida pelo mercado diferencia-se, quanto ao sentido e finalidade, da educao proposta por Freire? Que relaes pedaggicas podem contribuir para a definio e realizao dos fins e do sentido da educao numa perspectiva emancipadora?

    Considerando essas questes que se busca esclarecer, com essa pesquisa, o papel crtico e transformador da educao e tambm os limites da viso instrumental e

    mercadolgica da educao, impostos pelo atual sistema. Essa busca acontecer especialmente luz das contribuies de Paulo Freire que, comprometido com a perspectiva

    3 Dados consultados em 04 de abril de 2011, disponveis em: http://inep.gov.br.

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    de transformao da sociedade, elege os oprimidos, aqueles que sofrem as consequncias do sistema excludente, para, com eles, pensar o processo de libertao atravs de uma pedagogia dialgica. Dentre as principais contribuies freirianas, destaca-se o desenvolvimento de uma proposta pedaggica capaz de promover a conscientizao e a transformao social e cultural,

    compreendendo o homem como sujeito. O sentido, ou a razo da educao, para Freire, centra-se na ideia da conscincia humana sobre a prpria inconcluso e na vocao dos

    homens e mulheres para o ser mais, para humanizar-se. Sentido esse que, na viso instrumental e mercadolgica resultante do projeto de sociedade que se impe, substitudo pelo imediatismo que gera necessidades voltadas para o consumismo como forma de realizao plena do ser humano.

    Situando a pesquisa nessa dimenso do contexto educacional, trabalha-se com a hiptese de que, mesmo no contexto que assinala a exigncia de que a educao atenda aos

    interesses do projeto de sociedade, h um potencial de transformao e de redimensionamento do sentido da educao que pode ser desencadeado e impulsionado atravs de relaes pedaggicas orientadas pelo dilogo crtico e problematizador, o que, no mbito escolar, aponta para as relaes entre os sujeitos, de forma mais especfica, para a relao entre educador e educando, e tambm para a relao entre a teoria e a prtica.

    A pesquisa realizada bibliogrfica, com prioridade para as obras do prprio Paulo Freire, destacando-se, principalmente, a Pedagogia do Oprimido (2005), a Pedagogia da Esperana: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido (1992), a Pedagogia da Autonomia: saberes necessrios prtica educativa (1996), Educao como prtica da liberdade (2009) e A educao na cidade (1999), as quais se entende serem centrais para a compreenso dos fundamentos da temtica da pesquisa. O dilogo, alm disso, acontecer

    com as contribuies de autores como: Theodor Adorno, Gilberto Velho, Jos Eustquio Romo, Carlos Rodrigues Brando, Valter Esteves Garcia e Benno Sander. O enfoque metodolgico levar em considerao aspectos da hermenutica e da dialtica. Da recomendao hermenutica, objetiva-se manter posio crtica a partir dos textos, procurando evitar ferir o princpio da coerncia interna das argumentaes e do posicionamento assumido pelos autores. A insero pessoal acontecer numa relao crtica

    com o objeto de estudo, conforme o princpio hermenutico da inseparabilidade do sujeito e do objeto. A conscincia de que so os sujeitos que pensam e conhecem, implica tambm a conscincia dos prprios limites do conhecimento, por isso, o constante questionamento e a priorizao da pergunta, no predominando a viso reducionista, ou generalista. Sob o aspecto

    da dialtica, objetivar-se- estabelecer e manter uma relao com o texto que preserve a

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    originalidade do autor, mas que viabilize explicar o carter conflitivo, o jogo de contradies presentes em toda a obra humana. Com isso, queremos destacar e registrar o cuidado necessrio que pretendemos manter para que o resultado da pesquisa no se torne uma construo ideolgica.

    O trabalho ser estruturado em trs captulos. No primeiro, Problemas da educao atual: dos fins e sentido, procura-se, inicialmente, caracterizar o cenrio social com as

    mltiplas transformaes ocorridas no campo do trabalho, da produo, do consumo, da globalizao, da evoluo das tecnologias, da exploso do conhecimento, para localizar desafios que, consequentemente, se colocam educao que objetiva a emancipao humana. A partir das concepes adornianas, conceituamos formao, semifomao e emancipao, os

    quais so pano de fundo para a fundamentao da crtica que se busca constituir. Acrescente-se que, neste caso, ensejamos compreender o processo de instrumentalizao da educao como uma das consequncias dos interesses da ideologia capitalista. O questionamento da teoria crtica acerca do sentido da teoria e da prtica atribudo pela teoria tradicional leva-nos a aprofundar a reflexo sobre a relao entre teoria e prtica, elementos que, de acordo com a pedagogia freiriana, so to fundamentais quanto inseparveis para o dilogo crtico sobre a realidade vivida, elemento central das prticas educativas libertadoras. A dicotomizao entre teoria e prtica e o formalismo educacional que revela o desacordo entre as normas prescritas e as condutas reais, configura-se tambm em consequncias que interferem diretamente no campo educacional. Tencionamos compreender as implicaes da racionalidade monolgica na dimenso das prticas educativas que se estruturam nos moldes da educao que reproduz

    a cultura do silncio, a qual Freire define como educao bancria. Tambm procuramos pontuar especificamente o sentido, ou sentidos que norteiam os processos pedaggicos no

    contexto atual. Assim, intentamos localizar os problemas que denunciam a crise dos fins e do sentido da educao.

    No segundo captulo, Fins e sentido da educao: concepes freirianas e propostas contemporneas para a educao, busca-se compreender concepes que fundamentam o

    pensamento freiriano, focando para aquelas concepes que so elementares e que so princpios de sustentao do seu projeto de educao. Alm disso, reconstroem-se, interpretativamente, as propostas contemporneas para a educao, concentrando-se naquelas que so apresentadas pelo Relatrio para a Unesco, o qual representa o pensamento de educao para esse novo milnio. Busca-se compor criticamente, com o cuidado de no transpor concepes, algumas aproximaes entre as concepes freirianas e as propostas

    contemporneas, objetivando compreender melhor as contradies e as potencialidades no

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    campo dos fins e sentido da educao atual. Essas aproximaes sos possveis pelo fato de que o Relatrio inaugura, em nvel mundial, uma proposta de educao pensada como processo para toda a vida do ser humano, que promova a sua formao como autnomo, consciente, solidrio e capaz de, alm de conviver, respeitar e aceitar as diferenas e a

    multiculturalidade, combater as injustias e as desigualdades. Ainda, nesse captulo, trazemos a definio do sentido da educao para Paulo Freire.

    No terceiro captulo, concentra-se na reflexo e anlise estruturadas nos captulos anteriores, com nfase para o sentido da educao proposto por Freire para tecer criticamente indicativos que orientem uma proposta de educao emancipadora. A compreenso da educao como um ato poltico, cujas prticas, conscientemente ou no, so carregadas de sentido constitui-se um ponto de partida. A formao permanente dos educadores, um terreno fecundo para a discusso e para a sustentao de prticas pedaggicas democrticas

    constantemente pensadas e repensadas luz da teoria, assim como as relaes dialgicas e a conscientizao, constituem os grandes ncleos dos indicativos propostos. A realizao dos fins e do sentido da educao emancipadora podem concretizar-se atravs da prtica dialgica.

