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EDUCAÇÃO APÓS AUSCHWITZ Theodor Adorno A exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação. De tal modo ela precede quaisquer outras que creio não ser possível nem necessário justificá- la. Não consigo entender como até hoje mereceu tão pouca atenção. Justificá-la teria algo de monstruoso em vista de toda monstruosidade ocorrida. Mas a pouca consciência existente em relação a essa exigência e as questões que ela levanta provam que a monstruosidade não calou fundo nas pessoas, sintoma da persistência da possibilidade de que se repita no que depender do estado de consciência e de inconsciência das pessoas. Qualquer debate acerca de metas educacionais carece de significado e importância frente a essa meta: que Auschwitz não se repita. Ela foi a barbárie contra a qual se dirige toda a educação. Fala-se da ameaça de uma regressão à barbárie. Mas não se trata de uma ameaça, pois Auschwitz foi a regressão; a barbárie continuará existindo enquanto persistirem no que têm de fundamental as condições que geram esta regressão. E isto que apavora. Apesar da não-visibilidade atual dos infortúnios, a pressão social continua se impondo. Ela impele as pessoas em direção ao que é indescritível e que, nos termos da história mundial, culminaria em Auschwitz. Dentre os conhecimentos proporcionados por Freud, efetivamente relacionados inclusive à cultura e à sociologia, um dos mais perspicazes parece-me ser aquele de

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EDUCAO APS AUSCHWITZTheodor Adorno

A exigncia que Auschwitz no se repita a primeira de todas para a educao. De tal modo ela precede quaisquer outras que creio no ser possvel nem necessrio justific-la. No consigo entender como at hoje mereceu to pouca ateno. Justific-la teria algo de monstruoso em vista de toda monstruosidade ocorrida. Mas a pouca conscincia existente em relao a essa exigncia e as questes que ela levanta provam que a monstruosidade no calou fundo nas pessoas, sintoma da persistncia da possibilidade de que se repita no que depender do estado de conscincia e de inconscincia das pessoas. Qualquer debate acerca de metas educacionais carece de significado e importncia frente a essa meta: que Auschwitz no se repita. Ela foi a barbrie contra a qual se dirige toda a educao. Fala-se da ameaa de uma regresso barbrie. Mas no se trata de uma ameaa, pois Auschwitz foi a regresso; a barbrie continuar existindo enquanto persistirem no que tm de fundamental as condies que geram esta regresso. E isto que apavora. Apesar da no-visibilidade atual dos infortnios, a presso social continua se impondo. Ela impele as pessoas em direo ao que indescritvel e que, nos termos da histria mundial, culminaria em Auschwitz. Dentre os conhecimentos proporcionados por Freud, efetivamente relacionados inclusive cultura e sociologia, um dos mais perspicazes parece-me ser aquele de que a civilizao, por seu turno, origina e fortalece progressivamente o que anticivilizatrio. Justamente no que diz respeito a Auschwitz, os seus ensaios O mal-estar na cultura e Psicologia de massas e anlise do eu mereceriam a mais ampla divulgao. Se a barbrie encontra-se no prprio principio civilizatrio, ento pretender se opor a isso tem algo de desesperador.A reflexo a respeito de como evitar a repetio de Auschwitz obscurecida pelo fato de precisarmos nos conscientizar desse elemento desesperador, se no quisermos cair presas da retrica idealista. Mesmo assim preciso tentar, inclusive porque tanto a estrutura bsica da sociedade como os seus membros, responsveis por termos chegado onde estamos, no mudaram nesses vinte e cinco anos. Milhes de pessoas inocentes - e s o simples fato de citar nmeros j humanamente indigno, quanto mais discutir quantidades - foram assassinadas de uma maneira planejada. Isto no pode ser minimizado por nenhuma pessoa viva como sendo um fenmeno superficial, como sendo uma aberrao no curso da histria, que no importa, em face da tendncia dominante do progresso, do esclarecimento, do humanismo supostamente crescente. O simples fato de ter ocorrido j constitui por si s expresso de uma tendncia social imperativa. Nesta medida gostaria de remeter a um evento, que de um modo muito sintomtico parece pouco conhecido na Alemanha, apesar de constituir a temtica de um best-seller como Os quarenta dias de Musa Dagh, de Werfel. J na Primeira Guerra Mundial os turcos - o assim chamado movimento turco jovem dirigido por Enver Pascha e Talaat Pascha - mandaram assassinar mais de um milho de armnios. Importantes quadros militares e governamentais, embora, ao que tudo indica, soubessem do ocorrido, guardaram sigilo estrito, O genocdio tem suas razes naquela ressurreio do nacionalismo agressor que vicejou