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NOTÍCIAS

JORNADA DE ABERTURA 2002A BEIRA DA LOUCURA

A psicanálise cunhou um termo para consumo próprio, que ganhouinusitado espaço clínico e social: a neurose. Ela define um quadro de gravi-dade relativa, pois, embora possa ser profunda quanto ao sofrimento, suaporção de loucura, de des-razão, ficaria dentro do controlável. A neurose éuma loucura reservada, bem comportada, e quase sinônimo de normalidade.Reservamos para o pior da desagregação subjetiva o termo psicose. Tudoisto funcionaria bem, se não fossem nossos pacientes, que insistem emromper com nossos paradigmas.

Mas... as pessoas deliram sem serem psicóticas; fazem pequenas egrandes loucuras, podendo voltar ao mal-estar neurótico crônico em segui-da. O senso comum, e boa parte dos clínicos, inventaram um estado inter-mediário, comumente chamado de borderline. Com imenso barulho, passa-gens ao ato, fantasias suicidas, arroubos místicos, perdas amorosas incurá-veis, surtos de ninfomania ou don-juanismo e outras tantas manifestações,invadem vidas estruturadas por trabalho, família e outras certezas. Ao calar,o grito estridente destas vivências destrói, para sempre, o silêncio que havia,a memória daquele episódio barulhento macula a certeza do silêncio.

Nossa questão é justamente destampar esta classificação fácil e ques-tionar quais os limites que podemos pensar a loucura hoje. Uma via possívelde discussão é a de que, atualmente, estaríamos encontrando mais subjeti-vidades com fraturas no simbólico.

Infelizmente as ficções psicopatológicas, embora úteis de uma formageral, pouco ajudam na direção de uma cura, porque tendem a se adequarmuito mal à diversidade das subjetividades dos nossos pacientes.

Se muitos pacientes apresentam novidades, criamos um nome; semuitos psicanalistas passam a dizer que seus pacientes estão mais frágeis,que as transferências são constantemente convocadas à ortopedia, o quefazemos? Uma jornada de abertura, para debater com os que se sentiremconvocados por este tema.

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PROGRAMA9hA beira da loucura – Liliane FröemmingAdolescência como estado limite – Ângela Lângaro Becker15hLançamentos de livros:Seminário O desejo e sua interpretação, de Jacques LacanCadernos da APPOA nº 2 – A terceira, de Jacques LacanSeminários I, de Alfredo Jerusalinsky15h15min“Fora da casinha”: a fragilidade sem abrigo – Maria Lúcia Müller SteinAlém da neurose, aquém da psicose – Alfredo Jerusalinsky

LOCALHotel Embaixador, Porto AlegreRua Jerônimo Coelho, 354Sala Diplomata – Porto Alegre – RS

INSCRIÇÕES *– INSCRIÇÕES ANTECIPADASATÉ 28 DE MARÇO 2002Associados: R$ 30,00Estudantes**: R$ 35,00Profissionais: R$ 50,00

(*) As inscrições poderão ser feitas na APPOA. Inscrições por fax, mediante pa-gamento bancário para: ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE,Banco: Banrisul; Agência: 032, Conta-corrente: 06.039972.0-6. IMPORTANTE:enviar por fax o comprovante de pagamento devidamente preenchido com osdados do participante!(**) Estudantes devem apresentar, ou enviar por fax, comprovante de matrículaem Curso de Graduação.

VAGAS LIMITADAS

– INSCRIÇÕES APÓS 28/03/2002E NO LOCALAssociados: R$ 45,00Estudantes**: R$ 50,00Profissionais: R$ 65,00

ATIVIDADES DE ENSINO – APPOA 2002

SEMINÁRIOS

MOMENTOS CRUCIAIS DA CLÍNICA:OS TEMPOS LÓGICOS DE UMA ANÁLISECoordenação: Alfredo JerusalinskyQuinzenal, na 1ª e 3ª quartas-feiras do mês, às 20h30min

PASSAGENS – SUJEITO E CULTURAA PARTIR DE FREUD, LACAN E BENJAMINCoordenação: Ana Maria Medeiros da Costa, Edson L. A. de Sousae Lúcia Serrano PereiraMensal, na 2ª segunda-feira de cada mês, às 21h. Início em abril.

PSICOSSOMÁTICA: INTERDISCIPLINA E TRANSDISCIPLINACoordenação: Jaime BettsMensal, sábado, das 10h às 12h. Em Novo Hamburgo.Informações: (51) 594.1561 ou 9988.0798.

A TOPOLOGIA DO OBJETO NA PSICANÁLISECoordenação: Ligia Gomes VíctoraQuinzenal, sextas-feiras, das 18h às 20h.Início: 12/04/02

A CLÍNICA DA NEUROSE: FANTASIA E SINTOMACoordenação: Mário FleigQuinzenal, na 1ª e 3ª quartas-feiras do mês, às 19h30min. Em Caxias doSul.Informações: (51) 3222.3275 ou 9968.7200.

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SEMINÁRIO: A PERSISTÊNCIA DO SINTOMACoordenação: Robson de Freitas PereiraInício em setembro/2002.

GRUPOS TEMÁTICOS

O SINTOMA NA INFÂNCIA CONTEMPORÂNEA – ARTICULAÇÕES EMTORNO DO BRINCAR E A CLÍNICA PSICANALÍTICA COM CRIANÇASCoordenação: Ana Marta MeiraQuinzenal, data e horário a combinar.

ADOLESCÊNCIA, INSTITUIÇÕES EDUCATIVAS E ESPAÇO URBANOCoordenação: Angela Lângaro BeckerQuinzenal, sextas-feiras, das 16h às 18h.Início: 15/03/02.

REFLEXÕES CLÍNICASCoordenação: Carlos Henrique KesslerQuinzenal, segundas-feiras, às 20h30min.

PSICANÁLISE E CULTURACoordenação: Carlos Henrique KesslerQuinzenal, segundas-feiras, às 20h30min.

CLÍNICA PSICANALÍTICA: ALGUNS CONCEITOS FUNDAMENTAISCoordenação: Carmen BackesQuinzenal, quartas-feiras, às 18h.Início: 13/03/2002

PSICOSES NA INFÂNCIACoordenação: Ieda Prates da SilvaQuinzenal, segundas-feiras, das 19h às 21h. Em Novo Hamburgo.Informações: (51) 582.9572 ou 9987.9576.

PSICANÁLISE E EDUCAÇÃO:ARTICULAÇÕES ENTRE PULSÃO E TRANSFERÊNCIACoordenação: Marianne Montenegro Stolzmann e Simone Moschen RickesQuinzenal, sextas-feiras, às 16h30min.Início em abril 2002.

ÉDIPO : A FUNÇÃO PATERNA ENTRE O MITO E A ESTRUTURACoordenação: Roséli CabistaniQuinzenal, 2ª e 4ª quartas-feiras do mês, às 20h45min.

ALGUNS CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA PSICANÁLISECoordenação: Sílvia Carcuchinski TeixeiraQuinzenal, segundas-feiras, às 18h. Em São Gabriel.Início em março 2002.

PSICANÁLISE E EDUCAÇÃO: LEITURAS DEBATESCoordenação: Sílvia Carcuchinski TeixeiraQuinzenal, horário a combinar. Em São Gabriel.Início em abril 2002.

DIAGNÓSTICO DA ESTRUTURAÇÃO SUBJETIVA EM SEUS PRIMÓRDIOSCoordenação: Silvia MolinaQuinzenal, segundas-feiras, às 20h.

ESTUDOS SOBRE A ADOÇÃOCoordenação: Silvia MolinaQuinzenal, quartas-feiras, às 20h.Data: 13 e 27/03/2002

A ULTRAPASSAGEM DO PAI NA PASSAGEM ADOLESCENTECoordenação: Valéria RilhoQuinzenal, 1a e 3a terças-feiras do mês, às 18h.Início: 19/03/02.

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VULNERABILIDADE SOCIAL: INCLUSÃO/EXCLUSÃODESDE UMA PERSPECTIVA PSICANALÍTICACoordenação: Walter Firmo de Oliveira-CruzQuinzenal, quartas-feiras, das 18h30min às 20h30min.

GRUPOS TEXTUAIS

MOMENTO DE LERCoordenação: Maria Auxiliadora SudbrackSemanal, sextas-feiras, às 16h.

SEMINÁRIO XXIII DE LACAN – O SINTOMACoordenação: Maria Auxiliadora SudbrackQuinzenal, quintas-feiras, às 14h.

NÚCLEOS

NÚCLEO DAS PSICOSESContatos: Rosane Ramalho, Ester Trevisan e Analice PalombiniReuniões mensais, segunda-feira, às 21h.

NÚCLEO DAS TOXICOMANIASContatos: Eduardo Mendes Ribeiro, Marta Contee Walter F. de Oliveira-CruzReuniões mensais, sábado, às 10h.

ARGUMENTOS DE ATIVIDADES DE ENSINO

SEMINÁRIOS – MOMENTOS CRUCIAIS DA CLÍNICA:OS TEMPOS LÓGICOS DE UMA ANÁLISE

A passagem das entrevistas preliminares à transferência propriamenteanalítica. A passagem da narrativa à interrogação do Inconsciente. Os tem-pos de rememoração, regressão, elaboração, interpretação e construção: obalanço entre o simbólico e o imaginário. A angústia própria de aproximaçãoao fantasma. Não há resolução do sintoma sem interpretação do fantasma.A torsão do Sujeito suposto saber, atribuído ao analista, para a livre errânciado Sujeito suposto saber: o fim de análise.

Alfredo Jerusalinsky

SEMINÁRIOS – SEMINÁRIO: A PERSISTÊNCIA DO SINTOMA “O analista é sintoma da psicanálise” (J. LACAN)

 O lugar de partida sempre está referido à prática psicanalítica. Comocada analista elabora um dizer de sua escuta e as transformações que vaisofrendo como efeito desta “prática de uma ética”.

Algumas questões a respeito de como se autoriza um analista,reconhecendo que toda análise inicia-se pela escuta de uma demanda, vestidacom o discurso do sofrimento.

A clínica psicanalítica, citando Lacan: “é o que se diz em uma análise”.Nos interessa a persistência e mudanças no sintoma. Algumas

mudanças acontecem, outras parecem ter uma consistência que lhes dáuma particularidade de parecer imutável. Queixas versus estilo?

Persistência, insistência, resistência. Perseverar para não recuar frenteao real e suas articulações imaginárias e simbólicas.

Será o desejo do psicanalista uma forma de per-severar?Nos interessa percorrer estas e outras indagações. Não tanto para

encontrar uma definição estrita do sintoma analítico, mas uma maneira dedizer como lidamos com seus efeitos.

Um deles: a própria disposição à prática da psicanálise. Outro, percorrerconceitos desenvolvidos a partir da tomada do sintoma como estrutura,

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cotejados com algumas idéias desencadeadas no “Eu na teoria de Freud ena técnica da psicanálise”.

O sintoma articulado como inibição da função simbólica foi um dospontos de partida. Vamos tentar desenvolver esta interrogação sobre adimensão Simbólica e sua articulação com Real e Imaginário.

Robson de Freitas Pereira

SEMINÁRIOS – A TOPOLOGIA DO OBJETO NA PSICANÁLISENo Seminário O objeto da psicanálise, de 1965-66, também conhecido

como Seminário XIII, Lacan faz uma retomada de todas as questões datopologia que vinha apresentando desde os primórdios de seu ensino.

A esteira dos Problemas cruciais da psicanálise, este seminário dáseqüência a questões muito importantes para compreensão da Lógica doSentido, que viria a seguir, e da teoria dos nós que seria introduzida nos anosposteriores.

Tendo em vista a preparação e tradução do Seminário O objeto daPsicanálise, de J. LACAN, para o próximo Seminário de Verão da AssociaçãoFreudiana (AFI), que vimos desenvolvendo junto com o “Grupo de traduçõesfrancês-português AFI - APPOA - CEF Recife - Tempo freudiano RJ”, proponhoeste assunto como tema do Seminário de Topologia para 2002.

Será retomada a topologia e a lógica das identificações, através desuperfícies como o toro e a banda de Mœbius. Avançaremos, com Lacan, noaprofundamento da análise do conceito de objeto a , decifrando o quadro LasMeninas, de Velasquez, e através do estudo das estruturas do plano-projetivo,do cross-cap e da garrafa de Klein.

Ligia Gomes Víctora

SEMINÁRIOS – PSICOSSOMÁTICA:INTERDISCIPLINA E TRANSDISCIPLINA

A psicossomática é hoje um tema abordado por múltiplas disciplinas– inclusive a psicanálise – geralmente de forma isolada, com pouca ounenhuma interlocução e questionamento recíproco entre elas. A abordagemmultidisciplinar é, por isto, empobrecida e reducionista, pois cada disciplina

cuida de seu objeto de estudo, sem levar em consideração as demais,tomando o sujeito, que está sendo atendido, de forma fragmentada.

Este seminário visa a constituição de um espaço comum, onde osparticipantes (de diferentes especialidades), partindo do desejo deinterdisciplinaridade, possam construir uma rede de significações que articuleas respectivas disciplinas e transcenda as fronteiras dos saberes de cadauma. Isso não implica uma descaracterização de cada disciplina, mas, sim,a construção de um saber compartilhado, a partir do trabalho das diversasespecialidades e em função de intervenções clínicas específicas dosparticipantes.

A psicanálise, neste contexto, é o fio condutor da comunicaçãointerdisciplinar, através de uma concpção compartilhada (a ser construída nodescorrer do seminário), a respeito do sujeito do desejo e do posicionamentoético comum que decorre da mesma, o que permite a convergência dasdiferentes especialidades na transdisciplinariedade.

Com este objetivo, serão trabalhados textos psicanalíticos de diferentesautores, bem como contribuições das disciplinas dos participantes presentesou de convidados, centrados em torno de intervenções clínicas.

Dirigido a profissionais de diferentes áreas interessados no tema.Jaime Betts

SEMINÁRIOS – A CLÍNICA DA NEUROSE:FANTASIA E SINTOMA

Neste seminário serão trabalhados conceitos freudianos a partir daexperiência clínica contemporânea. É um seminário sobre a clínicapsicanalítica, visando especialmente ao tratamento das neuroses. Para tanto,serão utilizados textos de Freud, contribuições de Lacan e de outros autores,assim como fragmentos clínicos clássicos. Os textos freudianos escolhidospara este trabalho permitirão abordar questões clínicas relevantes, tais como:fantasia inconsciente, sintoma, trauma e traumatismo, identidade eidentificações, questões da técnica analítica, transferência enquanto hipótesesobre o saber no outro, interpretação e ato analítico. Isso visa exclusivamenteà elaboração de operadores da clínica da neurose. A formação psicanalítica

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se dá na composição singular entre a análise pessoal, a supervisão, o estudo,e dar conta a seus pares de sua prática, na Instituição Psicanalítica. Esteseminário está situado nesse contexto.

Mario Fleig

GRUPO TEMÁTICO – DIAGNÓSTICO DA ESTRUTURAÇÃOSUBJETIVA NOS PRIMÓRDIOS DA INFÂNCIA

Esta é uma proposta para realizar um trânsito pela leitura clínica daestruturação do desenvolvimento do recém-nascido, do lactente e do bebênos seus aspectos diacrônicos e sincrônicos. Efetuando tanto o deciframentoda produção dos bebês “ditos normais” quanto a leitura dos valoressintomáticos das alterações na inscrição e na constituição desejante. Assimcomo, também, do valor sintomático das alterações orgânicas.