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    1 PROBLEMAS DA EDUCAO ATUAL: DOS FINS E SENTIDO

    A educao, ao longo de toda a sua trajetria histrica, tem passado por momentos de crises e reestruturaes. Muitos so os indicativos que tornam visveis e conhecidos os seus

    resultados, os quais revelam uma realidade pouco satisfatria em se tratando de qualidade educacional. Estudos e discusses apontam para a necessidade de qualific-la em todos os

    seus nveis e nos diversos aspectos ou dimenses que a constituem. necessrio considerar, no entanto, que a escola insere-se num contexto social, poltico, econmico e cultural,

    sofrendo, pois, as interferncias deste meio, o que significa que a busca pela compreenso, tanto das razes ou da origem dos problemas, quanto das possibilidades de super-los, precisa

    ir alm do horizonte restrito do espao escolar e da anlise apenas do tempo presente. necessrio olhar criticamente para o entorno social da escola e analisar como essas relaes

    foram se estabelecendo no decorrer da histria. A sociedade, histrica e constantemente, vem se desenvolvendo e se transformando. O

    sistema social, poltico e econmico, no qual estamos inseridos, configura, regula e institui as suas prprias regras, devendo-se considerar que este sistema resultante de um processo em

    constante transformao. O desenvolvimento da cincia e da tecnologia foi decisivo na configurao e na consolidao do sistema, medida que passaram a ser utilizadas como instrumento de dominao do homem, subordinando-o ao processo de produo de bens de

    consumo. Resulta disso que a cincia e a tecnologia, estando a servio do sistema capitalista, contribuem para fortalecer os processos de excluso e no o processo de emancipao. Em

    consequncia, tambm aumenta a produo de bens para o consumo. Desse modo, ao considerar os lucros gerados pela produo de mercadorias, a

    dimenso emancipadora vai ficando enfraquecida. A educao passa a ser considerada como uma mercadoria, no como um bem pblico ao acesso de todos, de modo que concebida como uma forma de preparar o indivduo para o mercado de trabalho. O conhecimento um bem e um instrumento que pode ser adquirido para viabilizar o acesso do indivduo ao mundo

    do trabalho e do consumo, o que uma caracterstica da instrumentalizao da educao. Ao passo que essa perspectiva se fortalece, a formao para a emancipao se enfraquece. O

    sentido, o significado atribudo educao est vinculado quilo que a sociedade valoriza. Por isso, a formao de pessoas com conscincia crtica, com autonomia, e que sejam comprometidas com as problemticas da realidade, no primordial nos objetivos dessa sociedade.

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    Avanam tambm os mecanismos de controle e de dominao, o que caracteriza uma crise na racionalidade moderna que se instrumentaliza para atender aos interesses do sistema vigente. A razo instrumental passa a orientar a ao humana e pode ser considerada uma das responsveis pela crise nas diferentes dimenses da vida nas sociedades contemporneas,

    incluindo o campo educacional, no qual a mercantilizao da educao um dos reflexos aparentes. O prprio termo clientela, utilizado, atualmente, no meio educacional, expressa

    esse contexto mercadolgico, sendo que o aluno visto como cliente e o conhecimento, como mercadoria que pode ser adquirida. A escola, assim, reproduz a racionalidade instrumental. A finalidade da educao fica restrita ao imediatismo, possibilidade e necessidade de consumir como forma de satisfao e de realizao do ser humano.

    Paulo Freire (2005) chama ateno para a existncia de prticas antidialgicas, que, segundo ele, so caracterizadas por instrumentos os quais so empregados pelos dominantes

    para manter a realidade como se apresenta, ou seja, em seu prprio favor. Uma dessas caractersticas a conquista das massas populares que passam a ser

    objetos dos dominantes. Sendo conquistadas, as massas populares tm a sua palavra e a sua cultura roubadas. A alienao e a manipulao so tambm instrumentos que os dominantes valem-se para se manter no poder. Por elas, as elites dominantes conformam as massas, fazem-nas acreditar que esto sendo amparadas, protegidas. Expresso, pois, de outra forma, so uma espcie de anestesia que as impedem de pensar e levam-nas a acreditar na ascenso. A invaso cultural outro eficiente instrumento pelo qual se impe uma viso de mundo, inibindo a criatividade daqueles que so invadidos, que aceitam a sua inferioridade e admitem

    a superioridade da cultura dos dominantes. Com essas caractersticas, as relaes antidialgicas partem do princpio de que as

    grandes massas, o povo, no tm cultura. Estas razes da educao antidialgica, por sua vez, partem do princpio de que o aluno, que no sabe, precisa receber ensinamentos. Nessas relaes em que o homem no compreendido como sujeito, pensar uma prtica educativa dialgica e reflexiva constitui-se, conforme o prprio Freire (2009), num dos maiores desafios para a educao.

    Nesse contexto em que se complexificam as relaes, pensar a educao numa

    perspectiva emancipatria consiste numa questo que merece um olhar criterioso e prioritrio.

    Em primeiro lugar, a educao emancipadora demanda uma deciso poltica, pois se concretiza pelo exerccio do dilogo, pelo enfrentamento dos conflitos com responsabilidade e pela conscientizao. A educao tem um papel fundamental na formao do ser humano.

    Sendo assim, muito mais do que a transmisso de informaes e conhecimentos, do que a

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    preparao para o mercado de trabalho e adaptao realidade, a educao precisa compreender o homem como sujeito capaz de pensar, de dialogar, de interagir, enfim, de construir conhecimentos. As aes e os objetivos da educao devem convergir para uma formao emancipadora. No entanto, este um grande desafio e visvel que a educao tem

    tido dificuldades em atingir esses objetivos. Diante desta problemtica, pertinente considerar que, do ponto de vista formal, a

    prpria Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional prev que a educao tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exerccio da cidadania e a sua qualificao para o trabalho (Art. 2). A escola tem registrado, em seus projetos e propostas, objetivos que visam formao de sujeitos conscientes, crticos e autnomos. No entanto, torna-se necessrio refletir sobre os resultados alcanados ao longo do processo educativo.

    Ao realizar a sua funo, a educao visa a alcanar determinados fins, os quais, em significativa proporo, atendem s demandas mais imediatas da sociedade em relao formao dos indivduos para o mercado de trabalho ou para o nvel posterior de ensino. Em outras palavras, h uma preocupao e o direcionamento das aes educativas no sentido de dar conta da finalidade da qualificao para o trabalho. A realizao do pleno exerccio da cidadania, outro propsito estabelecido, parece ter muito mais a preocupao em fazer com que o cidado conhea e exija os seus direitos, com nfase para os direitos de consumidor, do que com a sua participao efetiva na vida pblica, que requer o seu comprometimento, superando o nvel do direito de opinar. J a finalidade do pleno desenvolvimento do educando

    parece ser a mais complexa, por isso, a mais desafiadora, pois implica o desenvolvimento da conscincia crtica e, por consequncia, a postura de resistncia aos mecanismos de excluso.

    H uma tenso entre o papel crtico e transformador da educao e os limites impostos pela atual conjuntura social, poltica e econmica. Objetiva-se, ao longo deste captulo, elencar elementos que possam compor uma tessitura consistente no sentido de conceber e interpretar as relaes instrumentalizadoras no campo educacional e de refletir para qu a

    escola deve educar, qual o sentido do processo de formao. Numa perspectiva crtica acerca dos fins e do sentido da educao, busca-se compreender a importncia das relaes

    dialgicas nas prticas pedaggicas. A relao entre a teoria e a prtica constitui-se em elemento que pode facilitar aos sujeitos envolvidos a discusso das prprias problemticas de seu meio traduzindo-se na possibilidade de formao de seres mais humanos.

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    1.1 Sociedades complexas: uma nova configurao social

    O fim da Primeira Guerra, para muitos intelectuais europeus, um perodo em que acontece um sentimento de falncia do ideal das Luzes (MATTELART, 2005, p. 37). H um consenso sobre a crise que perpassa a identidade europeia e a sua cultura. Diante da desordem sobre o estado de esprito europeu, o autor ressalta que preciso uma poltica do

    esprito como poder de transformao, como apelo inteligncia dos homens (MATTELART, 2005, p.38). Afirma, em continuidade, a existncia da necessidade de sonhar com uma Sociedade do Esprito, pois a crise, na identidade europeia, significa tambm a inquietao que ocorre ao perderem os instrumentos de seu predomnio intelectual resultado

    do predomnio da cultura de massa que se universaliza tendo o cinema como elemento que marca a internacionalizao da produo cultural (MATTELART, 2005, p. 37) e a forte concorrncia dos filmes americanos. Nesse sentido, a identidade europeia entra em crise, pois o saber, a cultura construda heterogeneamente substituda por uma cultura de massa, produzida a partir do despontar de uma nova cultura vinculada tcnica, indstria e ao dinheiro, propagada e liderada, naquele perodo, pelos Estados Unidos. De acordo com Mike Featherstone (1997), esse perodo ps-guerra marcado pelas modificaes em relao s prticas culturais no pode ser concebido como uma simples modificao ligada a um novo estgio do capitalismo. fundamental atentar para as relaes entre economia e cultura e considerar dois elementos importantes, quais sejam: as atividades dos especialista e intermedirios culturais e o pblico cada vez maior [...], consumidor de nova srie de bens culturais (FEATHERSTONE, 1997, p. 16 17). Com o processo de globalizao que se ampliou, no apenas a economia foi alvo de mudanas significativas, mas

    tambm as formas de produo, de comportamento, de comrcio e de consumo tornaram-se comuns. Um exemplo a rede de lanchonetes McDonalds que, com sua franquia de fast-food, se espalhou pelo mundo, assim como muitos outros produtos. O autor pontua que, alm da eficincia econmica, dos lucros obtidos com a padronizao dos produtos, acontece o

    consumo cultural, pois esses produtos exaltam um determinado modo de vida - no caso citado, o estilo de viver americano, idealizado porque o pas representa um centro global

    superior (FEATHERSTONE, 1997, p. 24). Mattelart (2005) lembra que, entre os primeiros conceitos estudados pela teoria crtica,

    est o de indstria cultural, o qual foi registrado por Theodor Adorno e Max Horkheimer na dcada de quarenta do sculo XX, quando fugiram do nazismo alemo e exilaram-se nos

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    Estados Unidos. Naquele pas, puderam acompanhar o desenvolvimento do rdio, da televiso, da publicidade e do cinema. Para esses filsofos:

    A indstria cultural fixa de maneira exemplar o rebaixamento da cultura a mercadoria. A transformao do ato cultural em valor de mercado anula seu poder crtico e dissolve nele os traos de uma experincia autntica (MATTELART, 2005, p. 58 -59).