em muitos pases a partir do fim do sculo XIX.Alm disso, no podemos evitar ponderaes no sentido de que a inveno da bomba atmica, capaz de matar centenas de milhares literalmente de um s golpe, insere-se no mesmo nexo histrico que o genocdio. Tornou-se habitual chamar o aumento sbito da populao de exploso populacional: parece que a fatalidade histrica, para fazer frente exploso populacional, dispe tambm de contra-exploses, o morticnio de populaes inteiras. Isto s para indicar como as foras s quais preciso se opor integram o curso da histria mundial.Como hoje em dia extremamente limitada a possibilidade de mudar os pressupostos objetivos, isto , sociais e polticos que geram tais acontecimentos, as tentativas de se contrapor repetio de Auschwitz so irnpelidas necessariamente para o lado subjetivo. Com isto refiro-me sobretudo tambm psicologia das pessoas que fazem coisas desse tipo. No acredito que adianta muito apelar a valores eternos, acerca dos quais justamente os responsveis por tais atos reagiriam com menosprezo; tambm no acredito que o esclarecimento acerca das qualidades positivas das minorias reprimidas seja de muita valia. preciso buscar as razes nos perseguidores e no nas vitimas, assassinadas sob os pretextos mais mesquinhos. Torna-se necessrio o que a esse respeito uma vez denominei de inflexo em direo ao sujeito. preciso reconhecer os mecanismos que tornam as pessoas capazes de cometer tais atos, preciso revelar tais mecanismos a eles prprios, procurando impedir que se tornem novamente capazes de tais atos, na medida em que se desperta uma conscincia geral acerca desses mecanismos. Os culpados no so os assassinados, nem mesmo naquele sentido caricato e sofista que ainda hoje seria do agrado de alguns. Culpados so unicamente os que, desprovidos de conscincia, voltaram Contra aqueles seu dio e sua fria agressiva. E necessrio contrapor-se a uma tal ausncia de conscincia, preciso evitar que as pessoas golpeiem para os lados sem refletir a respeito de si prprias. A educao tem sentido unicamente como educao dirigida a uma auto-reflexo crtica. Contudo, na medida em que, conforme os ensinamentos da psicologia profunda, todo carter, inclusive daqueles que mais tarde praticam crimes, forma-se na primeira infncia, a educao que tem por objetivo evitar a repetio precisa se concentrar na primeira infncia. J mencionei a tese de Freud acerca do mal-estar na cultura. Ela ainda mais abrangente do que ele mesmo supunha: sobretudo porque, entrementes, a presso civilizatria observada por ele multiplicou-se em uma escala insuportvel. Por essa via as tendncias exploso a que ele atentara atingiriam uma violncia que ele dificilmente poderia imaginar. porm o mal-estar na cultura tem seu lado social----o que Freud sabia, embora no o tenha investigado concretamente. possvel falar da claustrofobia das pessoas no mundo administrado, um sentimento de encontrar-se enclausurado numa situao cada vez mais socializada, como uma rede densamente interconectada. Quanto mais densa a rede, mais se procura escapar, ao mesmo tempo em que precisamente a sua densidade impede a sada. Isto aumenta a raiva contra a civilizao. Esta torna-se alvo de uma rebelio violenta e irracional.Um esquema sempre confirmado na histria das perseguies o de que a violncia contra os fracos se dirige principalmente contra os que so considerados socialmente fracos e ao mesmo tempo----seja isto verdade ou no-felizes. De uma perspectiva sociolgica eu ousaria acrescentar que nossa sociedade, ao mesmo tempo em que se integra cada vez mais, gera tendncias de desagregao. Essas tendncias encontram-se bastante desenvolvidas logo abaixo da superfcie da vida civilizada e ordenada. A presso do geral dominante sobre tudo que particular, os homens individualmente e as instituies singulares, tem uma tendncia a destroar o particular e individual juntamente com seu potencial de resistncia. Junto com sua identidade e seu potencial de resistncia, as pessoas tambm perdem suas qualidades, graas a qual tm a capacidade de se contrapor ao que em qualquer tempo novamente seduz ao crime. Talvez elas mal tenham condies de resistir quando lhes ordenado pelas foras estabelecidas que repitam tudo de novo, desde que apenas seja em nome de quaisquer ideais de pouca ou nenhuma credibilidade.Quando falo de educao aps Auschwitz, refiro-me a duas questes: primeiro, educao infantil, sobretudo na primeira infncia; e, alm disto, ao esclarecimento geral, que produz um clima intelectual, cultural e social que no permite tal repetio; portanto, um clima em que os motivos que conduziram ao horror tornem-se de algum modo conscientes. Evidentemente no tenho a pretenso de sequer esboar o projeto de uma educao nesses termos. Contudo, quero ao menos indicar alguns pontos