Eduardo Viveiros de Castro - A antropologia de cabeça para baixo

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Viveiros de Castro Vejo que se trata aqui [“Voltas ao Pas- sado”] de suas relações com Merleau- Ponty… Lévi-Strauss Os autores dizem que Merleau-Ponty deu as costas para mim. O que lhes atra- palhou enormemente, é claro, é que Merleau-Ponty havia publicado um tex- to muito caloroso a meu respeito. Então, eles dizem: “ele parece caloroso, mas is- so é falso; na realidade, trata-se de um texto que é profundamente hostil a Lé- vi-Strauss, e que marca divergências fundamentais”. O que os autores não sabiam é que o artigo de Merleau-Ponty é o memorial que ele leu perante a as- sembléia dos professores do Collège de France para a criação de minha cátedra. Viveiros de Castro Mas em “De Mauss a Claude Lévi- Strauss” não se acha nenhuma crítica. Lévi-Strauss Pois se era o memorial para a criação de minha cátedra … Viveiros de Castro Nota-se hoje uma retomada do interes- se por Merleau-Ponty entre os antropó- logos. Lévi-Strauss Ele está efetivamente retornando, e isso me deixa muito contente. Viveiros de Castro A propósito – vejo que o tema figura em sua resposta –, por que pensa o senhor que sua distinção entre “história quen- te” e “história fria” deu lugar a tanta in- compreensão, sobretudo nos países de língua inglesa? Lévi-Strauss Porque ninguém se deu ao trabalho de refletir. Havia uma velha distinção, po- vos com história e povos sem história, então eles dizem que minha distinção é idêntica a essa… Viveiros de Castro Tal mal-entendido não se deveria à as- similação de sua distinção a idéias de que a antropologia anglo-saxã queria se livrar: Malinowski, Radcliffe-Brown, a ênfase na sincronia etc.? Lévi-Strauss Mas foram eles que congelaram essas sociedades, não eu! Viveiros de Castro Agora essas sociedades “frias” pare- cem estar esquentando, não é mesmo? Lévi-Strauss Sim, é justamente o que digo em meu artigo: elas estão esquentando, ao pas- so que as nossas esfriam. Na França is- so é muito claro: o interesse pelo patri- mônio, os esforços para se reencontra- rem as raízes… ENTREVISTA LÉVI-STRAUSS NOS 90 A ANTROPOLOGIA DE CABEÇA PARA BAIXO Eduardo Viveiros de Castro MANA 4(2):119-126, 1998

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Viveiros de CastroVejo que se trata aqui [“Voltas ao Pas-sado”] de suas relações com Merleau-Ponty…

Lévi-StraussOs autores dizem que Merleau-Pontydeu as costas para mim. O que lhes atra-palhou enormemente, é claro, é queMerleau-Ponty havia publicado um tex-to muito caloroso a meu respeito. Então,eles dizem: “ele parece caloroso, mas is-so é falso; na realidade, trata-se de umtexto que é profundamente hostil a Lé-vi-Strauss, e que marca divergênciasfundamentais”. O que os autores nãosabiam é que o artigo de Merleau-Pontyé o memorial que ele leu perante a as-sembléia dos professores do Collège deFrance para a criação de minha cátedra.

Viveiros de CastroMas em “De Mauss a Claude Lévi-Strauss” não se acha nenhuma crítica.

Lévi-StraussPois se era o memorial para a criação deminha cátedra …

Viveiros de CastroNota-se hoje uma retomada do interes-se por Merleau-Ponty entre os antropó-logos.

Lévi-StraussEle está efetivamente retornando, e issome deixa muito contente.

Viveiros de CastroA propósito – vejo que o tema figura emsua resposta –, por que pensa o senhorque sua distinção entre “história quen-te” e “história fria” deu lugar a tanta in-compreensão, sobretudo nos países delíngua inglesa?

Lévi-StraussPorque ninguém se deu ao trabalho derefletir. Havia uma velha distinção, po-vos com história e povos sem história,então eles dizem que minha distinção éidêntica a essa…

Viveiros de CastroTal mal-entendido não se deveria à as-similação de sua distinção a idéias deque a antropologia anglo-saxã queriase livrar: Malinowski, Radcliffe-Brown,a ênfase na sincronia etc.?