Na leitura, feita a partir da análise de registros escritos e de filmagensde produções dos recém-nascidos, lactantes e bebês no laço parental,abordaremos:

A formação do fantasma a partir:– da sexuação– da identificação primária– da filiação

A formação do sinthome: (modos de produção de artifícios parasuportar a conexão com a realidade – sintomas de estrutura.

As filmagens e os registros escritos enfocarão a atividade espontâneados recém-nascidos e dos lactentes nos ritmos da vida cotidiana instauradosatravés da especificidade da lógica das funções parentais:– na escolha do nome– na montagem do colo– na alimentação– na higiene e no banho– nos rituais indutores do sono– na administração dos momentos livres da vigília, por parte dos adultoscuidadores– na comunicação: o “manhês” e o brincar (neste momento sustentados

pela produção simbólica materna)– na mostração de objetos , assim como na sua construção e na relaçãocom os outros.

No referido aos bebês e ao registro da vida cotidiana, acrescentaremos:o registro da progressiva complexidade da sua atividade psicomotora (amplae fina) no brincar com objetos. Atividades que, enquanto expressões decomunicação e linguagem, constituem os dois âmbitos de leitura possíveis:a- da ordem subjetiva: (lógica do processo primário)b- da ordem cognitiva: (lógica do processo secundário).

A partir da experiência da escuta de mulheres grávidas ou de casaisque esperam um filho, faremos a leitura clínica da especificidade da lógicadas funções parentais, desde a qual a futura mãe e/ou os futuros pais irãoinscrever o bebê na sincrônia. Exercício este que nos permitirá montarsubsídios teórico-clínicos para conseguirmos operar, preventivamente, naconstrução do desenvolvimento na diacrônia.

Também pensaremos a incidência que os sintomas clínicos, formadosnestas épocas da vida poderão, ter no psiquismo do adulto e suasconseqüências na operação clínica.

Silvia Eugenia Molina

GRUPO TEMÁTICO – ESTUDOS SOBRE A ADOÇÃONos dias 13 e 27 de março do corrente ano, às 20h, serão retomadas

as atividades iniciadas em 5/12/01, acerca do tema adoção e suas vicissi-tudes. O grupo de estudo terá orientação teórico-clínica, e visa investigar osdesdobramentos provocados pelas singularidades do ato da adoção.

Silvia Eugenia Molina

GRUPO TEMÁTICO – A ULTRAPASSAGEMDO PAI NA PASSAGEM ADOLESCENTE

A partir da obra freudiana, tanto a subjetividade quanto a culturaorganizam-se numa polaridade exceção-identidade. E os diferentesdeslocamentos do lugar de exceção que se produzem na História dizem

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respeito a um trabalho de representação desses dois lugares. Na civilizaçãoantiga, o lugar de exceção era ocupado pela transcendência, a qual se faziarepresentar pelos deuses. A originalidade de Freud foi ter percebido queesse lugar, a partir da universalização da religião monoteísta, passou a serocupado pelo Pai. E o que lhe permitiu esta “escuta” do sintoma social foi terencontrado, na cultura, a mesma ficção do Pai contida nas novelas familiaresde seus neuróticos. Por esta razão, a instauração do monoteísmo consistiuem uma mudança tanto na subjetividade quanto na cultura: é a mesma formade relação ao Pai (o sintoma) que faz laço social, que faz a passagem, nosentido de dissolução das fronteiras, do campo subjetivo ao cultural e vice-versa.

Tomando a adolescência como paradigma do sujeito moderno e aadolescência como uma operação de passagem, o que poderemos pensarsobre a forma de relação ao pai, o sintoma e o laço social contemporâneos?

Valéria Rilho

GRUPO TEMÁTICO – PSICANÁLISE & EDUCAÇÃO:ARTICULAÇÕES ENTRE PULSÃO E TRANSFERÊNCIA.

O trabalho propõe-se a traçar um percurso pelos conceitos de pulsãoe transferência com o objetivo de pensar suas contribuições ao debate, quejá firmou sua tradição, entre a Psicanálise e a Educação. Para tanto, debruçar-se-á sobre textos de Freud e Lacan.

Constituem o núcleo do estudo os seguintes trabalhos de Freud: Trêsensaios sobre a teoria da sexualidade (1905); A pulsão e seus destinos(1915); Além do princípio do prazer (1920); Leonardo Da Vinci e umalembrança da sua infância (1910). De Lacan, o texto norteador será OSeminário XI – Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise.

Num primeiro plano, como horizonte deste percurso, situam-seindagações que concernem ao campo da Educação – como a pergunta sobrea operatividade do conceito de pulsão para pensar a construção doconhecimento ou, ainda, a proposição da noção de transferência como fioarticulador da relação ensino – aprendizagem. Sabe-se, porém, que o trabalho

com referidas questões, a partir de conceitos como pulsão e transferência,reenviar-nos-á, incessantemente, a problematizações oriundas do campo daclínica psicanalítica, principalmente da clínica com crianças e adolescentes.

As elaborações em torno do conceito de pulsão, cunhado por Freud, eredimensionado por Lacan, propiciam a articulação de algumas questõesque remetem tanto ao campo da Psicanálise, quanto ao da Educação, emboraencontre em cada um deles desdobramentos singulares.

Numa nota de rodapé, acrescida em 1924 ao texto Três ensaios sobrea teoria da sexualidade, de 1905, Freud situa: “A teoria das pulsões é a partemais importante da teoria psicanalítica embora, ao mesmo tempo, a menoscompleta”. Que Freud tenha dito isto após a publicação de Além do princípiodo prazer (1920), texto que redimensiona o seu longo trabalho com a pulsão,faz abrir um campo de pesquisa para os que o sucederam, assim comodemarca a complexidade desta noção.

Para falar de pulsão, Lacan, no Seminário XI, recorre ao conceito deOutro, pois é a partir dele que a pulsão se inscreve no corpo da criança. Senos reportarmos para a estruturação psíquica do sujeito desejante, logoatentaremos para a fundamental importância da inscrição do Outro nosmovimentos de investimento e apropriação, por parte do sujeito, dos objetose, por conseguinte, do conhecimento. Logo, a constituição do sujeito doconhecimento passará, necessariamente, por um Outro, que inscreve acriança num campo de linguagem e de possibilidades. As vicissitudes doaprender, portanto, vão estar atreladas, desde o início, às marcas inconscientesinscritas no sujeito.

Perguntar-se sobre os meandros da construção do objeto e o lugar doOutro neste circuito pode interessar aos que pensam o campo da Educação.Tais interrogações têm seus desdobramentos para pensar a construção doconhecimento e a relação ensino-aprendizagem, tendo como baliza a estru-turação do sujeito e as repercussões que possa operar para o desenvolvimentodo conhecimento.

Simone Moschen Rickes e Marianne Montenegro Stolzmann

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GRUPO TEMÁTICO – VULNERABILIDADE SOCIAL:INCLUSÃO/EXCLUSÃO, NUMA PERSPECTIVA PSICANALÍTICA

Freqüentemente os profissionais que atuam em saúde mental têmsido convocados a dar sua “contribuição” na promoção do reconhecimento,organização e participação de minorias (no sentido representativo, mas nãonecessariamente numérico), nos diversos dispositivos institucionais de nossasociedade. Saúde mental e inclusão social nunca estiveram tão associadas,a tal ponto que nos perguntamos como foi possível pensar uma sem a outra.

O trabalho com usuários e dependentes de substâncias psicoativastêm mostrado o quanto um discurso “terapêutico” pode fracassar quandopropõe a inclusão em um sistema, cujo ato de nomeação vem, antes, reafirmaro poder daquele que o confere. Neste sentido, o jogo do engano está dado ea inclusão pode assumir o aspecto perverso da anulação do diferente.

Walter Firmo de Oliveira-Cruz

GRUPO TEMÁTICO – ÉDIPO: A FUNÇÃOPATERNA ENTRE O MITO E A ESTRUTURA

A sociedade atual se caracteriza pelo conceito de cultura donarcisismo, desenvolvido por C. Lasch. Esse conceito implica um modo desubjetivação no qual predomina o individualismo e a exaltação do eu, que seopões ao que é primordial na experiência analítica, isto é, a desconstruçãodo eu para que o desejo possa advir. O sujeito estudado pela Psicanálisenão é esse eu da individualidade, fragmentário, sem referências universais evalores simbólicos, constituído apenas por identificações imaginárias. Talmodo de representação do sujeito contemporâneo parece mais uma descriçãode ordem fenomenológica , que estaria do lado de afirmar uma nova ideologiapós-moderna, do que pensar esse sujeito contemporâneo a rigor.

Em termos psicanalíticos o sujeito não se desenvolve, ele se constituia partir de duas encruzilhadas estruturais (Lacan): o estádio do espelho e ocomplexo de Édipo.

Fundamental na problemática edípica e da castração é a função pa-terna. Já em 1938 Lacan relacionava o aparecimento da psicanálise a uma

crise psicológica, ligada ao declínio social da imago paterna e seusdesdobramentos: enfraquecimento do poder da família, do poder do pai emseu interior, ... Porém a função paterna se distingue do papel familiar e daimagem social do pai. Sem dúvida temos hoje uma fragmentação dapaternidade, que aponta à necessidade de pensar de outra forma o pai.Devemos interrogar também em que medida não devemos pensar de outraforma as problemáticas em torno do Édipo na atualidade e suasconseqüências.

A empreitada que estamos propondo se destina a estudar as evoluçõesteóricas que o conceito do Nome-do-pai teve no ensino de Lacan, fazendoum contraponto com as produções psicanalíticas atuais em torno do tema,suas conseqüências clínicas e éticas.

GRUPO TEMÁTICO – INTRODUÇÃOÀS ESTRUTURAS CLÍNICAS FUNDAMENTAIS

O objetivo deste Grupo é introduzir o estudo sobre as estruturas clínicasbásicas – neurose, psicose e perversão –, visando discernir as especificidadesde cada uma, bem como os conceitos que fazem laço entre elas.

Trabalhar a teoria destas estruturas paralelo às suas manifestaçõesclínicas no vínculo transferencial é uma via de introdução à psicopatologiapsicanalítica, que rompe com os clichês diagnósticos psiquiátricos, baseadosna observação dos sintomas e abre possibilidades para uma verdadeira “escuta”do discurso dos analisantes.

Návia T. Pattussi Bedin

GRUPO TEMÁTICO: “CLÍNICA PSICANALÍTICA:ALGUNS CONCEITOS FUNDAMENTAIS”

Defrontar-se com o início da prática clínica faz gerar inúmeras questõesque o desafio da condução do trabalho coloca. Da mesma forma, introduzir-se nas primeiras leituras dos pressupostos teóricos da psicanálise trazinterrogações. A pesquisa freudiana, desde o seu início, passou por váriastransformações no que se refere ao método, à técnica e à construção dosconceitos. O trabalho deste grupo de estudos visa resgatar os principais

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pontos da construção de alguns conceitos que estruturam o corpo teórico dapsicanálise enquanto essenciais à prática clínica e com ela fazendo suaarticulação. Este estudo será também orientado por uma releitura dascontribuições de Lacan em seus Seminários. A trajetória inclui questõesrelativas ao início do tratamento, aos conceitos de transferência e identificação,como também aos quadros clínicos. Pretende-se que a introdução ao estudodestes temas possa ser articulado à prática, a partir de exemplos clínicos. Édestinado a todos os que se sentem convocados pela discussão destestemas e também àqueles aos quais a prática clínica psicanalítica e seuspressupostos teóricos suscita interrogantes.

Carmen Backes

GRUPO TEMÁTICO – ALGUNS CONCEITOSFUNDAMENTAIS DA PSICANÁLISE

O que é a psicanálise? O que fundamenta a sua prática? Quais são osseus limites e os seus efeitos na estruturação psíquica do sujeito?

Pretendemos trabalhar, a partir desses interrogantes, os conceitos deinconsciente, repetição, transferência e pulsão, tendo como referencial oSeminário 11 de Lacan e textos freudianos, que serão articulados com questõese fatos da vida cotidiana, bem como suas implicações na estruturação psíquicado sujeito. Esse grupo se destina àqueles que desejarem introduzir-se ao estudodessa temática e aos que já vem trabalhando nela há mais tempo.

Silvia Carcuchinski Teixeira

GRUPO TEMÁTICO – PSICANÁLISE & EDUCAÇÃO:LEITURAS E DEBATES

Esse grupo terá como objetivo a leitura conjunta de textos de diversosautores, dentre eles: Freud, Lacan, Maria Cristina Kupfer e AlfredoJerusalinsky, sobre educação e psicanálise. Partirá das indagações sobre oque é o desejo de saber, como é fundado, alimentado ou apagado no sujeitoda aprendizagem, uma vez que é pela educação que um adulto deixa em seufilho marcas de desejo. Destina-se a pessoas que trabalhem na área ou quetenham interesse em estudar e debater questões acerca da educação nosdias atuais e pensar sobre seu destino num futuro próximo.

Silvia Carcuchinski Teixeira

GRUPO TEMÁTICO – REFLEXÕES CLÍNICASEmbora não tão frequentes, temos na história da psicanálise vários

textos nos quais psicanalistas procuram “dar conta” diretamente de sua práticaclínica. Como perceberam a posição em que foram colocados, de que formaesboçaram e se pensaram no momento mesmo de tomar uma decisão clínica,em que perspectiva adotam a “regra fundamental” proposta por Freud, paraque ela possa seguir produzindo efeitos “de verdade” naqueles que procuramuma psicanálise. Esse “diálogo”, espera-se, pode colaborar como uma referênciaao trabalho clínico, uma vez que, como sabemos, não se fica isento de assumira responsabilidade que nos cabe no ato analítico.

Temos várias sugestões para começar esse trabalho: Freud, desde os“Escritos Técnicos”; Lacan, no Seminário 1, dedicado a estes textos freudianos;Lacan, ainda e principalmente, no belo texto de seus “Escritos”, intitulado “Adireção do tratamento e os princípios de seu poder”. Entre outras, a 14ª Revistade nossa Associação, “Ato e Interpretação”, que reuniu textos de vários denossos membros, apontando aspectos relativos ao tema, que para cada um sedestacava. Leclaire, em “Psicanalisar”, e L. Battaille, com “O umbigo do sonho”,possuem cada qual capítulos, nos quais narram situações e decisões clínicasque tomaram. Para além disso, há que ver como outros psicanalistas se situarame se situam, em qual perspectiva se colocam frente à prática clínica. Da mesmaforma, cada texto pode convocar outros textos, temas e conceitos dapsicanálise, considerados aí fundamentais para a abordagem clínica, que seriamentão averiguados. É o que propomos investigar nesse trabalho temático,partindo de um texto que foi produzido para a mesma revista, “Ato eInterpretação”, que tem como título: “Pequena história de uma Clínica”, e quepode dar uma idéia prévia da direção que será tomada.

Carlos Kessler

GRUPO TEMÁTICO – PSICANÁLISE E CULTURATranscorridos três anos desta atividade, tivemos a oportunidade de

percorrer toda uma gama de temas e autores que muito tem produzido, noBrasil, sobre esta temática. Assim, além das publicações de nossaAssociação, “freqüentamos” Calligaris, Maria Rita Kehl, Octávio de Souza,

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Luis Cláudio Figueiredo, Joel Birman, Jurandir Freire Costa, entre outros.Considerando ainda temas que eventualmente se destacassem durante estetempo, fomos a produções da imprensa, particularmente em jornais e revistas,buscando fazer uma leitura a partir das referências que assim construímos.Este caminho nos ajudou a dimensionar esta perspectiva que considera osujeito radicalmente indissociado do social.