nevrlgicos. Com freqncia por exemplo, nos Estados Unidos - o espirito germnico de confiana na autoridade foi responsabilizado pelo nazismo e tambm por Auschwitz. Considero esta afirmao excessivamente superficial, embora na Alemanha, como em muitos outros pases europeus, comportamentos autoritrios e autoridades cegas perdurem com mais tenacidade sob os pressupostos da democracia formal do que se queira reconhecer. Antes de se supor que o fascismo e o horror que produziu se relacionam com o fato de que as antigas e consolidadas autoridades do imprio haviam rudo e se esfacelado, mas as pessoas ainda no se encontravam psicologicamente preparadas para a autodeterminao. Elas no se revelaram altura da liberdade com que foram presenteadas de repente. por isso que as estruturas de autoridade assumiram aquela dimenso destrutiva e - por assim dizer - de desvario que antes, ou no possuam, ou seguramente no revelavam. Quando lembramos que visitantes de quaisquer potentados. j politicamente desprovidos de qualquer funo real, levam populaes inteiras a exploses de xtase, ento se justifica a suspeita de que o potencial autoritrio permanece muito mais forte do que o imaginado. Porm quero enfatizar com a maior intensidade que o retorno ou no retorno do fascismo constitui em seu aspecto mais decisivo uma questo social e no uma questo psicolgica. Refiro-me tanto ao lado psicolgico somente porque os demais momentos, mais essenciais, em grande medida escapam ao da educao, quando no se subtraem inteiramente interferncia dos indivduos.Freqentemente pessoas bem-intencionadas e que se opem a que tudo acontea de novo citam o conceito de vnculos de compromisso. A ausncia de compromissos das pesssoas seria responsvel pelo que aconteceu. Isto efetivamente tem a ver com a perda da autoridade, uma das condies do pavor sadomasoquista. plausvel para o entendimento humano sadio evocar compromissos que detenham o que sdico, destrutivo, desagregador, mediante um enftico "no deves". Ainda assim considero ser uma iluso imaginar alguma utilidade no apelo a vnculos de compromisso ou at mesmo na exigncia de que se reestabeleam vinculaes de compromisso para que o mundo e as pessoas sejam melhores. A falsidade de compromissos que se exige somente para que provoquem alguma coisa - mesmo que esta seja boa -, sem que eles sejam experimentados por si mesmos como sendo substanciais para as pessoas, percebe-se muito prontamente. E espantosa a rapidez com que at mesmo as pessoas mais ingnuas e tolas reagem quando se trata de descobrir as fraquezas dos superiores. Facilmente os chamados compromissos convertem-se em passaporte moral - so assumidos com o objetivo de identificar-se como cidado confivel - ou ento produzem rancores raivosos psicologicamente contrrios sua destinao original. Eles significam uma heteronomia, um tornar-se dependente de mandamentos, de normas que no so assumidas pela razo prpria do indivduo, O que a psicologia denomina superego, a conscincia moral, substitudo no contexto dos compromissos por autoridades exteriores, sem compromisso, intercambiveis, como foi possvel observar com muita nitidez tambm na Alemanha depois da queda do Terceiro Reich. Porm justamente a disponibilidade em ficar do lado do poder, tomando exteriormente como norma curvar-se ao que mais forte, constitui aquela ndole dos algozes que nunca mais deve ressurgir. Por isto a recomendao dos compromissos to fatal. As pessoas que os assumem mais ou menos livremente so colocadas numa espcie de permanente estado de exceo de comando. O nico poder efetivo contra o princpio de Auschwitz seria autonomia, para usar a expresso kantiana; o poder para a reflexo, a autodeterminao, a no-participao.Certa feita uma experincia me assustou muito: numa viagem ao lago de Constncia, eu lia num jornal de Baden em que se informava acerca da pea Mortos sem sepuItura, de Sartre, que representa as situaes mais terrveis. A pea incomodava visivelmente o critico. Mas ele no explicou este incmodo mediante o horror da coisa que constitui o horror de nosso mundo, mas torceu a questo como se, frente a uma posio como a de Sartre, que se ocupara do problema, ns tivssemos, por assim dizer, um sentido para algo mais nobre: que no poderamos reconhecer a ausncia de sentido do horror. Resumindo: o critico procurava se subtrair ao confronto com o horror graas a um sofisticado palavrrio existencial. O perigo de que tudo acontea de novo est em que no se admite o contato com a questo. rejeitando at mesmo quem apenas a menciona, como se, ao faz-lo sem rodeios, este se tomasse o responsvel, e no os verdadeiros culpados.Em relao ao problema de autoridade e barbrie considero importante um aspecto que geralmente passa quase despercebido. Ele mencionado numa observao do livro O Estado da SS, de