Lévi-StraussMas foram eles que congelaram essassociedades, não eu!

Viveiros de CastroAgora essas sociedades “frias” pare-cem estar esquentando, não é mesmo?

Lévi-StraussSim, é justamente o que digo em meuartigo: elas estão esquentando, ao pas-so que as nossas esfriam. Na França is-so é muito claro: o interesse pelo patri-mônio, os esforços para se reencontra-rem as raízes…

ENTREVISTA

LÉVI-STRAUSS NOS 90A ANTROPOLOGIA DE CABEÇA PARA BAIXO

Eduardo Viveiros de Castro

MANA 4(2):119-126, 1998

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Viveiros de CastroDiz-se com freqüência, nos EstadosUnidos, que os cultural studies vão aca-bar com a antropologia, o que pensa osenhor?

Lévi-StraussCom efeito, falo justamente disso emminha resposta… O artigo dos TempsModernes diz que a antropologia mo-derna é Rosaldo… E que agora é só issoque interessa…

Viveiros de CastroE o que pensa o senhor disso?

Lévi-StraussMas o que posso pensar disso?… (risos).

Viveiros de CastroCom efeito, parece-me que há algunsconceitos-chave da antropologia quehoje estão a ponto de se tornar impro-nunciáveis: diferença, alteridade… Elesagora são politicamente suspeitos.

Lévi-StraussA antropologia virou de cabeça parabaixo, sem dúvida. Seria preciso recolo-cá-la de pé. Mas isso não seria nem umpouco politicamente correto…

Viveiros de CastroComo o senhor vê os resultados obtidospelas novas tendências cognitivistas naantropologia? Elas estão cumprindo oprograma que o senhor traçou, de refor-mular a antropologia como uma psico-logia?

Lévi-StraussSim, mas tratava-se de algo muito me-nos ambicioso, quando me exprimi as-sim… Penso que o que fazem os cogni-tivistas é muito interessante; houve pro-gressos incontestáveis. O perigo, entre-tanto, é que eles estejam a criar uma

nova escolástica, e que tudo isso se tor-ne tão abstrato que… Não posso maisacompanhar o que vem sendo feito, enão pretendo fazer disso um argumen-to, mas, de modo geral, minha impres-são é que o cognitivismo começa a per-der o contato com a realidade.

Viveiros de CastroO senhor não pensa então que os resul-tados sejam encorajadores? Na França,por exemplo, temos as pesquisas deSperber…

Lévi-StraussAssim me parece, mas… Isso é prova-velmente uma questão da idade que te-nho e da época a que pertenço, mas ocomeço me parece ter sido muito maisinteressante do que o que se faz hojeem dia. Quanto a Sperber, não com-preendo nada do que ele escreve! En-fim, essa história de epidemiologia, issome parece uma tal volta ao passado…

Viveiros de CastroEm geral, o senhor crê que a etnologiafaz uma grande volta ao passado?

Lévi-StraussNão, eu me dirigia aos Temps Moder-nes, em particular. Creio que há coisasque não ousamos mais dizer, e que épreciso dizer, ou em breve não se com-preenderá mais coisa alguma. É precisoafinal dizer que a antropologia é umadisciplina que nasceu no século XIX; elaé a obra de uma civilização, a nossa, quepossuía uma superioridade técnica es-magadora sobre todas as outras, e que,ciente de que ia dominá-las e transfor-má-las completamente, disse a si mes-ma: é urgente que se registre tudo quepode ser registrado, antes que issoaconteça. É isso a antropologia; ela nãoé outra coisa: ela é a obra de uma socie-dade sobre outras sociedades. E quando

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nos dizem que essas sociedades não sãodiferentes da nossa, que elas têm a mes-ma história que a nossa etc., esta não éabsolutamente a questão. O que pedía-mos a essas sociedades que estudáva-mos é que elas não nos devessem nada:que elas representassem experiênciashumanas completamente independen-tes da nossa. À parte isso, elas podemter todas as histórias que se queira, masessa não é a questão. Devem-nos elas oque são, ou não? Se elas nos devem, elasnos interessam moderadamente; se elasnão nos devem, elas nos interessamapaixonadamente.

Viveiros de CastroNesse caso, à medida que começam anos dever muito, elas nos interessariamcada vez menos?

