EDITORA AVE-MARIA · vida humana desde o primeiro momento da criação que em termos atuais pode...

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INtRoDução ................................................................................. 9

CAPítulo I: O valor da vida biológica nos inícios da tradição cristã ..... 17 A perspectiva veterotestamentária ................................................. 20 A criação: o ser humano perante Deus ................................. 21 O valor da vida intrauterina ................................................. 23 “Desde o ventre materno eu te conheci” .............................. 27 A perspectiva neotestamentária .................................................... 30 A condenação do aborto na igreja nascente .................................. 32

CAPítulo II: O debate sobre o início da vida antes da biologia moderna ... 39 O dualismo platônico .................................................................. 41 Animação imediata ou tardia? ...................................................... 43 A tese da animação tardia ..................................................... 44 A tese da animação imediata ................................................ 46

CAPítulo III: Perspectiva teológica atual – superação da visão dualista ... 51 Um dualismo persistente .............................................................. 54 O questionamento do dualismo ................................................... 55 A unidade do ser humano ............................................................ 57 O ser humano em sua relação com o eterno ................................. 62

CAPítulo IV: As teorias sobre o início da vida com base na biologia moderna ..................................................... 67 O surgimento da biologia moderna .............................................. 70 A posição da Igreja impactada pela biologia ................................. 74

Sumário

CAPítulo V: O início da vida à luz da biologia atual ....................... 81 A fecundação ............................................................................... 83 O organismo como pertença a uma espécie .................................. 90 Diferentes momentos para o início da vida? ................................. 95 Visão metabólica ................................................................. 98 Visão ecológica .................................................................... 98 Visão neurológica ................................................................ 99 Visão embriológica .............................................................. 99 Visão genética ...................................................................... 101

CAPítulo VI: O conceito de pessoa e o início da vida ..................... 105 O surgimento e a evolução histórica do conceito de “pessoa” ........ 109 Distinções entre “ser humano” e “pessoa” ..................................... 114 Posição ocidental tradicional: os termos “humano” e “pessoa” são intercambiáveis .............................................................. 115 Novos questionamentos: os termos “humano” e “pessoa” não são intercambiáveis ....................................................... 124

CAPítulo VII: O contexto do debate jurídico sobre o início da vida no Brasil ................................................................... 131 A Lei no 11.105/2005 (Lei de biossegurança brasileira) ................. 136 Os anos que antecederam a Lei no 11.105/2005 .................. 137 Lei no 11.105/2005 ............................................................. 141 Fecundação in vitro ...................................................... 142 Fiscalização dos ogms ................................................. 143 Pesquisas e terapias com células-tronco embrionárias ....... 144 Ação Direta de Inconstitucionalidade no 3510 ............................. 146 A vida começa na fecundação .............................................. 147 Resultados parecidos com células-tronco adultas .................. 149 O embrião é pessoa e deve ser respeitado ............................. 150

CAPítulo VIII: O julgamento do STF sobre pesquisa com embriões no Brasil ................................................................ 153 Princípio da liberdade .......................................................... 157 Princípio utilitarista ............................................................. 159

Princípio da coletividade ...................................................... 160

Os votos dos ministros no julgamento da ADIN 3510 ................. 161 Vida biológica....................................................................... 163 Início da vida na fecundação ......................................... 167 A vida inicia-se com a implantação do embrião no útero ....................................................................... 168 A vida inicia-se com as atividades neurológicas ................ 172 Conceito de pessoa .............................................................. 177 Personalidade jurídica .......................................................... 189 A personalidade jurídica inicia-se a partir do nascimento com vida do indivíduo ................................. 191 A vida deve ser defendida pelo direito desde o instante da concepção ................................................................. 194

Dignidade do ser humano ............................................................ 201 o embrião é detentor de dignidade ................................ 207 o embrião, ao menos em alguns casos, não possui dignidade ..................................................................... 209

CoNSIDERAçõES fINAIS: DoIS DEStAquES ........................ 213 O urgente debate sobre a reprodução assistida .............................. 215 Início da vida e dignidade humana ............................................... 223

REfERêNCIAS .................................................................................. 233

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A questão de “quando se inicia a vida de cada novo ser humano” é antiga e muito debatida ao longo dos séculos, e a relevância do

debate histórico se justificava por ser uma questão central para orientar um posicionamento ético sobre o aborto. Além disso, esta questão se tor-nou um dos temas mais relevantes e discutidos na atualidade por causa de três situações provocadas pelo avanço científico ocorrido na segunda metade do século XX: a) o surgimento da contracepção com os méto-dos antinidatórios; b) o surgimento das técnicas de reprodução assistida; c) a importância atribuída pela ciência às células-tronco. Deste modo, atualmente o assunto da dignidade do embrião humano é decisivo para orientações práticas nestas três novas situações. Neste sentido, há muita coisa em jogo, e toda vez que as teorias são debatidas e os resultados não são indiferentes às questões pessoais, políticas e econômicas temos a pre-sença do poder estabelecido influenciando o debate. Deste modo, seria ingenuidade imaginar que este seja um debate teórico e que a sociedade seja indiferente às conclusões.

Este trabalho se situa no âmbito da teologia em diálogo com a bioéti-ca, por isso é necessário falar um pouco da relação entre estas duas áreas. A bioética tem se afirmado como indispensável ao avanço da reflexão éti-ca nos âmbitos das ciências da saúde e das ciências humanas, exatamen-te por promover o diálogo interdisciplinar, por propiciar a relação entre

iNTroDuÇÃo

A dignidade do embrião humano: diálogo entre teologia e bioética

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teoria e prática, por refletir sobre os serviços de saúde em seu contexto social e cultural mais amplo. Assim, todos os atores deixam suas marcas na reflexão em bioética e saem marcados por ela.

A bioética nasce da reflexão de cientistas preocupados com o rumo de suas pesquisas, de médicos em busca de orientar sua relação com os pacientes, de administradores hospitalares à procura de critérios para o gerenciamento dos recursos, muitas vezes escassos, da tentativa de mora-listas de elaborar uma ética de responsabilidade, de teólogos apresentando a experiência religiosa como construtora de sentido para a existência, e assim por diante. Nesse panorama de novas e inusitadas conquistas da biotecnociência, a bioética se afirma como uma disciplina que se forma no debate entre as diferentes áreas do conhecimento humano toda vez que está em jogo a vida e, no caso, a vida em seus elementos biológicos constitutivos, em sua própria materialidade.

