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Anais do XXI Encontro Estadual de História –ANPUH-SP - Campinas, setembro, 2012.
Edifícios da(e) Repressão: a construção dos sentidos sociais através da
patrimonialização – Maria Antônia, Arco Tiradentes, El Olimpo e Club
Atlético
Deborah Regina Leal NEVES*
Este trabalho trata de casos de preservação e reconhecimento como patrimônio
cultural de bens relacionados com os períodos de ditadura civil-militar no Brasil (1964-1985),
preservados pelo órgão estadual de preservação de São Paulo (CONDEPHAAT) e na
Argentina (1976-1983), preservados pelo órgão municipal de Buenos Aires (CPPHC –
Comisión para la Preservación del Património Histórico Cultural). Embora tenham atuações
em esferas distintas – uma estadual outra municipal – a aproximação das atividades é possível
pela finalidade dos dois órgãos – o reconhecimento e a preservação – e pelos objetos
analisados: locais emblemáticos dos períodos supracitados, transformados em lugares de
memória.
Temos acompanhado ao longo dos anos a ampliação da discussão acerca da
preservação do patrimônio, e mais recentemente o retorno da mobilização popular pela
preservação (ou não) de determinados bens. Para além de uma política exclusivamente de
Estado, a sociedade demonstra que sua participação é fundamental e, com movimentos
organizados, clama pelo atendimento de suas demandas face ao desordenamento da expansão
do espaço urbano e a desarticulação entre estado e povo, no Brasil. Na Argentina não é
diferente, já que o crescimento do país decorrente de uma relativa estabilidade econômica tem
colocado a paisagem de Buenos Aires, especialmente a do micro-centro, em permanente
situação de risco, seja pela ambição de construtoras seja pela substituição de atividades
longevas por lojas modernas e desconexas da atividade original.
A sociedade é composta por múltiplos grupos que se aglutinam em torno de afinidades
comuns, e os pedidos de preservação são demonstrações dos interesses desses grupos,
isoladamente. O patrimônio é fruto de uma construção social, cujo fator determinante é seu
caráter simbólico, seu poder de representar simbolicamente uma identidade, um grupo.
Pessoas atingidas diretamente pela ditadura constituem um dos grupos com interesses
* Mestranda em História Social pela USP, especialista em Gestão do Patrimônio e Cultura pela UNIFAI, Bacharel e Licenciada em História pela FFLCH-USP. Historiadora da Unidade de Preservação do Patrimônio Histórico, vinculada ao CONDEPHAAT, Secretaria de Estado da Cultura, SP.
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comuns, e também levaram suas demandas até os órgãos de preservação, por entenderem que
a identidade ou o laço que une pessoas não está relacionado apenas com sentimentos, mas
também com formas externas de expressão. E é justamente porque distintos grupos
constituintes da sociedade buscam essa externalização identitária que o patrimônio é, por
origem, um campo de confronto, de disputas seja sobre os símbolos, seja sobre as memórias.
O mais importante dessa discussão é que o interesse, até então considerado como de
um grupo particular, quando reconhecido como patrimônio cultural pelo estado em suas
diferentes esferas, torna-se público. Essa é uma das formas encontradas para preservar a
memória do período, mas principalmente levar a discussão ao foro público, suscitando a
discussão da relevância social do local então tornado patrimônio. O patrimônio tem a
capacidade de tornar pública uma discussão que, até então, parecia de âmbito privado. A
privatização do debate foi uma forma eficiente que imprensa, estado e defensores do regime
encontraram para desmobilizar e desinformar a população sobre a abrangência e as
consequências dos regimes; criou-se a falsa ideia que a discussão sobre o período deveria
estar restrita apenas a quem foi preso ou a quem perdeu familiares, e não à sociedade como
um todo.