Eugen Kogon, que contm abordagens importantes deste todo complexo e que no recebeu a ateno merecida por parte da cincia e da pedagogia. Kogon afirma que os algozes do campo de concentrao em que ele mesmo passou anos eram em sua maioria jovens filhos de camponeses. A diferena cultural ainda persistente entre a cidade e o campo constitui uma das condies do horror, embora certamente no seja nem a nica nem a mais importante. Repudio qualquer sentimento de superioridade em relao populao rural. Sei que ningum tem culpa por nascer na cidade ou se formar no campo. Mas registro apenas que provavelmente no campo o insucesso da desbarbarizao foi ainda maior. Mesmo a televiso e os outros meios de comunicao de massa, ao que tudo indica, no provocaram muitas mudanas na situao de defasagem cultural. Parece-me mais correto afirmar isto e procurar uma mudana do que elogiar de uma maneira nostlgica quaisquer qualidades especiais da vida rural ameaadas de desaparecer. Penso at que a desbarbarizao do campo constitui um dos objetivos educacionais mais importantes. Evidentemente ela pressupe um estudo da conscincia e do inconsciente da respectiva populao. Sobretudo preciso atentar ao impacto dos modernos meios de comunicao de massa sobre um estado de conscincia que ainda no atingiu o nvel do liberalismo cultural burgus do sculo XIX.Para mudar essa situao, o sistema normal de escolarizao, freqentemente bastante problemtico no campo, seria insuficiente. Penso numa srie de possibilidades. Uma seria - estou improvisando - o planejamento de transmisses de televiso atendendo pontos nevrlgicos daquele peculiar estado de conscincia. Alm disto, imagino a formao de grupos e colunas educacionais mveis de voluntrios que se dirijam ao campo e procurem preencher as lacunas mais graves por meio de discusses, de cursos e de ensino suplementar. Naturalmente sei que dificilmente essas pessoas sero muito bem-vistas. Mas com o passar do tempo se estabelecer um pequeno crculo que se impor e que talvez tenha condies de se irradiar.Entretanto no deve haver nenhum mal-entendido quanto inclinao arcaica pela violncia existente tambm nas cidades, principalmente nos grandes centros. Tendncias de regresso - ou seja, pessoas com traos sdicos reprimidos - so produzidas por toda parte pela tendncia social geral. Nessa medida quero lembrar a relao perturbada e patognica com o corpo que Horkheimer e eu descrevemos na Dialtica do esclarecimento. Em cada situao em que a conscincia mutilada, isto se reflete sobre o corpo e a esfera corporal de uma forma no-livre e que propicia violncia. Basta prestar ateno em um certo tipo de pessoa inculta como at mesmo a sua linguagem - principalmente quando algo criticado ou exigido - se torna ameaadora, como se os gestos da fala fossem de uma violncia corporal quase incontrolada. Aqui seria preciso estudai tambm a funo do esporte. que ainda no foi devidamente reconhecida por uma psicologia social crtica. O esporte ambguo: por um lado, ele pode ter um efeito contrrio barbrie e ao sadismo, por intermdio do fairplay, do cavalheirismo e do respeito pelo mais fraco. Por outro, em algumas de suas modalidades e procedimentos, ele pode promover a agresso a brutalidade, o sadismo, principalmente no caso de espectadores que pessoalmente no esto submetidos ao esforo e disciplina do esporte; so aqueles que costumam gritar nos campos esportivos. preciso analisar de uma maneira sistemtica essa ambigidade. Os resultados teriam que ser aplicados vida esportiva na medida da influncia da educao sobre a mesma.Tudo isso se relaciona de um modo ou outro velha estrutura vinculada autoridade, a modos de agir - eu quase diria - do velho e bom carter autoritrio. Mas aquilo que gera Auschwitz, os tipos caractersticos ao mundo de Auschwitz, constituem presumivelmente algo de novo. Por um lado, eles representam a identificao cega com o coletivo. Por outro, so talhados para manipular massas, coletivos, tais como os Himmler, Hss, Eichmann. Considero que o mais importante para enfrentar o perigo de que tudo se repita contrapor-se ao poder cego de todos os coletivos, fortalecendo a resistncia frente aos mesmos por meio do esclarecimento do problema da coletivizao. Isto no to abstrato quanto passa parecer ao entusiasmo participativo. especialmente das pessoas jovens, de conscincia progressista. O ponto de partida poderia estar no sofrimento que os coletivos infligem e se filiam a eles. Basta pensar nas primeiras experincias de cada um na escola. ~ preciso se opor quele tipo de folk-ways, hbitos populares, ritos de iniciao de qualquer espcie, que infligem dor fsica - muitas vezes insuportvel - a uma pessoa como preo do direito de ela se sentir um filiado, um membro do coletivo. A brutalidade de hbitos tais como os trotes de