Para este próximo ano, a proposta é de retorno, para talvez um novogiro, que permita contemplar antigos e novos participantes da atividade. Nessesentido, está proposto iniciar o ano com a leitura de Freud, texto “O futuro deuma ilusão”, não só por abordar a religião, tema que se revela “fundamental”face aos acontecimentos do início do milênio, mas, principalmente, por nosdar pistas para pensar o lugar e a função dos ideais, questão que tem seimposto na direção de nosso trabalho.

Carlos Kessler

GRUPO TEXTUAL – LE SINTHOME (SEMINÁRIO XXIII - 1975-76)O SINTHOME

Lacan escolheu a antiga palavra francesa sinthome como uma maneirade escrever Symptome , ou seja, o sintoma. Quase ao finalizar sua trajetóriade ensino, Lacan vai ligar sua leitura de Joyce com avanços no estudo do nóborromeu, apresentando não três, mas quatro nós: o Simbólico, o Imaginárioe o Real, entrelaçados com o Sintoma, que se torna o âmago do sistema.

Mantendo rigorosa unidade interna, apresenta uma sequência reno-vadora em várias questões clínicas, ao mesmo tempo que nos mostra, deuma forma muito especial, a relação da psicanálise com a arte literária deJoyce, a da palavra, da letra, do equívoco, do atravessamento das línguas.Também uma tentativa de Lacan para uma nova abordagem da arte.

Por outro lado, comenta o desejo de Joyce de se fazer um nome paracompensar a carência paterna, aliada à necessidade de se encarregar dopai para fazê-lo existir: “Ulisses é o testemunho de por que Joyce continuaenraizado em seu pai enquanto o renega, e é bem isto que é seu sintoma.”

Se tudo é sintoma, poderemos um dia viver essa trindade do RSIapenas? O que resta quando “o real forclui o sentido”?

Maria Auxiliadora Pastor Sudbrack

GRUPO TEXTUAL – MOMENTO DE LERPropomos um espaço dedicado especialmente à leitura e discussão

de textos psicanalíticos. Textos variados, sem compromisso de preparo prévio,incluindo autores que sejam no momento do interesse dos colegas (co-legère,ler juntos), ou mesmo a opção de leitura por determinados artigos cujos assuntosestejam em pauta ou referenciados a algum movimento de estudo na APPOA.

A leitura minuciosa de um escrito, com função de provocar um estudodetalhado (de-talhado), pretende fornecer um leque de possíveis debates emtemas por onde circulará a transferência de trabalho, a par do desejo deaprofundamento teórico sempre faltante em cada um.

Por outro lado, o trabalho de leitura em textos psicanalíticos, a partirda originalidade da letra de Freud e Lacan, levam o leitor a um lugar onde,em determinados pontos, esses escritos não constituem sentido. Osequívocos dessa leitura esburacada tendem a promover um lugar a partir doqual cada sujeito estará como que forçado a pensar.

“Nenhum sentido, pas de sens, a verdade desnuda – dirá Lacan –, olugar donde brota a desnudez é o vazio do poço do significante”.

Pretendemos iniciar os trabalhos deste ano com escritos de JeanBergès e Gabriel Balbo sobre as teorias sexuais infantis.

Por sua própria especificidade este espaço permanece sempreaberto, dirigindo-se também àqueles que só desejem nele transitar enquantoforem tratados assuntos de seu interesse.

Maria Auxiliadora Pastor Sudbrack

NÚCLEO DE TRABALHO SOBRE AS PSICOSES

A idéia deste Núcleo tomou forma no Conversando com a APPOA doano passado, em Canela. Após uma série de encontros iniciais reunindo aspessoas interessadas, o Núcleo organiza suas atividades para o ano 2002,propondo-se como espaço aberto de interlocução e articulação entre osdiferentes trabalhos desenvolvidos em torno às psicoses por membros eparticipantes da APPOA e demais pessoas que o tema convoque, em interação

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3ª REUNIÃO PREPARATÓRIA DO COLÓQUIO

“A CONSTRUÇÃO PSÍQUICA DO ESPAÇO URBANONA PASSAGEM ADOLESCENTE”

No dia 15 de dezembro realizamos a terceira reunião do Colóquioprevisto para agosto/2002. A proposta para este dia era, seguindo a trilhaaberta pel’ Os filhos do governo, abordarmos o entrecruzamento dos temasda parentalidade e da instituição (social) a partir da leitura do livro de PhilippeJulien, Abandonarás teu pai e tua mãe.

A discussão iniciou em torno de uma importante distinção que o autorretoma de Hanna Arendt: o espaço privado/público e o social. As noções deesfera privada e pública são complementares e originárias das sociedadestradicionais: há oposição entre o lar, óikia, e a cidade, pólis.. A primeiracircunscreve o que é próprio a cada cidadão, o que lhe pertence: mulher,filhos, bens econômicos da óikia. A segunda define o que é comum, o quese compartilha, o que pertence a todos e a cada um; tem a primazia por serda ordem da lei que funda as trocas em e pela fala. Nas sociedades patriar-cais, os pais dividem entre si o poder na comunidade cívica, ao passo que oexercem de forma absoluta em suas próprias famílias.

Dentre muitos pontos pertinentes trabalhados por Philippe Julien, des-tacamos um em especial, em torno do qual centrou-se o debate: a constataçãode que os lugares parentais se recolocam nas instituições. Seria esta umaespecificidade das instituições destinadas a abrigar crianças e adolescen-tes abandonados ou em situação de risco? Neste caso, não seria difícilpensar como os responsáveis por estas instituições, a começar pelo diretor,técnicos, funcionários e monitores, se vêem convocados a fazer a suplênciados pais que supostamente falharam. Mas de onde vem este apelo?

De alguma forma, não seria este mesmo apelo ao qual cada um denós se vê confrontado quando, nas sinaleiras dos cruzamentos de nossacidade, somos abordados por crianças de rua? O mal-estar gerado pelo quenos surge como uma “falha” do social parece remeter-nos à pergunta sobre a

com o que acontece na cidade que coloca em movimento as diretrizes epolíticas reunidas em torno ao que se convencionou chamar de reformapsiquiátrica. Os encontros acontecem a partir de março, na quarta segunda-feira de cada mês, às 21h, ou, numa discussão ampliada, aos sábados, às 9h.

No encontro de março, dia 25, está prevista a apresentação do grupode pesquisa coordenado por Analice Palombini, trazendo à discussão opercurso teórico que embasou a experiência do acompanhamento terapêutico,nessa passagem do âmbito fechado da instituição para os espaços abertosda cidade e as formas do morar.

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subjetividade, pois traz em si a possibilidade do sujeito enunciar “eu” a partirdo “contar-se” em uma história.

Assim, ficou mais claro para nós a função da família, ou melhor, doslugares parentais, na construção de um sujeito. E o testemunho disto tive-mos na reunião anterior, a partir do relato de Roberto da Silva, em Os filhosdo Governo: o processo de anulação da subjetividade por que passaram ascrianças internas na Febem/SP, durante o período da ditadura militar, aoserem impedidas de ter acesso à sua origem e história familiar.

O que se coloca como questão nesta reunião é por que razão oslugares parentais “ressurgem” no social? Por que a “reencarnação” das fun-ções parentais se recoloca no assunto das instituições? E quais os efeitosdisto?

Sabemos que, a partir do ECA, as instituições destinadas ao cuidadodas crianças e adolescentes em situação de risco iniciam um processo dereformulação estrutural, caracterizado pelo desmonte da instituição total vi-gente até então. Os abrigos residenciais organizam-se em torno do modelofamiliar, justamente com a idéia de evitar gerar novos “filhos do Governo”.Mas a questão sobre os lugares reaparece no momento da saída da institui-ção dos adolescentes que atingem a maioridade: sair de onde para onde?Sair implica um dentro e um fora. Se os abrigos são uma instituição social,de onde estaria saindo o interno? De qualquer forma, uma importante ques-tão se coloca neste momento de saída: o lugar ocupado pela instituição,pelo social.

Os Conselhos Tutelares são criados com o propósito de resguardar odireito da criança e do adolescente de usufruírem de um benéfico convíviofamiliar. Com este intuito, recebem a atribuição de fiscalizar, interferir e atémesmo impedir esta convivência quando considerada danosa. É interessan-te observar, como diz Philippe Julien, como a parentalidade deixa de ser umassunto exclusivo àquele que exerce a autoridade paterna na ordem privadapara ser legislado pelas instituições sociais, incluindo-se aí os saberes téc-nico-científicos da psicologia, pedagogia, pediatria, nutrição, direito, psica-nálise, etc. O que isto poderia dizer do sintoma social contemporâneo?

responsabilidade. Mas responsabilidade de quem? Da sociedade? Nossa?Dos supostos pais que falharam?

E o que pensar sobre o depoimento dos pais que, em algum momen-to, “desabafam”, confessando-se impotentes e desistentes da condução daeducação do seu rebelde filho adolescente? Esta desistência não seria umaespécie de “abandono”? Um abandono do filho ideal, logo, dos pais ideais.

Nesse sentido, as contribuições feitas por Silvia Molina (2001) acercada adoção, na Revista da APPOA nº 21, parecem-nos extremamenteelucidativas. A autora aponta-nos o quanto as questões sobre a origem dascrianças adotivas são tomadas por seus pais adotivos como um sinal dofracasso parental na referência a uma parentalidade ideal (os genitores bioló-gicos). A pergunta sobre o desejo (a castração da Mãe) que lhe deu origem(um lugar de filiação) fica velada por outra: a interrogação sobre a potência/impotência da mãe na referência à Mãe ideal (gozo do Outro primordial).Pergunta esta tanto mais irrecusável na medida em que ela remete à relaçãoda mãe adotiva com sua própria mãe. Mas seria isto uma especificidade dosfilhos e pais adotivos?

No texto A novela familiar do neurótico, Freud (1908) aborda a ne-cessidade de duplicação das figuras parentais para exaltação ou degrada-ção através das fantasias infantis. A partir da fantasia de ser filho adotivo,freqüente na infância, o autor sustenta que tal duplicação origina-se da riva-lidade edípica com o pai: “se os meus pais não são os meus pais verdadei-ros, então rivalizar com o pai e ficar com a mãe não será incesto”. Ou seja,o pai é obstáculo ao incesto, ao gozo do Outro (a Mãe). Assim, o incestopassa de impossível a proibido. No Mito individual do neurótico, Lacan (1987)aborda as duas funções desse desdobramento, possibilitando uma redefiniçãodo édipo, castração e incesto. Ana Costa, em A ficção do si mesmo (1998),emprega o termo “recontagem” para assinalar essa dupla função: 1) narrarnovamente; 2) refazer a conta. A versão ficcional do neurótico reconta e refazuma estrutura e a castração que o precedem (a origem) como se estas setratassem de uma versão individual, seguindo o roteiro do drama edípico. Épor isso que, para Freud, o Complexo de édipo é um marco fundador da

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público, o da parentalidade. Esta disjunção se amplia sem cessar produzin-do diversas figuras de disjunção entre uma sexualidade privada, porém semreprodução, e uma família pública (ou uma parentalidade sem sexualidade).Quais os efeitos disto? É possível uma transmissão se efetivar num contextoem que o desejo se encontra assim problematizado?

Não parece ter sido por acaso que, em Freud, o Complexo de édipo,que situa a família nuclear, é o contexto onde o sujeito experimenta a castra-ção. É no mínimo entre três – mãe/filho e pai – que pode surgir a interroga-ção pelo desejo e a referência ao significante da castração (o falo). Emboraa compleição familiar possa variar de acordo com as diferentes culturas, aestrutura se mantém: há sempre uma relação interditada por um terceiro.Esta é a lei do desejo, lei da Cultura, condição de humanização, e a antropo-logia sempre deixou isto muito claro desde seus primórdios.

Não poderíamos pensar que, quando a pergunta pelo desejo do Outroprimordial (materno) não encontra uma referência terceira (paterna) que per-mita uma resposta singular, perdemo-nos facilmente no terreno da frustra-ção? Campo, este, onde somos mais um dentre tantos objetos a atestar apotência do Outro materno bem como a insuficiência do Pai frente a esteOutro. Remetemo-nos aqui ao Seminário 4 de Lacan.

Como vemos, muito ainda temos para percorrer na direção de umaséria reflexão sobre o nosso “familiar” cotidiano social.

PRÓXIMAS REUNIÕES:Em março, estaremos reunidos no dia ?? (sábado), às 9h30min, e no

dia ?? (quinta-feira), às 20h30min, na sede da Appoa. Lembramos que asreuniões são abertas aos interessados.

Valéria Rilhop/ Coordenação do Colóquio

A generalizada queixa de que falta lei ou de que falta Pai (agente dalei), já o sabemos, conduz a uma espécie de ortopedia paterna. Em que istodiferiria da queixa das histéricas de Freud? De qualquer modo, desde auniversalização do monoteísmo, o que organiza os laços na cultura é o mes-mo que organiza a subjetividade: a relação ao pai (o sintoma), ou seja, osacrifício de si ao Pai.

Nesse ponto, as contribuições de Philippe Julien acerca do nasci-mento do social trazem-nos novos elementos.

Com o mundo moderno, passamos da comunidade à sociedade. Aesfera pública muda: se publikum designava o público enquanto ele se encarnaem tal ou qual grupo dado, öffentlich designa a abertura ao “qualquer um”anônimo.

O comum era vivido no que se chamava uma comunidade: a cidade, atribo, a aldeia, a “comuna” de outrora. Pela festa pública, onde celebravam-se o nascimento de um filho, o casamento e a morte de um pai, o que é“próprio” a cada um era “realçado” por e no em “comum”.

A sociedade moderna vem substituir a comunidade antiga: anonimatourbano, mobilidade profissional, desarraigamento cultural, universalismo daprodução científica e técnica, nascimento dos meios de comunicação demassa, oposição entre a setorização estreita da competência administrativae o apelo a uma reflexão global sobre o acontecimento encontrado.

Em resumo, a comunidade antiga consistia numa fratria fundada nahistoricidade de uma tradição cultural, enquanto que a sociedade modernaconsiste na chamada sociedade de massa. Até aqui Julien parece seguirHanna Arendt.

O interessante é que este social moderno, ao invadir o familiar privadoe a cidade pública, modificou profundamente a relação entre eles. De quemaneira? A parentalidade, outrora relativa ao exercício da autoridade paternano âmbito privado, passa a ser de domínio público. E a conjugalidade, antesassunto de ordem pública, fica reservada à esfera privada.

Portanto, para Julien, a modernidade se define por uma nova clivagementre privado e público: o privado tornando-se o lugar da conjugalidade; e o

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NOTÍCIAS

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ERRATARetificamos que o horário proposto para o Grupo Temático “A ultrapassagem dopai na passagem adolescente”, divulgado no Correio n. 98, Notícias, p. 20, é 18h.

NOVO TELEFONEUbirajara Cardoso comunica seu telefone: 9659.4057.

CARTEL DO INTERIOR No dia 23 de novembro, tivemos a última reunião do Cartel do Interior,

no ano de 2001. Na ocasião, foi feito o balanço das atividades do carteldurante o ano e as perspectivas de trabalho para 2002.  Na avaliação, mere-ceram destaque as jornadas realizadas fora de Porto Alegre, organizadaspelos membros da APPOA nas suas respectivas cidades, e o produtivo efei-to dos trabalhos de discussão dos textos para o Correio da APPOA, queestava a cargo do Cartel do Interior.