Temos aqui duas situações distintas: na Argentina o debate público acerca do que
ocorreu foi iniciado imediatamente após a saída dos militares do poder, desgastados pelo
fracasso na Guerra das Malvinas e da política econômica, além de acuados diante da
quantidade de desaparecidos e mortos durante o regime. Já no Brasil, a discussão somente
agora o tema deixa a esfera privada, partindo para a pública, devido ao movimento incansável
dos familiares de desaparecidos ou mortos e de sobreviventes do período, seja através da
moção de ações declaratórias na Justiça brasileira, de processo contra a União na Corte
Interamericana de Direitos Humanos, seja pela cobrança sobre o Executivo e o Legislativo
para apurar os acontecimentos do período. Essa mobilização levou à criação (ou à intenção de
criação) da Comissão da Verdade, além de espaços simbólicos pontuais em cidades como São
Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Natal, Belo Horizonte.
Se o Brasil está atrasado em relação à Argentina na ampliação da discussão, na
criminalização dos responsáveis, o mesmo não se pode afirmar sobre o reconhecimento
cultural de locais relacionados ao regime. Os casos que ora são apresentados demonstram um
movimento quase que imediato no Brasil pelo reconhecimento de locais como símbolos de
resistência ao regime, enquanto que na Argentina essa ação tem ocorrido recentemente.
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O primeiro caso é do edifício da antiga Faculdade de Ciências e Letras da USP
(FFCL), conhecido como “Maria Antonia”, cujo pedido de tombamento foi iniciado em
01/04/19851 no CONDEPHAAT, através do aceite da solicitação apresentada pela Diretora do
Departamento de Patrimônio Histórico (DPH) do município de São Paulo, Suzanna Cruz
Sampaio. Data emblemática, já que no dia da abertura do estudo completavam-se exatos 21
anos do Golpe Civil-Militar que deu origem ao período da mais recente ditadura no Brasil.
Embora sua ocupação original tenha sido feita pelo Colégio Rio Branco, a partir de
1949 a FFCL preencheu as salas do edifício que se tornou símbolo do confronto travado em 3
de outubro de 1968 entre estudantes da USP e estudantes do Mackenzie –, alguns integrantes
de uma organização batizada de “Comando de Caça aos Comunistas” (CCC). O confronto
ficou conhecido como “A Batalha da Maria Antônia”, em referência à rua que abriga os dois
edifícios – Mackenzie e FFCL-USP. Entretanto, após o conflito, a sede da Faculdade foi
transferida e o prédio, destruído, foi vendido em 1970 para a Secretaria da Fazenda, que ali
ficou instalada por 31 anos; devolvido à USP em 1991, apenas em 1993 é que atividades
relacionadas à USP foram reativadas no local, dando origem ao Centro Universitário Maria
Antônia, que realiza exposições de arte, cursos de extensão universitária e outros eventos.
Acerca do pedido de tombamento, a professora Maria Auxiliadora Guzzo de Decca, à
época técnica do CONDEPHAAT apresentou parecer com a qualificação do edifício e
destacou sua importância não como exemplar de arquitetura notável – reflexo de uma
mudança na concepção de bens culturais por parte dos órgãos de preservação. De Decca
ressaltou que se tratava de local símbolo de resistência à ditadura civil-militar; não o fez
abertamente, já que o período de elaboração de seu estudo ainda não era de democracia
consolidada. Segundo seu parecer,
O valor do edifício Ruy Barbosa é muito mais de caráter histórico-cultural que
arquitetônico, entretanto. Tendo abrigado durante duas décadas a Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras da USP, tornou-se um ponto de referência marcante na
cidade durante os anos cinquenta e sessenta, notabilizando, inclusive, a rua Maria
1 Um bem para ser tombado passa por duas etapas: Dossiê Preliminar e Estudo de Tombamento. Na fase de Dossiê Preliminar, há um estudo mais simples acerca da pertinência da possibilidade de tombamento; este estudo é elaborado pelos técnicos e encaminhado para a deliberação do Conselho. No CONDEPHAAT pode ser tomada uma de duas decisões: arquivamento do pedido ou abertura do Estudo de Tombamento. Caso aberto o Estudo de Tombamento, o bem passa a contar com uma proteção prévia, onde alterações são permitidas seguindo diretrizes estabelecidas pela área técnica e demolições são proibidas. É somente após a conclusão do Estudo de Tombamento, deliberada em sessão do CONDEPHAAT, que um bem é definitivamente tombado ou não.
