Eduardo Viveiros de Castro - Antropologia e imaginação da indisciplinaridade

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Antropologia e imaginao da indisciplinaridade Conferncia proferida nos Instituto de Estudos Avanados Transdisciplinares (UFMG) em 18/05/2005, em Belo Horizonte-MG. Disponvel em http://www.ufmg.br/ieat/index.php?option=com_content&task=view&id=114&Itemid=193. Acesso em 04/11/2011.

Eduardo Viveiros de Castro

Passei a metade do meu tempo, nas ltimas semanas, me perguntando por que os responsveis por esta conferncia decidiram me conceder a honra esmagadora de me convidar a falar a vocs nesta ocasio. E passei a outra metade do tempo me perguntando por que tive a temeridade de aceitar tal convite. Acabei por concluir que a resposta a ambas as questes , provavelmente, a mesma: tanto nossos anfitries como eu gostamos de viver perigosamente. Pois suspeito que o Professor Alfredo Gontijo e seus colegas do IEAT estiveram buscando a pessoa a mais improvvel para falar em uma conferncia magna sob a gide de um Instituto de Estudos Avanados Transdisciplinares: algum, digamos, como um acadmico brasileiro que no pratica uma antropologia especialmente cientfica ou transdisciplinar, que jamais realizou qualquer estudo antropolgico da cincia ou sequer procurou se instruir seriamente sobre os fenmenos estudados pelas cincias da complexidade, linha de frente do motivo da transdisciplinaridade, e que, alm disso, estuda sociedades que a prpria antropologia sempre rotulou ( verdade que muito indevidamente) de, justamente, simples. S me resta esperar, portanto, que meus anfitries imediatos, e os colegas da antropologia da UFMG que tiveram a bondade de sugerir meu nome ao IEAT, no tenham ido longe demais no desejo de surpreender vocs.

Mas aceitei o desafio de tentar entret-los com algumas amenidades em torno de um tema: 'A antropologia como cincia da indisciplinaridade' porque entendo que minha disciplina, se no pode pretender necessariamente a ocupar um lugar de destaque dentro deste grande horizonte em movimento que a transdisciplinaridade, pode ao menos fazer valer seus direitos de cincia indisciplinada, fundada como foi no sc. XIX por marginais estrutura disciplinar da academia de ento (juristas trnsfugas, advogados excntricos, classicistas pouco clssicos, mdicos de provncia, ou pior, de colnias distantes, fsicos desertores de suas carreiras, filsofos desiludidos, e assim por diante), e voltada como sempre esteve at bem pouco tempo atrs para o estudo de sociedades generalizadas, no-especializadas em domnios institucionais e esferas de saber-competncia, isto , indisciplinares; e, de quebra, com uma forte tendncia indisciplina, no sentido poltico do termo, na medida em que refratrias ao Um.

Todos aqui se recordam das famosas ltimas palavras de do livro fundador da antropologia, o Primitive Culture de Edward Tylor (1871): nossa disciplina seria uma cincia de reformadores, isto , uma empresa como aquela mostrada na comdia Ghostbusters, dedicada a identificar e exterminar a superstio onde quer ela se ache. Mais tarde, aprendemos a funcionalizar e racionalizar a superstio, mostrando que ela era apenas uma sociologia que se ignorava, ou um efeito colateral evolucionrio da estrutura cognitiva de nossa espcie. Seja l como for, o fato de que sempre nos definimos, oficial ou oficiosamente, como a cincia da no-cincia d ao recente interesse por uma 'antropologia da cincia' uma significao reflexiva que extravaza de muito essa sub-especialidade. O mal-estar que a idia de uma descrio antropolgica da atividade cientfica suscita, e no s entre os praticantes das cincias-objeto, mas entre muitos antroplogos, atesta que somos vistos, e que talvez nos vejamos, como uma raa maldita de anti-Midas que transformam tudo o que tocam em erro, iluso, mito, ideologia. Quando a cincia dos reformadores comea a dirigir seu olhar para a cincia em geral, portanto, perigo vista: esta ltima est em vias de ser denunciada como mais uma forma de superstio. Foi assim que comearam as assim-chamadas Guerras das Cincias, ou Guerra das Culturas, em que os antroplogos estiveram entre os principais acusados com base em evidncias, como sempre, algo fabricadas de possuir armas de destruio em massa, quero dizer, de desconstruo em massa.

claro que no deveria ser assim, mas o contrrio. O que a antropologia da cincia deveria nos estar ensinando, e, para mim ao menos, esta sua principal lio, que impossvel continuar a praticar nossa disciplina dentro de uma economia do conhecimento onde o conceito antropolgico uma sorte de mais-valia extrada pelo observador a partir do trabalho existencial da vida do observado.

O que se segue uma tentativa de tornar isso mais claro.