    Assim, a indstria cultural refere-se a um movimento geral de produo da cultura e, por isso, relaciona-se diretamente com a tecnologia, o poder e a economia, ou seja, uma produo voltada para os lucros, objetivo principal do sistema capitalista.

    No entanto, Featherstone (1997) destaca que, j nas duas ltimas dcadas do sculo passado, embora os Estados Unidos ainda dominem a cultura e a indstria da informao, ocorreu uma emergncia de outros centros competitivos que no, necessariamente, impem o

    seu produto, mas que o ajusta s demandas do mercado, como o exemplo do Japo e de pases do sudeste asitico. Os bens de consumo japoneses no so vendidos com objetivo de imposio de um estilo de vida japons, mas de atender s demandas do mercado. Esses processos caractersticos das sociedades complexas ilustram a relao entre economia e

    cultura e, tambm, de uma forma bastante resumida, neste texto, o pluralismo cultural. De acordo com o autor, as naes ocidentais se veem foradas a ouvir outras naes, o que

    aponta para a complexidade e a pluralidade cultural. As sociedades complexas so uma nova realidade, a qual surge, mais especificamente,

    com a Revoluo Industrial. O projeto moderno relaciona-se com o desenvolvimento do capitalismo e a sua efetivao sugere um novo ethos social, o qual tem por base o

    consumismo. Em consequncia, instauram-se grandes desigualdades sociais e econmicas na sociedade.

    De forma muito sintetizada, pode-se afirmar que o projeto iluminista, o qual propunha ao homem utilizar e acender a luz da sua razo por intermdio das cincias, no conseguiu eliminar o problema da explorao e da dominao do homem pelo prprio homem.

    As sociedades complexas, progressivamente, tm tido transformaes que se mostram determinantes tanto para a vida individual quanto para a vida coletiva. So transformaes que compreendem o campo da cincia, da tecnologia e da comunicao, a globalizao da economia, as relaes de trabalho, de espao e tempo e a compreenso do conhecimento como elemento de grande valor para a produo. De acordo com Goergen, muitos so os

  • 18

    conceitos dos quais nos utilizamos para diferenciar a sociedade atual da tradicional. Entre eles: sociedade ps-industrial, sociedade ps-moderna, capitalismo tardio, sociedade da informao, sociedade do conhecimento, enfim, sociedade complexa (2009, p. 2). Em cada uma dessas definies, possvel identificar um elemento central em torno do qual

    definida a sociedade contempornea, os quais, respectivamente, so a indstria, modernidade, capital, informao, conhecimento, complexidade (Idem, p. 2). Evidencia-se, desse modo, a necessidade de um novo marco terico que possa estabelecer as definies para as significativas mudanas que acontecem no mundo atual.

    Independentemente das definies que se faam necessrias, as sociedades complexas so palco de profundas e mltiplas transformaes decorrentes da Revoluo

    Industrial em relao ao trabalho, produo e ao consumo, globalizao, ao rpido crescimento urbano, revoluo das tecnologias e verdadeira exploso do conhecimento. O

    modo de vida das grandes metrpoles a prpria expresso das sociedades complexas. Nas palavras de Goergen:

    A grande metrpole a expresso aguda do modo de vida da sociedade complexa, o lugar por excelncia do novo tipo de sociedade em que se expressam heterogeneidade, variedade de experincias e de costumes, fragmentao e diferenciao de papis e domnios, a exploso de volume de conhecimentos e tecnologias, a globalizao e virtualizao da economia, a exponencial agilidade e abrangncia dos meios de comunicao, a transformao dos contornos da vida psicolgica. Efetivamente, a sociedade complexa o cenrio de cleres mudanas sociais e individuais que desestabilizou antigas e bem assentadas estratificaes mentais e sociais (GOERGEN, 2009, p. 4).

    Esse cenrio tambm fruto do engajamento de sujeitos sociais que se organizam no interior da sociedade criando novos cdigos e smbolos sociais, como o caso de mulheres, ecologistas, pacifistas e outros tantos. A leitura desses movimentos pode revelar que relevantes mudanas esto se articulando, o que traz uma perspectiva de rompimento de

    antigos tabus apontando para um novo sentido, mais humano. Para Goergen (2009), atravs da rede de relaes sociais, possvel que os indivduos experimentem a mobilidade social, o

    que uma significativa experincia existencial. Esta mobilidade pode dar-se como ascenso da classe trabalhadora para a mdia, ou o seu contrrio. Em ambos os casos, o contato com diferentes grupos e culturas pode modificar a prpria viso de mundo e a postura tica dos indivduos. Os meios de comunicao tambm so elementos capazes de intervir de forma

    direta no modo de vida das pessoas. De acordo com o autor: Os meios de comunicao de

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    massa influenciam pela difuso de informaes, hbitos, valores e ideologias os processo de socializao (2009, p. 4).

    As sociedades complexas podem ser caracterizadas como sociedades que esto em permanente transformao em todas as suas dimenses, quer seja no campo econmico, social, tico ou cultural. O consumismo, alm de ser padro de comportamento e condio elementar para a manuteno do sistema, assumiu tamanha relevncia para a vida das pessoas,

    que se transformou no prprio sentido da vida humana. Instaurou-se uma dependncia do novo a ser produzido para ser consumido. A ideia de felicidade, de plenitude humana associada ao poder de consumo ampla e incisivamente veiculada atravs das estratgias crescentemente sofisticadas adotadas pelos meios de comunicao. Esta uma realidade que,

    talvez, no mesmo nvel do encantamento com as possibilidades do mundo moderno, gera a dependncia e a submisso das pessoas medida que uma significativa parcela j no consegue entender e dominar os recursos tecnolgicos dos objetos ou recursos de uso cotidiano, realizados por comandos eletrnicos cujo domnio pertence aos especialistas. Os processos como um todo e, especialmente, os processos de trabalho so cada vez mais especializados, mais influenciados pela cincia e pela tecnologia. Assim, o conhecimento e as informaes, por agregarem valor, ao invs de serem revelados, passam a ser vendidos, comercializados, limitando o acesso dos indivduos. E a educao sofre as consequncias desta mesma lgica do mercado: passa a ser entendida como um bem de consumo, um produto a ser adquirido.

    Esse contexto revela a dificuldade existente nas sociedades complexas em relao a

    perceber, compreender e atribuir sentido e significado s aes e realizaes, os quais possam superar os princpios e interesses imediatistas do sistema scio-econmico vigente.

    Existe, tambm, nas sociedades complexas, uma grande pluralidade de ideias e identidades. Nelas, configura-se uma multiplicidade de compreenses, de posicionamentos, de preocupaes, decorrentes dos diferentes valores e interesses dos indivduos ou grupos. Tornam-se relativas ou questionveis algumas certezas e verdades, as quais parecem ter um

    carter de transitoriedade. O que, anteriormente, parecia seguir uma trajetria natural, atualmente, configura-se num universo de alternativas mltiplas.