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Antônia, conhecida então como rua boêmia, estudantil, ponto de encontro de
intelectuais e local de manifestações políticas. (GUZZO DE DECCA,1985:54).
Com a manifestação da área técnica, a então conselheira do CONDEPHAAT Profª
Maria Luiza Tucci Carneiro elabora seu parecer, onde defende o tombamento do edifício “por
ter sido palco de intenso movimento estudantil do asno 60, simbolizando a atividade
oposicionista ao regime político que então se militarizava (...) sede da resistência ao
autoritarismo e arbítrio, assumindo perfil do nosso 'Quartier latin', do ponto de vista da
memória política”, e mais, que o complexo de edifícios da Maria Antônia “(...) simbolizam a
luta pela causa democrática ali defendida com entusiasmo por professores do gabarito de
Fernando de Azevedo, Florestan Fernandes, Eurípedes Simões de Paula e Antônio Cândido”.
(CARNEIRO, 1986:204). Passados exatos vinte anos da “Batalha da Maria Antônia”, através
da Resolução SC-53 de 3 de outubro de 1988 – mesma data de promulgação da nova
Constituição Federal, conhecida como “Constituição Cidadã”, o edifício da antiga FFCL foi
tombado, com a assinatura da então Secretária da Cultura Elisabete Mendes de Oliveira, a
Bete Mendes, que foi aluna de Artes Cênicas e Sociologia por aquela escola, foi presa pelo
DOI-CODI e participou da constituinte como Deputada Federal.
Figura 1 - Fachada do prédio Maria Antônia. Foto:
http://www.artecamargo.com.br/wp-
content/uploads/2012/02/Centro-Maria-Antonia-
200x200.jpg
Figura 2 - Imagem do Arco Tiradentes; em frente, o
Quartel da Rota. Foto: Eli Hayasaka.
Alguns dias depois da abertura de estudo de tombamento da Maria Antônia, em
11/04/1985, um novo pedido de tombamento foi acatado, com caráter e justificativa
semelhantes àquele edifício; tratava-se do único remanescente físico do edifício que abrigou
por 120 anos o Presídio Tiradentes, um arco de pedra, que compunha o muro da detenção; o
pedido foi feito pelo Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo.
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Inaugurado no ano de 1852 sob a denominação “Casa de Correição”, foi criada a fim
de instituir um local para o cumprimento de longas penas e “corrigir” os transgressores de
regra morais – arruaceiros – e escravos fugitivos. A necessidade deu-se porque a cidade de
São Paulo contava apenas com uma cadeia pública, com pouca capacidade de abrigar
detentos, cujo número estava em ascensão decorrente do crescimento da cidade impulsionado
pela chegada de imigrantes europeus, industrialização, e adiante, a abolição da escravidão. O
ambiente agora era de diferenciação e injustiça social, por conseguinte, aumento de crimes.
Naquele local inicialmente eram detidos os indesejáveis, mas durante o Estado Novo o
caráter tem uma sensível alteração: para lá passaram a ser encaminhados presos políticos;
Monteiro Lobato parece ter inaugurado a lista de célebres opositores de governos a serem
encarcerados ali. Entre o início da ditadura civil-militar e o fim da trajetória do Tiradentes –
já que ele foi demolido em 1972 – manteve em seu cárcere os presos encaminhados pelo
DEOPS e DOI-CODI. Para lá, por exemplo, foram levados os estudantes presos no Congresso
da UNE em Ibiúna, em 1968, considerados os primeiros presos políticos do período.