"Certamente no falo aqui por todos de minha gerao, aquela que chegou idade adulta por volta de 1968; mas para muitos de ns a antropologia era, e continua sendo, o exato oposto de uma cincia de reformadores ou de uma polcia da razo. Era uma cincia insurreicionria; mais especificamente, era o instrumento de uma certa utopia revolucionria que lutava pela auto-determinao conceitual de todas as minorias do planeta, luta que vamos como um acompanhamento indispensvel auto-determinao poltica dessas minorias. No caso dos antroplogos brasileiros, isso possua uma dimenso de urgncia muito especial: tratava-se de dar ao processo de constituio das minorias indgenas de meu pas como agentes polticos, iniciado no comeo dos anos 70, uma dimenso propriamente intelectual, isto , radical, fazendo com que o pensamento dos povos americanos sasse do gueto em que jazia encerrado desde o sculo XVI, Nessa luta poltico-cultural, que se pode imaginar como sendo essencialmente um esforo de criao de multiplicidade (isto , de uma descriao de imperialidades), a obra de Lvi-Strauss foi de uma enorme importncia, pois foi pela mediao de Lvi-Strauss que o estilo intelectual das sociedades amerndias ficou pela primeira vez em posio de modificar os termos da reflexo antropolgica geral. Para ns, em suma, o clebre ttulo lvi-straussiano La pense sauvage no se referia de modo algum mentalidade dos selvagens, mas ao pensamento insubmisso, o pensamento irredento, o pensamento indisciplinado. O Pensamento contra o Estado, se quisermos.Sem dvida, ramos todos mais ou menos hippies; ramos primitivistas e anarquistas, e essencialistas, e tnhamos talvez um senso algo inflado da importncia da antropologia, e ramos valgo propensos ao exotismo. Mas no ramos to ingnuos assim: nosso primitivismo era um desejo de autotransformao; nosso anarquismo no precisa nem de desculpa nem de explicao; nosso essencialismo era estratgico (mas claro); e quanto ao exotismo, bem, aqueles eram tempos estranhos, em que o conceito de Outro designava um valor radicalmente positivo, e o de Eu, uma posio detestvel.Compreendo a antropologia como consistentemente guiada por este valor cardinal: ajudar a criar as condies para a autodeterminao conceitual do povo, isto , dos povos. Seu sucesso ou seu fracasso como cincia sero julgados por isso, e no, ao contrrio do que profetizam ou desejam alguns de seus ex-praticantes, por sua solicitude em se auto-extinguir e dividir seu legado entre uma psicologia neo-evolucionista e uma histria neo-difusionista. Talvez, alis, esteja chegando a hora de reinventarmos uma antropologia social neo-funcionalista? Pois vivemos um momento na histria da disciplina em que parece cada vez mais necessrio reafirmar a dimenso prpria de realidade visada pela antropologia: uma realidade coletiva, isto , relacional, e que possui uma propenso estabilidade transcontextual da forma. Acredito que a antropologia deva escapar da diviso e permanecer no mundo do meio, o mundo das relaes sociais.Nesse caminho, entretanto h pelos menos dois pontos de hesitao, que gostaria de comentar. O primeiro diz respeito epistemologia poltica da disciplina, e necessidade de tornar reflexiva a noo de antropologia simtrica (torn-la, digamos, super-simtrica); o segundo diz respeito ausncia de um conceito propriamente antropolgico de conceito, ou, o que o mesmo, falta de uma teoria antropolgica da imaginao.

***

O antroplogo algum que discorre sobre o discurso de um nativo. O nativo no precisa ser especialmente selvagem, ou tradicionalista, tampouco natural do lugar onde o antroplogo o encontra; o antroplogo no precisa ser excessivamente civilizado, ou modernista, sequer estrangeiro ao povo sobre o qual discorre. Os discursos, o do antroplogo e sobretudo o do nativo, no so forosamente textos: so quaisquer prticas de sentido. O essencial que o discurso do antroplogo (o observador) estabelea uma certa relao com o discurso do nativo (o observado). Essa relao uma relao de sentido, ou, como se diz quando o primeiro discurso pretende Cincia, uma relao de conhecimento.

Tal relao no de identidade: o antroplogo sempre diz, e portanto faz, outra coisa que o nativo, mesmo que pretenda no fazer mais que redizer textualmente o discurso deste, ou que tente dialogar noo duvidosa com ele.

A alteridade discursiva se apia, est claro, em um pressuposto de semelhana. O antroplogo e o nativo so entidades de mesma espcie e condio: so ambos humanos, e esto ambos instalados em suas culturas respectivas, que podem, eventualmente, ser a mesma. Mas aqui que o jogo comea a ficar interessante, ou melhor, estranho. Ainda quando o antroplogo e o nativo compartilham a mesma cultura, a relao de sentido entre os dois discursos diferencia tal comunidade: a relao do antroplogo com sua cultura e a do nativo com a dele no exatamente a mesma. O que faz do nativo um nativo a pressuposio, por parte do antroplogo, de que a relao do primeiro com sua cultura natural, isto , intrnseca e espontnea, e, se possvel, no-reflexiva ou implcita; melhor ainda se for inconsciente. O nativo exprime sua cultura em seu discurso; o antroplogo tambm, mas, se ele pretende ser outra coisa que um nativo, deve poder exprimir sua cultura culturalmente, isto , reflexiva, condicional e conscientemente. O antroplogo usa necessariamente sua cultura; o nativo suficientemente usado pela sua.

Tal diferena, ocioso lembrar, no reside na assim chamada natureza das coisas; ela prpria do jogo de linguagem que vamos descrevendo, e define as personagens designadas como o antroplogo e o nativo. Vejamos mais algumas regras desse jogo.

A idia antropolgica de cultura coloca o antroplogo em posio de igualdade com o nativo, ao implicar que todo conhecimento antropolgico de outra cultura culturalmente mediado. Tal igualdade porm, em primeira instncia, simplesmente emprica ou de fato: ela diz respeito condio cultural comum (no sentido de genrica) do antroplogo e do nativo. Ela no implica uma igualdade de direito uma igualdade no plano do conhecimento. O antroplogo tem usualmente uma vantagem epistemolgica sobre o nativo. O discurso do primeiro no se acha situado no mesmo plano que o discurso do segundo: o sentido que o antroplogo estabelece depende do sentido nativo, mas ele quem detm o sentido desse sentido ele quem explica e interpreta, traduz e introduz, textualiza e contextualiza, justifica e significa esse sentido. A matriz relacional do discurso antropolgico hilemrfica: o sentido do antroplogo forma; o do nativo, matria. O discurso do nativo no detm o sentido de seu prprio sentido. De fato, como diria Geertz, somos todos nativos; mas de direito, uns sempre so mais nativos que outros.