qualquer ordem, ou quaisquer outros costumes arraigados desse tipo, precursora imediata da violncia nazista. No foi por acaso que os nazistas enalteceram e cultivaram tais barbaridades com o nome de "costumes". Eis aqui um campo muito atual para a cincia. Ela poderia inverter decididamente essa tendncia da etnologia encampada com entusiasmo pelos nazistas, para refrear esta sobrevida simultaneamente brutal e fantasmagrica desses divertimentos populares.Tudo isso tem a ver com um pretenso ideal que desempenha um papel relevante na educao tradicional em geral: a severidade. Esta pode at mesmo remeter a uma afirmativa de Nietzsche, por mais humilhante que seja e embora ele na verdade pensasse em outra coisa. Lembro que durante o processo sobre Auschwitz, em um de seus acessos, o terrvel Boger culminou num elogio educao baseada na fora e voltada disciplina. Ela seria necessria para constituir o tipo de homem que lhe parecia adequado. Essa idia educacional da severidade, em que irrefletidamente muitos podem at acreditar, totalmente equivocada. A idia de que a virilidade consiste num grau mximo da capacidade de suportar dor de h muito se converteu em fachada de um masoquismo que - como mostrou a psicologia - se identifica com muita facilidade ao sadismo. O elogiado objetivo de "ser duro" de tal educao significa indiferena contra a dor em geral. No que, inclusive, nem se diferencia tanto a dor do outro e a dor de si prprio. Quem severo consigo mesmo adquire o direito de ser severo tambm com os outros, vingando-se da dor cujas manifestaes precisou ocultar e reprimir. Tanto necessrio tornar consciente esse mecanismo quanto se impe a promoo de uma educao que no premia a dor e a capacidade de suport-la, como acontecia antigamente. Dito de outro modo: a educao precisa levar a srio o que j de h muito do conhecimento da filosofia: que o medo no deve ser reprimido. Quando o medo no reprimido, quando nos permitimos ter realmente tanto medo quanto esta realidade exige, ento justamente por essa via desaparecer provavelmente grande parte dos efeitos deletrios do medo inconsciente e reprimido.Pessoas que se enquadram cegamente em coletivos convertem a si prprios em algo como um material, dissolvendo-se como seres autodeterminados. Isto combina com a disposio de tratar outros como sendo uma massa amorfa. Para os que se comportam dessa maneira utilizei o termo "carter manipulador" em Authoritarian personality (A personalidade autoritria), e isto quando ainda no se conhecia o dirio de Hss ou as anotaes de Eichmann. Minhas descries do carter manipulador datam dos ltimos anos da Segunda Guerra Mundial. s vezes a psicologia social e a sociologia conseguem construir conceitos confirmados empiricamente s muito tempo depois. O carter manipulador - e qualquer um pode acompanhar isto a partir das fontes disponveis acerca desses lideres nazistas - se distingue pela fria organizativa, pela incapacidade total de levar a cabo experincias humanas diretas, por um certo tipo de ausncia de emoes, por um realismo exagerado. A qualquer custo ele procura praticar uma pretensa, embora delirante, realpolitik. Nem por um segundo sequer ele imagina o mundo diferente do que ele , possesso pela vontade de doing things, de fazer coisas, indiferente ao contedo de tais aes. Ele faz do ser atuante, da atividade, da chamada efficiency enquanto tal, um culto, cujo eco ressoa na propaganda do homem ativo. Este tipo encontra-se, entrementes - a crer em minhas observaes e generalizando algumas pesquisas sociolgicas -, muito mais disseminado do que se poderia imaginar. O que outrora era exemplificado apenas por alguns monstros nazistas pode ser constatado hoje a partir de casos numerosos, como delinqentes juvenis, lideres de quadrilhas e tipos semelhantes, diariamente presentes no noticirio. Se fosse obrigado a resumir em uma frmula esse tipo de carter manipulador - o que talvez seja equivocado embora til compreenso - eu o denominaria de o tipo da conscincia coisificada. No comeo as pessoas desse tipo se tornam por assim dizer iguais a coisas. Em seguida, na medida em que o conseguem, tornam os outros iguais a coisas. Isto muito bem traduzido pela expresso aprontar, que goza de igual popularidade entre os valentes juvenis e entre os nazistas. Esta expresso aprontar define as pessoas como sendo coisas aprontadas em seu duplo sentido. Conforme Max Horkheimer, a tortura a adaptao controlada e devidamente acelerada das pessoas aos coletivos. Algo disso encontra-se no espirito da poca, por menos procedente que seja falar em esprito nesses termos. Enfim, resumirei citando Paul Valry, que antes da ltima Guerra Mundial disse que a desumanidade teria um grande futuro. particularmente difcil confrontar esta questo porque aquelas pessoas