Definimos, em outro trabalho, bioética como “a ciência do com-portamento moral dos seres humanos frente a toda intervenção da biotecnociência e das ciências da saúde sobre a vida, em toda a sua complexidade” (SANCHES, 2004, p. 21). Nesta definição chama-mos a atenção para os vários elementos que compõem o objetivo es-pecífico da bioética: a) a ética – acolhendo a perspectiva de Vázquez, bastante aceita ultimamente, de que a ética “é a teoria ou ciência do comportamento moral dos homens em sociedade” (VÁZQUEZ, 1995, p. 12); b) a intervenção humana sobre a vida, caracterizada pelo tipo de intervenção que ocorre nas “biotecnociências” e nas “ci-ências da saúde” para ressaltar que a bioética estuda o impacto não apenas das técnicas de laboratório, mas dos diferentes e variados se-tores e ciências que abordam a problemática da saúde; c) a vida im-pactada por esta intervenção, compreendida em toda sua complexida-de, ou seja: vida individual e coletiva; vida vegetal, animal e humana; vida somática, psíquica, cultural e espiritual. Isto porque ao intervir so-bre um ser vivo a biotecnociência interfere neste ser e em suas relações,

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Introdução

quando atinge uma pessoa atinge a globalidade da humanidade, ao in-terferir no corpo modifica também o próprio sentido da vida na terra.

Uma das características do pensamento atual, na pós-modernida-de, é a exigência do todo e a superação da fragmentação. A bioética, como ciência que surge exatamente neste contexto, nasce marcada por esta tendência, em que a interdisciplinaridade é característica essencial (DURANT, 1995, p. 19). Além deste contexto histórico, a interdisci-plinaridade é importante para a bioética por uma necessidade intrínse-ca. A bioética estará sempre ligada a todo o conhecimento que se dá nas ciências biomédicas, desde a biologia à medicina, com seus complexos desdobramentos e ramificações. A reflexão ética, por sua vez, exige a reflexão da filosofia, da teologia e de outras áreas das ciências humanas, ou seja, uma avaliação adequada do impacto da intervenção da bio-tecnociência sobre a vida só é possível com o auxílio de várias outras ciências, como a psicologia, a sociologia, o direito etc. Assim, a bioética “envolve os profissionais da saúde e todos aqueles que, com competên-cia e responsabilidade, dispõem-se a refletir eticamente sobre a melhor conduta a ser prestada à pessoa humana, à sociedade, ao mundo animal e vegetal e à própria natureza” (CORREIA, 1996, p. 36).

Falamos do que acreditamos e cremos ser a melhor visão possível do assunto tratado, mas nunca podemos perder de vista que nós, como pes-soas, somos maiores do que nossas ideias e decisões. Muitas de nossas ideias e decisões ficam no passado e nós temos sempre a possibilidade de crescer, superar obstáculos e superar a nós mesmos. Não podemos, por-tanto, em bioética, nos colocar a favor ou contra pessoas, formar grupos para se opor a outros grupos, mas sim colocar as nossas ideias a serviço de uma compreensão mais ampla e mais profunda da realidade, colocar nossas ideias a serviço da vida. Falar com humildade é tomar consciência de que há muitos fatores que limitam nossa fala.

Tendo em vista a importância e a complexidade de se situar numa área interdisciplinar, compreendemos que quem escreve na área de bioética

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precisa deixar claros seus pressupostos teóricos, metodológicos e, princi-palmente, existenciais. Em bioética não se pretende a neutralidade, mas o respeito, por isto definir o ponto de onde se escreve é indispensável, para que o leitor possa avaliar criticamente o discurso. Em bioética não se pretende a contemplação da realidade, mas sua transformação, por isso é fundamental explicitar a direção que está se propondo, para que as pesso-as possam optar por este ou outro caminho.

Portanto, percebemos que a reflexão em bioética, que se dá no respeito à diversidade própria da secularidade, pode trazer a marca da confessiona-lidade, ou seja, de uma visão de mundo particular que se quer defender e justificar, baseada em convicções pessoais.

Qualquer crença religiosa implica uma determinada concepção moral, mas as crenças em geral – não só as religiosas, mas também as concepções de mundo explici-tamente ateias – contêm necessariamente considerações valorativas sob determinados aspectos da vida, conside-rações que, por sua vez, permitem formular princípios, normas e preceitos para orientar a ação (CORTINA; MARTINEZ, 2005, p. 42).

Javier Gafo também compreende que este é um fato que precisamos aceitar: “seja do tipo que for, todos somos filhos de tradições humanas concretas, que configuram nossas atitudes humanas básicas fundamentais e, em concreto, nossas aproximações à bioética” (GAFO, 2003, p. 95). Essas observações permitem uma compreensão que, em vez de questionar a bioética como um todo, reconhece que ela está marcada e é composta de diferentes perspectivas, incluindo as diferentes perspectivas confessionais. A confessionalidade passa a representar as perspectivas particulares de cons-trução de sentido, não necessariamente religioso (ANJOS, 2003, p. 459). Se nem toda confessionalidade é religiosa, a bioética que nasce do diálogo com a teologia moral cristã é sem dúvida confessional, mas precisa estar

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Introdução

aberta aos valores de outras confessionalidades, pois o debate se dá no âmbito da bioética secular, ou seja, pluralista.

Quando o teólogo assume a postura de diálogo, numa necessária crí-tica a uma postura fundamentalista, ele ainda permanece com a dificul-dade de ter uma postura adequada na interlocução com os outros, neste contexto de bioética secular. Martínez – que fala a partir de sua própria perspectiva, a católica, mas que evidentemente se aplica também às outras perspectivas confessionais – aponta que o teólogo que atua em bioética, para se inserir no contexto de diversidade e ao mesmo tempo contribuir com a perspectiva própria da teologia, necessita de três virtudes:

a) A disposição e habilidade de se fazer inteligível em público; b) a acessibilidade pública, que consiste na prá-tica habitual de defender os diversos pontos de vista de um modo não sectário nem autoritário; c) e não per-der a identidade teológica e católica ao se fazer inteligível e acessível (2008, p. 61).

Deste modo o teólogo, como as outras pessoas envolvidas, se insere no trabalho em bioética com uma “mentalidade dialogante e não como juiz do permitido e do proibido” (TURRADO, 2006. p. 98).

Este livro está organizado em oito capítulos e algumas considerações finais. No primeiro capítulo centramos nosso estudo na perspectiva da Sagrada Escritura e também nos Padres da Igreja. Na Sagrada Escritura buscamos elementos que nos remetem a textos que apresentam momen-tos em que aparecem discussões sobre a vida humana em seu início. Toda-via, é de extrema importância ter claro que na Sagrada Escritura, por mais que queiramos, não encontraremos texto algum que tenha claramente um discurso de biologia sobre o início da vida. Nos textos que foram co-lhidos em nossa pesquisa, encontramos fundamentos sólidos no Antigo e no Novo Testamento de discussão sobre a dignidade da vida humana desde o período intrauterino.

A dignidade do embrião humano: diálogo entre teologia e bioética

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No segundo capítulo, mapeamos o debate ocorrido na sociedade oci-dental a respeito do início da vida de um novo ser humano. Demonstra-mos como esse debate é sistematizado a partir das influências do dualis-mo platônico e da embriologia aristotélica, que provoca o surgimento de duas teses: a animação imediata ou a animação tardia do embrião. A Igreja mantém a defesa da dignidade humana desde seu início, por isso este debate – ao redor da animação do embrião – tem consequências para o posicionamento da Igreja em relação ao aborto.