Proponho a vocs as perguntas seguintes. O que acontece se recusarmos ao discurso do antroplogo sua vantagem estratgica sobre o discurso do nativo? O que se passa quando o discurso do nativo funciona, dentro do discurso do antroplogo, de modo a produzir reciprocamente um efeito de conhecimento sobre este discurso? Quando a forma intrnseca matria do primeiro modifica a matria implcita na forma do segundo? Tradutor, traidor, diz-se; mas o que acontece se o tradutor decidir trair sua prpria lngua? O que sucede se, insatisfeitos com a mera igualdade passiva, ou de fato, entre os sujeitos desses discursos, reivindicarmos uma igualdade ativa, ou de direito, entre os discursos eles mesmos? O que muda, em suma, quando a antropologia tomada como uma prtica de sentido em continuidade epistmica com as prticas sobre que discorre, como equivalente a elas? Isto , quando aplicamos a noo de antropologia simtrica antropologia ela prpria, no para fulmin-la por colonialista, exorcizar seu exotismo, minar seu campo intelectual, mas para faz-la dizer outra coisa? Outra coisa no apenas que o discurso do nativo, pois isso o que a antropologia no pode deixar de fazer, mas outra que o discurso, em geral sussurrado, que o antroplogo enuncia sobre si mesmo, ao discorrer sobre o discurso do nativo?

Se fizermos tudo isso, eu diria que estaremos fazendo o que sempre se chamou propriamente de antropologia, em vez de por exemplo sociologia ou psicologia. Digo apenas diria, porque muito do que se fez e faz sob esse nome supe, ao contrrio, que o antroplogo aquele que detm a posse eminente das razes que a razo do nativo desconhece. Ele tem a cincia das doses precisas de universalidade e particularidade contida no nativo, e das iluses que este entretm a respeito de si prprio ora manifestando sua cultura nativa acreditando manifestar a natureza humana (o nativo ideologiza sem saber), ora manifestando a natureza humana acreditando manifestar sua cultura nativa (ele cogniza revelia). (Via de regra, supe-se que o nativo faz, sem saber o que faz, as duas coisas a raciocinao natural e a racionalizao cultural , em fases, registros ou situaes diferentes de sua vida. As iluses do nativo so, acrescente-se, tidas por necessrias, no duplo sentido de inevitveis e teis; so, diro outros, evolucionariamente adaptativas. tal necessidade que define o nativo, e o distingue do antroplogo: este pode errar, mas aquele precisa se iludir.)

Assim, o antroplogo conhece de jure o nativo, ainda que possa desconhec-lo de facto. Quando se vai do nativo ao antroplogo, d-se o contrrio: ainda que ele conhea de facto o antroplogo (frequentemente melhor do que este o conhece), no o conhece de jure, pois o nativo no , justamente, antroplogo como o antroplogo. A cincia do antroplogo de outra ordem que a cincia do nativo, e precisa s-lo: a condio de possibilidade da primeira a deslegitimao das pretenses da segunda, seu epistemocdio, no forte dizer de Bob Scholte. O conhecimento por parte do sujeito exige o desconhecimento por parte do objeto.

Mas no realmente preciso fazer um drama a respeito disso. Como atesta a histria da disciplina, esse jogo discursivo, com tais regras desiguais, disse muita coisa instrutiva sobre os nativos. Mas a experincia aqui proposta, entretanto, consiste precisamente em recus-lo. No porque tal jogo produza resultados objetivamente falsos, isto , represente de modo errneo a natureza do nativo. Uma vez dados os objetos que o jogo clssico se d, seus resultados so frequentemente convincentes, ou pelo menos, como gostam de dizer os adeptos desse jogo, plausveis. Recusar esse jogo significa apenas dar-se outros objetos, compatveis com as outras regras acima esboadas.O que estou sugerindo, em poucas palavras, a necessidade de escolher entre duas concepes da antropologia. De um lado, temos uma imagem do conhecimento antropolgico como resultando da aplicao de conceitos extrnsecos ao objeto: sabemos de antemo o que so as relaes sociais, ou a cognio, o parentesco, a religio, a poltica etc., e vamos ver como tais entidades se realizam neste ou naquele contexto etnogrfico como elas se realizam, claro, pelas costas dos interessados. De outro lado (e este o jogo aqui proposto), est uma idia do conhecimento antropolgico como envolvendo a pressuposio fundamental de que os procedimentos que caracterizam a investigao so conceitualmente de mesma ordem que os procedimentos investigados. Tal equivalncia no plano dos procedimentos, sublinhe-se, supe e produz uma no-equivalncia radical de tudo o mais. Pois, se a primeira concepo de antropologia imagina cada cultura ou sociedade como encarnando uma soluo especfica de um problema genrico ou como preenchendo uma forma universal (o conceito antropolgico) com um contedo particular , a segunda, ao contrrio, suspeita que os problemas eles mesmos so radicalmente diversos; sobretudo, ela parte do princpio de que o antroplogo no sabe de antemo quais so eles. O que a antropologia, nesse caso, pe em relao so problemas diferentes, no um problema nico (natural) e suas diferentes solues (culturais). A arte da antropologia, penso eu, a arte de determinar os problemas postos por cada cultura, no a de achar solues para os problemas postos pela nossa. Esta foi uma das lies mais importantes que creio ter aprendido com minha colega Marilyn Strathern. E exatamente por isso que o postulado da continuidade dos procedimentos um imperativo epistemolgico.