    As contribuies de Gilberto Velho, no sentido de detalhar caractersticas, clarificam elementos que tecem uma melhor definio do que sejam sociedades complexas e sociedades menos complexas. Em conformidade com o autor uma das mais importantes caractersticas das sociedades complexas a coexistncia de diferentes estilos de vida e vises de mundo

    (VELHO, 2003, p. 14). possvel, por exemplo, que indivduos que renam distintos modos

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    de pensar, distintas formas de organizao social e que sejam oriundos de diferentes culturas com suas caractersticas, e categorias sociais distintas, mobilizem-se para um mesmo foco de ateno. Essa identificao acontece atravs de uma linguagem que expressa uma rede de significados comuns aos indivduos. No necessariamente a heterogeneidade, caracterstica

    das diversas categorias sociais, ou da relao hierrquica entre essas, compromete a participao neste mesmo foco de interesses.

    Outra caracterstica das sociedades complexas modernas que h um campo de possibilidades que no se restringe a limitados ou restritos espaos predeterminados. Ao mesmo tempo em que possvel identificar crenas, valores, comportamentos especficos de determinados grupos, as transformaes das sociedades contemporneas promovem o

    encontro dessas vrias trajetrias culturais. Existem grupos ou categorias sociais como famlia e parentesco, bairro e vizinhana, origem tribal ou tnica, grupos de status, estratos e

    classes sociais (VELHO, 2003, p. 21), que so atravessados vertical e horizontalmente por uma rede de relaes que promove a interao e a experincia entre eles. De acordo com o autor, o mercado de trabalho e a vida poltica, com suas transformaes, que estimulam essa travessia nas relaes, a qual denomina de travessias sociolgicas (VELHO, 2003, p. 21). Essa interao entre indivduos e as suas redes de relaes implicam o reconhecimento das diferenas como um elemento constitutivo da sociedade. A vida em sociedade constitui-se pelas relaes de interao, as quais levam em conta as diferenas e as diversidades. Alm das trocas, constituem-se tambm pelo conflito, como consequncia dessa heterogeneidade natural que perpassa as relaes entre indivduos e grupos.

    Para caracterizar a complexidade das sociedades contemporneas, Velho (2003) toma um exemplo voltado para uma das problemticas mais amplas das sociedades complexas em

    geral e tambm da sociedade brasileira: os diferentes cultos religiosos e as suas transformaes na sociedade e na cultura brasileira, os quais, alm da amplitude sociolgica, tm uma profundidade histrica a ser considerada. Dentro da complexa sociedade brasileira, no apenas possvel encontrar discursos e cdigos distintos e competitivos, como tambm

    posicionamentos distintos do estado e da igreja catlica, o que deixa mais evidente a fora do conjunto dessas crenas que crescem com sustentao da tradio. A linguagem, o discurso, o cdigo, as representaes e crenas associadas s religies e cultos de possesso so fundamentais na constituio da sociedade brasileira (VELHO, 2003, p. 25). O pesquisador ressalta que as pessoas transitam no campo do trabalho, do lazer, do sagrado e outros com passagens quase que imperceptveis, vivendo mltiplos papis nos diferentes planos nos quais

    transitam. Na concepo do autor, no h sociedade que seja culturalmente monoltica e,

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    assim sendo, os indivduos podem viver em diversos planos simultaneamente. A coexistncia destes diferentes mundos compe a dinmica prpria das sociedades complexas, em que os indivduos so capazes de acionar, assim como partilhar, esses planos nos vrios momentos de suas trajetrias. A participao em rituais comunitrios pode romper as barreiras do individual, uma vez que foca uma identidade coletiva, mas no retira, do indivduo, a possibilidade de escolha.

    Outra caracterstica das sociedades complexas que elas so constitudas por um intenso processo de interao entre grupos e segmentos diferenciados (VELHO, 2003, p. 38). Associada ao avano do mercado internacional, entre elas, acontece uma contnua troca cultural efetivada pelas migraes, pelos encontros e pelas viagens internacionais, da mesma

    forma que pela comunicao de massas. As fronteiras entre pases atenuam-se progressivamente pelas crescentes relaes econmicas e culturais. De acordo com Velho

    (2003), mesmo que os pases no sejam contrrios globalizao, existem nveis de realidade especficos o que aponta para a tenso e o conflito entre esses nveis coexistentes (VELHO, 2003, p. 39), reforando esta caracterstica das sociedades complexas, tanto no mbito das trajetrias individuais como coletivas.

    No existem sociedades homogneas, nem mesmo as de menos complexidade. Em todas, haver diferentes esferas e faz-se possvel afirmar que a interao entre as diversidades constitutiva da vida em sociedade. O que o autor chama ateno que a unidade social com que se trabalha o que est constantemente em jogo nas sociedades complexas. Os indivduos esto invariavelmente em adaptao, pois produzem e so produzidos por escalas de valores

    e ideologias individualistas constitutivas da vida moderna (VELHO, 2003, p. 44). Nesse sentido, pertinente considerar que os projetos, tanto os individuais como os coletivos, ou sociais, trabalham no campo das possibilidades e, em virtude disso, no so rgidos, visto que mudam assim como se transformam e mudam os indivduos. Vemos assim que o processo de complexificao traz novas dimenses e novas concepes que delineiam a identidade individual e a identidade social.

    Talvez a caracterstica mais marcante das sociedades complexas seja o seu carter de massificao. Os padres de sociabilidade passaram por transformaes at ento no vistas

    pela humanidade. Foram transformados pelo processo de desenvolvimento das grandes cidades e os avanos tecnolgicos nas diferentes reas de conhecimento e atuao humana. muito importante destacar que essas mudanas so interpretadas e assimiladas de modos particulares pelas diversas e dspares culturas e sociedades. Exemplifica-se, neste ponto, com

    o caso das telenovelas no Brasil que, diariamente, so acompanhadas por milhes de pessoas,

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    sendo um expressivo exemplo das sociedades de massa. Os indivduos dos diferentes grupos sociais fazem leituras, interpretaes, apropriaes desiguais sobre elas. Alm dos fatos que assistem, so acionados valores a partir das experincias e dos significados construdos culturalmente. Alm de as mensagens e influncias no serem homogneas e unidirecionais,

    os indivduos e grupos movem-se em uma rede de papis e significados que faz com que a recepo seja diferenciada, e as interpretaes, heterogneas (VELHO, 2003, p. 68).

    Em sua obra Individualismo e cultura: notas para uma antropologia da sociedade contempornea, Gilberto Velho (2008) afirma que um dos srios riscos que se apresenta ao estudar sociedades complexas o de isolar grupos e segmentos da sociedade, encarando-os como independentes. At muito recentemente, as anlises e os estudos ocorriam a partir de

    sociedades relativamente pequenas e de cultura em geral homognea (VELHO, 2008). O pesquisador enfatiza que conveniente muita prudncia ao fazer anlise de sociedades

    complexas e no complexas, pois as fronteiras entre elas sero sempre problemticas, e, tal cuidado necessrio tambm em se tratando da prpria unidade e/ou homogeneidade das sociedades tribais ou no complexas (VELHO, 2008, p. 13). Esta unidade precisa ser compreendida com muitas ressalvas em se tratando da dimenso da vida sociocultural a que se refere e tambm ao tipo de sociedade com que comparada. O autor caracteriza a sociedade complexa como aquela que apresenta categorias sociais distinguveis com continuidade histrica, sendo, pois, derivadas da diviso social do trabalho e da distribuio das riquezas. Tambm so identificadas pela heterogeneidade cultural que deve ser entendida como a coexistncia, harmoniosa ou no, de uma pluralidade de tradies cujas bases podem ser ocupacionais, tnicas, religiosas (VELHO, 2008, p. 14, grifo do autor). Salienta, alm disso, que h uma relao entre a diviso social do trabalho e a

    heterogeneidade cultural, tendo em vista que, nas categorias que surgem, seja em relao aos meios de produo ou ao ocupacional, ambas tm tendncia a relacionar as suas experincias a partir de determinados valores e tradies.

    O autor faz ainda uma distino entre as sociedades complexas tradicionais e as

    sociedades complexas modernas, industriais, caracterizando estas como as que surgem do processo da Revoluo Industrial, em que acontece a diviso social do trabalho, o expressivo

    aumento da produo e do consumo, o avano do mercado mundial e o significativo crescimento das cidades. O crescimento das cidades, por si s, deve-se ressaltar, no caracteriza a sociedade complexa moderna industrial, pelo contrrio, compreendido na relao com os avanos tecnolgicos e cientficos que permitiram, por exemplo, a maior

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    produo de alimentos, o desenvolvimento da medicina, a melhoria no sistema de transportes, a comunicao, entre outros.