No terceiro capítulo abordamos as questões relacionadas ao dualismo antropológico – corpo e alma – e notamos que de uma forma ou de outra o dualismo permanece ainda presente na atualidade. Em resposta a toda a polêmica da dualidade buscamos as proposições na filosofia e na teologia cristã em que, com base na antropologia bíblica da criação e depois na própria encarnação de Jesus, transparecem a concepção do ser humano como unidade de corpo e alma.

No quarto capítulo centramos nossa atenção na biologia tendo como objetivo o estudo do contexto histórico e seu desenvolvimento. O desen-volvimento da biologia é ponto fundamental na elaboração das definições com relação ao início da vida humana. O progresso da biologia, entendida na perspectiva moderna, paulatinamente vai superando as teorias antigas de biologia. A posição da tradição cristã continua a mesma: defender a dignidade de cada ser humano desde seu início, mas agora a compreensão de quando começa a vida de um novo ser humano é alterada pela ciência, descoberta que é acolhida prontamente pela Igreja.

No quinto capítulo apresentamos o início da vida na perspectiva da biologia. Entendemos que a biologia sozinha não responde às ques-tões relacionadas com a dignidade humana, mas apresenta claramente um ponto fundamental: a complexidade da formação de uma nova vida humana, ao explicitar os processos que ocorrem na fecundação. A biolo-gia apresenta uma certa dificuldade em definir o exato instante do início da vida, mas por outro lado deixa claro que após a fecundação o novo ser

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Introdução

tem identidade biológica clara, própria de um indivíduo que pertence a uma determinada espécie.

O sexto capítulo tem intrinsecamente uma ligação bastante tênue com o capítulo anterior, pois vem ao encontro de questões que se voltam para a definição da individualidade e da concepção de pessoa. Neste capítulo, mesmo tendo o olhar sobre a reflexão da teologia moderna, não podemos deixar de voltar ao passado e recordar ideias que foram sedimentadas por grandes pensadores, pois suas ideias são a base e o fundamento do pensa-mento atual. Abordamos também a distinção entre o conceito de pessoa e o de ser humano – muito presente na bioética atual –, dando destaque intrínseco à relação entre estes dois termos.

Os capítulos sétimo e oitavo apresentam o debate sobre o início da vida ocorrido no Brasil, na última década, em torno da chamada Lei de Biossegurança. Depois de uma apresentação do contexto da proposição desta lei o oitavo capítulo faz uma análise do discurso dos ministros do Superior Tribunal Federal ao longo do julgamento da Ação Direta de In-constitucionalidade de no 3.510, impugnando a constitucionalidade do artigo 5o e parágrafos da Lei de Biossegurança.

Nas considerações finais damos ênfase a duas questões: primeiro ao fato de que o debate no Brasil sobre o início da vida – principalmen-te o ocorrido em torno da Lei de Biossegurança – fora provocado pelas práticas das clínicas de reprodução assistida (RA) e, em segundo lugar, retomamos o debate sobre a dignidade humana no contexto da bioética. Apresentamos a importância da teologia na defesa da dignidade humana desde o início da vida e a força de seus argumentos para uma sociedade que não aceita construir uma visão fragmentada do ser humano e busca a superação de ideologias históricas que não atribuem a todos os humanos o mesmo valor.

CAPÍTuLo i: o VALor DA ViDA BioLÓGiCA NoS

iNÍCioS DA TrADiÇÃo CriSTÃ

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Capítulo I: O valor da vida biológica nos inícios da tradição cristã

Compreendemos aqui por “início da tradição cristã” o pensa-mento presente nas Sagradas Escrituras e nos Padres da Igreja

– primeiros séculos do cristianismo. Os objetivos deste livro nos permi-tem recolher apenas alguns elementos que são fundamentais para a tra-dição cristã. Deste modo, abordamos o tema do valor da vida biológica neste período sem a pretensão de explorar todos os trechos e passagens que, de uma forma ou de outra, contemplam a temática estudada. To-maremos assim alguns textos do Antigo Testamento e, na sequência, alguns do Novo Testamento e mais adiante alguns textos dos principais pensadores da patrística que abordam a questão do início da vida e que entendemos serem os de maior relevância para este primeiro capítulo.

Todas as vezes em que estudamos alguns temas do ponto de vista histó-rico, há o risco de incorrer em anacronismos, ou seja, avaliar as questões a partir do conhecimento e da perspectiva atuais. Visto que hoje incorporamos o conhecimento da biologia moderna, não há como deixar de analisar estes textos da antiguidade como marcas de uma embriologia, cientes de que eles foram elaborados a partir de outros temas e preocupações: a condenação do aborto, a defesa da mulher grávida, a dignidade da criança, a vocação do pro-feta desde o ventre materno, a dignidade de toda a criação, o valor da vida. Todos esses temas continuarão bastante presentes ao longo da tradição cristã e apontam para a defesa e a dignidade da vida humana antes do nascimento.

A dignidade do embrião humano: diálogo entre teologia e bioética

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Provavelmente não encontraremos nos textos da Sagrada Escritura e dos Padres da Igreja uma clara posição sobre o debate em relação à identi-dade e à dignidade individual do embrião humano, no entanto a temática está presente nos temas indicados acima e, prioritariamente, nos posicio-namentos que abordam a questão do aborto e na condenação da violência contra a vida humana. Pelo fato de este tema – a dignidade do embrião humano – estar relacionado com todos estes outros assuntos, podemos perceber nos escritores bíblicos e nos Padres da Igreja sua posição em relação ao início da vida e sua indagação sobre a dignidade humana desde o período gestacional.

A PErSPECTiVA VETEroTESTAmENTáriA

Na Sagrada Escritura a linguagem mitológica é o arcabouço dos pen-sadores que tinham como perspectiva a materialização de suas ideias; eles se apoiavam no mito para chegar a alguma definição concreta de tudo o que era “incognoscível e inexplicável” (LEONE, 2007, p. 40). A explicitação do conceito de embrião não fugiu e nem foi uma exceção a essa regra.

Erro seria pensarmos que falando de mito estaríamos falando do pas-sado. “Mito é uma realidade presente, é a maneira como definimos aquilo que cremos, é a verdade que tem como base a força da crença – e po-demos dizer que a crença humana é uma força poderosa” (SANCHES, 2007, p. 6). Portanto, muitos mitos antigos e novos estão vivos, ou por-que as comunidades que creem neles continuam a crer, ou porque eles continuam ajudando as pessoas a dar sentido às coisas ao seu redor, a se sentir vivas e em sintonia com “as potencialidades espirituais da vida humana” (CAMPBEL, MOYERS, 1990, p. 6). Portanto, a abordagem mitológica do início da vida humana, longe de ter sido descartada, torna--se uma perspectiva atual significativa que se renova a partir do diálogo com outros tipos de conhecimento, como, por exemplo, o científico.