Dos procedimentos, repito, no dos que os levam a cabo. Pois tampouco se trata de condenar o jogo clssico por produzir resultados subjetivamente falseados, ao no reconhecer ao nativo sua condio de Sujeito: ao mir-lo com um olhar distanciado e carente de empatia, constru-lo como um objeto extico, diminu-lo como um primitivo no-coevo ao observador, negar-lhe o direito humano interlocuo conhece-se a litania. No nada disso. Antes pelo contrrio, penso. justo porque o antroplogo toma o nativo muito facilmente por um outro sujeito que ele no consegue v-lo como um sujeito outro, como uma figura de Outrem que, antes de ser sujeito ou objeto, a expresso de um mundo possvel. por no aceitar a condio de no-sujeito (no sentido de outro que o sujeito) do nativo que o antroplogo introduz, sob a capa de uma proclamada igualdade de fato com este, sua sorrateira vantagem de direito. Ele sabe demais sobre o nativo desde antes do incio da partida; ele predefine e circunscreve os mundos possveis expressos por esse outrem; a alteridade de outrem foi radicalmente separada de sua capacidade de alterao. O autntico animista o antroplogo, e a observao participante a verdadeira (ou seja, falsa) participao primitiva.

O problema no est, portanto, em ver o nativo como objeto, e a soluo no reside em p-lo como sujeito. Que o nativo seja um sujeito, no h a menor dvida; mas o que pode ser um sujeito, eis precisamente o que o nativo obriga o antroplogo a pr em dvida. Tal a cogitao especificamente antropolgica; s ela permite antropologia assumir a presena virtual de Outrem que sua condio, e que determina as posies derivadas e vicrias de sujeito e de objeto.

Evoquei a distino criticista entre o quid facti e o quid juris. Ela me pareceu til porque o primeiro problema a resolver consiste nessa avaliao da pretenso ao conhecimento implcita no discurso do antroplogo. Tal problema no cognitivo, ou seja, psicolgico; no concerne possibilidade emprica do conhecimento de uma outra cultura. Ele epistemolgico, isto , poltico. Ele diz respeito questo propriamente transcendental da legitimidade atribuda aos discursos que entram em relao de conhecimento, e, em particular, s relaes de ordem que se decide estatuir entre estes discursos, que certamente no so inatas, como tampouco o so seus plos de enunciao. Ningum nasce antroplogo, e menos ainda, por curioso que parea, nativo.

***A antropologia tal como a entendo, dizia eu acima, comea por afirmar a equivalncia de direito entre os discursos do antroplogo e do nativo, bem como a condio mutuamente constituinte desses discursos, que s acedem como tais existncia ao entrarem em relao de conhecimento. Os conceitos antropolgicos atualizam tal relao, no sendo, por isso, nem reflexos verdicos da cultura do nativo (o sonho positivista), nem projees ilusrias da cultura do antroplogo (o pesadelo construcionista). O que eles refletem uma certa relao de inteligibilidade entre as duas culturas, e o que eles projetam so as duas culturas como seus pressupostos imaginados. Eles operam, com isso, uma dupla desterritorializao: so interfaces transcontextuais cuja funo representar, no sentido diplomtico do termo, o outro no seio do mesmo, l como c. Por isso, o debate interminvel sobre a universalidade ou no de certos conceitos e oposies parece-me de escasso interesse. Pior que interminvel, esse debate indeterminvel: tudo, afinal, relativamente universal. O verdadeiro problema o de saber quais as relaes possveis entre nossas prticas de descrio e as empregadas por outros povos. H vrias relaes possveis, sem dvida; mas h uma relao impossvel: a ausncia de relao. No podemos apreender essas outras prticas outras culturas em termos absolutos; podemos apenas tentar explicitar algumas de nossas relaes implcitas com elas, ou seja, apreend-las relativamente a nossas prticas de descrio. Universalizar a metafsica crist do corpo e da alma, a teoria moderna do contrato social ou a biopoltica contempornea do parentesco um dos modos de se fazer exatamente isso de relacionar. Um modo, diga-se, bem pouco imaginativo. Mas a alternativa no pode ser a fantasia de uma intuio intelectual das outras formas de vida em seus prprios termos, pois no existem termos prprios, apenas outros termos. Os termos deles s se determinam como tais em relao aos nossos termos, e reciprocamente. Toda determinao relao. Nada absolutamente universal, no porque algo seja relativamente particular, mas porque tudo relacional. Isso perfeitamente bvio, dir-se-. Por certo; uma coisa, porm, admitir o bvio, outra tirar-lhe as devidas conseqncias.

Os conceitos antropolgicos, em suma, so relativos porque so relacionais e so relacionais porque so relatores. Tal origem e funo costuma vir marcada na assinatura caracterstica desses conceitos por uma palavra estranha: mana, totem, kula, potlatch, tabu, gumsa/gumlao Outros conceitos, no menos autnticos, portam uma assinatura etimolgica que evoca antes as analogias entre a tradio cultural de onde emergiu a disciplina e as tradies que so seu objeto: dom, sacrifcio, parentesco, pessoa Outros, enfim, igualmente legtimos, so invenes vocabulares que procuram generalizar dispositivos conceituais dos povos estudados animismo, oposio segmentar, troca restrita, cismognese , ou, inversamente, e aqui bem mais problematicamente, desviam para o interior de uma economia terica especfica certas noes difusas de nossa tradio proibio do incesto, gnero, smbolo, cultura , buscando universaliz-las.