manipuladoras, no fundo incapazes de fazer experincias, por isto mesmo revelam traos de incomunicabilidade, no que se identificam com certos doentes mentais ou personalidades psicticas.Nas tentativas de atuar contrariamente repetio de Auschwitz pareceu.me fundamental produzir inicialmente uma certa clareza acerca do modo de constituio do carter manipulador, para em seguida poder impedir da melhor maneira possvel a sua formao, pela transformao das condies para tanto. Quero fazer uma proposta concreta: utilizar todos os mtodos cientficos disponveis, em especial psicanlise durante muitos anos, para estudar os culpados por Auschwitz, visando se possvel descobrir como uma pessoa se torna assim. O que aqueles ainda podem fazer de bom contribuir, em contradio com a prpria estrutura de sua personalidade, no sentido de que as coisas no se repitam. E essa contribuio s ocorreria na medida em que colaborassem na investigao de sua gnese. Obviamente seria difcil lev-los a falar; em nenhuma hiptese poder-se-ia aplicar qualquer procedimento semelhante a seus prprios mtodos para aprender como eles se tornaram do jeito que so. De qualquer modo, entrementes eles se sentem - justamente em seu coletivo, com a sensao de que todos so velhos nazistas - to protegidos, que praticamente nenhum demonstrou nem ao menos remorsos. Porm presumivelmente tambm neles, ou em alguns deles, existem pontos de apoio psicolgicos mediante os quais seria possvel mudar isto, como, por exemplo, seu narcisismo, ou, dito simplesmente, seu orgulho. Eles se sentiro importantes ao poder falar livremente a seu respeito, tal como Eichmann, cujas falas aparentemente preenchem fileiras inteiras de volumes. Finalmente, de supor que tambm nessas pessoas, aprofundando-se suficientemente a busca, existam restos da velha instncia da conscincia moral que se encontra atualmente em grande parte em processo de dissoluo. Na medida em que se conhecem as condies internas e externas que os tornaram assim - pressupondo por hiptese que esse conhecimento possvel -, seria possvel tirar concluses prticas que impeam a repetio de Auschwitz. A utilidade ou no de semelhante tentativa s se mostrar aps sua concretizao; no pretendo superestim-la. preciso lembrar que as pessoas no podem ser explicadas automaticamente a partir de condies como estas. Em condies iguais alguns se tornaram assim, e Outros de um jeito bem diferente. Mesmo assim valeria a pena. O mero questionamento de como se ficou assim j encerraria um potencial esclarecedor. Pois um dos momentos do estado de conscincia e de inconscincia daninhos est em que seu ser-assim - que se de um determinado modo e no de outro - apreendido equivocadamente como natureza, como um dado imutvel e no como resultado de uma formao. Mencionei o conceito de conscincia coisificada. Esta sobretudo uma conscincia que se defende em relao a qualquer vir-a-ser, frente a qualquer apreenso do prprio condicionamento, impondo como sendo absoluto o que existe de um determinado modo. Acredito que o rompimento desse mecanismo impositivo seria recompensador.No que diz respeito conscincia coisificada, alm disto preciso examinar tambm a relao com a tcnica, sem restringir-se a pequenos grupos. Esta relao to ambgua quanto a do esporte, com que alis tem afinidade. Por um lado, certo que todas as pocas produzem as personalidades - tipos de distribuio da energia psquica- de que necessitam socialrnente. Um mundo em que a tcnica ocupa uma posio to decisiva como acontece atualmente, gera pessoas tecnolgicas, afinadas com a tcnica. Isto tem a sua racionalidade boa: em seu plano mais restrito elas sero menos influenciveis, com as correspondentes conseqncias no plano geral. Por outro lado, na relao atual com a tcnica existe algo de exagerado, irracional, patognico. Isto se vincula ao "vu tecnolgico". Os homens inclinam-se a considerar a tcnica como sendo algo em si mesma, um fim em si mesmo, uma fora prpria, esquecendo que ela a extenso do brao dos homens. Os meios - e a tcnica um conceito de meios dirigidos autoconservao da espcie humana - so fetichizados, porque os fins - uma vida humana digna - encontram-se encobertos e desconectados da conscincia das pessoas. Afirmaes gerais como estas so at convincentes. Porm tal hiptese ainda excessivamente abstrata. No se sabe com certeza como se verifica a fetichizao da tcnica na psicologia individual dos indivduos, onde est o ponto de transio entre uma relao racional com ela e aquela supervalorizao, que leva, em ltima anlise, quem projeta um sistema ferrovirio para conduzir as vitimas a Auschwitz com maior rapidez e fluncia, a esquecer o que acontece com estas vtimas em Auschwitz. No caso do tipo com tendncias fetichizao da tcnica, trata-se simplesmente de pessoas incapazes de amar. Isto no deve