Sobre o cárcere no presídio, a ex-detida Rioco Kaiano declara que “chegar ao
Tiradentes significava um alívio, quase uma vitória por ter sobrevivido às torturas, ao
desaparecimento, à morte.” (KAIANO, 1997:337). Isso porque, de acordo com Alípio Freire,
jornalista que também ficou detido no Tiradentes, quando alguém era preso pela Operação
Bandeirante, mais tarde convertida em DOI CODI, “(...) passava por uma tortura oficiosa, era
remetido ao DOPS para um depoimento formal onde feita a auditoria se fazia a denúncia e o
enquadramento. Passadas essas 'instâncias' o preso era conduzido ao Presídio Tiradentes.”
(FREIRE, 1985:33).
Em seu depoimento para o processo de tombamento, Freire justificava que o
tombamento serviria como uma forma de lembrar a repressão do estado durante as diferentes
fases que o presídio atravessou, além de ser um marco da resistência civil contra a opressão e
a exploração. Ademais, era uma forma de manter latente a memória desta mesma resistência,
que frequentemente é apagada, como ocorreu com a demolição do edifício para a construção
da Estação Tiradentes do metrô.
Com parecer datado de 01/04/1985, mesma data de abertura do processo de
tombamento da Maria Antônia, o Conselheiro Lucio Félix Frederico Kowarick, professor do
Departamento de Ciências Políticas da USP (FFLCH-USP) diz:
Considerando o valor histórico do ARCO DA PEDRA enquanto símbolo da luta
contra o arbítrio e a violência, é meu parecer que ele deva ser tombado e
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posteriormente transformado em monumento público. Sendo arco, é forçosamente
uma passagem, que simboliza o esforço atual para a plena redemocratização do
país. (sic) (KOWARICK, 1985:14)
Alguns meses depois, em 25 de outubro de 1985, a decisão foi pelo tombamento do
arco, regulamentada através da Resolução SC-59, do então secretário Jorge Cunha Lima.
Embora em momentos distintos, os tombamentos representaram a intenção de registrar na
história a necessidade de manter a memória atividade e em discussão.
Na Argentina, o reconhecimento de locais relacionados com a atividade de repressão
do Estado iniciou-se mais tardiamente que no Brasil. Os Centros Clandestinos de Detención y
Tortura (CCDyT) El Olimpo e Club Atlético foram reconhecidos pela municipalidade como
Sítios Históricos (análogo ao nosso tombamento) pela Ley 1197 de 27/11/2003 e Ley 1794 de
22/09/2005, respectivamente. Para a Comisión, Sitios ou lugares Históricos, são aqueles
vinculados com acontecimentos do passado, de destacado valor histórico, antropológico,
arquitetônico, urbanístico ou social.
El Club Atlético – cujo nome é uma referência às inciais de seu nome real Centro Anti-
Subversivo (ZARANKIN, NIRO, 2008:198) – é próximo a outro Club Atlético, o Boca
Juniors, que fica a cerca de 2,5km de distância; funcionou por apenas 11 meses do ano de
1977, no turístico bairro de San Telmo. Classificado como um Centro Clandestino de
Detención esteve instalado em um edifício de três andares, onde estava localizado o “Servicio
de Aprovisionamiento y Talleres de la División Administrativa de la Policía Federal”. Possuía
41 celas – todas no porão –, três salas de tortura, enfermaria, cozinha, lavanderia, chuveiros;
Figura 3 - Imagem da elevação do ex-CCDyT Club Atlético. Foto:http://www.exccdytclubatletico.com.ar/images/Foto_pag1_JPG.jpg
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chegou a abrigar 200 pessoas e mais de 1500 passaram por aquele local, das quais grande
parte continua desaparecida.