Vemos ento que numerosos conceitos, problemas, entidades e agentes propostos pelas teorias antropolgicas tm sua origem no esforo imaginativo das sociedades mesmas que elas pretendem explicar. No estaria a a originalidade irredutvel da antropologia, nesta sinergia entre as concepes e prticas provenientes dos mundos do sujeito e do objeto? Reconhecer isso ajudaria, entre outras coisas, a mitigar nosso complexo de inferioridade frente s cincias naturais. Como observa Bruno Latour:

The description of kula is on a par with that of the black holes. The complex systems of social alliances are as imaginative as the complex scnearios c onceived for the selfish genes. Understanding the theology of Australian Aborigines is as important as charting the great undersea rifts. The Trobriand land tenure system is as interesting a scientific objective as the polar icecap drilling. If we talk about what matters in a definition of science innovation in the agencies that furnish our world anthropology might well be close to the top of the disciplinary pecking order.

Essa observao foi feita em um debate proposto pela American Anthropological Association sobre Cincia e antropologia, em 1996. Muito bem. A analogia feita nessa passagem entre as concepes indgenas e os objetos das cincias ditas naturais. Esta uma perspectiva possvel, e mesmo necessria: deve-se poder produzir uma descrio cientfica das idias e prticas indgenas, como se fossem objetos do mundo, ou melhor, para que sejam objetos do mundo. ( preciso no esquecer que os objetos cientficos de Latour so tudo menos entidades objetivas e indiferentes, pacientemente espera de uma descrio.) Outra estratgia possvel a de comparar as concepes indgenas s teorias cientficas, como o fez, por exemplo, Robin Horton, segundo sua tese da similaridade. Outra ainda, todavia, a estratgia aqui advogada. Cuido que a antropologia sempre andou demasiado obcecada com a Cincia, no s em relao a si mesma se ela ou no, pode ou no, deve ou no ser uma cincia , como sobretudo, e este o real problema, em relao s concepes dos povos que estuda: seja para desqualific-las como erro, sonho, iluso, e em seguida explicar cientificamente como e por que os outros no conseguem (se) explicar cientificamente; seja para promov-las como mais ou menos homogneas cincia, frutos de uma mesma vontade de saber consubstancial humanidade: assim a similaridade de Horton, assim a cincia do concreto de Lvi-Strauss. A imagem da cincia, essa espcie de padro-ouro do pensamento, no porm o nico terreno, nem necessariamente o melhor, em que podemos nos relacionar com a atividade intelectual dos povos estrangeiros tradio ocidental. Se me permitem a metfora financeira, eu diria que talvez seja mais interessante mantermos flutuantes as taxas mundiais de intercmbio conceitual, dispensando a relquia brbara do mononaturalismo, isto , o lastro essencializante de uma ontologia nica ( qual a cincia teria uma acesso privilegiado) capaz de garantir a converso das diversas epistemologias. Deixemos as taxas flutuar.

Imagine-se assim uma outra analogia que a de Latour. Em lugar de tomar as concepes indgenas como entidades semelhantes aos buracos negros ou s falhas tectnicas, tomemo-las como algo de mesma ordem que o cogito ou a mnada. Diramos ento, parafraseando a citao acima, que o conceito melansio da pessoa como divduo (M. Strathern) to imaginativo como o individualismo possessivo de Locke; que compreender a filosofia da chefia amerndia (P. Clastres) to importante quanto comentar a doutrina hegeliana do Estado; que a cosmogonia maori se equipara aos paradoxos eleticos e s antinomias kantianas (G. Schrempp); que o perspectivismo amaznico um objetivo filosfico to interessante como compreender o sistema de Leibniz E se a questo saber o que importa na avaliao de uma filosofia sua capacidade de criar novos conceitos , ento a antropologia, sem pretender substituir a filosofia, no deixa de ser um poderoso instrumento filosfico, capaz de ampliar um pouco os horizontes to etnocntricos de nossa filosofia, e de nos livrar, de passagem, da antropologia dita filosfica. Na definio vigorosa e quase intraduzvel de Tim Ingold: anthropology is philosophy with the people in. Por people, Ingold entende aqui os ordinary people, as pessoas comuns; mas ele est tambm jogando com o significado de people como povo, e mais ainda, como povos. Uma filosofia com outros povos dentro, ento: a possibilidade de uma atividade filosfica que mantenha uma relao com a no-filosofia a vida de outros povos do planeta, alm de com a nossa prpria. No apenas as pessoas comuns, ento, mas sobretudo os povos incomuns, aqueles que esto fora de nossa esfera de comunicao. Se a filosofia real abunda em selvagens imaginrios, a geofilosofia visada pela antropologia faz uma filosofia imaginria com selvagens reais. Trata-se, em suma, de ampliar nossa capacidade de enxergar sapos reais em jardins imaginrios, para lembramos a grande poeta-antroploga Marianne Moore.

Indaguei o que aconteceria se recusssemos a vantagem epistemolgica do discurso do antroplogo sobre o do nativo. Isso o mesmo que perguntar: o que acontece quando se leva o pensamento nativo a srio? Quando o propsito do antroplogo deixa de ser o de explicar, interpretar, contextualizar, racionalizar esse pensamento, e passa a ser o de o utilizar, tirar suas consequncias, verificar os efeitos que ele pode produzir no nosso? O que pensar o pensamento nativo? Pensar, digo, sem pensar se aquilo que pensamos (o outro pensamento) aparentemente irracional, ou, Deus nos livre, naturalmente racional, mas pens-lo como algo que no se pensa nos termos dessa alternativa, algo inteiramente alheio a esse jogo?