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Capítulo I: O valor da vida biológica nos inícios da tradição cristã

A criação: o ser humano perante DeusO primeiro texto que tomaremos da Sagrada Escritura é o relato da

criação no livro do Gênesis. Este tem como pano de fundo as passagens que descrevem o surgimento da vida. “O Gênesis é uma coleção de lendas (Sagen) – uma narração poética, popular, transmitida desde antigamen-te, que versa sobre pessoas ou acontecimentos” (LÓPEZ, 2004, p. 39). Mais adiante López conclui que o Gênesis “é uma descrição que se serve livremente de um certo número de concepções mitológicas” (2004, p. 68). A busca de elementos que exprimem a vida em seu momento inicial está delimitada pela carência do conhecimento da biologia como a temos hoje, por isso as definições alcançadas neste período eram de cunho mito-lógico e não podemos esperar um discurso com a propriedade da biologia moderna. Desta forma, observamos que os três primeiros capítulos do livro do Gênesis são relatos que revelam Deus em seu ofício criador. Deus é a fonte da vida. Ele é a origem da vida humana e institui uma relação significativa com o ser humano.

Essa relação estabelecida pelo relato da criação do ser humano é pre-cedida por uma decisão de Deus. Façamos o homem à nossa imagem e semelhança... (Gn 1,26). Ao ser criado, o ser humano é concebido à ima-gem e semelhança de Deus. Isto é, para a tradição bíblica, um elemento diferencial e um indicador de sua dignidade ímpar entre os outros seres criados. É este o fundamento bíblico da individualidade do ser humano, onde está implícito o respeito pelo ser humano, por que não dizer, desde seu estágio embrionário. Quando olhamos para a criação do ser humano percebemos que o Criador manifesta a dignidade deste ser humano cria-do desde o primeiro momento em que ele é formado. A dignidade está na força de decisão do verbo “façamos” e no substantivo “imagem”, que “analogicamente significa a pessoa” (LÓPEZ, 2004, p. 68).

Isto significa ainda, nos termos da Sagrada Escritura, a responsabili-dade do ser humano sobre a vida e o cuidado em relação à própria hu-manidade. Responsabilidade que não pode ser entendida como domínio,

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manipulação, mas como respeito e compaixão. Entre os fatos de grande importância, destaca-se que entre os animais não encontramos semelhan-te ao humano, reforçando assim a ideia da diferença entre os diversos se-res vivos e o ser humano. O ser humano tem consciência de ser diferente, tem consciência de si mesmo.

Ainda no livro do Gênesis, a criação do ser humano singularmente acontece especificamente em três momentos (Gn 2,7). Primeiro, ele é moldado da argila, depois é proporcionado a ele o hálito da vida, Ne-fesh1, e, depois dessa ação do Criador, aquela estátua de terra torna-se um ser vivo merecedor de todo cuidado e de carinho especial de Deus. Comentando a criação do ser humano, Hans W. Wolff chama nossa atenção para um dado interessante sobre o termo Basar, dizendo que nas Escrituras esse termo ganha o sentido de corpo humano completo, ou seja, o corpo humano como um todo; entende-se que este corpo humano, compreendido como totalidade, seja o ser humano em sua existência de corpo e espírito (WOLFF, 1993, p. 440). “A carne não significa o corpo como distinto da alma, e sim o homem todo” (COM-BLIM, 1995, p. 77). Destacamos que este é um ponto fundamental para o trabalho que aqui realizamos e que será retomado adiante: a an-tropologia bíblica compreende o ser humano por inteiro em sua relação com o Criador.

Ainda no mesmo capítulo, nos versículos 21 e 23, a mulher é criada e, em seguida, apresentada ao homem. No versículo 23 a mulher é reco-nhecida pelo homem como igual, sendo superada a visão dominadora imposta sobre ela, como se segue: Esta sim é osso de meus ossos e carne de minha carne. Ela será chamada mulher, porque foi tirada do homem (Gn 2,23). “Tirada” não traz a conotação de ser um pedaço de osso que foi transformado em mulher, mas que a mulher nasce da mesma essência

1 Nefesh, conceito de alma na religião judaica: a criatura terrena e espiritual. Nefesh aparece aproximadamente 755 vezes no Antigo Testamento. As nossas Bíblias traduzem por “alma”. Estudos recentes concluíram que nefesh não significa só a “alma”. Ela define o ser humano como um todo. O texto afirma que homem não tem nefesh, mas é nefesh, vive como nefesh. Disponível em: <http//www.britanica.com/EB/nefesh>. Acesso em: 15 dez. 2011.

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Capítulo I: O valor da vida biológica nos inícios da tradição cristã

humana em relação ao homem. Hoje, com os conhecimentos da biologia moderna, o autor bíblico poderia dizer: “Genoma de meu genoma, DNA de meu DNA”.

Com esta colocação queremos dizer que, mesmo sendo um escrito milenar, temos a possibilidade de identificar que o texto trata da vida humana em sua base biológica, concreta, e com consciência de constituir uma espécie diferenciada. Isto não significa que temos aqui uma de-finição de embriologia, mas uma posição em relação à vida humana desde o primeiro momento da criação que em termos atuais pode nos ajudar na discussão sobre a constituição de sua dignidade, ou seja, para o autor hebreu transparece a preocupação com a vida humana em sua totalidade.

A antropologia bíblica mostra em sua estrutura a criação como aconte-cimento emergente da ação amorosa de Deus. Em relação à criação do ser humano, tomando a Sagrada Escritura no contexto hebraico, ela aparece como ato amoroso e com a finalidade de relação íntima entre a criatura e o Criador desde seu início. Neste sentido, López nos ajuda a compreen-der que “o hálito vital reforça os laços entre a criatura e o criador” (2004, p. 69), focando também o reconhecimento do ser humano criado desde o início em sua totalidade. Desta forma queremos dizer que a concepção hebraica de início de vida, mesmo não conhecendo a fecundação, nem seu momento preciso definido pela embriologia atual, reconhece a dig-nidade da vida humana, tomando por base a ideia do ser humano como imagem e semelhança de Deus.

o valor da vida intrauterinaSerá que no Antigo Testamento há alguma passagem que aborda a

questão da vida intrauterina? Que expressa o valor do ser humano

A dignidade do embrião humano: diálogo entre teologia e bioética

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antes de seu nascimento? A esse respeito também tomamos uma primeira passagem do livro do Êxodo, que narra a saída dos israelitas do Egito e sua chegada ao monte Sinai. O relato deste livro que aborda o tema estudado nos apresenta o seguinte:

Se homens brigarem, e ferirem mulher grávida, e forem causa de aborto, sem maior dano, o culpado será obri-gado a indenizar o que lhe exigir o marido da mulher; e pagará o que os árbitros determinarem. Mas se houver dano grave, então dará vida por vida, olho por olho, dente por dente, pé por pé, queimadura por queimadu-ra, ferida por ferida, golpe por golpe (Ex 21,22).

