Educação comparada: panorama internacional e perspectivas ...

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Brasília, 2012

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  • Braslia, 2012

  • Os autores so responsveis pela escolha e pela apresentao dos fatos contidos neste livro, bemcomo pelas opinies nele expressas, que no so necessariamente as da UNESCO, nemcomprometem a Organizao. As indicaes de nomes e a apresentao do material ao longo destelivro no implicam a manifestao de qualquer opinio por parte da UNESCO a respeito dacondio jurdica de qualquer pas, territrio, cidade, regio ou de suas autoridades, tampouco dadelimitao de suas fronteiras ou limites.

    Esclarecimento

    A UNESCO mantm, no cerne de suas prioridades, a promoo daigualdade de gnero, em todas as suas atividades e aes. Devido especificidade da lngua portuguesa, adotam-se nesta publicao, os termosno gnero masculino, para facilitar a leitura, considerando as inmerasmenes ao longo do texto. Assim, embora alguns termos sejam grafadosno masculino, eles referem-se igualmente ao gnero feminino.

  • Representao no BrasilSAUS, Quadra 5, Bloco H, Lote 6,Ed. CNPq/IBICT/UNESCO, 9 andar70070-912 Braslia DF BrasilSite: www.unesco.org/brasiliaE-mail: [email protected]

    Setor Bancrio Norte,Quadra 2, Bloco L, Lote 6,70040-020 Braslia DFTel.: (55 61) 2106-3500Fax: (55 61) 2106-3967Site: http://www.capes.gov.br/

    Informaes do ttulo original: International Handbook of Comparative Education ISBN 978-1-4020-6402-9 e ISBN 978-1-4020-6403-6Springer Dordrecht Heidelberg London New YorkLibrary of Congress Control Number: 2008932354 Springer Science + Business Media B.V. 2009

    Informaes da verso em portugus:Esta verso em portugus fruto de uma parceria entre a Representao da UNESCO noBrasil e a Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (CAPES).

    UNESCO 2012. Todos os direitos reservados.

    Coordenao editorial:Maria da Consolao Magalhes FigueiredoTraduo: Elizabeth Bonfanti e Ana Maria CarvalhoReviso tcnica: Clio da CunhaReviso gramatical e atualizao ortogrfica: Valderes Las Casas Gouveia Moreira eReinaldo de Lima ReisReviso editorial e diagramao: Unidade de Comunicao, Informao Pblica e Publicaes da Representao da UNESCO no Brasil

    Educao comparada: panorama internacional e perspectivas; volume um / organizado porRobert Cowen, Andreas M. Kazamias e Elaine Ulterhalter. Braslia: UNESCO,

    CAPES, 2012.2v.

    Ttulo original: International Handbook of Comparative Education.ISBN: 978-85-7652-060-3 (volume um)ISBN: 978-85-7652-061-0 (volume dois)

    1. Educao Comparada I. Cowen, Robert II. Kazamias, Andreas M. III.Ulterhalter, Elaine. UNESCO IV. CAPES

    Impresso no Brasil

    http://www.unesco.org/brasiliamailto:[email protected]://www.capes.gov.br

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    SUMRIO

    Seo 1: Criao e recriao de um campo de estudos

    1 Introduo editorial conjunta 13Robert Cowen e Andreas Kazamias

    2 A histria e a criao da educao comparada 19Robert Cowen

    3 Os primrdios modernistas da educao comparada:o tema protocientfico e administrativo reformista-meliorista 25Pella Kaloyannaki e Andreas M. Kazamias

    4 Homens esquecidos, temas esquecidos: os temas histrico--filosfico-culturais e liberais humanistas em educao comparada 55Andreas M. Kazamias

    5 O paradigma cientfico na educao comparada 81Dimitris Mattheou

    6 Teorias do Estado, expanso educacional, desenvolvimento e globalizaes: abordagens marxista e crtica 97Liliana Esther Olmos e Carlos Alberto Torres

    7 Educao comparada na Europa 115Wolfgang Mitter

    8 Anlise de sistemas-mundo e educao comparada na era da globalizao 131Robert F. Arnove

    9 Reflexes sobre o desenvolvimento da educao comparada 153Val D. Rust, Brian Johnstone e Carine Allaf

    10 Educao comparada: uma reflexo histrica 173Andreas M. Kazamias

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    Seo 2: Formaes polticas e sistemas educacionais

    11 Paideia e politeia: educao e Estado/Estado e sua cultura poltica na educao comparada 197Andreas M. Kazamias

    12 Imprios e educao: o Imprio britnico 207Gary McCulloch

    13 Comparando os discursos sobre educao colonial nosImprios francs e afro-portugus: um ensaio sobre hibridao 221Ana Isabel Madeira

    14 Educao e formao do Estado na Itlia 237Donatella Palomba

    15 Mudana social e configuraes de retrica: educao e incluso--excluso social na reforma educacional na Espanha contempornea 263Miguel A. Pereyra, J. Carlos Gonzlez Faraco,Antonio Luzn e Mnica Torres

    16 Modernidade, formao do Estado, construo da nao e educao na Grcia 289Andreas M. Kazamias

    17 O Estado desenvolvimentista, mudana social e educao 309Wing-Wah Law

    18 Os Estados em desenvolvimento e a educao: frica 333John Metzler

    19 Variedades de transformao educacional: os Estados ps-socialistas do Centro/Sudeste da Europa e a ex-Unio Sovitica 355Iveta Silova

    20 A Unio Europeia e a educao na Espanha 387Jos Luis Garca Garrido

    Seo 3: O nacional, o internacional e o global

    21 Introduo: O nacional, o internacional e o global 407Robert Cowen

    22 Quem est passeando pelo jardim global?Agncias educacionais e transferncia educacional 413Jason Beech

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    23 Mobilidade, migrao e minorias em educao 435Noah W. Sobe e Melissa G. Fischer

    24 Fundamentalismos e secularismos:educao e la longue dure 451David Coulby

    25 O duplo significado de cosmopolitismoe os estudos comparados de educao 467Thomas S. Popkewitz

    26 Educao multicultural em um contexto global:diversos temas e perspectivas 489Carl A. Grant e Ayesha Khurshid

    27 Educao para o desenvolvimento internacional 505Nancy Kendall

    28 A OCDE e as mudanas globais nas polticas de educao 531Fazal Rizvi e Bob Lingard

    29 Bancos multilaterais podem educar o mundo? 553Claudio de Moura Castro

    30 Por um panptico europeu: discursos e polticasda UE sobre educao e treinamento, 1992-2007 583George Pasias e Yiannis Roussakis

    Seo 4: Industrializao, economias do conhecimento e educao

    31 Introduo editorial: industrializao,sociedades do conhecimento e educao 607Robert Cowen

    32 Industrializao e educao pblica:coeso social e estratificao social 613Jim Carl

    33 Industrializao, economias do conhecimento emudana educacional: um comentrio sobre a Argentina e o Brasil 635Mrcia Cristina Passos Ferreira

    34 Educao, emprego e treinamento profissionalizante 659Leslie Bash

    Sumrio

  • Sumrio

    35 O Estado-avaliador como polticaem transio: um estudo histrico e anatmico 675Guy Neave

    36 Da coerncia diferenciao: compreendendo o EspaoEuropeu de Ensino Superior e Pesquisa (e suas transformaes) 699Wim Weymans

    37 Mamon, mercados e gerencialismo: perspectivas dasia e Pacfico sobre reformas educacionais contemporneas 723Anthony Welch

    38 Aprendizagem continuada e globalizao:por um modelo estrutural comparativo 741Peter Jarvis

    39 Educao na sociedade em rede: reflexes crticas 763Eva Gamarnikow

    40 Educao e desenvolvimento econmico: avaliaes e ideologias 781Eleni Karatzia-Stavlioti e Haris Lambropoulos

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  • SEO 1

    CRIAO E RECRIAO DE UM CAMPO DE ESTUDOS

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    INTRODUO EDITORIAL CONJUNTA

    Robert Cowen e Andreas Kazamias

    Estamos indo bem...? De certa forma, sim. O campo da educao comparadacomeou a crescer novamente na virada do milnio.Textos do final da dcada de 1990 e dos primeiros anos deste novo sculo

    incluem: ALEXANDER, Robin; BROADFOOT, Patricia; PHILLIPS David(Eds.). Learning from comparing: new directions in comparative education research.Oxford: Symposium Books, 1999; ARNOVE, Robert; TORRES, Carlos Alberto.Comparative education: the dialectic of the global and the local. Lanham, Maryland:Roman & Littlefield, 1999; BEAUCHAMP, Edward R. (Ed.). Comparativeeducation reader.New York: Routledge; London: Falmer, 2003; BRAY, Mark (Ed.).Comparative education. Boston: Kluwer; London: Dordrecht, 2003; BURBULES,Nicholas C.; TORRES, Carlos A. (Eds.). Globalization and education: criticalperspectives. New York: Routledge, 2000; CROSSLEY, Michael; WATSON,Keith. Comparative and international research in education: globalisation, contextand difference. London: Routledge; New York: Falmer, 2003; KAZAMIAS,Andreas; SPILLANE, M. (Eds.). Education and the structuring of the European space:North-South, centre-periphery, identity-otherness. Atenas: Seirios Editions, 1998;NVOA, Antonio; LAWN, Martin (Eds.). Fabricating Europe: the formation ofan education space. Dordrecht: Kluwer, 2002; MEHTA, Sonia; NINNES, Peter(Eds.). Re-imagining comparative education. New York: Routledge; New York:Falmer, 2004; SCHRIEWER, Jurgen (Ed.). Discourse formation in comparativeeducation. Frankfurt-am-Main: Peter Lang), 2000; STROMQUIST, Nelly P.;MONKMAN, Karen (Eds.). Globalization and education: integration andcontestation across cultures. Lanham: Rowman & Littlefield, 2000. E tudo issosem falar na enxurrada de novos livros publicados no ano passado, ou um poucoantes: um novo livro sobre pesquisa em educao comparada (editado por Bray,Adamson, e Mason); uma coleo de artigos do peridico ComparativeEducation (editado por Crossley, Broadfoot, e Schweisfurth); um estudo dasSociedades de Educao Comparada, associaes profissionais; e livros recentes dePhillips e Schweisfurth, Donatella Palomba, e Sproge e Winther-Jensen.So inmeros tambm os peridicos, entre os quais citamos: Comparative

    Education (Reino Unido), Comparative Education Review (EUA), InternationalReview of Education (UNESCO/Hamburgo), Canadian & International