Lévi-StraussElas se tornam objeto de outras pesqui-sas, de outras disciplinas. Se você mepermite uma comparação musical, eudiria que a antropologia tal como a con-cebo, como a conheci, como nossos mes-tres a praticaram, era tonal, e agora elase tornou serial. Isto quer dizer que associedades humanas não significammais nada fora de suas relações recípro-cas. Porque a nossa se enfraqueceu,porque ela mostrou seus vícios, porqueas outras começaram a trilhar o mesmocaminho que a nossa – isso é como asnotas em um sistema dodecafônico, elasnão têm mais um fundamento absoluto,elas existem apenas umas em relação àsoutras. Enfim, é assim que as coisas são,teremos uma outra antropologia, como amúsica serial é uma outra música. Umaantropologia que será tão diferente daantropologia clássica como a música se-rial é diferente da música tonal.

Viveiros de CastroEntão o senhor não acredita no fim da

antropologia, mas em uma mutação?

Lévi-StraussDe fato, não acredito, e por vários moti-vos. O primeiro é que há ainda algumaspossibilidades, como você mesmo de-monstrou com os Araweté, Descola comos Jívaro… Nem tudo está acabado; vaiacabar logo, mas enfim… não está com-pletamente acabado. Em segundo lu-gar, há ainda, em toda parte, umaquantidade de coisas a rebuscar, coisasque foram, digamos assim, negligencia-das, e que se pode recolher, que é pre-ciso recolher. O terceiro motivo, é queesses povos mesmos vão em breve darorigem a eruditos, a historiadores desuas próprias culturas, e assim aquiloque foi nossa antropologia vai ser apro-priado por eles, e ela será algo interes-sante, e importante. Então, nem tudoestá acabado; isto posto, a velha con-cepção de antropologia está morta.

Viveiros de CastroEntão, de um lado, há essas mudançasobjetivas, essas sociedades que se apro-ximam da nossa; de outro, e no planoteórico, há outra espécie de abertura –penso ainda nos cognitivistas –, a pro-messa de que finalmente poderemos fa-lar da Cultura como um objeto natural:as capacidades cognitivas da espécieetc.

Lévi-StraussSem dúvida, mas sob a condição de quenão se pretenda chegar a mais nadaque a resultados de ordem formal. Osconteúdos, isso continua a ser história,a experiência dos homens no curso dotempo. Mas que todos tenhamos o mes-mo cérebro, e que esse cérebro é fabri-cado do mesmo modo, sim, sim…

Viveiros de CastroO que me inquieta, entretanto, é que,

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se o estruturalismo era uma tentativa demanter unidas a experiência histórica ea forma, o particular e o universal, oque vemos hoje é que esses dois ladosestão cada vez mais separados, senãomesmo em guerra aberta…

Lévi-StraussSim, isso é profundamente verdadeiro.O valor de Merleau-Ponty, justamente,é que ele sempre procurava manter olaço.

Viveiros de CastroO senhor vê com simpatia os estudosrecentes que focalizam os modos de co-municação: a distinção entre o oral e oescrito, as condições de memorizaçãoetc.?

Lévi-StraussNão tenho acompanhado muito de per-to. A que você está referindo-se?

Viveiros de CastroAos trabalhos de Jack Goody, dentreoutros; às pesquisas que procuram de-duzir várias características das socieda-des primitivas a partir das condições detransmissão do saber, e em particulardas propriedades da comunicação ex-clusivamente oral.

Lévi-StraussMas isso me parece um truísmo. Ou éum truísmo, ou é falso.

Viveiros de CastroCom efeito, essas tendências me pare-cem marcadas por um grande formalis-mo, e pouco capazes de enxergar asenormes diferenças internas a catego-rias tão vastas e vagas como “socieda-des de tradição oral”.

Lévi-StraussTudo isso é realmente absurdo. Assim

também as comparações que se fazematualmente… os seminários entre mela-nesianistas e amazonistas… Isso me pa-rece muito frágil.

Viveiros de CastroPor que o senhor pensa assim?