Nesse texto do Êxodo entendemos que existe o reconhecimento do valor da vida intrauterina, o que nos possibilita falar de uma alusão à vida embrio-nária. É um texto muito estudado pelos exegetas, com a seguinte problemáti-ca: no original o texto elucida que se a briga causar a morte do feto, o agressor pagará uma multa; se a mulher morrer, o agressor deverá pagar com a vida. Na tradução dos LXX (realizada em Alexandria no século III a.C.) foi in-serida uma alteração significativa: os conceitos de feto formado e feto não formado: “se a mulher abordar um feto não formado, o agressor pagará uma multa, se a mulher abortar um feto já formado, o agressor pagará com a vida”. As razões destas mudanças são discutidas, mas certamente paira aí a influência helênica (GAFO, 1979, p. 65). Essa tradução influenciará muito o debate no início do cristianismo, pois essa era a única versão utilizada an-tes da Vulgata, e fora a tradução acolhida pela comunidade cristã primitiva. Assim, no texto do Êxodo existe uma qualificação do aborto que é base para a discussão do estatuto do embrião humano.

Um autor como Bourget assume a perspectiva da tradução dos LXX e, comentando esta passagem do livro do Êxodo, expressa que a condenação do aborto depende do período em que se encontra a gestação; para ele, esse texto bíblico

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Capítulo I: O valor da vida biológica nos inícios da tradição cristã

[...] qualifica a agressão a uma mulher grávida que tenha provocado um aborto de acordo com o estado gestacio-nal do embrião. Como se pode ver, essa qualificação do aborto – além disso, recorrente entre os antigos – baseia--se em uma interpretação embriológica: antes da for-mação do feto, o embrião é uma quase coisa, pois sua morte provoca somente uma indenização financeira. Em compensação, após sua formação, a vida do embrião é, portanto vale, a de uma pessoa (BOURGET, 2002, p. 89).

Um dado importante expresso neste texto é a presença da posição jurídica em relação ao aborto em sintonia com a moral. Entendemos que na visão de Bourget o conceito da animação tardia – que estudaremos adiante – já aparece no texto bíblico. A posição jurídica é que sobres-sai, enquanto a moral já está à mercê do questionamento sobre o início da vida humana. Nesta visão, o aspecto jurídico vê o embrião em duas situações distintas, antes e depois da animação, prescrevendo a senten-ça; antes da formação do embrião a punição é a indenização financeira; após a formação do embrião é que juridicamente se caracteriza um cri-me doloso, e a punição depende do grau do crime praticado, chegando à pena de morte.

Quem assume a perspectiva original compreende que um “dano grave” que leve à morte, que exigiria uma punição “vida por vida”, no texto bíblico não se refere à morte do embrião, mas à da mulher que se encontra gestante; sendo assim, a afirmação de Bourget esta-ria equivocada, porque a pena para o aborto seria apenas uma inde-nização monetária, enquanto para a morte da mulher seria a pena de morte. De um modo ou de outro, o texto expressa a preocupação com a vida intrauterina.

Ainda no Êxodo temos outro texto que foca com toda a veemên-cia a condenação de qualquer ação contra a vida humana. Não matarás

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o inocente (Ex 23,7). É evidente que o texto do Êxodo não está exclu-sivamente falando da vida embrionária, mas a vida tomada em sentido amplo. Porém, o texto é importante porque o ser humano no ventre ma-terno será visto em condição especial de inocência pela tradição cristã, continuadora da revelação bíblica.

No livro do Deuteronômio encontramos textos legais, e entre eles o decálogo ocupa a parte central. Sem dúvida a influência do decálogo na cultura e no direito ocidental é inquestionável e extrapola em muito a comunidade dos que aceitam a fé do povo bíblico. O texto do decálogo que por hora nos interessa é o quinto mandamento, que prescreve a sen-tença Não matarás (Dt 5,17). Essa sentença pode ser tomada como um imperativo para que a vida não seja destruída, não seja desumanizada, não se torne um objeto, não seja reduzida. Nas entrelinhas do texto do decálogo temos o substrato da condenação de todo e qualquer ato que venha a destruir a vida e o reconhecimento do respeito por ela. Mesmo sem ter elaborado o conceito de embrião, o decálogo será sempre o fun-damento da postura de condenação de todo ato que atente contra a vida desde seu início. O não matarás será usado muitas vezes na história da tradição cristã para defender a vida do ser humano na fase intrauterina. Exemplo da força e da permanência desse imperativo bíblico atualmen-te é a carta encíclica de João Paulo II ao dizer que o preceito da doutrina não matarás interpela: “não matarás o embrião por meio do aborto, nem farás que morra o recém-nascido” (EV, n. 61)2 Porque quem, ainda segundo o Papa, comete crimes contra a vida “não tem compaixão do pobre, não sofre com o enfermo, nem reconhece o seu criador; assassina os seus filhos e pelo aborto faz perecer criaturas de Deus” (EV, n. 54).

Retomando a Sagrada Escritura, ainda no livro do Deuteronômio te-mos uma segunda afirmação em favor da vida: “Escolhe, pois, a vida” (Dt 30,19). O texto chama a atenção para o reconhecimento e a defesa da dignidade da vida humana mostrando que a opção pela vida gera vida

2 EV, Evangelium vitae: carta encíclica de João Paulo II de 1995.

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Capítulo I: O valor da vida biológica nos inícios da tradição cristã

e que a opção pela morte produz morte. Este texto bíblico foi usado na Campanha da Fraternidade de 2008 no Brasil, que marcou a reação da Igreja à aprovação da Lei de Biossegurança em 2005, que libera os em-briões criopreservados para as pesquisas com células-tronco, lei que será estudada nos capítulos finais deste livro. O destaque na época era que ao liberar os embriões para pesquisa estava-se escolhendo a eliminação deles. O clamor do “Escolhe, pois, a vida” era apresentado como um protesto “diante das estruturas que geram a morte e promovem a manipulação e a comercialização da vida humana” (CNBB, 2008, p. 14).

“Desde o ventre materno eu te conheci”Até aqui consideramos alguns textos do Antigo Testamento nos livros

que compõem o chamado Pentateuco, mas gostaríamos de indicar tam-bém algumas passagens dos chamados livros sapienciais, entre elas uma do livro de Jó: [...] fui concebido como homem e – com o aborto – eu não existiria, como crianças que nunca viram a luz (Jó 3,3.16). O livro de Jó contextualiza o sofrimento existencial do ser humano como um todo. Mas o que chama nossa atenção é o reconhecimento da vida humana embrionária: a afirmação da concepção do ser humano, a formalização da ideia de aborto e seu significado, ou seja, impedir que crianças con-templem a luz. Significativamente, entendemos que a expressão do livro de Jó que estamos refletindo pode ser adequada para exprimir a morte do embrião ou do feto no útero materno.