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  • Cowen e Kazamias

    Education (Canad), Compare (Reino Unido) e Prospects (UNESCO). Hainda outros peridicos por exemplo, em francs e em espanhol que trazem comfrequncia artigos comparativos, ou que oferecem ocasionalmente edies especiaisdedicadas educao comparada, como o Propuesta Educativa (Argentina); ouaqueles cujo contedo inteiramente comparativo, como o peridico gregoSynkritiki kai Diethnis Ekpaideutiki Epitheorisi (Atenas).O estudo avanado da educao comparada est amplamente institucionalizado

    em programas de ps-graduao. Por exemplo, nos pases de lngua inglesa nomundo, alguns dos principais centros nos Estados Unidos so: a Universidade deColmbia, a Universidade Estadual da Flrida, a Universidade de Harvard, aUniversidade Estadual de Ohio, a Universidade de Pittsburgh, a Universidade deMaryland, a Universidade Estadual de Nova Iorque, em Buffalo e em Albany, aUniversidade de llinois, a Universidade de Wisconsin, a Universidade da Califrniaem Los Angeles, a Universidade da Califrnia do Sul, a Universidade de Stanford,a Universidade Loyola e a Universidade do Hava. Austrlia, Canad, Inglaterra,Nova Zelndia e muitos dos pases anglfonos na frica, especialmente a fricado Sul, tambm oferecem programas de ps-graduao. Na Europa Continental,Alemanha, Blgica, Dinamarca, Espanha, Finlndia, Frana, Grcia, Holanda,Itlia, Malta, Noruega, Portugal e Sucia oferecem cursos especializados emeducao comparada. De maneira geral, a institucionalizao da educaocomparada vem aumentando, no s na Europa Meridional e no Leste Europeu,mas tambm nos centros universitrios metropolitanos mais antigos, medida queas universidades internacionalizam seus programas e absorvem um mercado deestudantes estrangeiros. Igualmente, em termos de suas redes internacionais e de seus congressos, a

    educao comparada est indo excepcionalmente bem. Mas como est se saindointelectualmente? Isto , que tipo de preocupaes e que tipo de trabalho acadmicofoi realizado, e vem sendo realizado no campo de estudo denominado educaocomparada, basicamente, a partir de uma base ligada universidade? Ondeestamos? E para onde vamos?Os dois volumes desta obra so um esforo para discutir sucintamente a

    situao. Como organizadores, utilizamos diversos princpios. Diversos argumentos orientam a forma como organizamos os volumes, e podem

    ser resumidos da seguinte maneira:1. Ambos os volumes argumentam que aquilo que considerado boa educaocomparada tem mudado ao longo do tempo. Analisam as agendas acadmicasmutveis, as perspectivas de ateno em transformao e as diferenteslinguagens acadmicas utilizadas para construir educao comparada.Perguntam por que isso acontece: por que a educao comparada muda suaspreocupaes epistemolgicas, sua leitura do mundo e suas aspiraes de atuarsobre ele? Mostram as maneiras pelas quais a educao comparada responde

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  • Introduo ediorial conjunta

    s mutantes polticas e economias de eventos reais no mundo, assim como scorrentes intelectuais que so fortes em tempos e locais especficos. Aconsequncia que podem ser identificadas diversas educaes comparadas,tanto em um momento especfico quanto ao longo do tempo, e essa educaocomparada continua a mudar com as novas leituras do mundo que emergematualmente.

    2. H algumas coisas que esta obra no , nem pretende ser. No umaenciclopdia que cobre o universo da educao comparada (e os acadmicosdentro dele). No oferece estudos de caso nacionais sobre educao, algoque j estava fora de poca h 50 anos. Em especial, os volumes noassumem que o Estado-nao seja a unidade de anlise correta em educaocomparada. A obra tambm no embarca em uma srie de estudos de casosobre a condio da educao comparada na Argentina, no Brasil, noCanad, na Dinamarca etc., nem lamenta que a educao comparada sejarelativamente frgil no Sul ou no Leste, nem insiste em que a tarefa destapublicao seja corrigir esse desequilbrio. Construir uma educaocomparada no Sul para o Sul e do Sul um pouquinho mais complexo doque isso, ainda que o clich poltico do Sul tenha sido decifrado.

    3. Portanto, a presente obra um relato de como um campo de estudo foi, e est sendo considerado dentro das polticas de seu tempo. Analisa aconstruo de uma educao comparada nos sculos XIX e XX,principalmente no Volume 1. O Volume 2 mostra quo vigoroso o campoatual dentro das novas polticas da atualidade.

    4. Esta obra uma importante declarao da condio de um campo; no uma declarao por modismo. Assim, o futuro da educao comparada tratado, especialmente no Volume 2, mas no com a convico precipitadade que o futuro tem a ver com o choque de civilizaes; ou de que o futuroseja mais globalizado; ou de que necessrio apenas melhor entendimentode uma perspectiva intelectual (identificada e especfica).

    5. Este livro produzido em um momento crucial da histria dessa rea doconhecimento e, portanto, deixa aberto seu futuro, oferecendo uma ampladiversidade de maneiras para falar sobre esse futuro.

    A obra dividida em dois volumes, cada um com quatro sees.No Volume 1, a Seo 1 mostra a construo da educao comparada como

    um discurso, incluindo a evoluo da educao comparada como um discursoacadmico, at o final da dcada de 1970. A seo destaca tambm que, comoconceitualizada nos sculos XIX e XX, a educao comparada era um projetoideolgico para ao no mundo. No sculo XIX, formuladores de polticasutilizavam, na prtica, uma perspectiva comparada para construir uma novatecnologia social: educao bsica de massa e sistemas nacionais de educao.Assim, o tema mais amplo desta seo refere-se maneira pela qual o campo de

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    estudo v seu passado no contexto poltico. O caminho direto para compreendera seo v-la como a identificao e a anlise de paradigmas epistemolgicosespecficos que, ao longo do tempo, conceitualizaram a educao comparada nocontexto social.A Seo 2 trata do mundo e do mundo da educao comparada aps a dcada

    de 1980: o repensar sobre os pressupostos e abordagens clssicas cuja construofoi descrita e analisada na Seo 1.A Seo 3 dedicada, em parte, ao tema da ao comparada ou seja, quelas

    formas de atuar sobre o mundo e sobre o mundo da educao fundamentadas emuma avaliao comparativa do mesmo. Os temas estratgicos que os autores foramconvidados a abordar em suas descries e em suas anlises foram: (a) qual foi aagenda poltica para as atividades; (b) qual foi a viso do sistema pblicointernacional que informou a ao poltica e a reforma educacional; (c) qual foi aviso da relao entre cultura, economias e educao; e (d) que conceito deeducao comparada passou a ser visvel?A Seo 4 trata da transio da ansiedade em torno das relaes entre sistemas

    educacionais e economias industriais nos sculos XIX e XX para as relaes desistemas educacionais e as economias do conhecimento que surgiram no final dosculo XX e no incio do sculo XXI. Portanto, esta seo discute alguns dospadres clssicos de reformas de sistemas educacionais, de modo a torn-los maisrelevantes para a industrializao e para as contestaes e resistncias e parapadres de educao muito diferentes que vieram como consequncia. Noentanto a preocupao no meramente histrica. O mesmo imperativoeconmico que causou tanta perplexidade nos sculos XIX e XX est adotandouma denominao repetitiva contempornea sob as rubricas de globalizao eeconomias do conhecimento, informadas ocasionalmente por vises doneoliberalismo. Qual a natureza do debate contemporneo?No Volume 2, a nfase sobre como o mundo mudou e como essa mudana

    afetou modos de pensar em diversas formas de educao comparada. Portanto,exemplifica algumas das preocupaes e das concepes mais importantes daeducao comparada: transies rpidas nas sociedades; nova nfase no ensino ena aprendizagem; busca pela recuperao, pela reinveno e pela criao deidentidade e de identidades futuras, incluindo ideias de ps-colonialismo e osentido atual daquilo que constitui globalizao. Dessa forma, o Volume 2 evita com muita cautela um tratamento convencional de

    sistemas de educao e descries de reformas educacionais em muitos Estados-naoou a descrio de sistemas educacionais setor por setor: elementar, secundrio, formaode professores e assim por diante; e evita as descries comparativas de tendncias eprocessos educacionais pas por pas ou com base em regies.Nessa estrutura geral, a Seo 5 do Volume 2 discute o ps-colonialismo. Esta

    uma rea crescente na educao comparada, na interseo entre cincia poltica,

    Cowen e Kazamias

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    estudos literrios, teoria lingustica e histria. As preocupaes centrais so aquelasligadas a identidade e idioma, formao e reorganizao de polticas e do Estado esua cultura poltica, termos ps-coloniais de contestao discursiva, mudanas nanatureza do Estado, e novas teorias de direitos. Esta no apenas uma reaextremamente interessante para a explorao comparativa: tambm uma readifcil de novas teorizaes. E pedimos a Elaine Unterhalter cuja experincia sobrea frica do Sul e seu interesse em gnero, teoria de direitos, teoria das capacidades,e desenvolvimento acompanham o tema do ps-colonialismo que editorasse estaseo dos dois volumes.A Seo 6 aborda estudos comparativos sobre a pessoa educada, tal como ela

    construda por meio da escolarizao, e culturas pedaggicas em diferentesmomentos e em diferentes localidades. Assim, esta seo explora a reviso detradies de conhecimento e a construo o fazer e o adotar da identidadepedaggica, um tema que tem uma longa histria na educao comparada, mas quevem sendo revitalizado por meio do trabalho de acadmicos tais como BasilBernstein e Tom Popkewitz, de feministas e defensores de identidades posicionaistais como os negros norte-americanos, e alguns especialistas em currculo. Tendoem vista que a natureza dos locais de educao se altera na modernidade recente, aquesto das culturas educacionais e identidade pedaggica torna-se vigorosamentedesconectada de noes de cidadania, e cada vez mais vigorosamente vinculada economia ou religio. Dessa forma, a conceitualizao de temas de cultura,conhecimento e pedagogias vem mudando rapidamente, e uma educao comparadado futuro deve desenvolver novas maneiras de analisar o tema da identidade.As Sees 7 e 8 perguntam quais sero os caminhos futuros. Aps as Sees 1 a

    6, perguntam: h algo mais a ser discutido? A resposta sim. Os volumes terminamcom um conjunto de propostas novas para novas concepes de educao comparada.

    Introduo ediorial conjunta

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    A HISTRIA E A CRIAO DA EDUCAO COMPARADA