ser entendido num sentido sentimental ou moralizante, mas denotando a carente relao libidinal com Outras pessoas. Elas so inteiramente frias e precisam negar tambm em seu ntimo a possibilidade do amor, recusando de antemo nas outras pessoas o seu amor antes que o mesmo se instale. A capacidade de amar, que de alguma maneira sobrevive, eles precisam aplic-la aos meios. As personalidades preconceituosas e vinculadas autoridade com que nos ocupamos em Authoritarian Personality, em Berkeley, forneceram muitas evidncias neste sentido. Um sujeito experimental - e a prpria expresso j do repertrio da conscincia coisificada afirmava de si mesmo: "I like nice equipament" (Eu gosto de equipamentos, de instrumentos bonitos), independentemente dos equipamentos em questo. Seu amor era absorvido por coisas, mquinas enquanto tais. O perturbador - porque torna to desesperanoso atuar contrariamente a isso - que esta tendncia de desenvolvimento encontra-se vinculada ao conjunto da civilizao. Combat-lo significa o mesmo que ser contra o esprito do mundo; e desta maneira apenas repito algo que apresentei no comeo como sendo o aspecto mais obscuro de uma educao contra Auschwitz.Afirmei que aquelas pessoas eram frias de um modo peculiar. Aqui vm a propsito algumas palavras acerca da frieza. Se ela no fosse um trao bsico da antropologia, e, portanto, da constituio humana como ela realmente em nossa sociedade; se as pessoas no fossem profundamente indiferentes em relao ao que acontece com todas as outras, executando o punhado com que mantm vnculos estreitos e possivelmente por intermdio de alguns interesses concretos, ento Auschwitz no teria sido possvel, as pessoas no o teriam aceito. Em sua configurao atual - e provavelmente h milnios - a sociedade no repousa em atrao, em simpatia, como se sups ideologicamente desde Aristteles, mas na persecuo dos prprios interesses frente aos interesses dos demais. Isto se sedimentou do modo mais profundo no carter das pessoas. O que contradiz, o impulso grupal da chamada lonely crowd, da massa solitria, na verdade constitui uma reao, um enturmar-se de pessoas frias que no suportam a prpria frieza mas nada podem fazer para alter-la. Hoje em dia qualquer pessoa, sem exceo, se sente mal-amada, porque cada um deficiente na capacidade de amar. A incapacidade para a identificao foi sem dvida a condio psicolgica mais importante para tornar possvel algo como Auschwitz em meio a pessoas mais ou menos civilizadas e inofensivas. O que se chama de "participao oportunista" era antes de mais nada interesse prtico: perceber antes de tudo a sua prpria vantagem e no dar com a lngua nos dentes para no se prejudicar. Esta uma lei geral do existente. O silncio sob o terror era apenas a conseqncia disto. A frieza da mnada social, do concorrente isolado, constitua, enquanto indiferena frente ao destino do outro, o pressuposto para que apenas alguns raros se mobilizassem. Os algozes sabem disto; e repetidamente precisam se assegurar disto.No me entendam mal. No quero pregar o amor. Penso que sua pregao v: ningum teria inclusive o direito de preg-lo, porque a deficincia de amor, repito, uma deficincia de todas as pessoas, sem exceo, nos termos em que existem hoje. Pregar o amor pressupe naqueles a quem nos dirigimos outra estrutura do carter, diferente da que pretendemos transformar. Pois as pessoas que devemos amar so elas prprias incapazes de amar e por isto nem so to amveis assim. Um dos grandes impulsos do cristianismo, a no ser confundido com o dogma, foi apagar a frieza que tudo penetra. Mas esta tentativa fracassou; possivelmente porque no mexeu com a ordem social que produz e reproduz a frieza. Provavelmente at hoje nunca existiu aquele calor humano que todos almejamos, a no ser durante perodos breves e em grupos bastante restritos, e talvez entre alguns selvagens pacficos. Os utpicos freqentemente ridicularizados perceberam isto. Charles Fourier, por exemplo, definiu a atrao como algo ainda por ser constitudo por uma ordem social digna de um ponto de vista humano. Tambm reconheceu que esta situao s seria possvel quando os instintos no fossem mais reprimidos, mas satisfeitos e liberados. Se existe algo que pode ajudar contra a frieza como condio da desgraa, ento trata-se do conhecimento dos prprios pressupostos desta, bem como da tentativa de trabalhar previamente no plano individual contra esses pressupostos. Agrada pensar que a chance tanto maior quanto menos se erra na infncia, quanto melhor so tratadas as crianas. Mas mesmo aqui pode haver iluses. Crianas que no suspeitam nada da crueldade e da dureza da vida acabam por ser particularmente expostas barbrie depois que deixam de ser protegidas. Mas, sobretudo, no possvel mobilizar para o calor humano pais que so, eles