Também no conjunto dos sapienciais citemos o livro dos Salmos. No Salmo 139 há uma referência ao início da vida. Algumas traduções desta passagem já incorporam no texto o conceito moderno de embrião ao falar do início da vida: [...] os teus olhos viram o meu embrião (Sl 139,16). Na Bíblia, com tradução de João Ferreira de Almeida, o mesmo Salmo é traduzido da seguinte forma: [...] pois tu formaste o meu interior, tu me teceste no seio de minha mãe (Sl 139,16). O autor fala do embrião se cons-tituindo como ser humano. O salmo transparece que Deus é quem cria,

A dignidade do embrião humano: diálogo entre teologia e bioética

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lembrando o Gênesis. O salmo também enfatiza, acima de tudo, o amor divino ao novo ser desde os primeiros momentos; como se diria hoje, des-de a fecundação. Observamos que o texto emprega e enfatiza o desejo e a ação criadora de Deus desde a concepção. O Salmo 21 também aborda a relação do ser humano com Deus desde a vida intrauterina: Sim, fostes vós que me tirastes das entranhas de minha mãe, e me fizestes repousar em seu seio. Eu vos fui entregue desde o meu nascer, desde o ventre de minha mãe vós sois o meu Deus (Sl 21,10-11).

O livro da Sabedoria, também do grupo dos sapienciais, na Bíblia Sagrada da editora Ave-Maria, traz o seguinte texto: Eu mesmo não passo de um mortal como todos os outros, e descendo do primeiro homem formado da terra. meu corpo foi formado no seio de minha mãe... no sangue tomou consistência, da semente viril e do prazer ajuntado à união (conjugal) (Sb 7,1). Nessa passagem, ao se falar do início da vida, o ser humano é to-mado como pessoa. Porque no início do versículo Salomão identifica-se como ser humano que foi sendo formado delicadamente. O formado em carne é que nos dá margem para esta afirmação, retomando a con-cepção hebraica de ser humano vista no início deste estudo. Observan-do o texto do livro da Sabedoria citado acima, entendemos que em suas entrelinhas existem ideias que descrevem a fecundação e a gestação do ser humano. Temos então, na Sagrada Escritura, com “relação à vida nascente indícios da vida embrionária” (LEONE, 2007, p. 39-40).

Nos livros dos profetas encontramos algumas passagens relevantes para o estudo sobre o início da vida. O profeta Isaías, considerado de forma geral o maior dos profetas de Israel, nascido por volta do ano 760 a.C., expressa de maneira poética o cuidado de Deus pelo seu povo, o zelo do Deus de Israel, que acompanha seu povo em todas as fases da vida: [...] vós a quem carreguei desde o seio materno, a quem levei desde o berço. Eu vos criei e eu vos conduzirei, eu vos carregarei e vos salvarei (Is 46,3).

O livro do profeta Jeremias traz uma passagem que se refere ao pe-ríodo em que o profeta estava sendo gestado: Antes que eu te formas-

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Capítulo I: O valor da vida biológica nos inícios da tradição cristã

se no ventre materno, eu te conheci, te consagrei (Jr 1,2). A princípio o texto trata da vocação do profeta, escolhido por Deus desde antes do nascimento. Esta escolha, que envolve o profeta na totalidade de sua existência, incluindo a vida intrauterina, significa claramente que Deus conhece e se relaciona com o ser humano mesmo antes de ele nascer. O conhecimento e a consagração de Jeremias ainda embrião afirmam categoricamente sua dignidade desde os primeiros instantes de sua existência intrauterina. Isto significa que desde a fecundação a vida humana carrega o olhar todo especial de Deus, pois Ele não abandona nenhum ser humano. A consagração expressa a relação íntima entre o ser humano e Deus. Isso significa também que o ser humano está sempre na presença do Criador, desde o ventre materno. Esta afinidade relacional entre Deus e o ser humano nos é lembrada pelo Papa João Paulo II quando afirma que “desde o seio materno o homem pertence a Deus, que tudo perscruta e conhece, que o forma e plasma com suas mãos, que o vê quando ainda é um pequeno embrião informe” (EV, n. 61). E conforme ainda ao salmo que nos diz que Desde o seio materno sois meu pastor (Sl 70,6). Ou seja, a figura do pastor alude àquele que cuida e tem compaixão pela vida, e a figura de Deus como pastor revela o cuidado pela vida humana do embrião.

Até aqui buscamos mapear no Antigo Testamento textos que abordam a questão do início da vida, principalmente em relação ao cuidado e à dignidade da vida humana. Todos os textos estudados querem mostrar que Deus revela o valor que a vida humana detém em todas as suas di-mensões. Desde o seio da mãe a vida humana é cercada de carinho, aten-ção, cuidado e respeito por Deus. Podemos concluir, a partir dos textos veterotestamentários, que existir, ser conhecida e amada por Deus é a base da dignidade de toda criatura. O modo especial como o ser humano é chamado à existência, conhecido e amado por Deus constitui a base da dignidade ímpar do ser humano. Na sequência iremos abordar a mes-ma temática estudada, mas agora nos textos do Novo Testamento.

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A PErSPECTiVA NEoTESTAmENTáriA

No Novo Testamento também não temos concretamente um ensina-mento explícito de Jesus Cristo, dos apóstolos e evangelistas com relação direta e objetiva sobre a vida do nascituro humano. Os evangelhos revelam o respeito pela criança por parte de Jesus Cristo na forma do acolhimento e da aproximação das crianças em relação ao próprio Cristo, como veremos na sequência em alguns textos deles extraídos, a começar por Mateus: Se não vos tornardes como criancinhas não entrareis no Reino dos céus (Mt 18, 3). A ideia principal deste pequeno texto do evangelho de Mateus é um alerta de Jesus Cristo para que as pessoas busquem a simplicidade, cultivem a inocência e se tornem generosas. Esta generosidade marcada pela expressão “tornar-se como criança” está na lógica da inocência (PAULA, 2007, p. 65). A criança precisa ser protegida, pois é inocente e indefesa. Essa mesma lógica se estenderá a todas as situações onde houver vida humana inocente e indefesa. A força desta ideia que aqui colocamos está no próprio Evangelho: Amarás o teu próximo (Mt 5,43). E a Igreja aplica esse mandamento a todas as fases da vida. “Com a sua palavra e os seus gestos, Jesus explicita ulterior-mente as exigências positivas do mandamento referente à inviolabilidade da vida – antes de nascer” (EV, n. 41).

No Novo Testamento o principal texto sobre a vida humana em gesta-ção é exatamente a gestação do próprio Jesus Cristo e a de seu precursor, João Batista. Esta linda passagem está no evangelho de Lucas, que relata:

Naqueles dias – Maria foi apressadamente à região mon-tanhosa, a uma cidade de Judá. Entrou na casa de Zaca-rias e saudou Isabel. Ouvindo esta saudação de Maria, a criança lhe estremeceu no ventre; então, Isabel ficou cheia do Espírito Santo. E exclamou em alta voz: “Ben-dita és tu entre as mulheres, e bendito o fruto do teu ventre! De onde me provém que venha me visitar a mãe do meu Senhor? Pois, logo que me chegou aos ouvidos

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Capítulo I: O valor da vida biológica nos inícios da tradição cristã

a voz da tua saudação, a criança estremeceu de alegria dentro de mim” (Lc 1,39-44).