Lévi-StraussOs ameríndios são restos, são fragmen-tos de sociedades que viveram váriosséculos de drama e destruição. Os me-lanésios, em contrapartida, são genteque estava absolutamente intacta nomomento em que se os descobriu. Oque se pode tirar dessas comparações?Fazem-se correlações… vi isso outrodia, já não me lembro onde, uma corre-lação entre o uso de bebidas alcoólicase a densidade da população. Na Améri-ca usavam-se substâncias intoxicantesporque a população era dispersa; naMelanésia elas não seriam necessáriasporque a população era muito densa…

Viveiros de CastroQual a lógica dessa correlação?

Lévi-StraussPois se os melanésios usavam cogume-los alucinógenos, ausentes entre os ín-dios sul-americanos, e se no sudesteasiático, onde a população é densa, to-mam-se bebidas alcoólicas a valer…

Viveiros de CastroFalando na Amazônia, como o senhorvê a paisagem do americanismo con-temporâneo?

Lévi-StraussMas o que está acontecendo no Brasil éformidável! É algo de praticamente iné-dito! Quando conheci o Brasil, o que eraa etnologia? Eram velhos eruditos degabinete que se debruçavam sobre a fi-lologia tupi; era isso, e nada mais. E

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agora, vemos uma das escolas mais bri-lhantes da atualidade.

Viveiros de CastroFoi em grande parte graças ao senhorque isso ocorreu.

Lévi-StraussNão, não, isso teria acontecido de qual-quer maneira. Os meios de comunica-ção tiveram muito a ver com isso. Se osEstados Unidos estiveram à frente daantropologia durante um certo período,foi porque os índios estavam no mesmopaís que os antropólogos, e era relativa-mente fácil ir até eles. O Brasil se acha-va, no período em que ali vivi, na vés-pera da Segunda Guerra, na mesma si-tuação: os povos indígenas em seu ter-ritório, podia-se ir até lá sem muita difi-culdade.

Viveiros de CastroMas minha impressão é que o impulsoda etnologia brasileira deu-se nos anos60, justamente quando seus trabalhossobre a mitologia ameríndia vieram aser publicados.

Lévi-StraussEu recuaria um pouco mais, mas se vo-cê pensa assim, tanto melhor…

Viveiros de CastroParece-me, de qualquer modo, que foinos últimos trinta anos que se atingiuuma massa etnográfica crítica.

Lévi-StraussE foi sem dúvida a contribuição brasi-leira a principal responsável por isso.Avistei-me ontem com um colega deSantiago do Chile. Ele me dizia: nãoconseguimos formar etnólogos, os estu-dantes não querem ser etnólogos. Issonão lhes interessa mais. E contudo, medizia ele, o que está acontecendo com

os índios no Chile é enormemente inte-ressante.

Viveiros de CastroE o que pensa o senhor sobre as pesqui-sas recentes em arqueologia amazôni-ca? Irão elas realmente modificar a ima-gem não só do passado, mas tambémdo presente da Amazônia?

Lévi-StraussTudo depende do que vai acontecer nosanos vindouros. Pode muito bem serque se encontrou tudo que há a encon-trar. Parece-me que as coisas começama ir mais devagar, efetivamente. A me-nos que se façam novas e sensacionaisdescobertas.

Viveiros de CastroO senhor, já em 1952, falava em cultu-ras complexas na várzea amazônica.

Lévi-StraussMas era algo puramente intuitivo, nãotinha outro valor que o de um feeling….

Viveiros de CastroE quanto aos problemas da data de che-gada dos humanos nas Américas? Quãolonge o senhor pensa que esta data serárecuada?

Lévi-StraussEvidentemente, as descobertas de Mon-te Verde, no Chile, são extraordinaria-mente perturbadoras*. Seria absurdofazer predições, entretanto.

Viveiros de CastroQual é seu feeling, de qualquer modo?

Lévi-StraussAh, nesses assuntos há tal dose de wish-ful feeling… Mas 50 mil anos seria umadata razoável. Mesmo se supuséssemosque o Homo erectus tenha estado na

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América, o que foi sustentado por al-guns, como Lumley, que uma vez fezuma nota a esse respeito para a Acade-mia de Ciências…. De qualquer manei-ra, ele não seria de grande interesse pa-ra nós etnólogos, porque o Homo erec-tus não estava mais lá quando os ame-ríndios chegaram… Quanto ao povoa-mento ameríndio, algo como 50 mil anosparece razoável. Pierre Gourou, queera… digo era, mas ele não está morto,enfim, ele está tão idoso que não é maispossível se comunicar com ele – há unsdez anos, quando nos víamos muito,Gourou dizia que havia argumentosgeográficos absolutos em favor de umachegada anterior a 45 mil anos, devido aquestões relacionadas à circulação daságuas do Ártico em direção ao Pacífico.