Os colegas de Rio Grande trouxeram para a discussão o seu mal-estar em razão da não existência de um psicanalista na cidade e das dificul-dades com que se defrontam para sustentar e avançar num trabalhointerdisciplinar atravessado pela psicanálise. Produziu-se um debate inte-ressante, no qual ponderamos, entre outras coisas, que a formação analíticase dá em transferência e, portanto, até que possa haver um movimento psi-canalítico suficientemente sólido para sustentar as questões de formação, apresença de outros psicanalistas da APPOA, em trabalhos de transmissãonas cidades do interior, parece-nos muito importante.

Para 2002, o Cartel do Interior decidiu tomar como norte o eixo temáticoda Associação para este ano: estados limites. Entretanto, foi consenso queo trabalho no cartel deve seguir contemplando as questões e impasses queos colegas das cidades do interior se deparam no exercício e na transmis-são da psicanálise.

A partir destas discussões, para a próxima reunião do Cartel, convida-mos  o colega Robson de Freitas Pereira para nos falar sobre: Questões acerca da transmissão da psicanálise.

A próxima reunião está marcada para o dia 08/03/02, 6ª feira, às 18h,na sede da APPOA. Convidamos todos os colegas interessados no tema aparticiparem.

 Coordenação do Cartel

 

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SEÇÃO TEMÁTICA

LITERATURA E TESTEMUNHONA OBRA DE PRIMO LEVI

Márcio Seligmann-Silva1

Primo Levi encerra o seu livro A trégua (1963), obra que conta a suavolta para Turim após a libertação do campo de concentração nazis-ta de Auschwitz, narrando um sonho que não cessou de visitá-lo

mesmo muito tempo após essa volta: “É um sonho dentro de outro sonho,plural nos particulares, único na substância. Estou à mesa com a família, oucom amigos, ... mas, mesmo assim, sinto uma angústia sutil e profunda, asensação definida de uma ameaça que domina. E, de fato, continuando osonho, pouco a pouco ou brutalmente, todas as vezes de forma diferente,tudo desmorona e se desfaz ao meu redor, o cenário, as paredes, as pesso-as, e a angústia se torna mais intensa e mais precisa. Tudo agora tornou-secaos: estou só no centro de um nada turvo e cinzento. E, de repente, sei oque isso significa, e sei também que sempre soube disso: estou de novo nocampo de concentração, e nada era verdadeiro fora do campo de concentra-ção.”

Essa sensação de clausura dentro da realidade do campo de concen-tração, mesmo após ter retornado a sua casa, é um tema central nas obrasdos sobreviventes dos Campos de Concentração. Primo Levi redigiu o seuprimeiro livro de relato sobre os eventos catastróficos que ele vivera logoapós ter retornado de Auschwitz. Para ele, esse livro, intitulado É isto umhomem? (1947), nasceu de uma necessidade interna de dar testemunho da

1 M. Seligmann-Silva é doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela UniversidadeLivre de Berlim, autor do volume Ler o Livro do Mundo; Walter Benjamin: romantismo ecrítica poética (S. Paulo: Iluminuras, 1999), organizador do livro Leituras de Walter Benja-min (S. Paulo: AnnaBlume: 1999) e coorganizador do livro Catástrofe e Representação (S.Paulo: Escuta, 2000). É professor de Teoria Literária e Literatura Comparada no Instituto deEstudos da Linguagem da UNICAMP.

Apresentação da Seção Temática

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SEÇÃO TEMÁTICA

meros outros sobreviventes da guerra (e por testemunhas “secundárias”, quenão vivenciaram diretamente os eventos), tais como Jorge Semprun, Ida Fink,Charlotte Delbo, Jean Améry, Robert Antelme, Tadeusz Borowski, Nelly Sachse Paul Celan, que apesar de não ter passado pela experiência do campo deconcentração, nele perdeu a sua família e ele mesmo foi internado num cam-po de trabalhos forçados.

Num poema que define a sua poética, Celan escreveu: “Nos rios aonorte do futuro / eu lanço a rede que tu / hesitante carregas / com sombrasescritas por / pedras”. Se nesse poema – curto como um epitáfio –, assombras remetem às letras sobre o papel branco, as pedras, por sua vez,como ocorre freqüentemente na poética de Celan, representam o túmulo, aslápides que a sua poesia busca levantar para os milhões de judeus quemorreram sem direito a serem enterrados.

De Paul Celan vem os versos que revelam a essência do gênero teste-munho: “Ninguém / testemunha para a / Testemunha” (Atemwende, 1967).Também Primo Levi ressaltou, inúmeras vezes, essa unicidade do testemu-nho: este expressa o ponto de vista único e insubstituível do narrador. Ossobreviventes que não sucumbiram nos campos de trabalho e que tiveram asorte de não serem selecionados para as câmaras de gás são testemunhasconscientes da limitação da sua narrativa. Como Levi escreveu em Os afoga-dos e os sobreviventes: “Nós, tocados pela sorte, tentamos narrar com mai-or ou menor sabedoria não só nosso destino, mas também aquele dos ou-tros, dos que submergiram: mas tem sido um discurso ‘em nome de tercei-ros’, a narração de coisas vistas de perto, não experimentadas pessoalmen-te. A demolição levada a cabo, a obra consumada, ninguém a narrou, assimcomo ninguém jamais voltou para contar sua morte.” Se é verdade que “nin-guém jamais voltou para contar sua morte”, não é menos verdade o fato deque os sobreviventes são aqueles que, como versões modernas e em carnee osso de Ulisses ou de Dante, visitaram ainda em vida o inferno. A impossi-bilidade da narração advém do ‘excesso’ de realidade com o qual os sobrevi-ventes haviam se defrontado. Como Hans Jonas afirmou: “Em Auschwitzhavia mais realidade do que é possível”.

sua experiência. Como podemos ler numa declaração de 1979, reproduzidana sua biografia de autoria de Myriam Anissimov (Primo Levi ou la tragédied’un optimiste, Paris, edições Jean-Claude Lattès, 1996), “provavelmente eununca teria escrito se eu não tivesse tido essa experiência para contar”.Uma das tarefas desse tipo de testemunho é a de tornar possível a “saída” dedentro do círculo de fogo que fecha, na memória, a experiência radical docampo de concentração. Mas o próprio Levi é o primeiro a constatar a impo-tência das palavras diante da tarefa do testemunho: “a nossa língua não tempalavras para expressar esta ofensa, a aniquilação de um homem”, ele es-creveu. Dessa impossibilidade de descrever o terror do Holocausto advém aimpossibilidade de se libertar da sua imagem e do seu peso: e a necessida-de de testemunhar.

Como afirmou Paul Valéry: “a nossa memória nos repete o discursoque nós não havíamos compreendido. A repetição responde à incompreensão”.Também Freud, como se sabe, descreveu no centro da sintomatologia dotrauma, a volta incessante da cena catastrófica. Aqueles que viveram a ex-periência do campo de concentração, citando Dori Laub, atravessaram “umevento sem testemunha” (leia-se o seu artigo em Testimony, organizado porShoshana Felman e Dori Laub, Nova Iorque, 1992). Em situações extremas,tendemos a mobilizar todo o nosso aparelho psíquico e corporal para a tarefamais elementar: a sobrevivência. Nessa situação, não conseguimos propria-mente ‘experenciar’ a realidade. O indivíduo não encontra-se mais nem pre-sente a si mesmo nem a realidade que o cerca é registrada de modo “nor-mal” na sua memória. Os eventos ficam como que, literalmente, inscritos natela da sua mente, sem que eles possam ser incorporados ao fluxo da suavida. A tarefa da escrita e do testemunho consiste em tentar traduzir essainscrição patológica – suspendendo, assim, o retorno constante eincontrolável à cena traumática – e, desse modo, permitir a apropriação des-sa experiência que não havia sido vivida de modo integral.

Primo Levi deve ser considerado como um dos autores que levou maislonge e do modo mais acabado a reinscrição testemunhal da catástrofe. Aliteratura de cunho testemunhal, no entanto, foi e é ainda praticada por inú-

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SEÇÃO TEMÁTICA

na convicção de que toda história é fruto do encontro, de um entrecruzar deum determinado presente com o passado. Nas notas às suas teses “Sobrea filosofia da história”, de 1940, ele escreveu: “A imagem do passado quecintila no agora da sua reconhecibilidade é de modo geral uma imagem damemória. Ela assemelha-se às imagens do passado que assaltam as pes-soas na hora do perigo.” Essa hora era a de Primo Levi e a de Walter Benja-min e, em certo sentido, ainda é a de todos nós.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Obras de Primo Levi em português:LEVI, P. Isto é um Homem , trad. Luigi del Re, Rio de Janeiro, Rocco, 1988._____O Sistema Periódico, trad. M. Rosário Pedreira, Lisboa, Gradiva, 1988._____, Os Afogados e os Sobreviventes. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1990._____, A Trégua, trad. Marco Lucchesi, São Paulo: Companhia das Letras, 1997._____, Se não agora quando?, trad. Nilson Moulin, São Paulo: Companhia das

Letras, 1999.

O testemunho não deve ser confundido nem com o gênero autobiográ-fico nem com a historiografia – muito pelo contrário, ele apresenta uma outravoz, um “canto – ou lamento – paralelo”, que se junta à disciplina histórica.

Um dos fenômenos que marcam de modo mais característico as últi-mas décadas é a insistência no tema do “fim da história”. Sem dúvida afilosofia “inexistencialista”, que gera o discurso sobre o fim da arte, do indiví-duo, do espaço público, da nação etc., em parte também alimenta o debatesobre o fim da história. O que na verdade ocorre é o fim da história nos seusmoldes tradicionais, compreendida como uma narrativa que visa a recupera-ção e a representação de um passado coletivo, nacional etc. Também entraem colapso na nossa era de catástrofes e de genocídios a própria noção deevolução linear da história. A literatura do testemunho apresenta um modototalmente diverso de se relacionar com o passado. A sua tese central afir-ma a necessidade de se partir de um determinado presente para a elabora-ção do testemunho. A concepção linear do tempo é substituída por umaconcepção topográfica: a memória é concebida como um local de constru-ção de uma cartografia, sendo que nesse modelo diversos pontos no mapamnemônico entrecruzam-se, como em um campo arqueológico: ou em umhipertexto. Como Celan mesmo definindo a sua poética afirmou, a sua poe-sia visa construir “cercamentos em torno do sem-palavra, do sem-limites”:ele quer mapear o passado. Ao invés de visar uma representação do passa-do, a literatura do testemunho tem em mira a sua construção a partir de umpresente.

Primo Levi, nascido em 1919, suicidou-se em 1987. Para ele “o suicí-dio é um ato meditado, uma escolha não instintiva”. Muitos outros sobrevi-ventes acabaram de modo voluntário com as suas vidas, tais como PaulCelan, Tadeusz Borowski e Jean Améry. Também o filosofo Walter Benjaminseguira o mesmo caminho: em 1940 ele se suicidou em Port Bou, na frontei-ra entre a Espanha e a França, quando estava sendo ameaçado de ser entre-gue nas mãos da Gestapo, a polícia secreta nazista. A filosofia da históriade Benjamin já antecipara muitos elementos da concepção da história comotrauma e da historiografia como testemunho. Ela fora decantada com base

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do novo, rasurando, substituindo, acrescentando e manchando o papel branco.Assim como a psicanálise não tenta tornar o inconsciente acessível àconsciência, mas, mais “simplesmente”, facilitar o contato entre os doismundos; o escritor não traduz em palavras um gozo antigo, antes, contenta-se em ouvir esse grão de gozo que ajuda na eclosão do inédito. Como trabalharessa escuta? Proust responde, em parte, por meio de sua personagem Swann,que, apaixonado por Odette de Crécy, adora ouvi-la tocar uma música nova,a pequena música de Vinteuil. A análise desse trecho de Em busca dotempo perdido apontou um artista que se tornava orelha e ouvido para entender,compreender e alcançar a origem do prazer que tinha, “saboreando” essamelodia extraordinária de Vinteuil , estratégia que pode servir de modelo paraqualquer escritor.

Uma das vantagens dos estudos de gênese sobre a crítica limitada aotexto publicado decorre do fato de que o crítico pode discernir o momentoexato e privilegiado da escuta e, portanto, do gozo ouvido pelo escritor. É omomento da rasura. O suspenso, a parada da pena, da caneta ou da digitação,provoca um contato do escritor com o mundo do gozo, mundo que não é,entretanto, um mundo irreal e fora da “realidade”. É o Real, por excelência.

Como descrever esse mundo? Certamente, é diferente do mundo vistopelo olhar comum, embora comece no limiar desse olhar, a partir dele, nafronteira delimitada por ele; não se situa fora de alcance da realidade, já quemantém uma ligação com ela. Nesse sentido, não é um mundo mágico,mítico ou necessariamente maravilhoso, pelo contrário. O que leva Swann aouvir esse gozo diferente, essa dor tingida de doçura, é o amor que sente porOdette de Crécy. Do amor ao gozo ou, mais exatamente, do amor à escutado gozo. Entretanto, Swann soube ou teve que se desligar desse amor, damesma forma que o escritor deve fazê-lo do olhar de todos os dias. Entrandono caminho do gozo pela rasura, percebendo outras dimensões do “real” emcontato com essa esfera do gozo, o escritor abre uma cortina, antes fechada,e enxerga coisas inatingíveis para o comum dos mortais. “Precisa servisionário, se tornar visionário”, dizia Rimbaud. Em outras palavras, a rasuraanula palavras e parágrafos, mas elimina, ao mesmo tempo, vários pontos

RELAÇÕES POSSÍVEIS ENTRE A PSICANÁLISEE A CRÍTICA GENÉTICA

 Philippe Willemart

Acrítica genética procura detectar os processos de criação por meiodo estudo dos documentos, deixados pelo escritor, que são relativosà sua obra. Estudo vastíssimo, em geral, porque inclui desde o universo

mental do escritor (as ciências da mente) até as marginálias dos livros lidos;passando pelos manuscritos; a correspondência passiva e ativa; os livrosconsultados; a conclusão, realizada por outros, da obra deixada inacabadapelo autor (a obra de Marcel Proust terminada por Roberto, seu irmão, porexemplo); as diversas encenações de uma peça de teatro ou asapresentações de uma mesma partitura musical; as “edições” sucessivas,promovidas pelo autor, de um texto ou de um quadro. É o Universo sem fimda criação artística. Evidentemente, nenhum especialista percorre esse trajetosozinho e deve trabalhar em equipe.

Entretanto, qualquer que seja a etapa do percurso analisado, oestudioso é fatalmente levado a ter contato com o homem que escreveu, amão executora de um pensamento e de uma vontade, o autor da rasura, ohomem imerso nas estruturas psíquicas, sociais e econômicas. É nesteintervalo que interfere a psicanálise. Os fundadores da psicanálise suspeitaramde uma ação do homem que escapa à sua razão e a atribuíram a forçasoriginárias e originais, que se concentram em um gozo mítico, imenso ecativante. Alucinado com esse gozo que provavelmente nunca viveu, o homemprocura reencontrá-lo por intermédio de todas as suas atividades sob diversosnomes. É a problemática do desejo, em Lacan, que explicita as tópicasfreudianas e que fundamenta a noção de “só depois”. Nesta perspectiva, aatividade do escritor não difere das outras atividades dos homens. Quemescreve tenta reativar um gozo ou uma parcela de gozo já vivida, procurandoescutar alguém que gozou no passado, um outro «eu» (je). Assim, o escritor,empurrado pela pulsão da escritura , abre um espaço à criação e ao surgimento

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passam de um para o outro . Por outro lado, os Projetos mostram que Flauberttrabalhava suas personagens por contraste, e pensava suas personagenspor par , explicação genética muito mais plausível do que a explicaçãopsicanalítica.