Figura 4 - Croqui das dependências internas do Club
Atlético; a área mais escura é a região que foi
localizada com a escavação. Fonte: Nunca Más. Figura 5 - escavação do Club Atlético. Foto: Deborah
Neves
A cerca de 12 km do Club Atlético, no bairro de Vélez Sarsfield, outro popular time de
futebol da Argentina, está localizado “El Olimpo”, mais um Centro Clandestino de Detención
que teve curta duração – funcionou entre agosto de 1978 e fevereiro de 1979, apenas 6 meses.
O edifício que abrigou El Olimpo foi uma estação de bonde, cuja linha era bastante
utilizada para o transporte de passageiros e de carne, já que a região abrigava um grande
número de matadouros e frigoríficos desde o final do século XIX. O edifício passou para a
posse da Polícia Federal em 1978 e iniciaram-se obras de adaptação para abrigar o novo
Centro de Detenção que substituiria o Club Atlético por conta de sua desativação. Parte do
material resultante da demolição serviu de base para que policiais terminassem as obras civis
e finalmente transferissem os presos que ficaram temporariamente detidos em um centro
provisório instalado no edifício de um banco, razão pela qual ficou conhecido como El Banco.
O lugar tinha capacidade de abrigar 150 pessoas, e durante sua existência, 500 pessoas
passaram e ficaram detidas. O campo tinha duas seções de celas separadas por um pátio. Uma
dessas seções contava com quatro fileiras de 10 celas separadas entre si por alas; cada fileira
contava com apenas dois vasos sanitários. Em um dos corredores se situavam os chuveiros e a
lavanderia. Em outra, denominada “Sector de Incomunicados”, estavam situadas seis celas e
uma sala de tortura. Num terceiro setor estavam a cozinha, sala de internação, enfermaria,
refeitório, laboratório de fotografia, oficina de eletrônica, capela, outra sala de tortura, uma
sala de inteligência e um Gabinete do Grupo de Tarefas e de agentes repressivos.
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A instalação dos CCDyT na Argentina era discreta e ocorria em edifícios já existentes,
não havia a construção de novos prédios justamente para não chamar a atenção; era uma das
táticas para evitar que a sociedade não tivesse pleno conhecimento do que ocorria, e corrobora
com a recente afirmação de Videla em depoimento ao jornalista Ceferino Reato:
(...) Estábamos de acuerdo en que era el precio a pagar para ganar la guerra y
necesitábamos que no fuera evidente para que la sociedad no se diera cuenta. Por
eso, para no provocar protestas dentro y fuera del país, sobre la marcha se llegó a
la decisión de que esa gente desapareciera; cada desaparición puede ser entendida
ciertamente como el enmascaramiento, el disimulo, de una muerte.2
A intenção de não deixar rastros era evidente, ainda durante a vigência das ditaduras.
Observe-se o fato de dois centros de detenção representativos da violência do Estado, tanto cá
quanto lá, terem sido demolidos em nome do progresso, em um espaço temporal bastante
próximo. O edifício do Club Atlético foi demolido para a construção da Autopista 25 de
marzo no ano de 1977, inserida dentro de um plano de expansão de vias urbanas rápidas. O
presídio Tiradentes foi demolido em 1972 para dar lugar a uma estação de metrô, também
inserido num plano de expansão deste meio de transporte em São Paulo. Resta um pergunta,
talvez retórica: por que ali? Eram os únicos lugares para concretizar tais construções?
As demolições, as tentativas de ocultação do que aconteceu foram as razões por que há
uma distância temporal de mais de 15 anos entre a patrimonialização no Brasil e na Argentina.
E a trajetória histórica de ambos os países em relação ao tratamento dado pelos respectivos
2 REATO, Ceferino. Videla: La Confesión. La Nación, Buenos Aires, 15 abr 2012. Disponível em http://www.lanacion.com.ar/1464752-videla-la-confesion, acessado em 14 mai 2012. Grifo nosso.
Figura 6 - Imagem atual do ex-CCDyT El Olimpo.
Foto: http://www.agenciacta.org/local/cache-
vignettes/L400xH300/olimpo_20_7335445-429af.jpg
Figura 7 - Croqui desenhado por ex-detidos.