    Em qualquer sociedade ou cultura, h um grau de especificidade e, por isso, significativo que se verifique e se compreenda como os nativos, os indivduos do universo

    investigado, percebem e definem a sua cultura. Em consonncia com o autor, se no o fizermos, corremos o risco de impor a nossa cultura. Certo que, ao pesquisar uma sociedade,

    no podemos faz-lo somente a partir de conceitos dos nativos. preciso considerar tambm os conceitos desenvolvidos pelas cincias sociais.

    Velho dedica especial ateno ao fato de que nos diferentes contextos existe a possibilidade de projetos, sejam eles particulares ou coletivos, sociais, os quais se configuram quando existem objetivos que podem ser definidos de acordo com as peculiaridades, preferncias ou gostos enfatizados dentro de uma sociedade especfica, o que se d tambm

    pelo prprio estilo de vida e viso de mundo. Assim, coloca-se como problema a relao entre projetos individuais e os crculos sociais em que o agente se inclui ou participa (VELHO, 2008, p. 28). preciso considerar, primeiro, que no existe projeto individual puro (VELHO, 2008, p. 28, grifo nosso), sem referncia ao outro ou ao social. As experincias socioculturais, as vivncias e as interaes fazem parte da constituio do projeto, pois formulado num campo de possibilidades, circunscrito histrica e culturalmente, tanto em termos da prpria noo de indivduo como dos temas, prioridades e paradigmas culturais existentes (VELHO, 2008, p. 29, grifo do autor). Em todas as culturas, existem problemticas e tambm prioridades que so expressas. Desse modo, o projeto tambm precisa ser comunicado, expresso e por no ser apenas subjetivo, por envolver e visar ao outro, , da mesma forma, pblico e precisa fazer sentido. O projeto por essas caractersticas dinmico e pode ser substitudo por outro, transformar-se, e por mais particular que possa ser, precisa ter um nvel de racionalidade que considere o respeito necessrio aos sujeitos circunscritos no determinado tempo e espao que tm, por sua vez, os seus projetos com expectativas a serem cumpridas.

    Cada grupo ou sociedade valoriza, tolera ou no, determinados valores, sentimentos ou emoes balizadas por um cdigo tico-moral que define o que certo, ou errado,

    inadequado, ou no. Por isso, Velho (2008) alerta que tambm h, na sociologia dos projetos, uma sociologia das emoes, as quais fazem parte do universo de experincias dos sujeitos, desde suas vivncias espirituais, religiosas, psicolgicas e sociais.

    Um projeto, sendo individual ou grupal, que seja consciente, envolver algum tipo de planejamento e noes de riscos e perdas, mas no existem, segundo o autor, parmetros para

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    medi-los, assim sendo, o que permite contextualizar os valores envolvidos o relativismo cultural (VELHO, 2008, p. 32). No caso do Brasil, especificamente, pode-se pontuar que, entre classes sociais, existem limites e barreiras para a realizao de projetos que, em muitas vezes, so quase intransponveis. o caso das barreiras postas pelas elites dominantes no sentido de rotular condutas dos grupos os quais oprimem e desejam continuar oprimindo. tambm o relativismo cultural que provoca compreenses, como no campo da psicanlise, que

    resultam de determinadas referncias e padres de normalidade, oriundas de um campo de conhecimento culturalmente balizado pelos prprios padres de normalidade. As experincias culturais dos indivduos, seja no exerccio de suas profisses ou fora delas, interferem na atuao social. E nas sociedades complexas, em especial, nas modernas industriais,

    fundamental levar em conta a fragmentao das experincias. No exemplo da psicanlise, se os terapeutas, por exemplo, tiverem apenas uma viso linear da personalidade e uma noo

    de indivduo no relativizada (VELHO, 2008, p. 34), correm o risco de simplificar problemticas complexas, em que essencial a compreenso dos contextos em que atuam os indivduos. Na concepo do autor em estudo, o projeto representa uma consistente tentativa de dar um sentido ou uma coerncia a essa experincia fragmentadora (VELHO, 2008, p. 34). Neste sentido, ele acredita que, especialmente, nas sociedades complexas, contrastadas com as sociedades menos complexas - tribais, camponesas -, a fragmentao das experincias cria situaes que merecem ser consideradas. Avalia, neste caso, que quanto mais exposto o indivduo estiver s experincias diversificadas, s diversas vises de mundo, quanto mais aberta a sua rede de relaes cotidianas, mais conscincia ter da prpria individualidade o

    que resulta numa maior e melhor elaborao de um projeto. Nas sociedades complexas modernas, os projetos individuais do-se a partir de um

    contexto em que as diferentes dimenses da vida social interrelacionam-se e, do mesmo modo, podem entrar em tenso e conflito. Assim, a possibilidade de um projeto social capaz de englobar projetos individuais depende em grande parte da existncia de interesses comuns por parte dos indivduos que compem o grupo. O projeto social, por representar um grupo com seus interesses, assume uma dimenso poltica que precisa dar um sentido s emoes e aos sentimentos individuais.

    Os projetos, portanto, capazes de mobilizar interesses coletivos tm um potencial de transformao, o qual necessita ser compreendido em sua riqueza simblica, reveladora do meio cultural a que se veicula. Neste particular, o autor alerta que o projeto pode dar conta das escolhas que os indivduos e grupos fazem. A escolha individual ou o projeto individual pode ser elemento fundamental para compreender processos globais de transformao da

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    sociedade (VELHO, 2008, p. 110). Atravs dos projetos tambm possvel destacar aspectos dinmicos da cultura e atentar para a produo cultural que expressa os smbolos e os cdigos que, alm de utilizados, so reinventados e transformados. Nesse sentido, fundamental que haja conscincia sobre a ao organizada para alcanar os objetivos definidos. Para o autor, em qualquer sociedade ou cultura, existe a possibilidade de mudana social, contudo, a percepo dessa possibilidade de mudana crucial na viabilizao dos projetos.

    importante salientar que o projeto , ao mesmo tempo, uma das formas de manipular e direcionar os conjuntos de smbolos que fazem parte de uma cultura e que existem relaes entre projetos particulares. Considerando uma sociedade de classes, necessrio identificar e compreender at que ponto projetos particulares tm ou no vnculo com determinada classe ou mesmo se podem atravessar diferentes classes sociais.

    Freire dedicou seus esforos para a realizao de um projeto voltado para o processo de libertao dos oprimidos. Ao voltar criticamente o seu olhar sobre a sociedade, ele elegeu os grupos, ou camadas populares, como os sujeitos centrais em seu projeto. No seu entendimento, essas camadas populares no podem ser vistas simplesmente como excludas ou margem do sistema, pois esto imersas nesse sistema, fazem parte, tambm tm a sua cultura, os seus saberes, as suas vivncias. Para Freire, a valorizao da cultura de cada grupo fundamental, pois os seus saberes, as suas experincias e as suas vivncias constituem-se no ponto de partida das reflexes capazes de mobiliz-los na busca pela libertao, sem a qual o ideal de uma sociedade igualitria no ser alcanado.

    Com o processo de globalizao crescente e da comunicao rompendo barreiras e

    redefinindo concepes de espao e tempo, a construo da identidade j no acontece num contexto estvel, mas em permanente mobilidade. O contexto aponta para a necessidade de

    um projeto de sociedade que promova a valorizao e o respeito aos diferentes grupos com suas identidades plurais. Desse modo, de acordo com Goergen, torna-se cada vez mais importante a descoberta mtua, o compartilhamento de experincias e as ressonncias comuns que se refletem sobre os processos de socializao e aprendizagem (2009, p. 5).

    Com essa perspectiva, em que a complexificao da sociedade no supera a situao de opresso, identificada por Freire, fica evidente a reduo das alternativas de autonomia e

    emancipao humana. Para tanto, a educao deve fazer um esforo para no se limitar formao para o individualismo e para o consumismo, a qual sugerida de forma incisiva pelo mercado. A formao, hoje, precisa estar voltada para a valorizao da diversidade, das diferenas e das especificidades de cada cultura. Embora consciente de suas limitaes e de

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    que no tem o poder de redeno da sociedade, a educao tem o seu significativo papel no processo de formao de seres humanos emancipados.