O que será, portanto, a leitura psicanalítica de um texto literário queinclui seu processo de fabricação?

Vejo dois caminhos pelo menos.O primeiro consiste em comparar o manuscrito ao discurso latente do

analisando; e o texto publicado, ao discurso dito. Neste caso, tudo que estáescrito no manuscrito, incluindo o texto publicado, faz parte “da memória daescritura”, que mais tarde, chamei “o inconsciente genético” . Assim, opesquisador poderá detectar processos ou movimentos da escriturasemelhantes ao recalque, que podem ser relacionados com as metáforas dotexto, ou outros movimentos parecidos com a denegação, que corresponderãoàs metonímias ou o dito pelo não dito. Em outras palavras, o manuscritoexplicita as condensações e os deslocamentos, impossíveis de serempercebidos no texto editado. Mas essa leitura não poderá ultrapassar a mãodo escritor e chegar ao seu inconsciente; deverá limitar-se aos textos que,como qualquer discurso, vão além da mente do “scriptor”, assim chamadoporque executa tarefas ditadas pelos Terceiros ou o grande Outro, quecomporta, além da mente do escritor, as vozes da sociedade, da tradiçãoliterária e do Simbólico lacaniano. Outro dado importante, a leitura não serácronológica, mas retrospectiva, indo do texto publicado aos manuscritos,obedece à via psicanalítica do “só depois”. A lógica delineada no textopublicado explicará as lógicas encontradas nas redações sucessivas que,numa complexidade crescente, formarão o texto.

O segundo caminho é aquele que Freud indicou, sem se ater a elesuficientemente, num texto muito conhecido: “Poetas e romancistas sãopara nós aliados preciosos, e seu testemunho deve ser altamente valorizado,porque conhecem entre céu e terra muita coisa que nossa sabedoria escolarnem poderia sonhar”. Em outras palavras, o crítico tenta descobrir, nas artese na literatura, elementos que ajudam a entender as paixões da alma que

cegos que permitem enxergar o mundo de um modo diferente. Devemosentender, no entanto, que esse olhar baseado no escutar das origens dogozo do escritor não radiografa somente a vida pessoal do escritor, que nessemomento transforma-se em “scriptor”, mas também a sociedade na qual elevive. Queremos dizer que o silêncio, decorrente da ou provocado pela rasura,ocasiona dois movimentos.

Em primeiro lugar, uma volta, ou melhor, a reabertura de uma região“ignorada” pela maioria, embora fortemente vivida, a saber, o mundo daspulsões e dos afetos, a região denominada semiótica por Júlia Kristeva. Emsegundo lugar, uma visão mais fina do contexto no qual vive o escritor, quelhe permite detectar elementos habitualmente invisíveis, apesar de integradosna sociedade. Muitas vezes, o escritor não toma consciência exatamente dopercebido, mas o traduz na estrutura ou no discurso das personagens, nadisposição da narrativa, no mundo evocado ou no estilo adotado, sem saber.O crítico “descobre” e “revela” essa visão diferente e, às vezes, conseguerelacionar a escritura com um grão de gozo.

A leitura psicanalítica determina o alvo, encontrar um gozo; a críticagenética descobre os caminhos traçados no manuscrito. Determinar a parcelade gozo é quase impossível na ausência do escritor e fora de uma escutapsicanalítica do escritor, mas refazer os caminhos da criação é plausível apartir do manuscrito.A crítica genética, porque estuda o fazer da escritura, aconstrução do romance ou o surgimento da poesia, tem uma posiçãoprivilegiada nesse sentido.

Flaubert confundia, por exemplo, duas personagens no manuscrito deHerodías, Antipas e Herodías, marido e mulher. “Indiferenciação sexual”deduziria um psicanalista apressado. Mas, já que Flaubert não está no divãpara confirmar e determinar os objetos desejados em causa, ou seja, aspessoas que provocaram essa confusão, a indiferenciação sexual fica purasuposição teórica e extrapolação gratuita. O crítico pode somente constataro efeito narratológico dessa confusão, isto é, a indistinção das personagens,a sua difícil separação ou, ainda, o efeito de vasos comunicantes entre esses“seres de papel” nas campanhas de redação, quando algumas qualidades

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NOTAS DE LEITURA – O NARRADOR – DE W. BENJAMINPOR QUE ISSO INTERESSARIA A UM PSICANALISTA?

Lucia Serrano Pereira

Onarrador – considerações sobre a obra de Nicolai Leskov é umtexto de 1936, um dos mais importantes da obra de Walter Ben-jamin. Se este tema, o da narração, é sempre retomado ao longo de

sua obra não é sem razão. É sob o significante da narrativa e da narraçãoque Benjamin faz passar as grandes questões de seu tempo. Concentra emsi, de maneira exemplar, os paradoxos de nossa modernidade, aponta JeanneM. Gagnebin.

No âmbito da psicanálise, trabalhar o narrador benjaminiano pode seruma oportunidade fecunda de pôr em questão, no contato com um estilo euma elaboração extremamente interessantes, aquilo que não pára de nosocupar: o campo do sujeito e o campo do Outro.

Poderíamos apontar pelo menos três grandes vertentes de trabalhoque o texto permite e propõe interrogar:– a questão da enunciação – desde onde se fala – na relação à passagemque envolve a modernidade;– de onde esta fala se autoriza – discussão do lugar da tradição, da autoridade,dos lugares transferenciais;– a produção na cultura – a arte, o novo, o ato, as inscrições dos produtosculturais e seus lugares (associada ao texto sobre a reprodutibilidade técnicada obra de arte, onde trata do declínio da aura dos objetos na modernidade).

Vamos escolher um caminho pontual, alguns elementos do texto (onarrador é desenvolvido em 19 partes) que possam funcionar talvez comodisparadores, notas de leitura, indicações.

Mas primeiro, vale a pena situar – Benjamin vai ligar o termo do narradora um autor russo do século XIX relativamente desconhecido para nós, NicolaiLeskov.

Lescov é o escritor da Rússia antiga, dos contos ligados às narrativasorais em circulação, ele viajava pela Rússia reunindo documentos, lendas,

animam o ser humano. Estudei particularmente a obra de Marcel Proust .Além de sublinhar um saber parecido com o que escutamos no consultório,a obra inventa ou explicita várias maneiras de entender o ser humano. Citoapenas algumas. Uma nova maneira de relacionar os seres humanos chamada“a psicologia no espaço”, que integra a visão einsteiniana à compreensãodos seres. A memória involuntária, novo fio de Ariadne, que da sensação(sabor, barulho, tonalidade músical, sofrimento) leva a lembranças esquecidas.A leitura dos clichês (frases, hábitos, costumes,etc.) que, desenvolvidos,revelam verdades. O conceito de “tempo incorporado”, outro tipo de memória,que, incarnada no corpo físico da pessoa, faz dela um gigante, à medida quea mesma envelhece e representa as épocas vividas. O fracasso de Swanncomo crítico, devido à condensação de um imaginário pictural, de umaqualidade estética e do desejo sexual, o que revela tanto a necessidadeimperiosa para os homens de não tomar suas referências no Imaginário paraviver o Simbólico quanto a urgente distinção, para todos, entre o desejo degozo, que sustenta nossa vida e que se refere à alucinação fundamental, e odesejo sexual passageiro. A descrição do fantasma, no qual o narradorproustiano distingue a ternura que circula entre os seres que se amam, asimagens filtradas pela ternura que chegam do ser amado e a idéia que nosfazemos de alguém desde o início. A invenção da boneca interna que, porensaios e erros, forçará o amante a escolher o amado, não sem sofrimento,conforme o desenho dela. E assim poderia continuar a enumeração.O segundo caminho, além de seguir a primeira intuição de Freud, confirma oconceito de inconsciente estético de Jacques Rancière, que vê na arte umpensamento não sabido que o crítico deve delinear. Como? Seria assuntopara um próximo artigo.

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uma geração confrontada com o desamparo. Os combatentes voltavamsilenciosos dos campos de batalha, “mais pobres” em experiência e narração(os mesmos que Freud recebe e que possibilitarão as hipóteses sobre otrauma – base para seu Além do princípio do prazer).

A experiência transmitida oralmente é a fonte na qual beberam osnarradores. Dois estilos de origem são apontados por Benjamin na proposiçãode uma linhagem dos narradores: “Quem viaja tem muito o que contar”. Anarrativa que trazia os lugares distantes na figura do marinheiro; e a narrativade quem nunca saiu de sua terra mas que participa do elo das gerações,suas histórias e tradições, o camponês. O marinheiro e o camponês sãosituados como os primeiros mestres da narrativa. A tradição da Idade Média,com o sistema corporativo, participa também dessa distribuição nas figurasdos mestres sedentários e aprendizes migrantes.

Algo que vale a pena remarcar é o fato de que esse saber, essaautoridade que se decanta da experiência do narrador é de um lado degerações que se perdem de vista na articulação temporal, e de outro, deterras distantes que também têm seus limites espacialmente difusos, ouseja, há um insondável em jogo que nos permite pensar nas formas pelasquais o campo do Outro se apresenta na relação com a narrativa e com osaber. A autoridade que o saber comporta nestes contextos tem relaçãocom a Erfahrung, a experiência que traz em seu radical fahr, travessia, viagem.O saber, que vinha de longe, portava uma autoridade válida mesmo que nãofosse controlável pela experiência (à diferença da informação, que aspira auma verificação imediata).O narrador retira da experiência sua/dos outros oque conta, e transmite incluindo o narrado na experiência de seus ouvintes.O narrador marca singularmente a fala, mas a partir de falas que lhe vem delugares outros. O ouvinte não está em uma posição qualquer, as passagensdas narrativas “são salvas da análise psicológica”, quanto mais o ouvinte seesquece de si mesmo, mais profundamente a transmissão opera. Grandesacada de Benjamin. A narrativa não está interessada em informar, “elamergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assimse imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila

coisas estranhas contadas na linguagem popular.Trabalhava os jogos depalavras que reproduzem os erros de linguagem do povo, o estilo é de umhumor extraordinário, cheio de expressões, trocadilhos, invenções. A críticacontemporânea “descobre-o” há pouco tempo, relativamente aos outrosescritores russos de sua época. Sua narrativa é irônica, muitas vezes, comona novela A pulga de aço, onde os russos e os ingleses se corroem narivalidade – os ingleses vendem aos russos uma pulga de aço, tamanhonatural, quase imperceptível. Dando corda na pulguinha ela dança a quadrilha.Os russos humilhados e ao mesmo tempo maravilhados com o domínio daengenharia dos ingleses (que por sinal cobram uma fortuna não tanto pelapulga, mas pelo estojo para carregá-la sem perdê-la) convocam seus melhoresartesãos, os ourives de Tula, que trabalham e reapresentam a pulga modificada:não dança mais. Que aconteceu? Os artesãos inacreditavelmente haviamconseguido colocar uma ferradura mais do que microscópica em cada patinhada pulga – e ainda por cima a assinatura do artista em cada ferradura. Vitória,sinal da superioridade total dos ourives russos sobre a tecnologia inglesa(estrangeiro x nacional, tecnologia x artesanal).

Leskov passa também pelo trágico, pelo religioso, pela tensãodramática às vezes alucinada – Lady Macbeth de Mzsensk, Apenas umretrato de mulher, O anjo lacrado e outras novelas e contos. Segundo OttoMaria Carpeaux, Leskov é um clássico russo da maior importância, à alturade Tolstoi, Tchecov e Dostoievski.

Benjamin escolhe então Lescov para nos dizer que o narrador, “pormais familiar que nos seja este nome, está longe de ser inteiramente presente,entre nós, em sua atividade viva”. Assim inicia o texto, e essa vai ser sualinha de sustentação. A figura do narrador se distancia cada vez mais nostempos modernos. A experiência cotidiana permite pensar que a arte denarrar está em extinção, nos faz falta a faculdade de intercambiar experiência,o que antes parecia assegurado. No texto Experiência e pobreza (1933),Benjamin formula uma questão: Qual o valor de todo nosso patrimônio cul-tural se a experiência não mais o vincula a nós? O pós-guerra do início doséc. XX produzia uma geração não mais rica em histórias para contar, mas

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já compor um elo de transmissão no seu contexto –; por outro lado, nos fazpensar por onde algo da sustentação de uma prática como a psicanalíticarenova a possibilidade de estabelecer uma experiência, travessia, trabalhoque supõe um certo “percorrer”, fala e escuta sustentados por uma relaçãotransferencial, campo do Outro, inconsciente. A experiência e a narração“declinam”. O termo do declínio já vem surrado de tanto uso, mas não éequivalente ao de eliminação. Por quais caminhos se atualizam as condiçõesde um “percorrer” nos nossos tempos?

Benjamin é nostálgico?Pode ser, mas esse não é o forte de seu texto. Complexo, supondo

inúmeras interlocuções – Lukács e sua “Teoria do romance”, Montaigne,Cervantes, Heródoto, situado como o primeiro narrador grego, Kafka,Dostoievski, Gorki, Paul Valery, e vários autores de sua tradição mais próxima,a alemã; O narrador trabalha muitos cruzamentos, sem se deixar cair natentativa de preencher todas as lacunas, de recobrir todas as arestas. Ben-jamin traz em especial os limites, limiares como a relação com a morte, coma temporalidade, a negatividade, essas zonas cujas passagens, (trabalho desua vida), se articulam em cima do real que interroga a cada vez, e a cadaum na constelação discursiva que o recebe. Se a narrativa se trama com aliteratura, é de se levar em conta, como nos diz Márcio Seligmann-Silva, queela é sempre marcada pelo real, ou seja, não se trata de trabalho de ilustração.Real que por outros caminhos, na prática analítica, na relação com esse seachar na fala, nos concerne.

Referências Bibliográficas

BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas. São Paulo: Editora Brasiliense, 1996.BENJAMIN,Walter. Écrits français. Paris: Éditions Gallimard, 1991.GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em W.Benjamin. Campinas: Edi-

tora Perspectiva, 1994.

do vaso”. O exemplo coincide com aquele que Lacan toma para falar darelação do simbólico e do real a propósito da ética da psicanálise.

O contraponto (ao narrador tradicional) é tecido no argumento comrelação ao romancista e sua posição no individualismo, o romance valendocomo paradigma da modernidade. Não que o romance fosse novidade enquantogênero, mas nunca na história havia sido posicionado centralmente,encontrando com a burguesia ascendente os elementos para seu novo lugar.A origem do romance é o indivíduo isolado que não pode mais “falarexemplarmente sobre suas preocupações mais importantes, não recebeconselhos nem sabe dá-los”.

Um dos momentos mais bonitos do texto: o narrador é alguém quesabe dar conselhos. Mas, diz Benjamin, se dar conselhos parece hoje algode antiquado, vale lembrar que aconselhar pode ser menos responder a umapergunta que fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história.

E aqui encontramos uma diferença na tradução do texto para a ediçãobrasileira, que merece ser considerada. No português, temos: “Para obteressa sugestão, é necessário primeiro narrar a história... No francês, textoautorizado pelo autor, temos: “Pour qu’on nous le donne, ce conseil, il fautdonc que nous commencions par nous raconter”...

Nous raconter, nos contarmos, ponto nodal. Nos contarmos, nosdizermos, dizermos do Outro que nos atravessa, ao mesmo tempo o “secontar” da inclusão, lugar desde onde poder se situar.