Levar a srio , sobretudo, no neutralizar. , por exemplo, pr entre parnteses a questo de saber se e como tal pensamento ilustra universais cognitivos da espcie humana, explica-se por certas tecnologias de transmisso do conhecimento, exprime uma viso de mundo culturalmente particular, valida funcionalmente a distribuio do poder poltico, e outras tantas formas de neutralizao do pensamento alheio. Suspender tal questo ou, pelo menos, evitar encerrar a antropologia nela; decidir, por exemplo, pensar o outro pensamento apenas (digamos assim) como uma atualizao de virtualidades insuspeitas do pensar.

***Mas para isso, preciso que nos esforcemos para produzir um conceito antropolgico de conceito. Por antropolgico, entendo (pace os heideggerianos) um conceito ontolgico, isto , um conceito no-epistemolgico de conceito.

As ontologias amerndias que venho estudando, j l vo trinta anos, podem ser descritas como uma forma radical de politesmo (ou melhor, de henotesmo), mas aplicada a um universo que no reconhece qualquer criador transcendente. Isto me leva a perguntar se o monismo cientificista moderno no apenas o ltimo avatar de nossa cosmologia monotesta. Nossos dualismos ontolgicos radicam-se, por certo, na mesma fonte, pois derivam, em ltima instncia, da diferena fundante entre Criador e criatura. Podemos ter matado o primeiro h algum tempo atrs, mas s para continuarmos com sua outra metade, a Natureza, cuja unidade, homogeneidade e impassibilidade se devem ao Deus agora ausente. Tal marca de nascena pode ser vista ainda em muitos dos gestos modernos de repdio a todo dualismo e qualquer dicotomia. Nossas ontologias monistas, via de regra, so derivadas de alguma dualidade prvia; elas consistem na amputao (dialtica ou a frio) de um dos plos, e em sua absoro pelo plo remanescente. Um monismo realmente primrio, anterior e exterior ao Grande Divisor entre criador e criatura, parece mais dificil de atingir. Se h alguma lio a tirar da ontologia amerndia, talvez, a de que o par conceitual relevante o que junta-separa monismo e pluralismo: multiplicidade, e no dualidade. Virtualmente todos os ataques aos dualismos, cartesianos ou outros, parecem considerar que dois demais precisamos de s um (princpio, substncia, realidade etc.). No que concerne s cosmologias indgenas aqui tratadas, meu sentimento, ao contrrio, que dois no o bastante.Os antroplogos so costumeiramente chamados de relativistas, tendo estado na linha de frente dos condenados ao paredo do racionalismo (por crime, evidentemente, de irracionalismo) na sangrenta guerra das cincias. Bem, eu, pessoalmente como se diz, no me sinto muito relativista; e me sinto ainda menos universalista, apresso-me em acrescentar. Na verdade, recuso a utilidade de ambos os rtulos. E meu problema com eles, com a noo de relativismo, com a oposio entre relativismo e universalismo, deve-se aos conceitos que subjazem a essas noes e oposies: os conceitos gmeos de representao e de realidade. E meu problema com esses conceitos a pobreza ontolgica que eles exprimem, uma pobreza caracteristica da modernidade. A ruptura cartesiana com a escolstica produziu uma simplificao radical de nossa ontologia, ao pr apenas dois princpios ou substncias, o pensamento inextenso e a matria extensa. (Diviso instvel, como atestam os incessantes esforos de se separarem claramente as esferas de competncia desses dois mundos, as violentas manobras de anexao recproca, as complicadas propostas de mediao; e ausncia positiva, como do f o persistente sentimento de que algo essencial foi subtrado na partilha, e as inmeras tentativas de identificao desse terceiro excludo, esse entre-dois capaz de reabsorver a diferena entre os mundos sem com isso restituir a transcendncia inicial, pois esta j continha em si a diviso, sob a forma da diferena absoluta entre o Criador a criatura). Tal simplificao ainda est conosco. A modernidade comeou com ela: com a converso macia de questes ontolgicas em questes epistemolgicas, isto , em questes de representao uma converso exigida pelo fato de que todo modo do ser inassimilvel matria obtusa tinha de achar um lugar dentro do esprito. A simplificao da ontologia, assim, levou a uma enorme complicao da epistemologia. Uma vez pacificados os objetos ou coisas, retirados para o mundo exterior, silencioso e uniforme da Natureza, os sujeitos comearam a proliferar e a tagarelar incessantemente: egos transcencentais, entendimentos legislativos, filosofias da linguagem, teorias da mente, representaes coletivas, lgicas do significante, teias de significado, prticas discursivas, aes comunicativas s escolher. E no esqueamos da antropologia, essa disciplina que padece desde o bero de uma ansiedade epistmica crnica, recentemente tornada aguda. A mais kantiana de todas as disciplinas, a antropologia parece crer que sua tarefa primacial explicar como capaz de conhecer (representar) seu objeto. possvel conhec-lo? decente conhec-lo? Temos o direito de faz-lo? Quid juris. Conhecemo-lo realmente, ou o vemos apenas com um olhar distanciado, como atravs de um espelho, em enigma? Quid facti. Parece no haver sada para esse labirinto de fantasmas e esse pntano de culpa. O essencialismo e o fetichismo so nosso grande medo e obsesso. Comeamos por ironizar os selvagens por fazerem isso; agora, acusamos a ns mesmos (ou melhor, nossos colegas) de fazerem isso: confundirem as representaes com a realidade. E assim, tememos mais que tudo a dualidade que criamos, e temos por pecado irremissvel a mistura desses reinos ontolgicos separados pelo maior de todos os Grandes Divisores.