    1.2 Os problemas da educao nas sociedades complexas

    Nas sociedades complexas, educar um grande desafio, que se faz tanto maior se a

    concepo de educao, que se toma, a da educao para a emancipao dos seres humanos, a qual, em conformidade com Adorno (1995), por inserir-se num contexto social, precisa ir alm da adaptao. Neste caso, necessita contemplar uma formao emancipatria com base no conhecimento e na reflexo acerca da sociedade na qual se insere.

    A nova configurao da sociedade aponta para o risco de comprometer a individualidade de cada ser humano. Na concepo de Goergen (2009), a educao a nica forma de evitar, ou pelo menos de resistir, ao fim do sujeito. As novas formas de construir identidade, de estar em comunicao por meio dos recursos tecnolgicos que fazem parte da teia de relaes que os indivduos estabelecem, encarregam-se de absorver as individualidades, o que facilita o fortalecimento do mercado de consumo ao qual interessa um indivduo que seja facilmente sugestionvel e submisso s regras.

    Assim, pode-se perguntar, num primeiro momento, se existe o desejo de formar o homem para a submisso, ou para a liberdade, autonomia, emancipao. Para Goergen, esta uma questo que remete para outra ainda mais importante, qual seja, o que formar um ser humano? (2009, p. 8). A resposta a estas indagaes traz consigo importantes definies que interferem no processo educacional, pois h que se explicitar se a formao ter ou no por objetivo a autonomia. Segundo o autor, se a educao para a autonomia, neste caso, pode ser designada de formao. No entanto, chama ateno para o uso que se faz do termo.

    No raro que se faa uso do termo formao sem a preocupao com o seu sentido pleno. Refere-se ao caso de se afirmar que um indivduo bem formado se adquiriu os conhecimentos necessrios e teis para a vida e para a profisso, para atender s demandas da

    realidade na qual se insere. Corresponde a considerar que as pessoas mais bem formadas so aquelas melhor adaptadas e modeladas realidade. A fragilidade desta compreenso de

    formao evidente, no momento em que se toma conscincia de que a realidade est em permanente movimento de transformao.

    O sentido mais pleno do conceito de formao implica o desenvolvimento integral do ser humano e tem como princpio a autonomia e a emancipao. Certo que, no contexto das

    sociedades complexas, caracterizado pelo consumismo, por relaes que geram excluso e

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    comprometem as individualidades e a liberdade, torna-se muito mais complexa a formao de sujeitos emancipados, uma vez que esta no alcanada seno como um processo de construo. Emancipao requer exerccio de dilogo, de tomada de decises e responsabilidades, o enfrentamento de conflitos e a argumentao crtica.

    As concepes de adaptao e de emancipao, aqui, referidas originam-se dos conceitos de Adorno4, que embora no tenha uma obra especfica em que desenvolva uma

    concepo ou uma teoria de educao, nem discuta o conceito de emancipao com finalidade pedaggica, indica a necessidade de libertar os sujeitos do processo de dominao estabelecida, o qual, segundo ele, tem retirado do homem a capacidade de pensar por conta prpria e, por consequncia, de tomar decises e agir autonomamente.

    Para Adorno (1995), a educao, por si s, no um fator de emancipao, sendo assim, preciso que, na formao educacional, haja uma relao estreita com a reflexo, determinando, pois, que deve ser grande o esforo para que a educao no represente mais um instrumento de dominao. Como bem esclarece Maar (1995), para Adorno, a formao educacional no pode compactuar com uma realidade social na qual o uso da racionalidade reproduza a barbrie. A educao que no estimula a capacidade de reflexo pode contribuir para a formao de pessoas bem instrudas, informadas, porm no esclarecidas. Afirma:

    O problema maior julgar-se esclarecido sem s-lo, sem dar-se conta da falsidade de sua prpria condio. Assim como o desenvolvimento cientfico no conduz necessariamente emancipao, por encontrar-se vinculada a uma determinada formao social, tambm acontece no plano educacional (MAAR, 1995, p. 15).

    A questo que se apresenta no significa uma crtica de Adorno racionalidade, mas sim ao seu dficit, posto que ele partilha da tese defendida pelos iluministas de que possvel superar a barbrie por intermdio da racionalidade, para o que se faz necessria a negao da

    racionalidade instrumental. Atribui papel significativo indstria cultural que produz um sentido para a vida humana baseado nos princpios reguladores do mercado capitalista. Na

    perspectiva do paradigma da indstria cultural, o ser humano concebido como consumidor. Assim posto, a cultura converteu-se em mercadoria e h uma padronizao de consumo patrocinada pela indstria cultural. Com a prosperidade do sistema capitalista, a formao, a

    4 Na obra Educao e Emancipao, Theodor W. Adorno no prope a educao para a emancipao como um

    projeto de efetiva ao pedaggica. Seu texto revela a proposta para que a escola trabalhe a emancipao como concepo poltica no sentido de promover a humanizao, formando o homem para a autorreflexo sobre as condies de opresso, sendo capaz de posicionar-se e libertar-se delas.

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    qual compreende o desenvolvimento do ser humano pautado pela perspectiva emancipatria, foi convertida em semiformao. De acordo com Maar, a semiformao convence, faz uma reflexo afirmativa e conservadora das situaes, um processo de coisificao que impede a experincia formativa (1995, p. 22). A tragdia do genocdio em Auschwitz representa tambm a tragdia da formao na sociedade capitalista (1995, p. 22).

    A semiformao produz seres humanos que apenas adaptam-se aos interesses do

    sistema vigente, que no desenvolvem a capacidade de reflexo e autorreflexo. No leva autoconscientizao, pois no prev a experincia como processo autorreflexivo, apenas a

    adaptao passiva, base que sustenta a estrutura de dominao prpria da sociedade capitalista. Maar (1995) chama ateno para o fato de que, com o advento da sociedade capitalista, aconteceu tambm a perda da capacidade de fazer experincias formativas. H uma restrio em relao s possibilidades dessa experincia, que se configura, pois, como

    forma de manter a uniformidade. A verdadeira formao gera, no ser humano, a capacidade de assumir relaes

    comprometidas consigo mesmo, com os outros e com o meio. Nesse sentido, a educao necessita contribuir para esse processo, indo alm da relao formal com os contedos e os conhecimentos. Assim, pode-se compreender que a educao no pode ser modelagem de pessoas, nem mera transmisso de conhecimentos, mas a produo de uma conscincia verdadeira (MAAR, 1995, p. 141, grifo do autor).

    Conforme Adorno (1995), a ideia da emancipao deve ser inserida na prtica educacional considerando dois problemas importantes. O primeiro que a ideologia

    dominante exerce forte presso sobre as pessoas, o que capaz de superar a prpria educao. O segundo que, entre as pessoas, as diferenas em relao a adaptao so sutis. Em

    continuidade, afirma que: De um certo modo, emancipao significa o mesmo que conscientizao, racionalidade. Mas a realidade sempre simultaneamente uma comprovao da realidade, e esta envolve continuamente um movimento de adaptao. (ADORNO, 1995, p. 143). Em razo disso, a educao ao mesmo tempo em que no pode apenas produzir pessoas bem ajustadas, tambm no pode ignorar o objetivo de adaptao e preparo das pessoas para viver e orientar-se no mundo.

    Uma terceira questo tambm apontada por Adorno em se tratando da emancipao como uma deciso poltica do processo educacional:

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    O que peculiar no problema da emancipao, na medida em que esteja efetivamente centrado no complexo pedaggico, que mesmo na literatura pedaggica no se encontre essa tomada de posio decisiva pela educao para a emancipao (1995, p. 172).

    Atente-se para o fato que essa uma questo preocupante que toma propores

    universais.

    Atualmente, h outro problema em relao emancipao que se refere a como enfrent-lo e se podemos enfrent-lo. Existe todo um sistema social vigente que possibilita

    que as pessoas sejam levadas a abrir mo de sua individualidade, fazendo opes que, na verdade, so propostas prvia e propositadamente construdas, especialmente, pelos meios de comunicao, sem compromisso tico.