Viveiros de CastroEm uma conhecida passagem de O Crue o Cozido, o senhor diz que a Américaindígena foi “uma Idade Média que nãoteve sua Roma”. Não se poderia dizer,entretanto, que ela teve sua Atenas –não no sentido geográfico, mas espiri-tual? Pois seu trabalho sobre a mitolo-gia demonstra a existência de um siste-ma pan-americano de pensamento.

Lévi-StraussHá incontestavelmente um sistema depensamento. O que coloca muitos pro-blemas: isso supõe que esses povos to-dos circularam muito mais do que nósimaginamos, e em todos os sentidos.

Viveiros de CastroComo o senhor vê o estado atual dos es-tudos sobre o parentesco? Estaríamosvivendo uma fase de recuo de interesseno tema?

Lévi-StraussPenso que sim; há coisas mais interes-santes a fazer, agora…

Viveiros de CastroNos últimos anos, certas noções que de-sempenham um papel central em suaobra sobre o parentesco, como recipro-cidade e troca, têm recebido muitas crí-ticas.

Lévi-StraussSim, sim, tenho assistido a isso um pou-co de longe… Mas enfim, quando al-guém como Godelier acredita ter feitouma grande descoberta quando diz quenem tudo se troca… Grande novidade…Mas é claro que nem tudo se troca – na-turalmente! Sabíamos disso desde queBoas explicou que entre os povos dacosta noroeste havia bens inalienáveis,além daqueles que se alienam…

Viveiros de CastroParece-me que alguns deslocamentosimportantes se produziram nessa revi-são crítica. Tomemos a noção de troca.Nas Estruturas Elementares ela desig-nava uma instituição empírica, mastambém e sobretudo um princípio. Mi-nha impressão é que, agora, reduz-se atroca a uma instituição, que se pode en-contrar ali ou acolá, mas que não é cer-tamente um universal.

Lévi-StraussVocê tem toda a razão. Creio que o queacontece nesse domínio, e em muitosoutros, é que as pessoas não têm maiscultura, e que elas se acham na mesmasituação intelectual de um século emeio atrás, mais ou menos.

Viveiros de CastroO senhor permanece acreditando que anoção de troca que o senhor propôs nasEstruturas Elementares é adequada?

Lévi-StraussSim, se lhe conferimos um sentidotranscendental – ela é a condição que

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nos permite simplificar o problema, issoé tudo. Não me pergunto se em tal outal caso, neste ou naquele povo… en-fim, quantas coisas se trocam ou não setrocam!

Viveiros de CastroE sobre a célebre distinção entre natu-reza e cultura, ela também é bastantediscutida.

Lévi-StraussAinda não pude ler o livro organizadopor Descola, que ele acaba justamentede me dar**. Mas penso que há váriosmal-entendidos. Em primeiro lugar, ele[Descola] coloca o problema em termosexclusivamente sincrônicos. Em termosdiacrônicos, todas as sociedades queconhecemos pensam que houve umaépoca em que os homens viviam no es-tado de natureza antes de alcançar oestado de sociedade. Quando lhe opo-nho este argumento, Descola me res-ponde: mas nesse estado de naturezatudo – os animais e os homens – estavaconfundido. Sem dúvida, tudo estavaconfundido, mas, justamente, era ne-cessário que os animais e os homens seseparassem. Em segundo lugar, creioque, quando se diz que a distinção en-tre natureza e cultura é algo próprio dopensamento ocidental, há um equívoco:não é a distinção em si que é ocidental,mas uma certa atitude diante da natu-reza. Tal atitude, com efeito, não existeentre os povos estudados pelos etnólo-gos. Mas, do fato de esses povos senti-rem a necessidade de descobrir uma es-pécie de arbitragem entre a natureza ea cultura, um meio de fazê-las coabitarde maneira satisfatória, não se deduzde modo algum que eles ignorem aoposição. Eles simplesmente a resolve-ram de uma forma diferente da escolhi-da pelo ocidente, o qual nega pura esimplesmente os dois termos. Os mitos

indígenas procuram mostrar como acultura se entende com a natureza.