O empobrecimento continua. Deixamos mecnica quntica a tarefa de ontologizar e problematizar o estril dualismo da representao e da realidade a ontologia foi, claro, anexada pela fsica , mas dentro dos estreitos limites do mundo quntico, inacessvel a nossa intuio, i.e. a nossas representaes. Eis ento a Subnatureza sucedendo Sobrenatureza testa do imprio da transcendncia. Do lado macroscpico das coisas, a psicologia cognitiva vem tentando estabelecer uma ontologia puramente representacional, isto , uma ontologia natural da espcie humana inscrita em nosso modo de representar a realidade. Este seria o passo final: a funo representativa ontologizada na mente, mas nos termos simplistas (simple-minded, dir-se-ia em ingls) da ontologia da mente e da matria. E o pingue-pongue continua: um lado reduz a realidade representao (culturalismo, relativismo, textualismo); o outro, a representao realidade que ela mal-representa (cognitivismo, sociobiologia, psicologia evolucionria). Quanto fenomenologia, e refiro-me ao que os antroplogos que ultimamente a invocam tm feito com ela, esta parece funcionar como apenas outra reverncia envergonhada epistemologia: a noo de mundo vivido pouco mais que um eufemismo para mundo real para um sujeito, mundo representado. A realidade real a reserva cativa (ainda que largamente virtual) dos tericos da gravitao quntica ou das supercordas. Mas se atentarmos para o que dizem estes guardies da realidade final, ouviremos como j se ouvia h mais de trs quartos de sculo, pelo menos (Whitehead, Science and the Modern World) que no h substncia no corao da matria, apenas forma e fora, isto , relao. O que fazer, ento, com as ontologias materialistas que, volta e meia, so receitadas como remdio para nossa hipocondria epistemolgica? No sei. O que me parece, que carecemos de ontologias mais ricas, e de dar um descanso s questes epistemolgicas.

***Como j falei demais, vou-me concluir aqui com algumas anotaes esquemticas, o que, naturalmente, um eufemismo para declaraes bombsticas e peremptrias:

Em primeiro lugar, penso que est em tempo de repensarmos a noo de prtica. Antes de mais nada, porque o contraste radical entre teoria e prtica , afinal, puramente terico: a prtica pura s existe em teoria; na prtica, ela vem sempre muito misturada com teoria O que estou querendo dizer que a teoria da prtica, tal como classicamente formulada por Bourdieu, supe uma viso completamente tradicional de teoria, que v esta como uma meta-prtica transcendente de tipo contemplativo ou reflexivo, que existe acima e aps a prtica, como seu momento de purificao (sensu Latour). Em outras palavras, precisamos de uma nova teoria da teoria: uma teoria generalizada de teoria, que permita pensarmos a atividade terica em continuidade com a prtica, isto , como dimenso imanente ou constitutiva (por oposio a puramente regulativa) do intelecto corporificado na ao. Essa continuidade exatamente a mesma, e isso importante, que aquela identifiquei como existindo (de jure) na relao entre os discursos do antroplogo e do nativo. A antropologia da cincia tem obviamente uma contribuio crucial a dar aqui, visto que um de seus problemas centrais a teoria na prtica: a prtica de produo e circulao de teorias.

Em segundo lugar, e entretanto, precisamos resolver nossa atitude muito ambivalente diante do modelo proposicional do conhecimento. A antropologia contempornea, tanto por seu lado fenomenolgico-construcionista como por seu lado cognitivo-instrucionista, tem-se distinguido por insistir sobre as graves limitaes desse modelo no dar conta das economias intelectuais de tipo no-ocidental, ou no-moderno, ou no-escrito, ou no-terico, ou no-doutrinal, ou seja l que no-. Dito de outro modo, o discurso antropolgico tem se dedicado paradoxal empresa de empilhar proposies em cima de proposies a respeito do carter fundamentalmente no-proposicional do discurso dos outros tagarelando incessantemente sobre o que no preciso dizer. Estimamo-nos felizes (teoricamente) quando nossos nativos mostram um desdm soberano pela prtica da auto-interpretao, e interesse ainda menor pela cosmologia e pelo sistema: a ausncia de interpretao nativa tem a grande vantagem de permitir a proliferao de interpretaes antropolgicas de tal ausncia, e o desinteresse pela ordem cosmolgica permite a produo de belas cosmologias antropolgicas onde as sociedades esto ordenadas conforme sua maior ou menor disposio sistematicidade. Em suma, quanto mais prtico o nativo, mais terico o antroplogo. Acrescente-se que o modo no-proposicional concebido como caracterizado por uma forte dependncia de seu contexto de transmisso e circulao, o que o coloca nas antpodas do que seria (imagina-se) o discurso da cincia discurso que pretende, justamente, universalizao e validade transcontextual, liberto como estaria de suas condies (sempre particulares) de produo. Ou seja, estamos todos radicados em um contexto, mas alguns esto muito mais radicados que os outros.