    Neste sentido, a emancipao no algo esttico, dado simplesmente, mas, para

    Adorno (1995), dinmica e precisa ser construda mesmo com as resistncias que se impunham numa sociedade que deseja manter o homem no emancipado. Em suas palavras: a nica concretizao efetiva da emancipao consiste em que aquelas poucas pessoas interessadas nesta direo orientem toda a sua energia para que a educao seja uma educao para a contradio e para a resistncia (ADORNO, 1995, p. 183). Assim, a educao necessita propor que se exera uma negao ao que est afirmado, ou uma dialtica negativa5,

    contudo, que permita a adaptao do homem ao mundo, sem apenas submeter-se a ele. Expresso em outras palavras, a educao tem dupla perspectiva: a da adaptao que

    necessria e a da emancipao que acontece por meio do desenvolvimento da conscincia crtica capaz de questionar a racionalidade instrumental.

    5 Henry Giroux, em sua obra Teoria Crtica e Resistncia em Educao (1983), compreende a dialtica negativa

    em Adorno como uma reflexo que considera e parte dos princpios da negatividade, da contradio e da mediao. Refere-se a um questionamento, uma interrogao de verdades recebidas e no questionadas pelas escolas em nome de uma neutralidade que afirma e reafirma a cultura dominante. A significao dessa noo de negatividade implacvel foi captada por Buck-Morss em seu comentrio sobre o uso que Adorno faz do conceito: O verdadeiro objetivo de sua insistncia implacvel na negatividade era resistir a repetir em pensamento as estruturas de dominao e reificao que existiam na sociedade, de forma que ao invs de reproduzir a realidade, a conscincia pudesse ser crtica, de forma que a razo pudesse reconhecer sua prpria no-identidade com a realidade social...(BUCK-MORSS, 1997, apud GIROUX, 1983, p. 92-93).

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    1.3 Consequncias para a educao

    1.3.1 Instrumentalizao da educao

    A evoluo do sistema capitalista pautado pelos princpios da produo para o consumismo, alm das interferncias diretas que traz para o campo econmico, tambm as

    traz para o campo social, poltico e cultural no mbito da coletividade e na esfera das aes individuais. De acordo com Dalbosco (2007, p. 126)6, o conceito de desenvolvimento que tem predominado entre ns est marcado, decisivamente pelo trao socioeconmico conduzido por aes estratgico-instrumentais. O autor pondera que, por essa lgica, o

    desenvolvimento promove uma relao que permite ao homem a explorao e a apropriao em relao natureza. A industrializao e o avano tecnolgico tiveram como uma das

    molas propulsoras a produo de instrumentos e recursos que promovessem a acelerao da explorao dos recursos naturais. Dalbosco aponta que, nessa perspectiva da explorao, o homem no se limita em faz-la em relao aos recursos naturais, o que fica ainda mais grave quando atinge, ou em suas palavras, quando invade mbitos de produo cultural mais amplos (2007, p. 127). Complementa afirmando:

    O problema central disso que ao no se limitar ao mbito da esfera da produo de riquezas e ao invadirem o mundo da produo simblico-cultural das pessoas, estas aes fazem com que produes culturais tpicas, como a educao, tenham que se orientar, inevitavelmente, pela sua lgica. Justamente a se radica todo o processo de instrumentalizao do ensino que tem, como uma de suas consequncias mais palpveis, por um lado, o acirramento da competitividade e, por outro, a dificuldade de se construrem aes solidrias e, com isso, de se formarem ideias de solidariedade entre os envolvidos no processo educacional (DALBOSCO, 2007, p. 127).

    A educao, embora sua especificidade no prev que possa se reger pela lgica do

    mercado, sofre as suas consequncias. A competitividade instaurada exige competncia, rigor e conhecimento tcnico, ou seja, profissionais com competncia tcnica, aptos a atuar no mercado de trabalho. A educao prepara, dessa forma, mais para a profissionalizao,

    6 Na obra Pedagogia filosfica: cercanias de um dilogo, especificamente em seu captulo IV, tica, educao e

    desenvolvimento, faz uma crtica racionalidade instrumental e, com mais nfase, uma crtica viso hegemnica de desenvolvimento que, por estar baseada quase exclusivamente no modelo de racionalidade instrumental e por insistir nesse ritmo, poder conduzir o planeta a um esgotamento no s de suas foras naturais como tambm colocar em risco a espcie humana.(DALBOSCO, 2007, p. 104). Apresenta, neste caso, com profundidade o conceito de desenvolvimento na configurao da nova sociedade.

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    cumprindo assim com os requisitos da racionalidade tcnica. O risco de que se formem indivduos que saibam apenas reproduzir teses, conhecimentos e informaes adquiridas. Talvez, bons tcnicos e especialistas, o que no significa que sejam sujeitos autnomos no prprio ato de pensar.

    Aes estratgico-instrumentais no sentido de colocar a escola a servio dos princpios da ideologia capitalista se fazem presentes no cenrio atual. A transmisso ou o ensino de

    habilidades revela que o prprio currculo das escolas reflete os objetivos e os interesses da ideologia capitalista. A efetivao do currculo por meio das aes pedaggicas dirias no cotidiano da escola no acontece livre das presses para a competitividade, para a formao de um indivduo apto a lidar com as transformaes crescentes e com todo o aparato

    tecnolgico que o envolve. Muitas das aes da escola moldam-se na preocupao com instrumentalizar o aluno para o mercado do trabalho e do consumo. Exemplo disso acontece

    em relao aos recursos tecnolgicos, posto que existe a preocupao e mobilizam-se esforos dentro da escola no sentido de que o aluno aprenda a utiliz-los. preciso ressaltar que a questo mais importante no se vincula ao domnio destas tecnologias, mas, ao contrrio, ao uso que dela se faz. E nesse sentido que a escola precisa transpor os limites das aes estratgico-instrumentais que se constituem em verdadeiros entraves para a formao de seres humanos capazes de serem sujeitos crticos, indo para alm da formao para a reproduo, repetio de informaes e adaptao ao meio.

    A instrumentalizao traz dilemas para a prpria escola, pois, ao mesmo tempo em que precisa fazer um grande esforo para impedir que suas aes reduzam-se a aes dessa

    natureza, tambm no pode negar sua existncia e interferncia. H um contexto maior, globalizado que precisa ser considerado, mas que no pode assumir exclusividade, em

    detrimento do contexto especfico no qual a escola insere-se, com suas contradies, tenses, limites e possibilidades. Ao no considerar esse complexo cenrio, a escola corre o risco de gerar a excluso.

    1.3.2 Teoria e prtica: a prxis em crise

    As transformaes sociais provocadas pelo modelo capitalista suscitam questionamentos no mbito do desenvolvimento dos diversos aspectos sociais. A Teoria Crtica7 tomou corpo na primeira metade do sculo XX e trouxe para o campo das discusses

    7 Na obra A Teoria Crtica, Marcos Nobre (2004) apresenta a trajetria histrica que originou a expresso teoria

    crtica e o grupo de pessoas que constituram os estudos, questionamentos e posicionamentos que a

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    questes que revelam, em sntese, algumas preocupaes: com o retrocesso dos movimentos sociais dos operrios e o avano dos meios de produo do sistema capitalista; com a racionalidade instrumental, a qual revela que o desenvolvimento cientfico no conduz o homem emancipao; com o avano da indstria cultural capaz de produzir formas de

    escravizar os indivduos, no sentido de reproduzir e atender aos interesses do sistema; com a educao que se torna um mecanismo de semiformao, produzindo indivduos cada vez mais

    brbaros, mesmo que instrudos. A teoria crtica tambm faz um questionamento acerca do sentido da teoria e da prtica caracterizado pela teoria tradicional, a qual estabeleceu uma separao entre o que do domnio do conhecimento e o que do domnio da ao, ou seja, entre teoria e prtica. Separao que resultante, ou estabelecida, por parmetros da cincia natural moderna8. A teoria crtica no nega a teoria tradicional, mas assume uma posio de

    questionamento tanto em relao aos conhecimentos produzidos em condies capitalistas,