Fonte: Nunca Más.
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estados com relação a apuração de crimes cometidos durante a vigência das suas ditaduras
civis-militares teve importância crucial para a determinação de lugares históricos em tempos
tão diferentes.
A Argentina iniciou a transição para a democracia com a abertura de Juicio a las Juntas
imediatamente após a saída dos militares do poder. Julgamentos com testemunhos,
apresentação de queixas de familiares, o relatório da CONADEP – Nunca Más – trouxeram à
tona as atrocidades cometidas nas detenções clandestinas e, por conseguinte, a punição com
prisão aos envolvidos. Os processos de responsabilização, no entanto, foram cessados pelas
Leis de Punto Final e de Obediencia Devida, impedindo qualquer nova ação contra militares
após 10 de dezembro de 1983 e de não punição a militares de patentes mais baixas na
hierarquia militar sob o argumento de que estavam apenas cumprindo ordens de seus
superiores hierárquicos.
Carlos Ménem, presidente da Argentina entre 1989 e 1999 revogou todas as prisões de
militares efetuadas durante o governo de Raul Afonsín e lhes concedeu anistia. Durante seu
governo, em 1998, declarou a intenção de demolir o espaço que a Escuela Superior de
Mecánica de La Armada (ESMA) ocupava a fim de criar li um parque da “reconciliação da
nação”. Foi no momento em que a sociedade argentina percebeu primeiro um retrocesso,
seguido de estagnação no intento de levar adiante condenações da justiça e depois a ameça
física aos locais de repressão, que se iniciaram os pedidos de preservação dos edifícios
relacionados com a ditadura; antes mesmo da formalização da preservação, tais locais eram
identificados com pixação como locais de detenção e tortura.
Figura 8 - Jefatura de Policia, em Tucumán. Foto:
http://1.bp.blogspot.com/_hEa-
AIsFuZ0/TAWmQA3Z4sI/AAAAAAAAAMk/_GJ96TMrI
vQ/s400/13312_107273985979485_10000090653342
2_59463_1114367_n.jpg
Figura 9 - foto:
http://www.desaparecidos.org/arg/centros/orletti/or
lettic.jpg
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A sociedade paulista também se mobilizou no momento em que ficou claro que o
Estado brasileiro não iria tratar imediatamente (e talvez nunca) dos acontecimentos da
ditadura; esse momento iniciou com a Lei de Anistia, de 1979 e depois com o fracasso da
intenção de se realizar eleições diretas em 1983, com a rejeição da Emenda Dante. Restava
então a busca por outras formas de denunciar os crimes ocultados pelos envolvidos, pela
proibição de acesso a arquivos, pela imposição da Lei de Anistia. Os pedidos de tombamento
foram a maneira que a sociedade encontrou de não deixar a ferida cicatrizar sem antes ampliar
o debate, sem tornar público, ainda que fisicamente no espaço público, o que aconteceu
naqueles locais e porquê. É o que justifica o lapso temporal entre sociedades; a memória, no
caso do Brasil, substituiu o papel da justiça, o que é inaceitável.
Desde o fim do período do regime, sobreviventes e familiares de mortos ou
desaparecidos do Club Atlético exigiam uma investigação no local. Em 2002, iniciaram-se as
escavações no local, e foi possível identificar as estruturas do edifício, a localização de parte
das celas e inscrições nas paredes, além de objetos que comprovam a existência de detenção
naquele local. A arqueologia tem sido fundamental neste e em outros locais para validar o
testemunho de sobreviventes, além de ser prova material do cárcere; no outro lado da avenida,
criou-se um memorial a céu aberto explicando o que era o local e evocando a memória dos
detidos-desaparecidos.