    Robert Cowen

    Max Eckstein e Harold Noah no sabem, mas h anos eu gosto de ambos, anvel pessoal. O que mais me sensibilizou foi terem sido eles os primeiros nacomunidade da educao comparada a receber-me afetuosamente nos EstadosUnidos, onde, para minha surpresa, fui ensinar sociologia e educao comparadaem uma boa universidade, no curso de ps-graduao. Em termos profissionais, elesanteriormente j haviam resolvido um de meus problemas como estudante: ondeexiste uma histria da educao comparada? A resposta estava l, em seu textoclssico (NOAH; ECKSTEIN, 1969). Nesse trabalho, as origens dessa rea doconhecimento estavam estabelecidas com clareza exemplar. As notas de rodap eramprecisas e revelavam a profundidade das pesquisas realizadas. Considerando minhainteno de especializar-me em educao comparada, foi para mim um imenso alvioconstatar que havia uma histria e havia tambm aquele maravilhoso relato nolivro de Bereday (1964) sobre acadmicos em outros pases, suas universidades eseus departamentos. A educao comparada existia e tinha uma histria. Havia maisofertas de trabalhos em sociologia, mas a educao comparada era, sem dvida, umtema mais atraente. Eu poderia fazer carreira. A histria dava-me essa legitimidade.E agora, algumas dcadas mais tarde? Agora que estamos todos legitimados, em

    que sentido existimos historicamente?A primeira dificuldade o fato de termos uma grande parte da histria ainda

    no conhecida, e de no dispormos de mo de obra para torn-la visvel. Temosarquivos em universidades importantes, mas no h compensaes bviassuficientes para que jovens acadmicos empreendam a tarefa de pesquis-los. Temoscontribuies individuais, no publicadas, admirveis sobre a histria desse campo,como as de Peter Hackett e Richard Rapacz, mas at agora ningum reuniu essascorrespondncias (nos dois sentidos). Gita Steiner-Khamsi e outros deram pelomenos um primeiro passo na pesquisa sobre a histria oral, algo que obviamentedeve ser retomado o mais rapidamente possvel, pela Sociedade de EducaoComparada na Europa. No entanto, mais uma vez, o problema inicial adificuldade que se associa carreira para algum ser identificado como especialistana histria da educao comparada.A segunda dificuldade o imenso esforo necessrio para manter em andamento

    um desses projetos histricos srios: um aspecto discutido com extrema clareza na

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    seo de Agradecimentos que abre o livro Common Interests, Uncommon Goals(MASEMANN; BRAY; MANZON, 2007). H problemas muito prticos naatividade de escrever histrias a maneira pela qual devem ser escritas quando setrabalha com seriedade em pesquisa histrica. Miguel Pereyra, por exemplo, vemtrabalhando seriamente e h muito tempo na anlise de Kandel como acadmicona histria da educao comparada. No entanto, a busca por material referente aKandel envolveu grandes viagens e despesas que s podem ser enfrentadas comgrande esforo por um acadmico em meio de carreira, mas h pouco apoioestrutural para uma pesquisa histrica como essa.A terceira dificuldade que, devido invisibilidade de um grande volume de

    informaes, simplesmente no temos a densidade de informaes necessria paracompor uma histria consistente. impressionante o volume de material necessriopara garantir um relato histrico de alto nvel. O trabalho de Dalrymple em TheLast Mughal (2007), to brilhantemente contextualizado, depende dapossibilidade de um conjunto completo de informaes do arquivo nacional tornar--se disponvel. O trabalho de Herman em The Scottish Enlightenment (2006)depende de uma slida bibliografia elaborada a partir de textos anteriores,especializados e detalhados. Histrias importantes, sejam elas de autoria de NormanDavies (1997) ou de Tony Judt (2007), baseiam-se em bibliografias cujas refernciasequivalem extenso de todo um captulo de um ensaio. Um contra-argumentobvio poderia ser apresentado: esse um trabalho de investigao central histria (embora essa seja uma expresso curiosa, tendo em vista os temas que oshistoriadores estudam atualmente). E, ainda de acordo com o contra-argumento,pode-se afirmar que a comparao injusta, uma vez que estamos falando dehistrias de campos de estudo. Contudo, esta ltima proposio no convincente,tendo em vista textos como o livro The Sociology of Philosophies, de RandallCollins (1998), o livro de Friedrichs (1970) sobre sociologia, ou mesmo umamonografia como a de Bartholomew (1989), que trata de um campo de estudosobre a formao da cincia no Japo.No momento, simplesmente no dispomos de material suficiente para ir alm

    do imenso volume de trabalho j envolvido na organizao dos artigos nesta seodo livro. admirvel o aparato acadmico de todos os captulos desta seo, e emalguns deles, esse aparato acadmico surpreendente. No entanto, ainda nos faltamaterial. O problema tambm mais grave do que isso porque, mais cedo ou mais tarde,

    uma histria da educao comparada haver de tornar-se uma histria comparativada educao comparada.Ainda estamos um pouco distantes disso, embora seja importante lembrar que

    a histria da educao comparada nestes volumes no se limita primeira seo.A leitura dos captulos das outras sees dos volumes Larsen, sobre histria;Steiner-Khamsi e sua conceituao do desenvolvimento da educao comparada; a

    Cowen

  • 1. Nota de reviso tcnica da traduo (NRTT): Em relao ao Brasil, h um estudo clssico de um grandeeducador brasileiro que foi Loureno Filho. LOURENO FILHO, M. B. Introduo ao estudo da escolanova. So Paulo: [s.n.], 1963.

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    explorao e o estudo da educao comparada no Leste da sia, esquematizada porWang e Dong e Shibata; o conceito de vozes levantado por Mehta; os mapeamentosde Paulston; a anlise de Popkewitz levam-nos a pensar nas possibilidades e nastemticas de uma potencial histria comparativa desse campo de estudos. H tambm o receio do choque que vir mais tarde, concluda a leitura dos

    dois volumes, quando percebermos que no temos, em verso impressa, umahistria sria da educao comparada no Brasil ou na Argentina, apesar daimportncia de Sarmiento, na Argentina, com suas vises polticas e suaimpressionante educao comparada prtica, ou da importncia de Ansio Teixeirae suas conexes internacionais na histria educacional brasileira. (Sem dvida, hem nossos peridicos especializados artigos sobre esses dois autores, oferecendoboas sugestes sobre em que direo uma histria deve ir, mas justamente aisso que me refiro: temos artigos e sugestes; e no temos histrias).1

    Nem chegamos a reunir de maneira sria as histrias individuais da educaocomparada na Alemanha, na Frana, na Itlia e assim por diante. Embora, maisuma vez, em pelo menos trs captulos de livros ou artigos escritos por WolfgangMitter (um deles encontra-se publicado no Volume 2) seja possvel encontrarindicaes para uma histria comparada mais completa.Portanto, sejamos otimistas como uma criana animada e feliz. Vamos supor

    que uma fundao importante, como a Gulbenkian ou a Hoover, decida que valea pena financiar uma histria comparativa dessa subrea do conhecimento. Almde criar um Conselho Consultivo composto por acadmicos de nvel snior, comoEckstein, Noah, Kazamias, Mitter e Rust, o que gostaramos que nossa equipe deverdadeiros pesquisadores levantasse como evidncias para esta suposta histria, demodo que nosso material para escrev-la se tornasse cada vez mais profundo? Quase certamente, seria necessrio rever a histria de outros campos de estudo,

    inclusive o do estudo comparativo (SCHRIEWER, 2006). Seria necessrio darvisibilidade s mulheres, por exemplo, Ann Dryland, Madame Hattinguais: elasesto na histria, mas no esto nas nossas histrias. Desconfio que tambm serianecessrio dar um sentido mais completo aos pressupostos metaepistmicos dediversas educaes comparadas em diversos pases, por exemplo, o efeito que asociologia estrutural-funcionalista nos Estados Unidos exerce sobre a educaocomparada americana, mas a relativa falta de efeito da Escola de Frankfurt; o medoda sociologia, que caracteriza a escola culturalista, mas no Lauwerys, noInstituto de Educao e no Kings College, em Londres, no final da dcada de 1950e no incio da dcada de 1960; a sbita mudana no vocabulrio, que inclui apalavra internacional como qualificativo da palavra comparada, ou justaposta

    A histria e a criao da educao comparada

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    a ela; e os motivos que levam a uma reviravolta lingustica ou a uma reviravoltaps-moderna, ou ainda o novo vocabulrio que envolve uma reviravolta geogrficae um certo nmero das diversas cincias sociais, inclusive uma aluso a esta ltimareviravolta dentro da educao comparada.Alm disso, surpreendentemente, no temos um relato preciso, do tipo

    produzido por um historiador, sobre a vida de George Bereday ou de JosephLauwerys e seu trabalho na UNESCO, seus vnculos com Piaget, com o BIE, comTeixeira e com Hiratsuka, no Japo. John Bereday e Lauwerys estabeleceramvnculos entre pessoas e ideias atravs de culturas e continentes e, por razesbastante justificveis inclusive, seu impacto sobre suas prprias instituies, sobreas sociedades de educao comparada e sobre geraes de estudantes de cursos deps-graduao, assim como suas impressionantes habilidades como palestrantes,so muito conhecidos no campo de estudo; mas, indiretamente, levantam umaquesto mais ampla.No compreendemos nossas prprias iconografias. Por exemplo, Sir Michael

    Sadler foi, evidentemente, um excelente funcionrio pblico e um lder na rea daeducao e, pode-se dizer, um ser humano bastante agradvel. timo. Mas ns lheatribumos uma espantosa importncia na educao comparada, embora aqueleseu famoso ensaio (SADLER, 1964) tenha causado muito mais confuso do queapresentado solues. No entanto, Sadler est sempre presente nas histrias, oque se torna um problema histrico da construo social de nossas iconografias.Sem dvida, uma histria comparativa de nosso campo de estudos investigaria seessas iconografias tambm foram inseridas na evoluo da tradio da educaocomparada no Japo, na Alemanha ou na Frana.O paradoxo final, certamente, que, enquanto a evidncia pode tornar-se

    disponvel, como se j estivesse preparada por meio da estabilizao e dodesenvolvimento dos arquivos, bem como transformando os fatos ocultos maisvisveis, o mesmo no acontece com os problemas.Em algum ponto desta primeira seo sobre a criao e a recriao de um campo

    de estudo, Andreas Kazamias que, como historiador, est e sempre esteveprofundamente comprometido com a produo de um volume imenso de trabalhosobre a histria do campo de estudo, cita T. S. Eliot. A citao confirma, de maneirasutil e elegante, uma das convices do prprio Andreas: cada gerao devereescrever sua histria.Essa convico quase nos coloca um paradoxo. As proposies de Eliot e

    Kazamias criam a ideia de que o futuro que determina o passado. Sim, eu sei quenenhum deles fez essa afirmao. Mas as probabilidades so estimulantes. A citaode Eliot tem repercusses. Nossas histrias contemporneas sobre ns mesmosdevem ser revisitadas agora, e devero ser revisitadas novamente e, com frequncia,no futuro.

    Cowen

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    Referncias bibliogrficasBARTHOLOMEW, J. R. The formation of science in Japan: Building a research tradition. New Haven: YaleUniversity Press, 1989.

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    A histria e a criao da educao comparada

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    OS PRIMRDIOS MODERNISTAS DA EDUCAO COMPARADA: O TEMA PROTOCIENTFICO E ADMINISTRATIVO REFORMISTA-MELIORISTA

    Pella Kaloyiannaki e Andreas M. Kazamias

    Introduo

    Os primrdios modernistas da educao comparada (EC) como campo deestudo so convencionalmente ligados ao perodo ps-Iluminismo, no incio e emmeados do sculo XIX, especificamente ao trabalho pioneiro de Marc-AntoineJullien de Paris e aos discursos de formuladores de polticas educacionais,reformadores e administradores na rea da educao na Europa e nos EstadosUnidos, como Horace Mann, Calvin Stowe e Henry Barnard, nos EstadosUnidos; Victor Cousin, na Frana; e o poeta e inspetor escolar Matthew Arnold,na Inglaterra. Em primeiro lugar, este captulo analisa com certa profundidadeas ideias de Jullien sobre a EC sua metodologia, sua epistemologia e suaideologia , refletidas principalmente em seu trabalho, agora famoso, Esquisseet vues prliminaires dun ouvrage sur lducation compare1, publicado em1817, que levou Jullien a ser aclamado como o pai da EC. A concepo deJullien sobre a EC ser tratada aqui como representante do tema protocientficohumanstico e meliorista na histria desse campo. Em segundo lugar, o estudoanalisa mais brevemente aquilo que pode ser identificado como o temareformista-meliorista na educao comparada, que se refere a discursos sobreeducao no exterior, refletidos nos textos relevantes de formuladores depolticas, reformadores e administradores do sculo XIX, como Victor Cousin,da Frana, e Horace Mann, Calvin Stowe e Henry Barnard, dos Estados Unidosda Amrica.