    caracterizaram. Segundo o autor, o termo teoria crtica foi apresentado como conceito, pela primeira vez, no texto Teoria Tradicional e Teoria Crtica de autoria de Marx Horkheimer, publicado em 1937 na Revista de Pesquisa Social a qual foi editada pelo prprio Horkheimer, no perodo de 1932 a 1942, como publicao oficial do Institut fr Sozialforschung Instituto de Pesquisa Social. O referido instituto, fundado em 1923, em Frankfurt, teve Horkheimer como o seu primeiro diretor no perodo de 1930 a 1958. Tanto o Instituto quanto a Revista esto ligados diretamente a este pensador e ao perodo histrico fortemente marcado pelo nazismo, stalinismo e Segunda Guerra Mundial. O Instituto tinha como objetivo principal investigar cientificamente, no mbito universitrio, a obra de Karl Marx, o que revelava a sua preferncia pelo marxismo e o seu mtodo de crtica da economia poltica, teoria que era ento marginalizada pela universidade no mundo todo, com exceo apenas da Unio Sovitica. Alm de diretor do Instituto, Horkheimer tambm acumulou a funo de professor na Universidade de Frankfurt e articulou, dessa forma, um trabalho inovador para a poca, propondo um trabalho coletivo, interdisciplinar, o que deu um primeiro sentido da Teoria Crtica, que foi caracterizado pelo prprio Horkheimer como: pesquisadores de diferentes especialidades trabalhando em regime interdisciplinar e tendo como referncia comum a tradio marxista. (NOBRE, 2004, p. 15). Era um amplo projeto, o qual contava com o envolvimento de muitos pesquisadores de diferentes reas como: 1881 a 1950, Friederich Pollock e Henryk Grossman; de 1904 a 1979, Arkadij Gurland, da rea da economia; de 1900 a 1954, Franz Neumann e, de 1905 a 1965, Otto Kirchheimer na rea da cincia poltica e direito; de 1903 a 1969, Theodor W. Adorno (o qual, mais tarde, foi parceiro do prprio Horkheimer em filosofia); de 1900 a 1993, Leo Lwenthal; de 1892 a 1940, Walter Benjamin, na rea da crtica da cultura; de 1898 a 1978, Herbert Marcuse alm de Horkheimer na rea da filosofia; e de 1900 a 1980, Erich Fromm na rea da psicologia e psicanlise. de se ressaltar que embora ao conjunto desses nomes sendo complexo definir quais devem ser includos ou excludos se faa comumente meno como Escola de Frankfurt, no significa uma comunho integral de uma doutrina comum, no caso a obra de Marx. Ao contrrio, a obra permite vrias e divergentes interpretaes. Assim, acirradas divergncias entre os colaboradores do Instituto caracterizaram o desenvolvimento da Teoria Crtica. O nome, ou rtulo, Escola de Frankfurt surgiu na Alemanha, na dcada de 1950, quando o Instituto retornou para a Alemanha, pois durante o perodo de ascenso do nazismo, o Instituto que tinha a maioria de seus pesquisadores de origem judaica, inaugurou um escritrio em Genebra, na Sua. Esse rtulo ampliou e fortaleceu intervenes no debate pblico na Alemanha, especialmente de Adorno e Horkheimer. As universidades alems abrem espao para discusso das ideias marxistas. A pluralidade passa a ser aceita e discutida sob o ponto de vista das possibilidades de emancipao. Assim, a Escola de Frankfurt caracteriza uma forma de interveno poltica intelectual no mbito pblico e acadmico da Alemanha e constitui-se como referncia para uma srie de pesquisas e estudos da Teoria Crtica na trajetria histrica. 8 A concepo tradicional compreende que a teoria no pode ter a ao, a prtica por objetivo, sob pena de o

    observador deixar de ser um cientista e passar a ser um agente social. Isso supe que, assim, como o cientista da natureza, o cientista social especialize a sua atividade, o que estimulou o aparecimento de disciplinas particulares com crescente especializao.

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    quanto prpria realidade dessas condies capitalistas. Essa postura crtica inspira-se na orientao para a emancipao como uma possibilidade real. No entanto, a construo dessa sociedade emancipada com mulheres e homens livres e iguais, no obra da teoria que a descortina, mas da prtica transformadora que a torna real. Assim, a Teoria Crtica s se

    confirma na prtica transformadora das relaes sociais vigentes (NOBRE, 2004, p. 31, grifo do autor). Nesse sentido importante atentar para o fato de que isso no significa a supervalorizao da prtica ou o abandono da teoria. Pelo contrrio, pela sua importncia para o campo crtico, o seu sentido ultrapassa o limite de dizer como as coisas funcionam, mas sim analisar o funcionamento concreto delas luz de uma emancipao ao mesmo tempo concretamente possvel e bloqueada pelas relaes sociais vigentes (NOBRE, 2004, p. 32, grifo do autor). Sendo assim, a construo de uma teoria possvel atravs de uma orientao para a emancipao que viabiliza a compreenso da sociedade em seu conjunto. A teoria abre caminhos para que se entendam as relaes sociais, de forma que se faz plausvel teoria crtica estreitar o vnculo entre pensamento e realidade, entre teoria e prtica. Esse estreitamento dos vnculos entre pensamento e realidade requer reflexo crtica. No cenrio da poca, Adorno posiciona-se referindo que Auschwitz no pode se repetir; que o homem no pode utilizar a cincia, a tecnologia, os saberes para se autodestruir e que precisa utilizar sua razo de forma consciente e crtica para atuar na vida em sociedade. Alm da funo de adaptao do homem sociedade, a educao tem sua funo emancipadora, desempenhando um importante papel no desenvolvimento da reflexo e da conscincia crtica.

    A teoria tradicional concebe a escola meramente como um local de instruo, como parte e instrumento do aparelho ideolgico do estado com a funo de promover as condies

    para manter e reproduzir as relaes sociais e econmicas existentes. Esta teoria no reconheceu as problemticas relacionadas escola, nem significativas categorias como a emancipao, por exemplo. O reconhecimento de que o ser humano participa da histria, ou seja, produz histria, fica submerso em concepes que percebem a escola como esse instrumento de reproduo dos interesses da dominao e desigualdade. Com objetivo tanto de desvelar como de romper essas estruturas dominantes, desenvolve-se a teoria crtica, que

    examina a intensidade com que esse sistema se estabelece e interfere na vida das pessoas. De acordo com Giroux (1983), a teoria crtica oferece para os tericos educacionais uma crtica atravs de uma linguagem de oposio, capaz de ir alm das fundamentais relaes sociais, chagando at as necessidades que formam, que constituem a cada ser humano. Nesse sentido,

    a contribuio da teoria crtica estende-se de forma pertinente e atual sobre o campo

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    educacional, atravs de reflexes que contribuem na clarificao da totalidade da qual o ser humano parte.

    As contribuies dos tericos crticos so a sua recusa de abandonar a dialtica da ao e da estrutura (isto , a natureza aberta da histria) e o desenvolvimento de perspectivas tericas que tratam com seriedade o argumento de que a histria pode ser mudada, que o potencial para uma transformao radical existe (GIROUX, 1983, p. 19).

    Um dos esforos comuns a uma significativa poro dos tericos da teoria crtica no sentido de reconstruir, de repensar o significado da emancipao humana. Como afirma Giroux (1983), as reflexes desta teoria apresentam uma fundamentao crtica para a pedagogia e constituem-se em referncia valiosa para tericos educacionais. A escola de

    Frankfurt, em especial, demonstra um compromisso de penetrar o mundo das aparncias objetivas para expor as relaes sociais subjacentes que frequentemente iludem (GIROUX, 1983, p. 22), o que significa expor, a partir de uma anlise crtica, as relaes de dominao, de explorao e de submisso. Com essa perspectiva, rejeita todas as formas de racionalidade que subordinavam a conscincia e a ao humanas ao imperativo de leis universais (idem). Podemos, pois, afirmar, mais especificamente, que a teoria crtica atribuiu relevante nfase ao

    pensamento crtico, pautando-se no argumento de que um dos elementos constitutivos mais importantes na luta pela auto-emancipao e pela mudana social (GIROUX, 1983, p.23).

    Paulo Freire, em toda crtica que constitui ao sistema social que gera excluso, aponta a educao como o principal meio para buscar a emancipao humana. Para isso, a educao no pode acontecer nos moldes da domesticao dos indivduos o que supe que sejam meros receptores e reprodutores do sistema. Em sua obra Pedagogia do Oprimido, prope uma educao para a libertao, a qual, necessariamente, requer a conscientizao e a reflexo crtica dos sujeitos envolvidos no processo. O autor considera que existe uma relao muito direta entre teoria e prtica, que a atividade intelectual, que no for conectada com a ao prtica de produzir formas de interveno na realidade cotidiana concreta, vazia de sentido.

    Em outras palavras, a teoria e a prtica so inseparveis. Para Freire (2009), o dilogo crtico com vistas libertao no pode acontecer em nvel somente intelectual, mas tambm na ao e deve ser realizado com os sujeitos qu