O momento significativo no relato é quando a criança – João Batista – reage no seio de sua mãe Isabel: [...] a criança lhe estremeceu no ventre (Lc 1,44). Como é Isabel que fala, este [...] que estremeceu no ventre é o seu filho, o menino que será chamado de João Batista, cuja concepção também fora anunciada por um anjo ao seu pai Zacarias (Lc 1,12). Essa passagem adquire um sentido especial para nosso trabalho porque deixa claro que os autores bíblicos falam de “pessoas ainda não nascidas” como pessoas formadas, capazes de agir e de ser reconhecidas. No diálogo de Maria com o Anjo aparece o tempo de gestação de Isabel e a existência de João Batista sendo noticiada: [...] Isabel, tua parenta [...] concebeu um filho [...] sendo já o sexto mês (Lc 1,36). No encontro das primas, enquanto Isabel já está no sexto mês de gestação, Maria carrega em seu ventre Jesus em seus primeiros dias de formação, reconhecido por Isabel como “meu Senhor”. Além de todo significado religioso que tem essa afirmação de Isabel, o que nos interessa neste momento é que o título “meu Senhor” é dado a Jesus em seu estágio embrionário. Isto significa que Jesus Cristo é desde a concepção o “Senhor”, o “Verbo feito carne”.

Outro dado importante dessa passagem, e que toma a dimensão da relação entre o ser humano e Deus, é marcado pela expressão “e Isabel ficou cheia do Espírito Santo”. É no Espírito Santo que se dá este diálo-go entre Deus e o ser humano desde a fecundação, reconhecimento de que somos imagem e semelhança desde o início. Estamos aqui diante de um dado muito relevante para a proposta deste livro, pois é sob a ação do Espírito Santo que Isabel reconhece o filho no ventre de Maria e ao mesmo tempo afirma: a criança estremeceu de alegria dentro de mim. Para os cristãos bastaria esta passagem para reconhecer a dignidade ple-na de um ser humano desde sua concepção, pois é a ação do mesmo Espírito que conduz a Igreja ao longo da história e a faz ser fiel e coerente com sua missão de perpetuar a obra do Espírito que promove vida.

A dignidade do embrião humano: diálogo entre teologia e bioética

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Podemos ainda encontrar o tema do início da vida em outros tex-tos do Novo Testamento, como numa passagem do livro do Apocalipse que fala de uma mulher grávida em constante perigo de atentados contra sua vida. Existem muitas interpretações para este texto. Mas ele também pode ser incluído em nosso discurso focando exatamente a questão da violência contra a vida inocente em sua vulnerabilidade, tanto intrauteri-na como recém-nascida, pois [...] o dragão postou-se diante da mulher, que estava para dar à luz, com a intenção de lhe devorar o filho, logo que houvesse nascido (Ap 12,4). A criança, o menino que o dragão queria devorar foi arrebatado repentinamente para junto de Deus e do seu trono (Ap 12,5), uma clara referência ao Cristo que estava sendo gerado e que representa a figura de cada ser humano, de cada criança que está sendo gerada.

Deste modo podemos concluir que no início da era cristã a mensagem era a da doação de si, amar como o Cristo amou e se doou por todos, de tal modo que “a valorização cristã da vida foi feita em vista do manda-mento do amor” (NOONAN, 1970, p. 7). Noonan indica que na comu-nidade cristã primitiva havia algo “não dito” que era mais forte do que o que fora afirmado explicitamente nos textos sagrados. A comunidade era marcada por um ambiente que respirava a dignidade da vida do feto, pois o menino no ventre de Maria foi “concebido pelo Espírito Santo”, Isabel saúda Maria como a “Mãe do meu Senhor” e o fruto no seu ventre foi saudado como “abençoado”. Na comunidade primitiva “não era necessá-rio dizer que um homem que protege o Estado matando infantes não era um bom homem” (Ibidem, p. 8).

A CoNDENAÇÃo Do ABorTo NA iGrEJA NASCENTE

O tema do início da vida aparece nos primeiros séculos do cristianis-mo ao redor da polêmica sobre o aborto. A posição dos Padres da Igreja

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Capítulo I: O valor da vida biológica nos inícios da tradição cristã

vai influenciar de maneira decisiva as etapas posteriores da Igreja. Os pri-meiros escritos de grande relevância catequética e moral da antiguidade cristã expressam claramente este posicionamento da Igreja contrário ao aborto, como a Didaké, a Carta de Barnabé e a Carta a Diogneto. Como poderemos perceber, nesses textos, desde o início, foram tomadas po-sições doutrinárias que tiveram por princípio a orientação dos cristãos sobre suas ações e suas condutas, destacando desde cedo a preocupação da Igreja com a dignidade da vida humana.

A Didaké aborda as questões relacionadas ao aborto caracterizando de certa forma também a discussão sobre a vida embrionária. O texto apresen-ta a seguinte exortação: “não mate a criança no seio da mãe, nem depois que ela tenha nascido” (Didaké 2,2, p. 10). O texto expressa claramente a necessidade de valorizar a vida intrauterina do mesmo modo que valoriza-mos a criança nascida. É uma exortação sobre o aborto pressupondo o res-peito e o reconhecimento da dignidade da vida humana desde seu início.

A Carta de Barnabé, segundo informações, um documento anônimo atribuído a Barnabé, companheiro de Paulo, escrito no fim do primeiro século ou no início do segundo, focaliza também a proteção à vida do ser humano antes e depois do nascimento: “Não farás morrer a criança no seio da mãe; tampouco a matarás após o nascimento” (C.B. XIX, no 5). Temos aqui o mesmo argumento do valor da vida intrauterina. Podemos dizer que estes textos refletem a convicção da comunidade cristã de valorizar a vida humana, na perspectiva do mandamento “não ma-tarás”. Deste modo, o argumento é forte ao atribuir ao não nascido o mesmo valor do já nascido.

Assim como os escritos anteriores, a Carta a Diogneto carrega um teor catequético e moral. Em relação ao início da vida este texto não nos apresenta concretamente afirmação alguma. Mas temos nesta carta ideias relacionadas diretamente com a família em que focaliza indiretamente a procriação, quando indica que os cristãos “não rejeitam seus filhos” (C.D., p. 24).

A dignidade do embrião humano: diálogo entre teologia e bioética

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Portanto, estes escritos dos primeiros séculos do cristianismo expres-sam o reconhecimento da dignidade e do respeito à vida humana entre os cristãos. Estes textos de certa maneira são uma catequese e uma exortação moral do cristianismo em face do pensamento da época. O cristianismo é apresentado numa perspectiva de inserção no mundo cercado por dife-rentes religiões, onde o cristão se diferencia dos demais pelo seu modo de ser, incluindo uma clara condenação a todo tipo de agressão à vida, e mais especificamente, no caso do nosso estudo, uma condenação ao aborto independentemente do tempo de gestação.