    O tema protocientfico e humanista: Marc-Antoine Jullien de ParisO homem, seu trabalho e sua poca

    Marc-Antoine Jullien de Paris nasceu em Paris em 1775, filho de pais comalto nvel de formao na rea de humanidades (filosofia, idiomas, literatura e

    1. Nota de traduo (NT): Esquisse et vues prliminaires dun ouvrage sur lducation compare umaobra sobre educao comparada, referenciada neste texto simplesmente como Esquisse.

  • Kaloyiannaki e Kazamias

    cultura clssica). Ainda jovem e por um curto perodo, trabalhou como jornalistapara os jacobinos e a Conveno Nacional Francesa, e foi diplomata e legionrioa servio de Napoleo Bonaparte. Viajou por toda a Europa, visitou a Inglaterrae a Esccia; foi tambm ao Egito como comissrio de guerra na expedio deBonaparte a esse pas. Pela maior parte de sua vida, at sua morte, em 1848,dedicou seu tempo ao estudo da educao e da pedagogia, reas sobre as quaisescreveu livros, monografias, ensaios, relatrios e memorandos. Jullien fundou edirigiu, de 1819 a 1830, o peridico Rvue Encyclopdique ou Analyseraisonne de productions les plus remarquables dans la littrature, les sciences etles arts2, para o qual escreveu, entre outros temas, sobre a educao pblica naSua, na Blgica e na Espanha.O interesse de Jullien pelo tema da educao comeou muito cedo em sua vida,

    durante a Revoluo Francesa, e manteve-se at sua morte. Segundo seu bigrafo,R. R. Palmer, Jullien comeou a escrever livros sobre o tema em 1805, quandoservia nas Foras Armadas francesas. Como terico da educao, sentia-separticularmente atrado pela ideias pedaggicas dos famosos educadores suos J.H. Pestalozzi e P. E. Fellenberg, cujas escolas visitou na Sua em Yverdun eHofwyl, respectivamente (PALMER, 1993). Segundo Fraser, em seu prestigiosotrabalho de traduo e edio do Esquisse, de Jullien:

    At sua morte [...] Jullien esteve constantemente envolvido com questes cientficas e culturais.Fundou a Sociedade Francesa da Unio das Naes, e convidava acadmicos internacionaispara jantares mensais em sua casa. Viajava continuamente, participando de congressosinternacionais, dedicando seu tempo a sociedades de eruditos, e correspondendo-se comestadistas e educadores cujo cosmopolitismo buscava escapar das fronteiras do nacionalismoque se consolidava na Europa (FRASER, 1964, p. 12).

    Na vida e no trabalho de Jullien possvel distinguir elementos que, combinadosentre si, tiveram efeito sobre suas ideias pioneiras na promoo da episteme (cincia)da educao comparada. Jullien nutria-se tambm com as ideias e o esprito doparadigma de modernidade do Iluminismo, com sua nfase em razo/racionalismo,empirismo, cincia (inclusive cincia social), universalismo, secularismo, progresso eEstado-nao. Embora no fosse previsvel, desenvolveu interesse pelo estudocientfico da educao.

    Educao comparada como uma cincia quase positivista

    Jullien imaginava a educao e, com maior razo, a educao comparadacomo uma cincia quase positivista (science positivie), anloga anatomiacomparada. No Esquisse, explicava:

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    2. NT: Revista Enciclopdica ou Anlise fundamentada das mais notveis produes em literatura,cincias e artes.

  • Os primrdios modernistas da educao comparada

    A educao, como todas as outras cincias e todas as artes, composta de fatos e observaes.Portanto, assim como para outros ramos do conhecimento, tambm para esta cincia precisoformar colees de fatos e observaes organizados em grficos analticos que permitam que sejamrelacionados e comparados, de modo a deduzir deles certos princpios, determinadas regras, paraque a educao possa tornar-se uma cincia quase positivista [...]. Pesquisas sobre anatomiacomparada resultaram em avanos na cincia da anatomia. Da mesma forma, as pesquisas sobreeducao comparada devem prover novos meios para aprimorar a cincia da educao (FRASER,1964, p. 40-41).

    Para fazer da educao comparada uma cincia quase positivista, Julliendesenvolveu o Esquisse, j mencionado, que consistia de duas partes principais:

    [a] uma declarao introdutria sobre a avaliao crtica de Jullien do estado da educao nosdiversos pases da Europa, e suas prprias ideias sobre como seria possvel melhorar a educaoeuropeia incompleta e defeituosa; e [b] uma srie de questes que pretendiam coletar fatos eobservaes, e que eram destinadas a fornecer material para Tabelas de Observaes Comparadas(FRASER, 1964, p. 31).

    Por que uma cincia de educao comparada?

    Assim como seu contemporneo Auguste Comte (1798-1857), filsofo esocilogo cientfico positivista francs, Jullien acreditava que o mtodo cientficopoderia ser aplicado a questes das reas sociais e de humanidades. Portanto, sendouma cincia positivista, a educao comparada deveria centrar-se em fatos eobservaes passveis de serem determinadas de maneira objetiva e coletadas demaneira sistemtica. Segundo Jullien, uma cincia quase positivista de educaocomparada, cuja coleta e tabulao de fatos e observaes aplicassem mtodos etcnicas/instrumentos como aqueles aplicados pelas cincias positivistas e pelasartes mecnicas, seria til para a reforma e o aprimoramento da educaocontempornea na Europa. Na introduo do Esquisse, Jullien afirmava que, nosdiversos pases da Europa, tanto a educao pblica quanto a educao privadaeram incompletas, insuficientes, sem coordenao [...] sem harmonia interna nasdiferentes esferas fsica, moral e intelectual nas quais os estudantes deveriamser orientados. Atribua educao incompleta e defeituosa os males sociais,polticos e morais dos pases da Europa, a corrupo e a degradao de mentes ecoraes, que produziu revolues e guerras, a desordem e a deteriorao geraldas sociedades europeias. Consequentemente, a educao precisava ser reformadae aprimorada. Em suas prprias palavras:

    A reforma e o aprimoramento da educao a verdadeira base da edificao social, fonteprimria de hbitos e opinies, que exerce poderosa influncia sobre toda a vida so umanecessidade sentida na Europa, de maneira geral, como por instinto. Trata-se de indicar os meiospara satisfazer as necessidades da maneira mais segura, mais eficiente e mais imediata (FRASER,1964, p. 35).

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    Segundo Jullien, a abordagem metodolgica que permitiria corrigir osdefeitos e as fragilidades da educao e, de maneira geral, a condio daeducao e da instruo pblica em todos os pases da Europa seria a elaboraode sumrios analticos de informaes, coletadas por meio de uma srie dequestes um questionrio organizada na forma de tabelas de informaescomparadas e classificada segundo ttulos uniformes para permitir anlisescomparativas. A responsabilidade pela coleta desses fatos e dessas observaeseducacionais, para avaliaes e busca de solues para os problemaseducacionais, seria atribuda a homens intelectuais e ativos capazes de fazerjulgamentos seguros, (e) com reconhecida conduta moral (FRASER, 1964, p.36-37; KALOYIANNAKI, 2002, p. 42-43). Jullien articulou da seguintemaneira esse valor reformista-meliorista de sua concepo cientfica quasepositivista da educao comparada:

    Esses sumrios analticos de informaes sobre a condio da educao e da instruo pblicaem todos os pases da Europa forneceriam sucessivamente tabelas comparativas do estado atualda Europa em relao a tabelas comparativas da situao educacional desse continente. Seria fcilavaliar aqueles que esto avanando; aqueles que esto ficando para trs, aqueles que permaneceminalterados; quais so, em cada pas, as reas carentes e inadequadas; quais so as causas dosdefeitos internos... ou quais so os obstculos aos avanos em relao religio, tica e reasocial, e de que forma esses obstculos podem ser superados; por fim, que setores em cada pasoferecem melhorias que podem ser replicadas em outro pas, com as modificaes e mudanasadequadas para as circunstncias e as localidades (FRASER, 1964, p. 37).

    Uma perspectiva cientfica quase positivista na educao comparada, talcomo vista por Jullien, seria valiosa tambm em relao a outros aspectos. Por umlado, forneceria novos meios para o aperfeioamento da cincia da educao(FRASER, 1964, p. 41). Por outro lado, liberaria o estudo comparativo dainfluncia de polticas, da onipotncia da religio, do preconceito e do despotismo(KALOYIANNAKI, 2002). E mais, ajudaria a construir naes, como eleargumenta no caso de um estudo comparativo da educao nos 22 cantes daSua. Sem dvida, segundo Jullien, o estudo comparativo da educao noscantes da Sua atenderia a um duplo objetivo: em primeiro lugar, dar vida ideia de transferir uns aos outros aquilo que pode ser adequado e til em suasinstituies; e em segundo lugar, estabelecer e consolidar a unidade polticada Sua, por meio do desenvolvimento de uma mentalidade nacional daHelvcia (FRASER, 1964, p. 45-46).

    A metodologia de Jullien: o questionrio e os indicadores de comparao

    A metodologia comparativa de Jullien pode ser descrita como emprico-dedutiva,e talvez qualitativa quase etnogrfica. Tinha o objetivo de reunir dados nas palavrasde Jullien, fatos e observaes sobre a educao e questes relacionadas, por meio

    Kaloyiannaki e Kazamias

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    de um questionrio que consistia em uma srie de questes sobre seis reas daeducao3:

    (a) ensino primrio e comum; (b) ensino secundrio e clssico; (c) ensino superior e cientfico;(d) ensino normal; (e) educao de meninas; e (f ) educao em relao legislao e instituiessociais. As observaes e os fatos coletados seriam ento organizados em grficos analticos outabelas de observaes comparadas que permitiriam uma anlise comparativa e a deduo decertos princpios, determinadas regras, para que a educao pudesse tornar-se uma cincia quasepositivista (FRASER, 1964, p. 40).

    No Esquisse, Jullien identificou os temas/tpicos educacionais para as seis reasque seriam objeto dos problemas a serem propostos. No entanto, conseguiuconcluir questes apenas para as duas primeiras reas: ensino e instruo para osnveis primrio e comum; e ensino secundrio e clssico. Em cada rea, as questespropostas cobriam diversos tpicos e questionamentos da rea da educao.Algumas das questes eram relativamente curtas, buscando extrair dadosquantitativos, ou perguntas cujas respostas eram sim ou no; outras eramrelativamente longas, e buscavam extrair avaliaes e interpretaes qualitativas.De maneira breve e seletiva, apresentamos a seguir o contedo das questesrelacionadas s duas primeiras reas:1. A primeira rea ensino e instruo para os nveis primrio e comum incluamquestes sobre: (a) escolas primrias ou elementares (elementary schools): porexemplo, nmero, organizao, manuteno e administrao, diferenas entre asescolas destinadas a crianas de diferentes crenas religiosas, sejam elas gratuitasou no; (b) estudantes: por exemplo, nmero, idade de admisso, taxas dematrcula; (c) diretores e professores do ensino primrio: por exemplo, nmero,formao, salrios, possibilidades de progressos ou aposentadoria; (d) educaofsica e ginstica: amamentao de crianas, alimentao, vestimentas, sono, camas,jogos, exerccios, caminhadas, cuidados de higiene e dieta, doenas, vacinao etaxas de mortalidade; (e) educao moral e religiosa: por exemplo, desenvolvimentoinicial de sentimentos morais, represso de tendncias negativas, influncia de mesde famlia, instruo religiosa, seja ela rida e dogmtica ou interessante e adequadapara produzir uma impresso profunda na alma, regulamentaes e disciplina dasescolas primrias, punies [...] emulao: utilizada como motivao necessria,ou no? (f ) educao intelectual: por exemplo, desenvolvimento das faculdadesmentais, instruo ou aquisio de conhecimento, educao inicial sobre ossentidos e os rgos, objetivos e meios utilizados no ensino, exerccios para amemria, trs faculdades principais: ateno, comparao, raciocnio; (g) educao

    Os primrdios modernistas da educao comparada

    3. NRTT: A educao bsica no Brasil compreende a educao infantil at os 5 anos, educao fundamentaldos 6 aos 14 anos; e ensino mdio dos 15 aos 17 anos. A UNESCO considera os seguintes nveis educacionais:a educao infantil (de 0 a 6 anos), a educao primria (de 7 a 11 anos), educao secundria (de 12 anosat atingir a educao superior, subdividida por Lower Secondary Education, dos 12 aos 15 anos, e UpperSecondary Education, dos 17 aos 18 anos) e educao superior (estgio seguinte ao da educao secundriaindependente do curso, durao).