Meu problema aqui no com a tese da quintessencial no-proposicionalidade do pensamento no-domesticado, mas com a idia implcita de que a proposio um bom modelo da conceitualidade em geral, e da conceitualidade cientfica ou antropolgica em particular. A proposio continua a servir de prottipo do enunciado racional e de tomo do discurso terico. O no-proposicional visto como essencialmente primitivo, como no-conceitual ou mesmo anti-conceitual. O que pode ser sustentado, naturalmente, tanto contra como a favor desse Outro no-conceitual: a ausncia do conceito racional corresponderia a uma superpresena da sensibilidade e da emoo, etc. Contra ou a favor, porm, tudo isso concede demasiado proposio, e reitera um conceito totalmente arcaico de conceito, que continua a defini-lo como operao de subsuno do particular pelo universal, isto , como movimento essencialmente classificatrio e abstrativo. Ora, em vez de recusar o conceito, penso que preciso saber encontrar o infra-filosfico dentro do conceito, e reciprocamente, a conceitualidade virtual dentro do infra-filosfico. Em outras palavras, precisamos de um conceito antropolgico de conceito, que assuma a extra-proposicionalidade em sua positividade integral, e que se desenvolva em direo completamente diversa das noes filosfico-antropolgicas tradicionais de categoria inata, de representao coletiva ou de crena.

Em suma, carecemos de uma teoria antropolgica da imaginao, capaz de incorporar no s a indisciplinaridade dos sujeitos que so nosso objeto, como de saber acolher aqueles objetos eminentemente transdisciplinares hoje propostos pelas cincias fsicas, biolgicas ou da informao, como so as teorias das redes e dos mundos pequenos, as teoria da complexidade, as dimensionalidades fracionrias, a fractalidade e os efeitos hologrficos, os processos de auto-organizao e ordem pelo rudo, as estruturas dissipativas, a matemtica dos sistemas dinmicos, e outros tanto objetos e instrumentos que so transdisciplinares na medida em que atravessam o mandato epistmico de diversas disciplinas, ao se revelarem pertinentes a fenmenos que relevam de ontologias regionais muito diversas; em particular, de fenmenos que desrespeitam indisciplinadamente a multisecular e sacrossanta fronteira entre as cincias da extenso e as cincias do pensamento, ou, para falarmos mais modernamente, as cincias da natureza e as cincias da cultura ou da alma (as Geiteswissenchaften) as humanidades. Ao fazermos isso, estaremos reencontrando, em mais de uma volta do caminho, aqueles nativos que durante tanto tempo estudamos como se por estud-los pudssemos finalmente nos distanciar definitivamente deles; e agora vemos que o que fazamos era, bem ao contrio, nos aproximarmos cada vez mais deles, medida que a cincia que nos envolvia e justificava (e nos humilhava, a ns meros cientistas demaisado humanos, voltados para humanidades muito pouco cientficas) ia avanando e deixando para trs toda a parafernlia de dicotomias radicais e de distines toscas de que teve de se servir para abrir seu caminho no sculo XVII. O mito pr-moderno encontra assim a cincia ps-moderna talvez porque sempre esteve junto dela? porque, em suma jamais fomos modernos? ou porque descobrimos que no precismo ser moderno para fazer cincia? porque a cincia no depende daquele estado especfico do mito cristo que gerou Descartes e Galileu?

Em terceiro lugar, por fim, preciso que tiremos todas as consequncias do fato de que o discurso do nativo fala de outra coisa que exclusivamente do nativo, isto , de sua sociedade ou de sua mente: ele fala do mundo. Isso significa assumir que os verdadeiros problemas da antropologia no so epistemolgicos, mas ontolgicos, como disse to bem meu colega V. Argyrou; e eu me permitira acrescentar: o verdadeiros objetos da antropologia no so epistemologias, mas ontologias. Chamo a ateno de vocs para a utilizao cada vez mais frequente desta palavra, ontologia, na literatura antropolgica contempornea. Ela me parece traduzir nossa insatisfao crescente com a constituio kantiana ou mais simplesmente moderna, de nossa disciplina.

claro que imagem do Ser constitui um solo analgico perigoso para se pensar as imaginaes no-ocidentais, e a noo de ontologia no deixa de ter seus riscos. Talvez a ousada sugesto de Gabriel Tarde, de abandonarmos o conceito irremediavelmente solipsista de Ser e recomearmos a metafsica a partir do Ter (Avoir), no que este implica de transitividade intrnseca, de abertura originria a uma exterioridade, seja mais interessante em muitos casos. No obstante, acho importante a linguagem da ontologia por um motivo, digamos, ttico. Ela toma a contrapelo uma manobra frequente contra o pensamento do nativo, que consiste no bloqueio desrealizante desse pensamento atravs de sua reduo s dimenses de um conhecer ou representar, isto , a uma epistemologia ou a uma viso de mundo como se o que houvesse a conhecer ou a ver j estivesse resolvido de antemo; e resolvido, claro, a favor de nossa ontologia. A noo de ontologia, portanto, no evocada aqui para sugerir que todo pensamento, seja ele grego, melansio ou amaznico, exprime uma metafsica do Ser, mas sim para sublinhar que todo pensamento inseparvel de uma realidade que constitui o seu exterior. Isso significa que a democracia epistemolgica costumeiramente professada pela antropologia, quando afirma a diversidade cultural dos significados, revela-se, como tantas outras democracias que conhecemos to bem, muito relativa, pois se apia em ltima instncia em uma monarquia ontolgica absoluta, onde se impe a unidade referencial da natureza. contra essa piedosa hipocrisia relativista que termino mais uma vez afirmando que a antropologia a cincia da autodeterminao ontolgica dos povos, e que, assim, ela uma cincia poltica de pleno direito, pois seu motto ou deveria ser aquele mesmo que se escrevia nos muros de Paris em maio de 1968: limagination au pouvoir. O resto , para continuarmos nos estrangeirismos, apenas business as usual."