prprios, produtos desta sociedade, cujas marcas ostentam. O apelo a dar mais calor humano s crianas artificial e por isto acaba negando o prprio calor. Alm disto o amor no pode ser exigido em relaes profissionalmente intermediadas, como entre professor e aluno, mdico e paciente, advogado e cliente. Ele algo direto e contraditrio com relaes que em sua essncia so intermediadas. O incentivo ao amor - provavelmente na forma mais imperativa, de um dever - constitui ele prprio parte de uma ideologia que perpetua a frieza. Ele combina com o que impositivo, opressor, que atua contrariamente capacidade de amar. Por isto o primeiro passo seria ajudar a frieza a adquirir conscincia de si prpria, das razes pelas quais foi gerada.Para terminar gostaria ainda de discorrer brevemente a respeito de algumas possibilidades de conscientizao dos mecanismos subjetivos em geral, sem os quais Auschwitz dificilmente aconteceria. O conhecimento desses mecanismos uma necessidade; da mesma forma tambm o o conhecimento da defesa estereotipada, que bloqueia uma tal conscincia. Quem ainda insiste em afirmar que o acontecido nem foi to grave assim j est defendendo o que ocorreu, e sem dvida seria capaz de assistir ou colaborar se tudo acontecesse de novo. Mesmo que o esclarecimento racional no dissolva diretamente os mecanismos inconscientes - conforme ensina o conhecimento preciso da psicologia - ele ao menos fortalece na pr-conscincia determinadas instncias de resistncia, ajudando a criar um clima desfavorvel ao extremismo. Se a conscincia cultural em seu conjunto fosse efetivamente perpassada pela premonio do carter patognico dos traos que se revelaram com clareza em Auschwitz, talvez as pessoas tivessem evitado melhor aqueles traos.Alm disso seria necessrio esclarecer quanto possibilidade de haver um outro direcionamento para a fria ocorrida em Auschwitz. Amanh pode ser a vez de outro grupo que no os judeus, por exemplo os idosos, que escaparam por pouco no Terceiro Reich, ou os intelectuais, ou simplesmente alguns grupos divergentes. O clima - e quero enfatizar esta questo - mais favorvel a um tal ressurgimento o nacionalismo ressurgente. Ele to raivoso justamente porque nesta poca de comunicaes internacionais e de blocos supranacionais j no mais to convicto, obrigando-se ao exagero desmesurado para convencer a si e aos outros que ainda tm substncia.De qualquer modo, haveria que mostrar as possibilidades concretas da resistncia. Por exemplo, a histria dos assassinatos por eutansia, que acabaram no sendo cometidos na dimenso pretendida pelos nazistas na Alemanha, graas resistncia manifestada. A resistncia limitava-se ao prprio grupo; e justamente este um sintoma bastante notvel e amplo da frieza geral. Alm de tudo, porm, ela limitada tambm em face da insaciabilidade presente no princpio das perseguies. Em ltima instncia, qualquer pessoa no-pertencente ao grupo perseguidor pode ser atingida; portanto, existe um interesse egosta drstico a que se poderia apelar. Enfim, seria necessrio indagar pelas condies especficas, histricas, das perseguies. Em uma poca em que o nacionalismo antiquado, os chamados movimentos de renovao nacional so, ao que tudo indica, particularmente sujeitos a prticas sdicas.Finalmente, o centro de toda educao poltica deveria ser que Auschwitz no se repita. Isto s ser possvel na medida em que ela se ocupe da mais importante das questes sem receio de contrariar quaisquer potncias. Para isto teria de se transformar em sociologia, informando acerca do jogo de foras localizado por trs da superfcie das formas polticas. Seria preciso tratar criticamente um conceito to respeitvel como o da razo de Estado, para citar apenas um modelo: na medida em que colocamos o direito do Estado acima do de seus integrantes, o terror j passa a estar potencialmente presente.Em Paris, durante a emigrao, quando eu ainda retornava esporadicamente Alemanha, certa vez Walter Benjamin me perguntou se ali ainda havia algozes em nmero suficiente para executar o que os nazistas ordenavam. Havia. Apesar disto a pergunta profundamente justificvel. Benjamm percebeu que, ao contrrio dos assassinos de gabinete e dos idelogos, as pessoas que executam as tarefas agem em contradio com seus prprios interesses imediatos, so assassinas de si mesmas na medida em que assassinam os outros. Temo que ser difcil evitar o reaparecimento de assassinos de gabinete, por mais abrangentes que sejam as medidas educacionais. Mas que haja pessoas que, em posies subalternas, enquanto serviais, faam coisas que perpetuam sua prpria servido, tornando-as indignas; que continue a haver Bojeis e Kaduks, contra isto possvel empreender algo mediante a educao e o esclarecimento.

Traduo: Wolfgang Leo MaarFonte: http://adorno.planetaclix.pt/tadorno10.htm