  • Kaloyiannaki e Kazamias

    domstica e privada: por exemplo, at que ponto a educao tem incio e continuada pelos pais, no seio da famlia, em harmonia com a educao e ainstruo fornecidas em escolas primrias e pblicas, ou em contraposio a elas?;(h) ensino nos nveis primrio e comum, em sua relao com o ensino secundrioou com o segundo estgio, e em sua relao com as intenes da criana: porexemplo, a organizao atual do ensino primrio e comum est baseada emfundamentos suficientemente amplos, slidos e completos para fornecer s crianasdas classes pobres e trabalhadoras todos os conhecimentos elementaresindispensveis para que possam exercitar e desenvolver suas potencialidades?; e (i)consideraes gerais: por exemplo, a maneira como as crianas so educadasatualmente at os 7 ou 9 anos de idade a mesma praticada em pocas anteriores?Se no, quais so as diferenas entre as novas formas de educar e as formaspraticadas antigamente? (FRASER, 1964, p. 53-67).

    2. As questes na segunda rea, ensino secundrio e clssico, eram semelhantes s daprimeira rea. Buscavam informaes sobre: (a) escolas secundrias (colgios,ginsios, instituies privadas e internatos): por exemplo, nmero, natureza, origeme fundao, organizao, encargos financeiros; (b) estudantes: por exemplo, nmero,idade, diviso em turmas etc.; (c) educao fsica e ginstica; (d) educao moral ereligiosa: por exemplo, conhecimento de Deus, oraes dirias, sentimento debenevolncia, coragem, pacincia; (e) educao intelectual: por exemplo,desenvolvimento das faculdades, aquisio de conhecimento ou instruo [...]objetivos/mtodos de ensino [...] livros clssicos [...] exerccios para odesenvolvimento da memria, discernimento ou raciocnio, imaginao [...] frias[...] estilo de redao de cartas [...] estudo da legislao; (f ) educao domstica efamiliar em sua relao com a educao pblica; e (g) consideraes gerais e questesdiversas (FRASER, 1964, p. 67-82).

    Jullien e seu conceito de educao comparada: uma cincia positivista ou humanista?

    Do ponto de vista privilegiado de uma metodologia emprico-cientfica dopositivismo, pode-se afirmar, como de fato se afirmou, que o questionrio deJullien demasiadamente complexo, demasiadamente longo e tendencioso, nosentido de que os pressupostos de Jullien sobre os objetivos adequados daeducao permeavam as questes que props (NOAH; ECKSTEIN, 1969, p.29). Da mesma forma, sob a mesma perspectiva metodolgica do positivismo, possvel acrescentar tambm que, em muitas partes, as questes propostas noEsquisse so confusas e induzidas, menos preocupadas em registrar fatos eobservaes que podem ser determinados de maneira objetiva e coletados demaneira sistemtica, e mais destinados a divulgar e promover as ideias e teoriasde Jullien sobre educao. Esses comentrios crticos certamente seriamprocedentes, em particular em relao s perguntas confusas, tendenciosas einduzidas, que aparecem com frequncia sob as categorias temticas deeducao moral e religiosa e de educao intelectual. Apresentamos a seguiruma seleo de exemplos pertinentes a esses tipos de questo:

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  • Os primrdios modernistas da educao comparada

    Educao moral e religiosa A instruo religiosa limitada ao ensino e explicao do catecismo, de preceitos,dogmas, cerimnias, formas exteriores? Ou busca penetrar a alma das crianas, daruma slida fundamentao interna para sua crena religiosa, formar sua conscincia,desenvolv-las e fortalec-las por meio do duplo poder dos hbitos e dos exemplos,do carter moral, da devoo verdadeira, da disposio benevolncia, tolerncia, caridade crist?

    Existe empenho (de acordo com o sbio conselho do filsofo alemo Basedown) emlevar as crianas a entender o lado belo da virtude e o lado ruim do vcio, de modoque se tornem de fato pessoas de bem, e no hipcritas ou seja, que no pensemapenas em seus prprios interesses ao fazerem o bem?

    Educao intelectual Quais so os objetivos da educao que as crianas normalmente recebem na escolaprimria? (Na maioria das escolas, a educao est restrita a leitura, escrita earitmtica? Ou oferece tambm algumas noes bsicas de gramtica, canto, desenhogeomtrico, geometria, alm de agrimensura, mecnica aplicada, geografia e histria dopas, anatomia humana, prticas de higiene, histria natural aplicada ao estudo dosprodutos agrcolas mais teis ao homem? Sendo essenciais para cada indivduo emtodas as condies e circunstncias da vida, todos os elementos dessas cinciasdeveriam fazer parte de um sistema completo de ensino nos nveis primrio ecomum, perfeitamente adequado s reais necessidades do ser humano no estgioatual de nossa civilizao).

    Aplica-se o mtodo elementar de ensino de aritmtica, praticado com sucesso porM. Pestalozzi em seu instituto de educao, ou qualquer outro mtodo do mesmotipo, seja em aritmtica ou em outras reas de instruo?

    De que forma se busca desenvolver e exercitar nas crianas, de maneira progressiva eimperceptvel, em primeiro lugar, o poder da ateno a principal faculdade geradorade todas as demais; em seguida, a faculdade de comparar, ou de estabelecersimilaridades; por fim, o raciocnio (so essas as trs faculdades essenciais efundamentais do conhecimento humano, segundo a distino estabelecida por M.Laromiguire em seu trabalho Lessons of Philosophy)? (FRASER, 1964).

    No entanto, para situar a concepo de Jullien a respeito de uma cincia daeducao no contexto histrico intelectual cientfico mais amplo do ps-Iluminismo,e mais, levando em conta (a) o background cultural humanstico de Jullien; e (b) que,como mencionado anteriormente, ele nutria-se das ideias, do esprito e da cultura doparadigma de modernidade do Iluminismo, talvez fosse possvel entender suaconcepo de educao comparada como uma cincia quase positivista ou seja, nocomo uma cincia positivista no sentido estrito da expresso, como demonstrado pelanatureza do questionrio e dos indicadores de comparao no Esquisse. Consideradostricto sensu, o Positivismo afirma que

    todo conhecimento relacionado a fatos baseado em dados positivos da experincia, e suacaracterstica essencial a rigorosa fidelidade ao testemunho da observao e da experincia. E

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    mais, sendo uma ideologia filosfica, o Positivismo material, secular, antiteolgico eantimetafsico. Disponvel em: .

    Alm disso, segundo a Wikipdia, medida que se desenvolvia na segundametade do sculo XX, o Positivismo

    (a) est centrado na cincia como um produto, um conjunto de afirmaes lingusticas ounumricas; (b) insiste em que, no mnimo, algumas afirmaes podem ser testadas,verificadas, confirmadas ou refutadas pela observao emprica da realidade; e (c) est baseadona convico de que a cincia apoia-se em resultados especficos que so dissociados dapersonalidade e da posio social do pesquisador. Disponvel em: .

    Considerando o exposto acima, a concepo de Jullien a respeito de umacincia da educao comparada no pode ser considerada compatvel com asconcepes cientficas positivistas da educao comparada desenvolvidas nasegunda metade do sculo XX por exemplo, as de Harold Noah e MaxEckstein (NOAH; ECKSTEIN, 1969). Tampouco se pode afirmar que sejacompatvel com outras concepes cientficas no mesmo perodo do sculo XX,por exemplo, as de Brian Holmes (HOLMES, 1965), George Bereday(BEREDAY, 1964), as da Escola Funcionalista da Universidade de Chicago(ANDERSON, 1961; FOSTER, 1960) ou, sem dvida, as da Stanford WorldSystems School de anos posteriores (ARNOVE, 1982). No entanto, mesmo assim possvel afirmar que a concepo de Jullien a respeito de uma cincia daeducao comparada era compatvel com aquilo a que os franceses e outroseuropeus por exemplo, os gregos e os alemes se referem como cinciashumanas, que em certos aspectos se diferenciam, em termos de metodologia ede disciplinas, das cincias positivistas e de outras cincias emprico-estatsticas.Dois anos aps o surgimento do Esquisse para a educao comparada, Jullienpublicou o Sketch for an essay on the philosophy of the sciences4, em que,segundo Palmer,

    a cincia adquiria o significado de atividade mental de todos os tipos, inclusive tecnologiaaplicada, estudos sobre poltica e economia, literatura criativa e belas-artes. No mesmotrabalho, em uma tabela sinptica do conhecimento humano segundo um novo mtodo declassificao, Jullien classificou conhecimento humano como cincias de primeira ordeme segunda ordem. Em cincias de primeira ordem, incluiu as cincias fsicas e cinciasprticas, como agricultura, minerao, engenharia e cuidados de sade; e em segundaordem, incluiu cincias metafsicas, morais e intelectuais, cincias relacionadas mente,histria, psicologia, teologia natural, artes liberais, belas-artes, moralidade prtica e educao(PALMER, 1993, p. 176-178).

    Kaloyiannaki e Kazamias

    4. NT: Esboo de um ensaio sobre a filosofia das cincias.

    http://www.brittanica.com/eb/article9108682/Positivismhttp://en.wikipedia.org/wiki/Positivismhttp://en.wikipedia.org/wiki/Positivism

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    Ideologicamente, como explicaremos a seguir, Jullien poderia ser caracterizadocomo um iluminista liberal e um reformador educacional internacional, humanistae cosmopolita. O objetivo de pesquisar de maneira cientfica/epistmica aquilo queconsiderava uma educao europeia incompleta, moral e intelectualmente falhaera melhorar/aprimorar essa educao, reformando-a com base no que consideravaserem princpios educacionais desejveis em termos morais, intelectuais e fsicos.Como mencionado anteriormente, o humanista liberal iluminista Jullienconsiderava a educao como a verdadeira base da edificao social, fonte primriade hbitos e opinies, que exerce uma poderosa influncia sobre toda a vida(FRASER, 1964, p. 35). Acreditava que a educao pode exercer uma influnciadecisiva sobre o renascimento intelectual e moral do homem, sobre o bem-estarnacional e sobre a construo das naes (KALOYIANNAKI, 2001). Seu mtodocomparativo a utilizao do questionrio analisado anteriormente buscava maisdo que apenas coletar fatos e observaes. Como apontaram Noah e Eckstein,Jullien, em ltima anlise, preocupava-se com problemas de difuso dosconhecimentos sobre educao, especialmente sobre o conhecimento da inovaoeducacional. Os mesmos autores acrescentaram:

    Sendo influenciado pelas ideias de Rousseau e Pestalozzi, [Jullien] desejou estimular uma

    metodologia educacional prtica, centrada na criana, que enfatizasse, entre outras coisas, a

    educao dos sentidos e a preparao para a vida em sociedade, sempre com uma nfase

    humanitria (NOAH; ECKSTEIN, 1969, p. 16).