Seriam necessárias muitas mediações para pensar as relações entreo “se contar” da narrativa tradicional com a fala na situação da clínicapsicanalítica. Não há correspondência nem equivalência, a operação difere(isso sem falar que psicanalista tem verdadeira ojeriza com o que se chamade conselho). Mas como estamos em notas de leitura, quem sabe podemosnos permitir algumas associações. Uma vez que a associação com a éticajá se apresentou, se raconter termina por evocar o que Lacan aponta quantoà proposição da ética da psicanálise, quando enuncia: s’y retrouver dansl’inconscient, dans la structure, se achar na estrutura. Se o narradorbenjaminiano dispensaria a psicanálise, como nos diz Maria Rita Kehl – por

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a sexualidade dos campos da biologia, da moral e da religião e foi capaz deperceber nos sintomas de corpos femininos uma voz que silenciava, emboramuito já se tenha alertado para a sua dificuldade de compreender o queescutava.

Mais, ao colocar a questão o que quer uma mulher, Freud demonstroua insuficiência de um discurso que, equivocadamente, pretendia dar contado que é – e do que quer – uma mulher, utilizando-se de padrões conven-cionados pela cultura que determinavam o que deve ser e o que deve quereruma mulher.

É justamente esta declarada insuficiência do discurso vigente na culturaque possibilitou às mulheres o acesso a uma formulação do seu desejo, daqual decorre uma outra forma de sua inscrição na cultura, pois é através daposição de sujeito do desejo que as mulheres ascendem à posição de sujeitodo discurso.

Ser sujeito do discurso implica fazer-se ser falante. Para quem, segundoRicoeur, “a linguagem não é um objeto, mas uma mediação. É aquilo atravésde que, por meio de que, nos exprimimos e exprimimos as coisas. Falar é oato pelo qual o locutor supera o fechamento do universo dos signos, com ointuito de dizer algo, sobre alguma coisa a alguém” (1978, p. 73).

Introduzir a noção de discurso nos permite perceber as profundasarticulações da linguagem com o vínculo social2 e com o poder3. Articulaçõessustentadas pela dupla face da linguagem, que compreende tanto a dimensãode expressão individual, de um “eu” que através dela manifesta suasingularidade, quanto de construção coletiva, isto é, de sistema designificação, que funciona como suporte do simbólico.

2 Cf. LYOTARD, 1988. – “[...] a questão do vínculo social, enquanto questão, é um jogo delinguagem, o da interrogação, que posiciona imediatamente aquele que a apresenta, aque-le a quem ela se dirige, e o referente que ela interroga: essa questão já é assim o vínculosocial” (p. 18).3 Para Barthes, “o mundo dos significados não é outro senão o da linguagem” (2000, p. 12).Em razão disso é que se pode perceber que o mundo é controlado através do domínio dalinguagem, pois é nela que o poder se inscreve.

A EXPRESSÃO DA SUBJETIVIDADEE A “ÉCRITURE FÉMININE”1

Henriete Karam

De início, interessa ressaltar os postulados freudianos, em especialno que se referem à questão O que quer uma mulher?, formulada porFreud na Conferência XXXIII, intitulada “A feminilidade”.

Segundo Freud, o embelezamento do corpo feminino teria o sentidode torná-lo desejável, escondendo “esta deficiência sexual constitutiva ecompensando sua inferioridade sexual original” (1981[1933], p. 3176), que omarca e determina como corpo anatomicamente castrado; e a tecelagemteria sido, assim, uma das poucas contribuições das mulheres para acivilização, que com esta invenção buscavam encobrir a defeituosidade deseus genitais.

Na teoria freudiana (1981[1930]; 1981 [1931]), “anatomia é destino”.Isto permite que as mulheres sejam apontadas como desarticuladoras dopacto social, pois, em vista de sua parca capacidade sublimatória, adotamatitude hostil para com a cultura.

Quanto à patologia histérica, Freud (1981[1908]; 1981 [1917]) estabeleceuma restrita relação entre as neuroses femininas e o desejo das mulheres deterem pênis, propondo, como cura para seu sofrimento, a adoção de umpadrão de feminilidade que as relegava ao espaço doméstico e à reprodução.

Entretanto, faz-se necessário reconhecer, no surgimento da Psica-nálise, as origens de “algo” que permitiu um novo espaço para o feminino, apartir dos processos de transformação provocados pelas formulaçõesfreudianas do inconsciente e da sexualidade. Freud retirou as questões sobre

1 Parte das idéias aqui expostas foram apresentadas na Mesa-Redonda “A linguagem e asmulheres” – I Simpósio Nacional As mulheres e a filosofia, Unisinos, São Leopoldo (RS),agosto de 2001 – e na Mesa “Identidade e Gênero” – Colóquio AIL - Identidades múltiplasnas literaturas de expressão portuguesa, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande doSul, Porto Alegre (RS), dezembro de 2001.

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Principalmente se considerarmos que todos os elementos inerentesao discurso estão em dependência do “eu” que os enuncia e nele se enuncia,de tal forma que a enunciação denuncia, sempre e em alguma medida, oponto-de-vista do enunciador, ponto-de-vista que se constitui a partir de umcentro de referência interno4.

Em vista disso é que autoras como Julia Kristeva (1977), Luce Irigaray(1985) e Hélène Cixous (1983)5 têm se preocupado com “a definição de umaidentidade feminina e com suas realizações simbólicas, procurando encontraruma linguagem própria para as experiências do corpo e da intersubjetividade,deixadas mudas pela cultura dominante” (MAGALHÃES, 1995, p. 19-20).

A partir da segunda metade do séc.XX, não só aumenta signifi-cativamente o número de mulheres escritoras, como iremos encontrar o queficou denominado de “escritura feminista”, cuja proposta essencial é deoposição à lógica do discurso fálico – caracterizado, segundo as autorasfrancesas acima citadas, pela unidade, linearidade, auto-controle, raciona-lidade, afirmação de supremacia e autoridade.

Assim, a proposição da “escritura feminista” é de protesto e rupturaformal com a ordem social e simbólica dominante e de combate à ideologiade gênero – que tem oprimido as mulheres, de um lado, vedando-lhes apossibilidade de gozarem do acesso pleno ao reino do simbólico, e, de outro,confinando o sujeito feminino às ficções do discurso falogocêntrico.

A análise da relação da mulher com o simbólico, tal qual inauguradapelo feminismo francês, aponta que a superação do ventriloquismo culturalnas produções femininas só é realizável pela transposição de um discursopatriarcal, que situa a mulher fora da representação – como ausência,

4 Selecionamos duas referências que poderão servir àqueles que se interessem por estaquestão: “A presença do locutor em sua comunicação faz que cada instância do discursoconstitua um centro de referência interna” (BENVENISTE, 1989, p. 84); “a linguagem, queexpressa também idéias, exprime antes de mais nada, sentimentos” (BALLY,. 1951, p. 6).5 Cf., nestas autoras, os conceitos de jouissance, Kristeva; womanspeak, Irigaray e écritureféminine, Cixous.

Podemos, então, pensar o patriarcado e o falocentrismo relacionadosa uma estrutura simbólica que tem como referencial o masculino e que seacha fundada sobre a idealização do pênis. A ordem simbólica e o discursotradicional se constroem sobre uma diferença entre homens e mulheres –diferença marcada pela “deficiência” do corpo feminino – e tendem a determinartanto a posição masculina, de sujeito falante, quanto a feminina, de objeto.

Evidencia-se, assim, de acordo com Maria Luíza Remédios, “aalteridade como causa da desigualdade entre os sexos. O homem apresenta-se como detentor do poder, define-se como o sujeito, enquanto a mulher,dependente, é o outro, que age como um espaço a ser preenchido comqualquer significado que o grupo dominante determine.” (200, p. 9).

As mulheres, reduzidas ao silêncio, ocuparam na cultura a posiçãoque os detentores do discurso, através do poder da linguagem, lhesdesignaram no universo simbólico – da significação de um corpo constituídocomo menos valia.

Na cultura ocidental, marcada por relações dicotômicas, o simbólicose estruturou a partir do determinante biológico – homem e mulher –, ao qualse agregaram, respectivamente, sujeito do discurso e objeto do discurso,ativo e passivo, posição masculina e posição feminina, sujeito do desejo eobjeto do desejo.

Entretanto, “anatomia é destino” somente na medida em que o corpoadquire o estatuto de elemento sobre o qual se realiza a construção de significado.

Se aceitamos que a identidade como homem ou mulher escapa àdeterminação biológica, pois irá se constituir a partir dos lugares que o sujeitoocupa no desejo de seus pais e em virtude do modo como cada um seestrutura edipicamente, podemos perceber que as duas posições – de sujeito/fálico e de objeto/castrado – são resultados da linguagem e não da anatomia.

Se, como afirma Orlandi, “a linguagem aparece como a possibilidadeda subjetividade e o discurso como provocando a emergência da subjetividade”(1983, p. 98), pode-se perceber os motivos para que se efetuasse a supressãosimbólica da subjetividade das mulheres, a partir da repressão imposta sobreo corpo e o desejo feminino.

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SEÇÃO TEMÁTICA

Por fim, é importante ressaltar que as possibilidades polifônicas daidentidade oferecidas pelo campo da produção literária permitem que sedesvincule a experiência e o desejo das ideologias reinantes de“masculinidade” e “feminilidade”. Pois, é justamente na medida em que seapresentam linguagens alternativas do eu e do narrar-se, que se deses-tabilizam as noções de diferenças entre os gêneros, se alteram as fronteirasentre os mesmos e se elide a “necessária” existência de centro e margens.

Assim, enquanto os movimentos feministas contribuiram para que osujeito feminino seguisse seus próprios desejos, inscrevendo uma novaimagem de seu “sexo” e reclamando a legitimidade e a autoridade de outrotipo de subjetividade; a “escritura feminista” possibilitou que esta ditasubjetividade nova, acompanhada de um novo sistema de valores, instaurasseum novo tipo de linguagem e forma narrativa.

Sem dúvida, temos que perceber que os efeitos advindos de taistransformações não incidirão apenas sobre o universo feminino; e aguardarque o transcurso do tempo viabilize a análise de se este novo discursoproporcionará uma alternativa à prevalente ideologia de gênero.

Neste sentido, ainda, é justamente por congregar questões comolinguagem, discurso, representação, subjetividade, identidade e gênero quea articulação da Psicanálise com a Literatura se faz possível e necessária.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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negatividade, continente negro... – e pela possibilidade das mulheresdescobrirem uma linguagem apropriada para contar sua própria história. Trata-se, como evoca Sidonie Smith, de descobrir “o controle da linguagem por parteda mulher, em vez do controle da mulher pela linguagem” (1991, p. 103).

Entretanto, as críticas que se têm feito às teorias francesas recaemsobre a substituição de um essencialismo biológico, a que elas secontrapunham, por outro tipo de essencialismo, que reifica um destino femininoatemporal e a-histórico.

É justamente nesta situação de impasse que a Literatura, enquantoprodução subjetiva, pode vir a contribuir. As discussões em torno da “escriturafeminista” tornaram possível detectar traços de uma escrita predominan-temente feminina, independente de seu autor ser homem ou mulher. Taistraços parecem expressar uma “subjetividade” que se manifesta distinta tantona linguagem e na construção do discurso como nos temas abordados.

Esta escrita, que se abre para a diversidade, a pluralidade de diferenças,a infinita variedade de seres e novas perspectivas de significação, apresentapeculiaridades pertinentes à modernidade, tempo histórico em que se dá adescoberta da fragmentação do sujeito, marcado pela multiplicidade, pelaintersubjetividade e pela descentração do cogito, que impõem a formulaçãode um novo “eu”.

Isabel Allegro de Magalhães relaciona os elementos que exprimem amaneira feminina de estar no mundo a aspectos como “o inacabado da frase,o uso de elipses, de formas interrogativas, de orações substantivas, de umasintaxe fluida, com frases interrompidas ou diálogos suspensos – por pausas,reticências, espaços em branco [...]” (1995, p. 42).

Podemos perceber a relação entre as característica acima apontadase a forma como o corpo feminino é representado na cultura – a partir de umafalta – pois, como ressalta Barthes (2000), um novo discurso só pode sercompreendido mediante a repetição dos signos presentes em enunciadosanteriores. Assim, o discurso do feminino se consolida no mundo dassignificações apropriando-se de uma especificidade compatível com a marcade falta e castração imposta pelo discurso dominante.

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EM DEFESA DO INVESTIMENTO DA ANGÚSTIA ENOTÍCIAS A RESPEITO DE UM SOBREVIVENTE1

Maria Elisa Pessoa Labaki2

INTRODUÇÃO

Este texto é uma síntese de algumas das reflexões oriundas da minhaexperiência de atendimento a portadores do vírus HIV e a doentesde AIDS, tanto na instituição de saúde, quanto no consultório par-

ticular, registrada sob a forma de dissertação de mestrado. Apresentarei umrecorte específico com trilhas e pontos de ancoragem articulados ainterrogações relativas à função auto preservativa da angústia no embate doeu contra forças mortíferas.

Isto é, tentarei transmitir um trajeto particular no interior do qual amorte, que surgia como figura primordial no processo psicoterápico comesses pacientes, passou a ocupar um lugar secundário em relação àsquestões propriamente vinculadas com a vida. Bem, por um lado, poderia serpensado que, talvez, certa fração de obviedade da minha parte estariaconcorrendo para a proposição que delega à vida, e às suas referênciasvitais, esse lugar de primordialidade, uma vez que, como vivos, seria mesmonatural que nossos problemas se restringissem àqueles trazidos por nossacondição de seres viventes, não surgindo mesmo relacionados com a mortede forma tão exclusiva. Mas, por outro, há que se perguntar pelos fundamentosque estabeleceriam as bases para se afirmar que a morte, na situação daAIDS, merece lugar secundário em relação às referências de vida, dado quea doença, ainda que esteja em situação de ser controlada, continua mortal,podendo levar o sujeito ao confronto, sempre adiado e altamente angustiante,

1 Trabalho apresentado no Encontro Latino Americano dos Estados Gerais da Psicanáliseentre 12 e 14 de outubro de 2001, São Paulo.2 Maria Elisa Pessoa Labaki, psicanalista, psicóloga, Mestre em Psicologia pela PUC/SP emembro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Autora do livro“Morte”, coleção Clínica Psicanalítica. São Paulo: Ed. Casa do Psicólogo, 2001.

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SEÇÃO DEBATES

por sua vez, conferem força e consistência na construção de hipótesesrepresentativas e fidedignas em relação aos achados clínicos.

Após essa breve introdução, é necessário, agora, expor os passosintermediários por meio dos quais o problema da morte, no contexto da aids,foi transfigurando-se em problema de vida. E, no fim, gostaria de ilustrarminhas hipóteses com um fragmento de caso.

UMA DISCREPÂNCIA COMO MOTIVO PARA PESQUISARO primeiro passo partiu de minha preocupação em relação a

estabelecer o manejo clínico mais apropriado na condução do atendimentopsicoterápico a pacientes que recentemente haviam descoberto portarem ovírus HIV. O estado de impacto emocional desses pacientes frente aodiagnóstico e à eminência da morte, bem como o aparente estado deimpotência do psicoterapeuta nessa situação, levaram-me a buscarestabelecer teoricamente formas de trabalhar o profundo estado de desamparosob o qual ambos pareciam submergir. No entanto, estudando os textos deFreud (1915, 1923, 1926) que tocam no tema da morte, encontrei umadiscrepância entre sua afirmação que põe a morte em situação de impe-dimento de representação no inconsciente e a evidência clínica que, aocontrário, estabelecia a necessidade de se pensar a morte e de, espe-cialmente nos casos de doenças de prognóstico maligno, proceder a umaelaboração das representações de morte oferecendo, assim, um destinopsíquico para as angústias desencadeadas.