Na sequência veremos pensadores – situados no período da patrísti-ca – que elaboram com maior precisão a perspectiva moral em relação à vida embrionária, ao abordar o tema do aborto. Alguns Padres da Igreja representam posições relevantes sobre a vida humana ainda não nascida, com a condenação de toda e qualquer intervenção sobre a vida humana embrionária que resulte na interrupção dessa vida.

O primeiro Padre da Igreja que indicamos neste momento é Ter-tuliano, que nasceu entre os anos 150 e 160, em Cartago. Sua morte teria acontecido por volta do ano 240. Sua formação foi em Cartago mesmo, onde viveu toda sua vida e teve excelente formação intelec-tual, sendo versado em história, filosofia, letras e de modo particular em direito (DPAC, 2002, p. 534). A principal obra de Tertuliano é o Apologeticum, do ano 197, onde se dirige às autoridades civis e aos governantes das províncias. Como advogado, procurou demonstrar a ilegalidade, a injustiça das perseguições tomando como base argu-mentos jurídicos.

Podemos dizer que em Tertuliano temos alguma ideia de embriologia, ou seja, percebemos que em seus discursos transparece a ideia de que a partir da fecundação existe um novo ser humano. Essa ideia está presente numa passagem do Apologeticum, que afirma o seguinte: “Ele é um ho-mem que quer tornar-se um homem” (1971, p. 85). Entendemos que Tertuliano diz neste trecho do Apologeticum que não existe diferença entre

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uma vida que já tenha nascido e uma vida em gestação. Para Tertuliano, o embrião, ou o feto, já é um ser humano que está no processo contínuo de se desenvolver. Quando Tertuliano defende a inviolabilidade da vida humana desde a gestação, ele reconhece a existência de um ser humano no estágio embrionário, tendo como pressuposto fundamental o reco-nhecimento da dignidade da vida humana (LEONE, 2007, p. 47).

Para Tertuliano, a morte de um embrião toma a mesma dimensão do assassinato de um ser humano já nascido. “Quanto a nós, sendo-nos proibido o homicídio de uma vez por todas, tampouco é permitido fazer perecer a criança concebida no seio da mãe, enquanto o ser humano con-tinua a ser formado pelo sangue. Impedir o nascimento é um homicídio antecipado” (1971, p. 86). Em Tertuliano não nos é dito explicitamente se a animação do embrião é imediata ou tardia, mas, independentemente do momento da animação, temos a declaração incondicional da dignida-de humana e a contraposição ao aborto, classificado como um homicídio que ocorre já no útero materno. No texto acima, a afirmação da inviola-bilidade da vida humana se estende à vida embrionária, certamente mar-cada pela preocupação de explicitar claramente a condenação a todo tipo de aborto.

Em São Basílio apontamos uma carta escrita por volta do ano 379. Nela São Basílio trata da disciplina e faz afirmações morais sobre o aborto. Também neste escrito temos a percepção e a visão sobre o início da vida sintetizadas em torno da questão do aborto: “A mulher que des-trói voluntariamente um feto se torna culpada de assassinato” (BASÍLIO, Carta 188, II). Também em São Basílio existe o reconhecimento da vida em gestação e a defesa desta vida humana intrauterina. Assim, a reflexão de São Basílio enfatiza o significado da intenção de quem provoca o abor-to expressando o grau acentuado da moral da ação sobre o corpo físico do ser humano por intermédio do aborto. Quanto a essa gravidade moral, São Basílio nos diz que “é um assassino aquele que mata um embrião inacabado e informe, pois este, embora não seja ainda um ser completo,

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estava, contudo, destinado a completar-se no futuro, de acordo com o prosseguimento inevitável das leis da natureza” (BASÍLIO, apud ENGE-LHARDT, 2003, p. 329). O que se entende é que esta posição de São Ba-sílio aponta para o surgimento do estatuto moral do embrião humano.

Segundo Engelhardt, São Basílio não fala da concepção diretamente, nem de questões relacionadas à hominização. Os textos citados acima e a liturgia de São Basílio no tocante à vida antes do nascimento falam de cada ser humano desde o útero de sua mãe, como podemos ver a seguir: “Ó senhor, que sabeis a idade e o nome de cada um, e que conheceis cada homem desde o ventre materno” (2003, p. 329).

Um outro Padre da Igreja muito relevante para o tema estudado é Santo Agostinho, que nasceu na atual Argélia, na época uma província romana no norte da África, morrendo em Hipona no ano 430. Agostinho é uma das figuras mais importantes no desenvolvimento do pensamento do Ocidente. Em seus primeiros anos ele foi fortemente influenciado pelo maniqueísmo e pelo neoplatonismo de Plotino, mas depois de tornar-se cristão desenvolveu uma filosofia e uma teologia próprias.

Quanto ao que se apresenta sobre o aborto em Santo Agostinho, te-mos a sua obra De nuptiis et concupiscenti, um escrito de resposta aos seus opositores que o acusavam de ser um seguidor do maniqueísmo. A postura de Santo Agostinho e as suas afirmações são contundentes em relação ao aborto. Para ele os que praticam o aborto não podem ser considerados ma-rido e mulher, mas amantes. Se apenas um é culpado, ou a mulher surge como prostituta ou o marido como adúltero. As palavras de Agostinho contra o aborto serão citadas por teólogos nos séculos posteriores:

Esta dissoluta crueldade, ou dissolutez cruel, chega ao ponto de inventar também os venenos da esterilidade. E se nada conseguiu anular e dissolver de alguma forma no útero os fetos concebidos, preferem que a sua prole se extinga do que viva, ou, se já viva no útero, seja morta

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antes de nascer. Com certeza se assim pensam ambos não são cônjuges; e se assim foram desde o começo não se uniram em matrimônio (connubium), mas antes em adultério (stuprum). Se não sucede assim entre ambos, ouso afirmar: ou ela é, de alguma maneira, prostituta do marido ou ele adúltero da mulher (a.1,17)3.

Assim, constatamos que desde seus primeiros séculos, e no período da patrística, a Igreja defende a dignidade da vida humana a partir da concepção. É essa posição que a Igreja sustentará ao longo dos séculos, com a linguagem própria de cada época, em diálogo com o conhecimento filosófico e científico de cada período histórico. Entretanto, é exatamente a necessidade de se expressar na linguagem de seu tempo que às vezes sus-cita expressões confusas ou dúbias em alguns teólogos sobre a questão do início da vida. É o que veremos a seguir ao redor do debate sobre a visão dualista de ser humano e a questão da animação do embrião.

3 SANTO AGOSTINHO, De nuptiis et concupiscenti a,1, 17. Disponível em: <http://www.newadvent.org/fathers/15071.htm>. Acesso em: 1o mar. 2012. Apud PAULA, 2007, p. 72.