    Na verdade, Jullien desejava estimular uma educao humanstica multifacetada,como indicava a nfase que dava em seu questionrio educao moral, religiosa, fsicae intelectual do homem, que, segundo ele, o sujeito sobre o qual atua a educao.Jullien afirma que o homem composto de trs elementos: corpo, corao e mente,que, cultivados e desenvolvidos, constituem para ele os verdadeiros caminhos para afelicidade (FRASER, 1964, p. 48). Seria importante acrescentar aqui que o Esquissede Jullien e as questes propostas refletiam tambm a influncia humanitria do condealemo Leopold Berchold, renomado viajante e humanista, e do francs M.Laromiguire, aos quais faz referncia no questionrio, relacionando-os com umaeducao que cultiva as faculdades da alma (FRASER, 1964, p. 41, 91, 133-147;KALOYIANNAKI, 2002). E mais, que alguns pesquisadores, Gautherin (1993) eLeclercque (1999), consideram que o trabalho de Jullien constri um mundo humanopolifnico, uma vez que, no Esquisse, Jullien vai alm da Europa, e refere-se humanit 5 , a todas as pessoas, ao aprimoramento do ser humano e ao amor pelahumanidade, dando assim um carter universal e humanitrio sua abordagemcomparativa e s proposies para reforma (KALOYIANNAKI, 2002).

    Os primrdios modernistas da educao comparada

    5. NT: Humanidade como um todo.

  • Kaloyiannaki e Kazamias

    Um liberal iluminista francs: liberdade, razo, educao

    No prefcio de seu estudo sobre Jullien, intitulado De jacobino a liberal(1993), R. R. Palmer escreveu:

    Nascido no ano em que teve incio nos Estados Unidos da Amrica a rebelio armada contra aInglaterra, [Jullien] testemunhou a queda da Bastilha quando estudava em Paris, juntou-se aoclube jacobino, participou do Reinado do Terror, defendeu a democracia, depositou suasesperanas em Napoleo Bonaparte, voltou-se contra ele, comemorou seu retorno de Elba,tornou-se um liberal franco sob a dinastia Bourbon restaurada, rejubilou-se com a Revoluo de1830, teve dvidas em relao Monarquia de Julho, saudou a Revoluo de 1848, e morreualgumas semanas antes da eleio de Luiz Napoleo Bonaparte como presidente da SegundaRepblica (PALMER, 1993, p. ix).

    E no captulo sobre Jullien como um terico da educao, o mesmo autorobservou:

    Na educao, como em outras reas, [Jullien] passou de jacobino a liberal. A educao, queantes via como parte do processo revolucionrio, passou a ser vista por ele como umsubstituto para a Revoluo, ou como um meio que permitiria evitar a Revoluo (PALMER,1993, p. 151).

    R. Freeman Butts, um notvel historiador da educao, escreveu:

    [O Iluminismo] foi uma reao contra a civilizao tradicional do antigo regime na Europa contra a monarquia absoluta, os sistemas econmicos fechados, a rgida estratificao social, oautoritarismo religioso, uma viso de mundo no cientfica, a doutrina do pecado original nanatureza humana, e contra a dominao da vida intelectual por concepes de conhecimentomedievais. [...] Subjacente a esse protesto havia uma crescente confiana nos poderes do homem,na cincia e na razo humana. Essa idade da razo exortava a convico humanitria em curso deque, assumindo suas opinies, o homem seria capaz de reformar suas instituies como um meiode promover o bem-estar geral. Essas correntes de pensamento contriburam para dar forma aosideais liberais e democrticos que se disseminavam e que seriam a marca do desenvolvimento doOcidente (BUTTS, 1973, p. 307).

    Seria preciso acrescentar outro princpio bsico do Iluminismo: o conceitode liberdade. A liberdade foi exaltada por J. J. Rousseau, o eminente filsofopoltico e educacional moderno, e pensador do Iluminismo que influenciouJullien; mas ainda por outro filsofo tambm eminente, o alemo ImmanuelKant. Segundo Kant,

    o Iluminismo o ressurgimento do homem que sai de sua imaturidade autoinfligida. A chancede uma populao inteira esclarecer-se ser maior [...] se a essa populao for permitido viverem liberdade [...] liberdade de fazer uso pblico de sua prpria razo em todos os assuntos.Disponvel em: .

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    http://www.philosophy.eserver.orgjkant/what-is-enlightenment

  • Os primrdios modernistas da educao comparada

    Por fim, e nesse caso com relevncia especial, deve ficar explcito aquilo queparece estar implcito nos pargrafos anteriores: na filosofia do Iluminismo,educao, pedagogia, poltica e construo das naes eram conceitosintimamente relacionados.O Esquisse de Jullien e seus outros textos sobre educao, por exemplo, Ensaio

    geral sobre educao, publicado em 1808, assim como seus diversos trabalhos sobrecultura e civilizao refletem algumas das ideias bsicas do Iluminismo mencionadasanteriormente. Em primeiro lugar, como demonstrado no Esquisse, mas tambmem outros trabalhos, Jullien colocou grande nfase na razo e na forma cientficade conhecer que, como j indicado, constituam princpios capitais da filosofia doIluminismo. No primeiro nmero da Rvue Encyclopdique, criada em 1819,lanada logo aps sua criao, Jullien escreveu:

    Nosso novo peridico deve atender a uma das necessidades de nosso tempo. Seu objeto expor,

    com preciso e confiana, a marcha e o progresso contnuo do conhecimento humano em relao

    ordem social e ao seu aprimoramento, que constituem a verdadeira civilizao (PALMER,

    1993, p. 178-181).

    E em uma edio em 1823, escreveu:

    Nossa Rvue o primeiro e o nico trabalho a ter realizado, por publicao peridica, a grandeideia baconiana da unidade das cincias, reunidas de forma a assemelhar-se a um Congressouniversal, em uma aliana verdadeiramente sagrada para o avano da mente humana em direoao mesmo objetivo moral e filosfico nas esferas infinitamente variadas nas quais est destinada aoperar (DAVIES, 1996, p. 596-598).

    Um segundo elemento na teoria da educao formulada por Jullien ecompatvel com a filosofia do Iluminismo era sua nfase em regenerao eaprimoramento da educao/instruo pbica (FRASER, 1964, p. 36). Assimcomo os pensadores franceses do Iluminismo e os polticos liberais franceses eingleses da poca, Jullien considerava a educao pblica social e politicamenteimportante para a produo de cidados esclarecidos e patriotas, para orenascimento do homem, para o progresso e o bem-estar das naes. Comoobservou Palmer, com justa razo:

    evidente o que levou Jullien a considerar a educao como um aspecto da cincia poltica esocial. As ideias expressas no so somente suas. Podem ser encontradas, de forma dispersa, nosplanos educacionais formulados antes e durante a Revoluo, entre os quais o de Talleyrand, em1791, o de Condorcet, em 1792, e um terceiro endossado pelos jacobinos parisienses, em 1793.Lembram as ideias de Jeremy Bentham e dos emergentes Radicais filosficos, na Inglaterra(PALMER, 1993, p. 154).

    Outro elemento do Iluminismo presente no repertrio ideolgico educacional deJullien, que refletia a influncia de Rousseau e de Pestalozzi, foi sua nfase no princpio

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  • Kaloyiannaki e Kazamias

    pedaggico de completa liberdade no desenvolvimento de faculdades ou inclinaesnaturais e na individualidade de cada aluno. Aps visitar a escola de Pestalozzi emYverdon, na Sua, em 1810, Jullien enunciou o seguinte princpio pedaggico:

    O quarto princpio geral [...] consiste em permitir um desenvolvimento pleno das faculdades edas inclinaes originais de cada aluno, medida que revelam e expressam a verdadeira naturezadesse aluno [...] A criana cresce e de certa forma instrui-se a si mesma; o professor apenas omeio exterior de desenvolvimento e instruo [...] A educao deve tornar cada criana capazde alcanar toda a perfeio que permite sua natureza fsica, moral e intelectual (PALMER,1993, p. 163-164).

    Um educador/pedagogo internacional e cosmopolita (cidado do mundo)

    Desde a dcada de 1940, quando o Esquisse de Jullien foi descobertoacidentalmente, at os dias de hoje, educadores comparativistas vm creditando aJullien o mrito de ter sido o pioneiro no desenvolvimento da educao comparada.De fato, como observado anteriormente, alguns comparativistas aclamaram Julliencomo o pai dessa episteme (cincia) modernista. Em termos gerais, no entanto,os comparativistas deram pouca ateno s ideias pioneiras de Jullien sobreEducao Internacional (EI) um campo epistmico anlogo.A expresso ou o conceito educao internacional foi contaminada por

    sentidos imprecisos e por uma multiplicidade de definies e interpretaes emrelao ao tema (VESTAL, 1994, p. 13). Na literatura recente sobre o assunto,h uma distino entre educao internacional e educao comparada, mas htambm o reconhecimento de que os dois domnios epistmicos estorelacionados entre si (FRASER; BRICKMAN, 1968). Isto confirmado tambmpelo fato de que, na dcada de 1960, a denominao da recm-fundadaComparative Education Society 6 , sediada nos Estados Unidos, foi alterada paraComparative and International Education Society 7 (JONES, 1971, p. 22). Quandoa expresso utilizada por profissionais da rea da educao comparada einternacional, normalmente refere-se aos seguintes interesses e atividades: (a)estudo da educao de outras pessoas em outros pases; (b) intercmbiosinternacionais e estudos no exterior; (c) apoio tcnico ao desenvolvimento daeducao em outros pases; (d) cooperao internacional no desenvolvimento daeducao por meio de organizaes internacionais; (e) estudos comparativos etransculturais em diversos temas e disciplinas; e (f ) educao intercultural(VESTAL, 1994, p. 14).Analisado sob essa perspectiva de educao internacional, seria possvel,

    justificadamente, fazer referncia a Jullien como o precursor da educao

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    6. NT: Sociedade de Educao Comparada.7. NT: Sociedade de Educao Comparada e Internacional.

  • Os primrdios modernistas da educao comparada

    internacional. Seus pontos de vista e suas crticas em relao ao estado da educao poca referiam-se aos diferentes pases da Europa, e no s a seu pas: a Frana.Alm disso, como afirma no Esquisse, o que era preciso para a regenerao e oaprimoramento da educao pblica na Europa era a organizao de umaComisso Especial de Educao,

    pequena em nmero, composta por homens encarregados de coletar, por seus prprios meiose com a participao de associados correspondentes, cuidadosamente escolhidos, os materiaispara um trabalho geral sobre os estabelecimentos e os mtodos de educao e instruo nosdiferentes Estados europeus, relacionados e comparados de acordo com este relatrio(FRASER, 1964).