Trocando em miúdos, a rotina diária de escutar os pacientes comAIDS e de penetrar no fundo da vivência de sofrimento que os assola, melevou a privilegiar o tema da morte em Freud, como o primeiro recorte paratentar discernir possíveis especificidades da clínica que se dispõe a escutara comoção e a dor de quem se sente forçado ao confronto da vida com seucaráter de finitude. Assim, considerando a situação penosa de impacto dodiagnóstico, projetava-se no espaço clínico o enfrentamento com a própriamortalidade e com as vivências de angústias correspondentes misturadascom mecanismos auto-acusatórios, já que o sujeito se contaminara ao realizaruma ação de natureza sexual ou associada com o uso de drogas ilícitas que

com essa condição. Assim, tentarei mostrar não se tratar de morte, mas,sobretudo, de vida, o alvo em direção ao qual deve mover-se ou inclinar-se apsicoterapia com pacientes HIV+.

Em outras palavras, descobri que a possibilidade de morte, ou acondição de mortal, em si, não representa fonte de perigo para o eu, mas,sim, a própria vida articulada com sua ameaça de extinção, em que pesa oterror à volta a um estado de indiferenciação e de desinvestimento. Mas,neste ponto, pode-se considerar que a morte não está sendo abandonada,mas reordenada no campo em que predominava como figura para estabelecer-se como fundo sobre o qual as manifestações de vida surgirão, no contextoda AIDS e de outras doenças incuráveis, articuladas com o perigo de des-truição e de apagamento do eu. Assim, é importante frisar que morte e vidaestão sendo consideradas imbricadas desde a perspectiva metapsicológicada energética e da tópica freudiana, cujas referências privilegiam osmovimentos de investimento e de desinvestimento pulsional do eu, bem comoa ocupação e a desocupação desse por seus objetos. Isto significa dizerque, do ponto de vista das propostas econômicas freudianas, a ameaça demorte se constitui na vida, sobretudo enquanto experiência mortífera dedesinvestimento e de esvaziamento do eu que, por sua vez, ameaça impediros movimentos pulsionais.

Em termos de método, apresentarei a clínica sempre ancorada emnoções e conceitos metapsicológicos. Isto se processará assim porque é,sobretudo, por meio da lógica particular e intrínseca à ficção metapsicológica– que conjuga as três dimensões que governam o aparelho psíquico, a tópica,a dinâmica e a econômica – que será possível retirar temporariamente amorte do contexto exclusivo da AIDS para, através de sua projeção em figurasteóricas, imaginar suas formas potencialmente irrepresentáveis, bem comonominar os afetos insuportáveis dela decorrentes. Ora, sabe-se que ajustaposição clínica/teoria não resulta nem gratuita, nem aleatória, masdecorre da ação, simultânea e sobre ambas, do método metapsicológico deinvenção do objeto a ser concebido: em relação à teoria, abre caminho paraoperar com figuras e representações de teor simbólico ou de sentido que,

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SEÇÃO DEBATES

a idéia de morte não encontra correlativo representacional inconsciente, istosignifica que o trabalho de pensá-la na clínica traduz uma tentativa de opaciente impactado, assim como de seu psicoterapeuta, transformarem aangústia que se derrama, por meio da descarga emocional automática, emenergia ligada e investida. O que significa dizer que, conseguir oferecer umdestino mental para o pensamento sobre a própria morte traduziria, então, osucesso do trabalho psíquico de ligação pela libido da angústia que irrompeem estado puramente pulsional, mortífera em potência, desligada, sem direção.Ligar, deslocar, investir, transformar a angústia: eis a proposição que Green(1982) tão claramente expõe quanto à atividade econômica primordial doaparelho psíquico na luta vital e permanente que trava contra a tendênciamortífera de redução absoluta ao nível zero de tensão o que, em termostópicos, implica um esforço no sentido da conservação da própria zona dopsíquico como todo. Ou seja, trata-se de fazer trabalhar as pulsões auto-preservativas do eu contra o desamparo resultante da impossibilidade da angústiade morte receber uma representação. Se na presença da morte não há angústiae dor, do fomento dessas fontes depende a vida para continuar pulsando.

Mas, como seria isso possível, uma vez que a angústia por si só édesorganizadora, podendo desencadear traumatismo? Em termos clínicos,a consideração da angústia pode acontecer em um segundo tempo, em que,passada a comoção inicial do diagnóstico, o sujeito se depara com as vicis-situdes que a condição de portar o vírus traz à sua vida. Aqui, o que eraangústia automática, ou manifestação reativa do trauma desencadeado pelaevidência da própria morte, transforma-se em angústia-sinal, ou seja, emmotivo para pensar a doença, a própria vida e, conseqüentemente, a dor e osofrimento. Se a angústia inicial abrigava potencialmente a morte do eu pelasubmersão traumática, a angústia sinalizadora posterior parece conter osalicerces dos traçados defensivos do eu derivados a partir de experiênciasdepressivas de perda e separação dos objetos de amor.

Assim, como segunda angústia, a angústia-sinal revela certasofisticação dos mecanismos e processos simbólicos do eu, sobretudo pormeio de sua função protetiva contra perigos oriundos de dentro e de fora ecapazes de provocar destruição. Neste sentido, conquanto sinaliza e antecipa

o levava a culpabilizar-se ou a culpabilizar o outro. Ou seja, minha vivênciaclínica indicava que o diagnóstico de doença mortífera fazia emergir angústiase sofrimentos relacionados com a situação de morte iminente complicados,em alguns casos, com o agravo da culpabilidade. Portanto, tratar a morte naclínica, para mim, revelava-se condição urgente.

De fato, era visível que a recepção do diagnóstico era sucedida porintensa reação de surpresa e de terror, eco afetivo do impacto que a notíciacausava, similar à reação de susto. Porém, se, de um lado, Freud (1920)considerava o susto como estado que invade o sujeito exatamente quando omesmo se depara com um perigo em relação ao qual não se encontravapreparado ou protegido pelo estado de expectativa, de outro lado, afirmavaque “no fundo ninguém crê em sua própria morte, ou dizendo a mesma coisade outra maneira, que no inconsciente cada um de nós está convencido desua própria imortalidade” (1915, p. 327). Ou, ainda, em outro momento quandoafirma que “a morte é um conceito abstrato com conteúdo negativo para oqual nenhum correlativo inconsciente pode ser encontrado” (1923, p. 75).

Temos, então, que este primeiro passo trouxe à tona um confrontoentre uma posição freudiana e uma verificação clínica, o que por si só já é,diga-se de passagem, suficiente para animar uma pesquisa.

INVESTIMENTO E SINAL DE ANGÚSTIAAssim, resultante do descompasso clínica/teoria, o segundo passo

da pesquisa dirigiu seus esforços para tentar responder justamente ao im-passe entre, de um lado, a necessidade urgente de a morte ser pensada naclínica e, de outro, sua natureza de irrepresentabilidade no inconsciente.Como estratégia de encaminhamento do problema, escolhi suspender, porora, a afirmação de que a morte não é passível de representação e privilegiei,no lugar desta, a importância do afeto – dado que a percepção indica tratar-se de pacientes cujas irrupções de sofrimento parecem, em sua natureza,semelhantes à reação automática de angústia, descrita por Freud em trabalhosmais antigos, mas assim denominada por ele, em 1926, no fundamentaltexto Inibições, sintoma e ansiedade. Portanto, do ponto de vista econômico,o problema se transformaria a partir da formulação da seguinte hipótese: se

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Assim, o esforço foi o de identificar quais fundamentos teóricos poderiamoferecer sustentação e legitimar a proposta terapêutica de se investir osofrimento, ou a angústia, dado que, a princípio, pareceria algo esdrúxulo, eaté paradoxal, considerar que o investimento libidinal do sofrimento podeproporcionar proteção ou preservação da vida. Nesta direção, segundoconstata-se com Freud, a pista que leva ao masoquismo primário pareceabrigar certa consistência teórica.

Isto é, se, de acordo com Freud (1924), o masoquismo é definidocomo condição imposta à excitação sexual que implica certa quantidade de“prazer no sofrimento” (p.203), ou seja, de prazer no desprazer, penso que opotencial interno de tolerância do eu à angústia encontra na tendênciamasoquista sua fonte nutriente e mantenedora. Em outras palavras, paraque o sofrimento seja objetalizado por meio dos processos de investimentolibidinal, é preciso que esteja envolvida certa quantidade de prazer na dor.Isto significa dizer que, para manter-se vivo, é preciso depurar certo prazerdo estado em que a excitação não descarregada mantém suspensa e adiadatoda a forma de satisfação. No limite, o masoquismo primário leva em contaa morte porque empenha-se em não satisfazê-la, erotizando a excitação quepermanece mais ou menos estável em um nível tal de fluidez que a disponibilizapara adiar, esperar a satisfação e, assim, manter acesa a “chama” vital.

Isto é, viver implica um esforço permanente de não ceder às tentaçõesnirvânicas proporcionadas com a extinção das necessidades pela obtençãoplena de satisfação. Aliás, justamente neste sentido, Freud (1924) se apoderada atividade sexual como protótipo que melhor exemplificaria o aparenteparadoxo contido na afirmação acima e escreve: “não se pode duvidar que hátensões prazerosas e relaxamentos desprazerosos de tensão. O estado deexcitação sexual constitui o exemplo mais notável de um aumento prazerosode estímulo desse tipo, mas certamente não é o único” (p.200). Curiosamente,sabe-se que em espanhol o verbo que traduz o ato de gozar genitalmente émorir, em português, morrer. Ou seja, morre-se quando se alcança a satisfaçãomáxima no êxtase e a irregular escalada até seu ápice é vida. Logo, tanto noâmbito do sexual estrito, quanto no do masoquismo erógeno, a excitaçãopode ser prazerosa.

a aproximação de ataques ameaçadores para a vida, sugiro que o tratamentoclínico da angústia merece ser levada em conta com destaque. Sabe-se dasações atuais de “morfinização” da dor, e das sensações e percepções dedesprazer em geral, pelo uso abusivo de drogas anestésicas – tendênciaessa que leva à indiferença do corpo ao roubar-lhe a vitalidade, à paralizia doverbo ao tirar-lhe suas motivações, bem como, à monotonização do afeto aopasteurizar suas expressões... Então, reiterando a hipótese com a qual venhotrabalhando, se, enquanto existe vida a morte se constitui, sobretudo,enquanto experiência de desinvestimento da libido, o esforço urgente de pensá-la na clínica, por meio do exercício de representação da angústia, corres-ponderia a uma experiência de investimento e, conseqüentemente, de proteçãocontra o esvaziamento que a morte provoca.

Minha tendência natural é me apagar. E eu não acho isso ruim. Aocontrário, sinto até um certo prazer. Para mim, felicidade não é o relacio-namento com as pessoas, mas é paz, tranqüilidade, silêncio. Um pacientese espanta e se mostra contrariado com a perspectiva de não morrer tãologo quanto houvera esperado. A iminência de sua própria morte, dado quepossui sintomas da AIDS, não o angustiava. Ao contrário, durante algumtempo, o movimento que exibe de separação de seus objetos aparece banhadoem uma facilidade de desconecção ímpar. O interesse pelas coisas revela-se enfraquecido e direcionado para esforços burocráticos e tarefeiros, dosquais acredita não poder livrar-se. Correndo o risco de apagar-sedefinitivamente, sua vitalidade pode, no entanto, sobreviver a tempo deleexpressar sua contrariedade por estar vivendo tempo demais. Evidenciouseu desejo íntimo de morrer, apercebendo-se que os perigos próprios aoestado de se estar vivo, suplantavam aqueles que vivera com o choque inicialcausado com o diagnóstico. Manter a excitação ligada requer da vida trabalhode investimento da angústia, nem sempre possível de ser logrado de imediato.

DEFESA E MASOQUISMOÉ, portanto, a partir deste ponto, em que estabeleci a importância da

noção de defesa ou de proteção do eu contra o desamparo e desinvestimentocorrespondente, que poderá ser delineado o terceiro passo da pesquisa.

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SEÇÃO DEBATES

A passagem da noção de perigo de morte para a que privilegia a vidacomo perigo foi escolhida com o intuito de se demonstrar à guarda de queprocessos psíquicos econômicos e dinâmicos o sofrimento poderia conseguiralcançar um grau de suportabilidade capaz de transformar-se em experiênciade investimento vital, o que implica livrar o eu da submersão traumática,através da metabolização simbólica dos afetos, impedindo-o de sucumbir àmorte.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Francisco Alves, 1982.

O suicídio de um paciente parece ter sido a resposta para um conflitonarcísico incontornável, que a condição de homossexualidade impunha con-tra sua necessidade de permanecer em posição irretocável enquanto objetode amor dos pais. Aqui, talvez, o investimento do sofrimento tenha sido tãobem sucedido, podendo ter engendrado uma forma radical de destruição detoda a dor e desprazer, capaz de fazer a excitação se descarregar por meiosbrutais, ao perder a força de ligação às referências simbólicas.

Assim, sendo o suicídio uma ação auto destrutiva e o masoquismo aresultante interna da fusão entre destrutividade e libido, resta perguntar o quepermite à pulsão de morte se desvincular da libido proporcionando açõespuras auto destrutivas, como mostra o exemplo apresentado. E, do quedepende a fusão de ambas, cuja força propicia, desta forma, a manutençãoe a ação de defesas contra a destrutividade.

Nesta direção, o problema se circunscreve à identificação e ao examedos processos de investimento pulsional capazes de assegurar suportabilidadeao desprazer inerente à angústia, evitando ruptura ou descontinuidade navida psíquica, análoga à morte. Trocando em miúdos, trata-se de assinalarcomo o princípio de prazer/desprazer proporciona, apesar das inexoráveisoscilações, certa estabilidade à gangorra pulsional, de modo a lograr apreservação da vida. E, neste caso, o que levaria ao fracasso. Isto é, queoperadores permitem à vida psíquica engatar e manter sua marcharelativamente estável, não obstante a quantidade de desprazer implicadanos estados de angústia, proporcionando à dor e ao sofrimento tolerânciatransformadora?

INCONCLUSÕESEste terceiro passo da pesquisa tentou verificar, por meio dos

operadores conceituais utilizados, em que medida a capacidade de investir osofrimento, isto é, de fazer derivar prazer do desprazer, oferece aosmecanismos de formação de angústia quantidades apropriadas de excitaçãonecessárias para viabilizar os propósitos defensivos e preventivos do eu,antecipatórios, contra o desenvolvimento da situação traumática, e dodesamparo subjacente que pode levar à morte.

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RESENHA RESENHA

Nesta perspectiva, conceitos fundamentais se desdobram e entrela-çam com casos clínicos, entre eles: o recalcamento, as pulsões, a sexuação,a denegação, a sublimação, a imagem corporal, o narcisismo, o transitivismo,a agressividade, a linguagem, as articulações entre o imaginário, o simbólicoe o real, a transferência. É neste ponto que se evidencia a brilhante elabora-ção de Bergès e Balbo: a teoria psicanalítica encontra, a viva voz, neste“dueto”, a possibilidade de ser articulada à clínica, estabelecendo novos re-cortes teóricos. Cada um destes conceitos é trabalhado com rigor, na buscadas fontes teóricas que os sustentam, na leitura dos textos clássicos quefundam sua história, nas interlocuções que se realizam ao longo dos semi-nários e nas notas elaboradas pelo conselho científico1.