Viveiros de CastroAdmitindo-se a presença de uma distin-ção entre natureza e cultura no pensa-mento indígena, ela de qualquer modoparece inverter nossa versão clássica damesma distinção, e isso tanto do pontode vista diacrônico como sincrônico. As-sim, concebemos a cultura como se cons-tituindo historicamente a partir da natu-reza, e a humanidade como emergindode um fundo geral de animalidade…

Lévi-StraussMas essa é uma visão científica, nãouma visão bíblica…

Viveiros de CastroNos termos em que a formulei, ela meparece caracterizar antes o evolucionis-mo popular ocidental, que é da ordemdo mito, que a teoria científica da evo-lução. E nesses termos, haveria um con-traste com a mitologia ameríndia. Co-mo o senhor mesmo observou em AOleira Ciumenta, essa mitologia postu-la que a humanidade é o fundo comumdos seres, e que os animais atuais sãohumanos transformados. Nesse caso,não é a cultura que se separa da natu-reza, mas o contrário.

Lévi-StraussSim, de modo geral concordo com isso.Penso apenas que seria preciso matizarum pouco sua formulação, porque elanão se encontra, nesses termos, em to-da parte.

Viveiros de CastroE como o senhor formularia a diferençaentre a concepção contemporânea denatureza – falo do mundo da física, darelatividade, da mecânica quântica etc.– e a concepção ameríndia?

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Notas

* Lévi-Strauss está-se referindo às pes-quisas dirigidas por Tom Dillehay em MonteVerde, Chile, que estabeleceram uma datade ocupação humana em torno de 25.000a.C.

**P. Descola e G. Pálsson (orgs.), Natureand Society: Anthropological Perspectives,London, Routledge, 1996.

Lévi-StraussA representação da física parece muitomais, no fundo, com o que no caso indí-gena chamaríamos uma sobrenatureza.Nós consideramos que o mundo da físi-ca é mais verdadeiro que o mundo daexperiência, mas ao mesmo tempo ad-mitimos que não compreendemos nadadele. Nosso mundo físico é nossa sobre-natureza.

Viveiros de CastroO senhor se refere esporadicamente ànoção de sobrenatureza em suas análi-ses da mitologia ameríndia. Como elase disporia em relação à distinção entrenatureza e cultura?

Lévi-StraussCom efeito, isto é algo sobre o qual nãorefleti o suficiente. Reconheço que de-veria tê-lo feito. Mas não tenho um pen-samento claro sobre isso; não cheguei aaprofundar a questão.

Viveiros de CastroDe qual livro seu o senhor gosta mais?

Lévi-StraussNão tenho a menor idéia, meus livros jánão me estão mais muito presentes àmente.

Viveiros de CastroMas o senhor não parece gostar dema-siado das Estruturas Elementares, não é?

Lévi-StraussQuando reabro este livro, digo-me:aprendi a escrever melhor desde en-tão… Mas ele tem, ainda assim, umfrescor que perdi. É um livro cheio dedefeitos – é uma obra de juventude, háuma quantidade de coisas inúteis den-tro dele… e outras coisas que são pro-vavelmente falsas…

Viveiros de CastroHá alguma coisa que o senhor gostariade ter feito, como pesquisa, e que nãopôde realizar?

Lévi-StraussSim, fora de minha disciplina; dentrodela, não.

Viveiros de CastroSobre o que o senhor está trabalhandono momento?

Lévi-StraussSobre nada. Não trabalho – apenas meocupo, por assim dizer. Sem planos,sem visar resultados, escrevo um artigode vez em quando. Não tenho um pro-grama, porque sei que se traçar um pro-grama definido não poderei concluí-lo.Não tenho ilusões: estou bastante bem,e talvez ainda viva mais alguns anos;mas o pensamento, isso se deteriora.Não se pode pretender exigir-lhe omesmo que outrora.

Viveiros de CastroO pensamento se deteriora com a ida-de, é certo – mas na imensa maioria doscasos isso começa muito antes dos no-venta anos… O senhor ainda viaja?

Lévi-StraussNão, não viajo mais. Não tenho mais se-quer um passaporte válido. Deixei omeu vencer.