    Com uma equipe de associados internacionais cuidadosamenteselecionados, essa comisso internacional especial ficaria incumbida de verificarque sumrios analticos de informaes sobre a condio da educao e dainstruo pblica em todos os pases da Europa fossem coletados utilizandoum mtodo comum, identificado como o questionrio. O objetivo de coletaresses sumrios analticos de informaes era avaliar o estado da educao emcada nao da Europa, para identificar e investigar os aspectos crticos edeficientes em cada pas, e para sugerir melhorias. Falando como terico daeducao, porm mais como reformador da educao internacional e pedagogo,Jullien afirmou:

    Estes sumrios analticos de informaes coletadas ao mesmo tempo e na mesma sequncia,[...] forneceriam sucessivamente, em menos de trs anos, tabelas comparativas do estado atualdas naes europeias em relao a este aspecto importante. Seria fcil avaliar aqueles pasesque esto progredindo; aqueles que esto ficando para trs, aqueles que permaneceminalterados; quais so as causas de deficincia interna; ou quais so os obstculos influnciada religio, da tica e do avano social, e de que forma esses obstculos podem ser superados;por fim, que setores em cada pas oferecem melhorias que podem ser replicadas em outrospases, com as modificaes e mudanas adequadas para as circunstncias e as localidades(FRASER, 1964, p. 37).

    No Esquisse, alm da organizao de uma comisso internacional especial, Jullienpropunha que fossem estabelecidos um Instituto Normal de Educao e instituiessemelhantes, em diferentes localidades, para a formao de bons professores. OInstituto Normal publicaria um Boletim ou General Journal of Education emdiversos idiomas, que difundiria informaes para o aperfeioamento de mtodosinstrucionais (FRASER, 1964, p. 39).

    O internacionalismo de Jullien na educao e, de maneira mais ampla, nacultura, no conhecimento e na civilizao refletia-se em outras atividades e emestudos tericos. Como observou Fraser, j citado:

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  • Kaloyiannaki e Kazamias

    [Jullien] viajava extensivamente, participando de congressos internacionais, dedicando seutempo a sociedades de eruditos, e correspondendo-se com estadistas e educadores cujocosmopolitismo buscava livrar-se das fronteiras do nacionalismo que se consolidava na Europa(FRASER, 1964).

    A respeito dos contatos de Jullien com eminentes figuras internacionais, Frasercita o presidente americano Thomas Jefferson, que, em uma carta escrita em 1810,acusando o recebimento do General Essay on Education, de autoria de Jullien,elogia-o por sua dedicao educao internacional (FRASER, 1964, p. 12-13).A Rvue Encyclopdique, fundada por ele e na qual atuou como editor,

    publicou nos Estados Unidos da Amrica, na sia, na frica e na Europa artigos,relatrios, notcias, resenhas de livros e cartas sobre civilizao/cultura (cartas,literatura e artes) e cincias. Em uma das cartas aos correspondentes ecolaboradores da Revista, Jullien destacou que o peridico circulava por todos ospases do mundo civilizado, e acrescentou:

    A ns no basta sermos enciclopedistas; aspiramos especialmente a ser cosmopolitas (cidadosdo mundo). No consideraramos nossa tarefa cumprida sem que nossas ediesapresentassem, da forma mais completa e precisa, o estado das cincias, das letras, das artes,trabalhos intelectuais e aprimoramento moral por toda a superfcie do globo (PALMER,1993, p. 180-181).

    Por fim, seria adequado mencionar que Jullien o internacionalista e ocosmopolita (cidado do mundo) no s merece a caracterizao de apstoloda civilizao, que lhe atribui Palmer, como tambm poderia ser chamado, comjustia, de apstolo da paz. Perturbado pelo que percebia como a dissoluo detodos os vnculos religiosos, morais e sociais, corrupo extrema, degradao dementes e coraes, que produziu revolues e guerras, Jullien enfatizou anecessidade de aprimorar a educao, nacional e internacionalmente, para acooperao internacional e a coexistncia pacfica (KALOYIANNAKI, 2002).Tornou-se membro da Associao de Amigos pela Paz, sediada em Londres, e em1883, em sua Letter to the English Nation, escreveu:

    Nosso ilustre e douto Cuvier, cuja morte ocorrida recentemente foi uma perda profundamentesentida tanto na Inglaterra quanto na Frana, julgou corretamente, em suas elevadas meditaes,que apenas a anatomia comparada e a geologia comparada levariam a avanos nas cincias de anatomiae geologia, que por tanto tempo permaneceram estacionrias. Do mesmo modo, somente acivilizao comparada permitir avanos rpidos em nossa civilizao atual, que, apesar de suasmaravilhas brilhantes e grandiosas, ainda preserva os traos profundos e aflitivos da antiga barbrie(PALMER, 1993, p. 205).

    Considerando seus pontos de vista sobre o valor de uma reforma na educaoe na pedagogia europeias para a regenerao das sociedades da Europa e oaprimoramento da condio humana em geral, na Carta citada acima Jullien

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  • Os primrdios modernistas da educao comparada

    poderia tranquilamente ter acrescentado a expresso educao comparada ao ladode civilizao comparada como tendo o mesmo significado no avano dacivilizao atual. Esse elemento de aprimoramento, que se destaca nas elevadasmeditaes do prprio Jullien, assim como em suas propostas e atividades para oavano da civilizao e para a educao comparada e internacional, merece umcomentrio adicional.

    Um reformador humanista cientfico e um meliorista comparativista/internacionalista

    Relatos histricos sobre a educao comparada como uma episteme (umacincia) modernista situaram a concepo de Jullien a respeito dessa rea epistmicana primeira fase de seu desenvolvimento, que foi caracterizada como a fase deemprstimo. Outros observadores do sculo XIX que estudaram a educaoeuropeia e que, como comparativistas, foram situados nessa categoria deemprstimo so os reformadores educacionais norte-americanos e europeusCalvin Stowe, Victor Cousin e Horace Mann, mencionados na introduo destecaptulo, e sobre os quais voltaremos a falar adiante. Segundo Bereday, a nfase doemprstimo no sculo XIX

    [...] foi a catalogao de dados educacionais descritivos; na sequncia, as informaes coletadaseram comparadas para tornar disponveis as melhores prticas de um pas para que fossemtransplantadas para outros (BEREDAY, 1964, p. 7).

    E segundo Noah e Eckstein, o Esquisse de Jullien um exemplo importantede trabalho em educao comparada, motivado por um desejo de receber liesteis de outros pases (NOAH; ECKSTEIN, 1969, p. 15, 21). Por trs da ideiade emprstimo, de transplante das melhores prticas e de receber lies teisestava a ideologia meliorista de aprimoramento.No Esquisse, Jullien utiliza a palavra emprstimo como um provvel benefcio

    da anlise comparativa quando examina a aplicao de seu instrumento e seus grficosde observao primeiramente nos cantes da Sua. Em suas palavras: A reunio decantes e a comparao entre eles com relao a esses aspectos dar vida ideia detransferir de uns para outros, aquilo que em cada um pode ser bom e til em suasinstituies (FRASER, 1964, p. 46). No mesmo texto, Jullien utiliza tambm apalavra transpor, no sentido de transferir de um pas para outro aquilo que acomparao mostra que pode ser um aprimoramento. Nesse caso, no entanto, seriapreciso realizar as modificaes e adaptaes que fossem consideradas adequadass circunstncias e s localidades. Assim, seria possvel afirmar que, por trs de suasnoes de tomar por emprstimo e transferir estaria um aspecto da ideologiameliorista de Jullien semelhante dos reformadores do sculo XIX j mencionados.Mas h outro aspecto do meliorismo de Jullien que o diferenciava dos outros

    comparativistas adeptos do emprstimo. Em termos simples, era o fato deJullien ter ideias definidas sobre o tipo de educao e de pedagogia necessrio

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  • Kaloyiannaki e Kazamias

    para a regenerao do homem europeu, da civilizao e da sociedade europeias.Isso fica patentemente claro quando se observa o tipo de questes que incluiuno Esquisse, algumas das quais so citadas na seo pertinente acima. Jullienafirmava que a regenerao da sociedade humana somente seria possvel pormeio de uma educao moral e religiosa e de uma educao intelectual.Adepto da psicologia das faculdades, a teoria psicolgica dominante poca,Jullien propunha uma educao que desenvolvesse ateno, comparao eraciocnio as trs principais faculdades da mente. Mais importante, comoJullien deixa claro em seu questionrio, seria a educao moral e religiosa,especificamente:

    [...] primeiro desenvolvimento de sentimentos morais [...] instruo religiosa, rida e dogmticaou interessante, para causar uma profunda impresso na alma [...] conhecimento de Deus, oraesdirias, sentimento de benevolncia, coragem, pacincia (FRASER, 1994, p. 60, 63, 71).

    E na parte introdutria do questionrio, declarava inequivocamente:

    por meio da volta religio e moralidade, por meio de uma reforma elaborada de maneiraampla, introduzida na educao pblica, que ser possvel revigorar os homens [...], chegado omomento de dar prosperidade das naes e ampla fundao de polticas a necessriaestabilidade de religio e moralidade (FRASER, 1964, p. 34-35).

    Eplogo: Jullien como um educador comparativista e internacional

    No temos evidncias de que a metodologia comparativa de Jullien ou suasideias e propostas sobre a educao comparada e internacional, tal comoapresentadas em seu Esquisse, tenham sido adotadas ou tenham exercido algumainfluncia significativa sobre o desenvolvimento subsequente dos dois domniosepistmicos relacionados. Como historiadores da educao comparada,concordamos com Stewart Fraser em sua prestigiosa edio avaliando o Esquisse,de Jullien, produzida em 1964. Reiterando o julgamento histrico de Franz Hilker,Isaac Kandel e Nicholas Hans trs comparativistas pioneiros do sculo XX deque Jullien no conseguiu influenciar de maneira significativa o desenvolvimentoda educao comparada, Fraser acrescentou:

    Embora Jullien talvez no seja necessariamente qualificado como o principal pesquisador ou umexpoente da pedagogia comparada no sculo XIX, sua obra Esquisse ainda um dos maisimportantes produtos nessa cincia. Tecnicamente, e de fato, Jullien nunca desenvolveuintegralmente uma metodologia de educao comparada, e tampouco viveu para ver oestabelecimento de suas ideias relacionadas a institutos de educao internacional. No entanto,Jullien tem sido amplamente identificado como um dos primeiros a consolidar em um esboopreliminar essas ideias profcuas que, por sua magnitude potencial, no permitem que seu autorseja ignorado nos dias atuais (FRASER, 1964, p. 117).