A leitura deste livro revela, para além dos pressupostos teóricos, otrabalho que se inscreve em sua articulação com a clínica. Cabe aos leitorespercorrê-lo, mas neste ponto, ressalto uma das várias passagens que reme-tem à reflexão sobre a clínica psicanalítica, que refere-se às criançashipercinéticas, objeto de pesquisas e intervenções medicamentosas naatualidade. Bergès afirma: “Compreende-se melhor qual é a função da agita-ção na hipercinesia, é uma função que pereniza a teoria sexual infantil atéidades inclusive avançadas, e assim ela retoma pelo avesso o que Freuddizia no artigo sobre a Verneinung. É um meio de não pensar” (p. 130).Dirigindo sua escuta para além do fenomênico, Bergès e Balbo nos condu-zem a uma travessia pelos avatares da construção das teorias sexuais infan-tis, levando a refletir acerca da posição do analista e de seus efeitos sobre aelaboração que a criança possa vir a realizar.

1 Nesta edição, coordenada por Mário Fleig e Conceição Beltrão Fleig, participaram dotrabalho do Conselho Científico: Ivan Corrêa, Adão Luiz Lopes da Costa, Ana Maria Medeirosda Costa, Anna Carolina Lobianco, Ângela Maria Vorcaro, Catherine Ferron, Cristian Gilles,Luiza Bradley de Araújo, Maria Auxiliadora Pastor Sudbrack, Maria Cristina Kupfer e MarikaBergès-Bounès.

A ATUALIDADE DAS TEORIASSEXUAIS INFANTIS

J. BERGÈS e G. BALBO. A atualidade das teorias sexu-ais infantis, CMC Editora, Porto Alegre, 2001, p. 174

“O jogo de engano da criançasupõe que a mãe saiba brincar, que ela

possa brincar de se fazer enganar“.Jean Bergès, A atualidade das teorias

sexuais infantis, p.85

“Pelo lado do des-conhecer, ou, como diria Lacan, se a mãe écapaz de dizer um pouco de bobagens (dé-conner), de umacerta maneira e por sua vez a criança pode conhecer algo“.

Gabriel Balbo, A atualidade das teorias sexuais infantis, p. 20

Oseminário de Jean Bergès e Gabriel Balbo, “A atualidade das teori-as sexuais infantis”, realizado na Associação Freudiana Internacio-nal nos anos de 1997 e 1998, e publicado a partir de transcrições,

traduções e revisões rigorosas, revela-se uma contribuição fundamental noâmbito da psicanálise.

Desenvolvendo-se a partir de elaborações conjuntas de Jean Bergès eGabriel Balbo, insere-se na via da clínica com crianças na direção de traba-lhar o tema das teorias sexuais infantis. Ao mesmo tempo, são analisadoscasos de adolescentes e adultos que, em sua análise, as colocam em cena.Neste trabalho, os autores remetem o leitor a buscar, na obra freudiana elacaniana, os substratos teóricos que sustentam a clínica psicanalítica, evi-denciando os trânsitos em que se fundam as teorias sexuais infantis, a partirda singularidade com que se estabelecem os primeiros laços entre a mãe ea criança.

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LAVOURA ARCAICA. SEMEANDOAMORES, COLHENDO INCESTOS

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“E eu sentado onde estava sobre uma raiz exposta num canto do

bosque mais sombrio”.

Num tempo em que a ficção se povoa detantas aventuras, os caminhos doinconsciente ainda são o pior dos

labirintos. Nele entraram todos os leitores queconsagraram o livro “Lavoura Arcaica”, escritopor Raduan Nassar. Filmada por Luiz Fernando Carvalho, a história vai aoencontro de um público ainda maior, arrastando consigo tanto impacto quantoem sua aparição impressa.

Quando uma pessoa inicia uma análise, lhe pedimos que diga tudosem pensar, sem estruturar as idéias, sem se preocupar com a autenticidadeda frase. Isto não produz um discurso confuso, apenas propicia o surgimentode sentidos pouco óbvios. Assim é ler “Lavoura Arcaica”. Dentro dos capítulos,não existem pontos, é um jorro só, onde os personagens se alternam e sãoreferidos sem prévio aviso, contagiando assim uns aos outros pelos elos queos unem na subjetividade do narrador.

Mestre de cerimônias de seu universo, André, o personagem central,chama a espiar no seu buraco de fechadura. No livro, conhecemos Andréatravés de Pedro, seu irmão mais velho, que foi incumbido pelo pai de trazê-lo de volta para casa, sendo esta uma família da qual ninguém deveria sair.Os irmãos bebem num quarto sujo de pensão e o irmão desgarrado vaicontando por que partiu e o que pensa da família. Ao escutá-lo, as certezasdo mundo de Pedro, o irmão certinho, vão se manchado de angústia. Devolta para casa, André continua seu trabalho de provocador.

Sobre a transferência que se instala entre o analista e a criança, Bergèsafirma que “Trata-se antes de mostrar que esse sujeito suposto saber nãotem de fazer obstáculo para o saber constitutivo do sujeito” (p.63). É sobreesta dimensão que o texto sobre a atualidade das teorias sexuais infantis sefunda: ali onde estas teorias se articulam, encontra-se em jogo a possibilida-de de supor, na criança, a construção de um saber. E de permitir, a cadauma, que possa enlaçar, a partir de sua história, traços que a singularizem.

Ana Marta Meira

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roda que gira ao som da flauta e em seu interior ela dança, sensual e ousada.O texto de Nassar é precioso pelo seu anti-romantismo, por lembrar o

tecido incestuoso com que se tramam vidas e amores. Estamos acostumadosa associar a lavoura e a vida familiar simples dos camponeses, à pureza,contrapondo-os aos valores familiares perdidos da nossa cultura urbana. Ledoengano, expor raízes é expor fraturas. O mesmo amor que constrói umacriança é o que a devora no apetite de desejos nada castos. A mesma leique educa é a que sufoca e paralisa. Não são corrupções, desvios do caminho,são apenas a outra face da moeda.

Sempre soubemos disso, a psicanálise fez fama tentando avisar aosnavegantes, mas de certa forma é preciso ignorar. Para melhor compreenderquão insuportável é a visão dos subterrâneos das relações familiares, bastaimaginar como seria se nossa pele fosse transparente. Passaríamos o diaolhando o coração bater, o pulmão inflar, o estômago fazer seu trabalho, empânico de que alguma parte do processo fosse mal sucedida. Há coisas queficam bem na obscuridade de seu funcionamento.

No caso da família, além de pouco saber sobre votos de amor, mortee possessão, criamos ficções úteis. Freud chamou-as de “RomancesFamiliares”. Cada um tem o seu, nele imaginamos pertencer a outra família,mais nobre em algum aspecto do que a que nos originou, por isso muitosfantasiam ser adotivos. Claro que Freud também não nos deixou esquecerque pensar que nenhum laço de sangue me liga aos meus parentes, deixarialivre o território para se entregar aos desejos sexuais incestuosos. Seja porum ou outro motivo, a família real sempre vive à sombra de outra fantasiada.

A família imaginária é a purificação das máculas da nossa e a famíliarural presta-se a esta fantasia. Hoje, nossa sociedade vive sem fiadores éticos.Não confiamos que os bem sucedidos sejam de bem, por isso tornamo-nosnostálgicos. Associamos o contato com a natureza a alguma forma deautenticidade, de existência longe da corrupção onde nasceria a perversidade.

O mundo rural de Raduan Nassar gesta todo tipo de monstro, lembrandoque o bicho homem carrega esses amores e ódios em seu interior,independente do habitat. Amamos aquele que nos possui e o odiamos por

Na calada da noite, André vai à trouxa de roupa suja da família eenterra suas mãos naquelas roupas com cheiro da sua gente. Metáfora desua relação com o ambiente em que vive, o manuseio das roupas usadaspermite acesso àquilo que a família produz, lava, descarta e esconde. Emsua pesquisa olfativa e táctil, André ilustra muito bem que as famílias sãocomo as pessoas: um iceberg, do qual só vemos a pontinha.

O mundo de Lavoura Arcaica é o de uma família fechada, cujos filhosatestam a sufocação. O pai faz seus discursos sobre os homens e mulheresque eles devem ser, mas a casa transpira a incapacidade que toda famíliatem de ver os filhos partirem. Na definição do narrador: “Se o pai, no seugesto austero, quis fazer da casa um templo, a mãe, transbordando no seuafeto, só conseguiu fazer dela uma casa de perdição”. Com carícias oureprimendas, ficam todos ali à mercê desse amor opressivo dos pais. Andréé o único que escapa, mas foge que nem criança, que fica a vagar pelasredondezas, frequentando bordéis e esperando resgate. Ao reingressar àcasa paterna, com sua harmonia de objetos, hábitos e limpezas, André trazconsigo a angústia com que partiu. Ele tinha levado ao pé da letra o voto desaciar toda sede no poço da casa. Amou sua irmã, incestuosamente, comoa uma mulher.

O outro livro do mesmo autor, “Um copo de cólera”, leva à mesmaviagem que confunde a mulher com a mãe e o homem com o bebê. A mulherse entrega ao homem, submissa e complacente ao sexo e a seus caprichos,mas só após dispensar-lhe todo tipo de cuidado materno. O jogo do amorenreda ambos em uma alternante posição de objeto de desejo. Nassar lembraque a condição de objeto de desejo não é privilégio feminino, pois se um diafomos filhos, sabemos da dor e delícia de ser um bebê. A cólera referidaneste título, nasce do claustro do útero materno, onde o ar rarefaz e graçasa isso precisamos crescer. A relação amorosa é um reencontro com umaentrega que gostaríamos de esquecer e jamais paramos de procurar.

Em “Lavoura Arcaica”, André exige que se é para ficar em casa elequer prazer, e a irmã Ana é seu objeto de desejo. Não só seu, pois dequando em quando há festejos e neles sua irmã é a musa. Arma-se uma

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RESENHA

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AGENDA

Reunião da Comissão de BibliotecaReunião da Comissão de Eventos

Reunião da Mesa DiretivaReunião da Comissão do Correio da APPOAReunião do Serviço de Atendimento ClínicoReunião da Mesa Diretiva aberta aos mem-bros da APPOA

20h30min15h

21h20h30min20h30min21h

PRÓXIMO NÚMERO

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MARÇO – 2002

Dia Hora Local Atividade

06, 13,20 e 27

11 e 2512 e 26

Sede da APPOASede da APPOA

Sede da APPOASede da APPOASede da APPOASede da APPOA

isso. Desejamos ardentemente possuí-lo, mas seriamos capazes da matarpara nos livrar dele. Afinal, quantas vezes, perdemo-nos em devaneios ondeassassinamos justamente aqueles que mais amamos?

Enterrando os pés no fresco húmus da terra, deixando o corpo cobrir-se de folhas, plantando-nos, pretendemos alguma fora de enraizamento. É aíque a história nos leva ao encontro da volúpia, do amor incestuoso, do ódiomortífero ao pai que se teme, do voto de morte ao filho que decepciona.Estas são nossas bases. Não conhecê-las é pior. É como plantar semconhecer o solo e o clima. Por isso são pra lá de bem vindos todos aquelesque abalem as lorotas que nos contamos. Por isso leia, assista, se tivercoragem. É necessária a valentia de sentar, que seja por algumas horas, nassuas raízes expostas.

Diana Myriam Lichtenstein Corso

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S U M Á R I O

EDITORIAL 1NOTÍCIAS 3SEÇÃO TEMÁTICA 14LITERATURA E TESTEMUNHOLITERATURA E TESTEMUNHONA OBRA DE PRIMO LEVINA OBRA DE PRIMO LEVIMarcio Seligmann-SilvaMarcio Seligmann-Silva ? ?? ?RELAÇÕES POSSÍVEISRELAÇÕES POSSÍVEISENTRE A PSICANÁLISEENTRE A PSICANÁLISEE A CRÍTICA GENÉTICAE A CRÍTICA GENÉTICAPhilippe WillemartPhilippe Willemart ? ?? ?NOTAS DE LEITURA NOTAS DE LEITURA – OONARRADOR NARRADOR – DE W. BENJAMINDE W. BENJAMINPOR QUE ISSO INTERESSARIAPOR QUE ISSO INTERESSARIAA UM PSICANALISTA?A UM PSICANALISTA?Lucia Serrano PereiraLucia Serrano Pereira ? ?? ?EXPRESSÃO DA SUBJETIVIDADEEXPRESSÃO DA SUBJETIVIDADEE A “ÉCRITURE FÉMININE”E A “ÉCRITURE FÉMININE”Henriete KaramHenriete Karam ? ?? ?SEÇÃO DEBATES ? ?EM DEFESA DO INVESTIMENTOEM DEFESA DO INVESTIMENTODA ANGÚSTIA E NOTÍCIAS ADA ANGÚSTIA E NOTÍCIAS ARESPEITO DE UM SOBREVIVENTERESPEITO DE UM SOBREVIVENTEMaria Elisa Pessoa LabakiMaria Elisa Pessoa Labaki ? ?? ?RESENHA ? ?“A ATUALIDADE DAS TEORIAS“A ATUALIDADE DAS TEORIASSEXUAIS INFANTIS”SEXUAIS INFANTIS” ? ?? ?“LAVOURA ARCAICA.“LAVOURA ARCAICA.SEMEANDO AMORES,SEMEANDO AMORES,COLHENDO INCESTOS”COLHENDO INCESTOS” ? ?? ?AGENDA ? ?

EXPEDIENTEÓrgão informativo da APPOA - Associação Psicanalítica de Porto Alegre

Rua Faria Santos, 258 CEP 90670-150 Porto Alegre - RSTel: (51) 3333 2140 - Fax: (51) 3333 7922

e-mail: [email protected] - home-page: www.appoa.com.brJornalista responsável: Jussara Porto - Reg. n0 3956

Impressão: Metrópole Indústria Gráfica Ltda.Av. Eng. Ludolfo Boehl, 729 CEP 91720-150 Porto Alegre - RS - Tel: (51) 3318 6355

Comissão do CorreioCoordenação: Maria Ângela Brasil e Robson de Freitas Pereira

Integrantes: Ana Laura Giongo Vaccaro, Francisco Settineri, Gerson Smiech Pinho, Henriete Karam, Liz Nunes Ramos, Luis Roberto Benia, Luzimar Stricher,

Marcia Helena de Menezes Ribeiro e Maria Lúcia Müller Stein

ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGREGESTÃO 2001/2002

Presidência - Maria Ângela Brasil1a. Vice-Presidência - Lucia Serrano Pereira2a. Vice-Presidência - Jaime Alberto Betts

1o. Tesoureira - Grasiela Kraemer2a. Tesoureira - Simone Moschen Rickes

1o. Secretária - Carmen Backes2a. Secretário - Gerson Smiech Pinho

MESA DIRETIVAAlfredo Néstor Jerusalinsky, Ana Maria Gageiro, Ana Maria Medeiros da Costa,

Analice Palombini, Ângela Lângaro Becker, Edson Luiz André de Sousa,Gladys Wechsler Carnos, Ieda Prates da Silva, Ligia Gomes Víctora,

Liliane Fröemming, Maria Auxiliadora Pastor Sudbrack,Marta Pedó e Robson de Freitas Pereira.

Capa: Manuscrito de Freud (The Diary of Sigmund Freud 1929-1939. A chronicle of events in the last decade. London, Hogarth, 1992.)Criação da capa: Flávio Wild - Macchina

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N° 99 – ANO IXN° 99 – ANO IX MARÇO MARÇO – 200– 200 22

PSICANÁLISE E LITERATURAPSICANÁLISE E LITERATURA