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  • Os primrdios modernistas da educao comparada

    O tema administrativo-meliorista e orientado para polticas da educaocomparada internacional: Victor Cousin, da Frana, e Horace Mann,Calvin Stowe e Henry Barnard, dos Estados Unidos da Amrica

    O Esquisse de Jullien e seus outros trabalhos que trataram da educaocomparada e internacional foram alguns dos raros discursos desse tipo surgidos noincio do sculo XIX. Sem dvida, o Esquisse era um trabalho nico quando setratava de educao comparada. No entanto, como observou William Brickman,um destacado historiador da educao internacional, em 1900, a escassaliteratura sobre educao no exterior, que em alemo era definida comoAuslandspdagogik, transformou-se em uma torrente de livros e outros trabalhos,como relatrios, observaes de viajantes ou visitantes, reportagens jornalsticas eescritos semelhantes (FRASER; BRICKMAN, 1968, p. 19). Essa produo foiespecialmente intensa nos Estados Unidos da Amrica, mas o interesse pelaAuslandspdagogik 8 manifestou-se tambm em pases europeus, principalmente naInglaterra e na Frana.O perodo que se seguiu Revoluo Francesa foi marcado por prodigiosas

    mudanas polticas, sociais, culturais e econmicas. Segundo o historiador FreemanButts, j mencionado, em meados do sculo XIX ocorreu uma transmutao nomago da civilizao ocidental que, at ento tradicional, desenvolveu ideias,valores e instituies socioeconmicas e polticas modernas (BUTTS, 1973, p.295). No centro do projeto de modernidade expresso muito discutida utilizadapor Jrgen Habermas para caracterizar essa transmutao, tambm denominadamodernizao estavam as ideias do Iluminismo relativas razo e reconstruo da esfera pblica na qual a razo deve prevalecer, organizaoracional da vida social cotidiana, cincia objetiva, ao conceito de moralidade elei universais (HABERMAS, 2007).Um elemento importante do projeto de modernidade do Iluminismo era a

    reforma da educao. A organizao racional da educao nacional/pblica eravista como condio necessria para a reconstruo da esfera pblica a formaopoltica nascente da Nao-estado e a organizao racional da vida social(BUTTS, 1973, p. 301-302). Assim como Jullien em relao a seu interesse pelaeducao comparada, reformadores europeus e norte-americanos do sculo XIX,em sua condio de administradores e formuladores de polticas educacionais emseus respectivos pases, manifestaram interesse na educao no exterior/internacional,mas principalmente com os objetivos relacionados ao emprstimo educacional, jmencionado nos relatos histricos do desenvolvimento da educao comparada(BEREDAY, 1964, p. 7; NOAH; ECKSTEIN, 1969, p. 16-21). Como observado

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    8. NT: Educao em outras terras.

  • Kaloyiannaki e Kazamias

    anteriormente, o interesse de Jullien pela educao comparada e internacional era,em parte, meliorista, no sentido do emprstimo educacional, mas tinha tambmum significado cientfico: a coleta sistemtica de fatos e observaes comparveis,por meio de um questionrio, permitiria a comparativistas-internacionalistasdeduzir, a partir deles, certos princpios, determinadas regras, para que a educaopossa tornar-se uma cincia quase positivista (FRASER, 1964, p. 40-41). Parailustrar este meliorismo no cientfico, no sentido de tomar por emprstimodiscursos e prticas de educao internacionais/do exterior, optamos por apresentaras ideias de Victor Cousin, da Frana, e de Horace Mann, Calvin Stowe e HenryBarnard, dos Estados Unidos.

    O discurso francs: Victor Cousin se estudo a Prssia, sempre na Frana que estou pensando

    Victor Cousin (1792-1867) foi contemporneo de Jullien e, como ele, umintelectual liberal iluminista. No entanto, no h evidncias de que tenha havidocolaborao ou comunicao entre eles. Segundo Palmer, Cousin foi mencionadocomo tema na Rvue Encyclopdique de Jullien, mas no como colaborador(PALMER, 1993, p. 180). Em sua carreira profissional como filsofo-professor naSorbonne, Cousin foi atrado pela filosofia alem, especialmente pelo idealismohegeliano que, segundo o prestigioso estudo Victor Cousin as a ComparativeEducator, de Walter Brewer (1971), foi introduzido por Cousin na filosofia francesa(BREWER, 1971, p. 23-24). No entanto, no foi apenas a filosofia alem queCousin tinha em alta estima, e que buscou introduzir na Frana. Tal como outrospensadores e reformadores contemporneos europeus, e, como veremos adianteneste captulo, tambm norte-americanos, Cousin considerava a educao pblicaalem muito bem-sucedida e entendia que deveria ser estudada para que algumasde suas caractersticas e prticas fossem reproduzidas. Assim sendo, to logo passoude professor de filosofia a filsofo, administrador e responsvel pela formulao depolticas educacionais, durante a Monarquia de Julho, de Louis Philippe (1830-1848), tendo servido como membro do Supremo Conselho de Instruo Pblicano ministrio de Guizot e, em 1840, por um curto perodo, como ministro daInstruo Pblica, Cousin viajou para a Alemanha para estudar as instituies eprticas educacionais alems. O resultado de seu tour pela Alemanha foi seu influentetrabalho Rapport sur ltat de linstruction publique en Prusse9 (1831), que,segundo o historiador americano E. W. Knight, figura entre os mais importantesde todos os relatrios sobre as condies da educao na Europa durante a segundaquarta parte do sculo XIX (KNIGHT, 1930, p. 117-118).

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    9. NT: Relatrio sobre o estado da instruo pblica na Prssia.

  • Os primrdios modernistas da educao comparada

    O relatrio de Cousin sobre a instruo pblica prussiana

    Na parte principal do relatrio, Cousin abordou aspectos da educao prussiana,que considerava adequados para seu objetivo, e que expressou nas seguintespalavras: Se estudo a Prssia, sempre na Frana que estou pensando (BREWER,1971, p. 50). Muito daquilo que considerava adequado para seu objetivo, Cousinencontrou em um projeto de lei do Conselheiro Privado Johann Wilhelm Suvern,que denominou Lei de 1819. Sobre o sistema pblico prussiano de educaoprimria, Cousin fez consideraes sobre os seguintes aspectos: a organizao e aadministrao, ou o governo da instruo pblica; a capacitao, a designao, apromoo, a remunerao e a punio de mestre do ensino primrio; o deverdos pais em mandar seus filhos para a escola primria, e da parquia em manteruma escola primria s suas prprias custas; os diferentes nveis (ou etapas) doensino primrio, ou seja, Elementarschulen10 e Burgerschulen11 ; e o contedo docurrculo escolar (KNIGHT, 1930).A Lei de 1819, de Suvern, poderia ser interpretada como parte da abordagem

    poltico-social do projeto de modernidade europeu, j mencionado. ComoBrewer havia escrito,

    [A lei] era uma das ltimas na srie de reformas polticas e sociais destinadas a modernizar efortalecer o Estado depois que os desastres de 1805-1806 desmembraram a Prssia e a deixaramaos ps da Armada Imperial Francesa (BREWER, 1971, p. 44).

    Assim como os reformadores prussianos seus contemporneos, Cousin, umreformador liberal iluminista, considerava que o estabelecimento de um sistemanacional de escolas primrias pblicas constitua uma exigncia bsica, necessriapara o desenvolvimento de um Estado nacional francs moderno. No sistemaalemo-prussiano de educao primria e na Lei de 1819, que descreveu em termosentusiasmados em seu relatrio de 1831, Cousin ento um formulador depolticas altamente conceituado viu uma estrutura para a reformulao daeducao francesa e a formao de um sistema nacional. Em seu relatrio, Cousin identificou e comentou diversos aspectos da estrutura

    jurdica e institucional do sistema educacional prussiano na Lei de 1819, que a seuver, poderiam trazer benefcios se fossem transferidos para a Frana. Trs dessesaspectos receberam ateno especial. O primeiro, ao qual dedicou espaoconsidervel, tratava do provimento e de mecanismos que Cousin denominoumaquinrio e governo da instruo pblica, para a formao de um sistemanacional. Especificamente, Cousin teceu comentrios sobre: (a) a obrigaonacional dos pais de colocar seus filhos na escola primria; (b) o dever de cada

    43

    10. NT: Escolas elementares.11. NT: Escolas para a classe mdia.

  • 44

    parquia em manter uma escola primria s suas prprias custas; (c) uma estruturaadministrativa descentralizada, por meio da qual, segundo a Lei de 1819, todas asescolas primrias, nas cidades ou nas reas rurais, devem ter sua prpria gestoparticular, seu prprio comit especial de superintendncia; e (d) manuteno, emuma medida justa e razovel da antiga e benfica unio de educao popular coma cristandade e a Igreja, mas sempre sob o controle supremo do Estado e doministro da Instruo Pblica e dos Assuntos Eclesisticos (COUSIN, 1930, p.130-155, 189-198).Outro aspecto da educao prussiana, includo na Lei de 1819, que

    impressionou Cousin foi a organizao da escolarizao em nvel nacional:

    A lei estabelecia duas etapas ou dois nveis na educao primria, ou seja, Elementarschulen(escolas elementares), para as Burgerschulen (classes mais baixas) e Stadtschulen (escolas para a classemdia), para os comerciantes e artesos da classe mdia; e em seguida, uma terceira etapa oginsio , para aqueles que quisessem ingressar em um curso de estudos prticos para a vidacomum; ou de estudos universitrios de nvel cientfico, superior e especial, ou profissional(COUSIN, 1930, p. 155-156).

    Cousin referiu-se tambm aos dispositivos da lei relacionados ao contedo doscurrculos das escolas elementares e de classe mdia, tecendo comentrios bastantepositivos. Observou que os dois tipos de escola deveriam oferecer um currculogeral incluindo religio e moral, idioma alemo, histria, geografia, matemtica,fsica, ginstica, desenho e canto. As escolas de classe mdia deveriam ensinartambm o latim. O ginsio12, por outro lado, deveria oferecer exclusivamente umacultura clssica e liberal (COUSIN, 1930, p. 155-164). O terceiro aspecto do sistema prussiano de educao que recebeu a ateno de

    Cousin foi a capacitao de mestres do primrio e o modo como eram designados,promovidos e punidos. Mais uma vez, Cousin citou detalhadamente osdispositivos da Lei de 1819, de Suvern, enfatizando aquilo que j havia mencionadosobre outros aspectos do sistema prussiano, ou seja, o cuidado e o papel ativo doEstado na educao (COUSIN, 1930, p. 167-188).Traduzido para o ingls e publicado na Inglaterra e nos Estados Unidos, o

    relatrio de Cousin sobre a instruo pblica na Prssia impressionou osreformadores educacionais ingleses e norte-americanos que, na segunda quartaparte do sculo XIX, estavam ativamente envolvidos no desenvolvimento de umsistema pblico nacional de escolas elementares (BREWER, 1971, p. 54-57).Segundo o historiador educacional Knight, nos Estados Unidos da Amrica orelatrio enfatizou a importncia do controle do Estado sobre a educao e acapacitao dos professores nas escolas normais financiadas pelo Estado. Sua

    Kaloyiannaki e Kazamias

    12. NRTT: No Brasil, o ginsio corresponde ao ensino mdio e/ou educao profissional.

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    influncia claramente perceptvel, especialmente em Michigan e emMassachusetts (KNIGHT, 1930). Em relao Inglaterra, Knight acrescentou:

    O peridico Foreign Quarterly Revue recebeu o relatrio de Cousin como uma prova irrefutvel,em funo do argumento slido e substancial de completo sucesso prtico, de que um sistemade educao nacional no era uma utopia, nem uma iluso, no era um fantasma do crebro,imaginado por filsofos sonhadores; mas sim um modo de garantir a instruo elementar detodas as crianas, que pode ser estabelecida e mantida tanto quanto qualquer exrcito ou marinha(KNIGHT, 1930, p. 116-119).

    A influncia do relatrio de Co