Figura 10 - Memorial embaixo da Autopista 25 de Marzo. Foto: Deborah Neves
Do presídio Tiradentes, resta apenas um arco, que um dia, teve uma placa de bronze,
furtada por ser um material nobre e de grande valor de venda em ferros velhos – uma
metáfora da injustiça social que continua a acometer o país. Sobre o dia em que a placa foi
afixada no local, Alípio Freire afirma o seguinte:
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Certamente eu lembrava de todo o processo de tombamento do arco, cuja
‘inauguração’ aconteceu no 25 de outubro de 1985, marcando os dez anos do
assassinato de Vladimir Herzog, com sua placa de bronze assentada no chão, na
manhã da véspera, e onde se lia: "Em memória de todos os homens e mulheres que,
no Brasil, ao longo da história, lutaram contra a opressão e a exploração - pela
liberdade" (ou algo muito próximo disto). Essa placa seria roubada poucos anos
depois, e jamais substituída. 3
O sentimento de passar pela Estação Tiradentes do metrô, que ocupou o espaço do
antigo Presídio, não poderia ser indiferente. Sobre o assunto, Rioco Kaiano diz o seguinte:
(…) em São Paulo, o símbolo do 'milagre' prometido pela ditadura era o metrô. Vai
daí que o presídio Tiradentes ser substituído pela estação Tiradentes parece, mais
que uma ironia, um marco simbólico. (…) nas poucas vezes em que ando de metrô e
passo pela estação Tiradentes, fico minhocando no fundo da minha memória que
esse lugar tem a ver comigo, sim, e com os sonhos que povoaram minha juventude.
E tem a ver com um pedaço marcante e dolorido da História desse país. (KAIANO,
1997:336, 341)
Já o edifício que abrigou El Olimpo está vivendo um impasse recente: local que abriga
diversos movimentos sociais populares do bairro de Floresta, o local tem sua ação limitada
nos últimos dias. No mês de abril o Prefeito de Buenos Aires Macri mandou cessar o serviço
de segurança noturna, impedindo que o edifício fique aberto para além das 17h. O serviço da
rádio comunitária, por exemplo, ficou prejudicado. Outras atividades como a Biblioteca
Popular e de organismos de defesa dos direitos humanos também ficaram prejudicados. A
população, que colabora com a reconstrução do cotidiano do bairro que tinha uma detenção
clandestina em suas ruas, não aceita essa ação de redução de vigilância no local e
empreendem passeatas contra a postura do Prefeito. Prova de que a construção da memória é
um exercício diário.
Em movimento contrário ao que desejavam os militares, os bens quando protegidos e
cujas razões para essa proteção são tornadas de conhecimento público frustram a tentativa de
impedir que a sociedade tome conhecimento dos fatos. Mas, de que forma, em São Paulo,
Maria Antônia e Arco do Presídio Tiradentes cumprem com essa função? Se em Buenos Aires
os locais identificados como relacionados à repressão levam marcas que os identificam como
tal, o mesmo não se repete nos lugares paulistanos. Como Alípio Freire afirma, a placa que
3 FREIRE, Alípio. Depoimento pessoal enviado por e-mail. Acervo pessoal.
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evocava o passado do presídio foi furtada, e na Maria Antônia, há uma placa apenas no
saguão interno do prédio. A fruição pública está sendo cumprida pelos órgãos de preservação
e pelos proprietários dos imóveis no caso de São Paulo?
Club Atlético e El Olimpo, em conjunto com o CCDyT “Banco”, constituíram um
circuito macabro, da morte, conhecido como “Circuito ABO”, em referência às iniciais de
cada local. Ora, sabemos hoje que DEOPS, DOI-CODI e Presídio Tiradentes eram locais
obrigatórios de passagem a todos os detidos por subversão; por que não pensá-los também
como um “Circuito do Terror de Estado”, à semelhança de Buenos Aires?
Não se trata aqui de vitimizar aqueles que foram detidos, mas de denunciar as práticas
empreendidas pelos aparelhos de repressão dispostos a cometer quaisquer atrocidades em
nome de um bem maior, como numa obrigação de um destino manifesto. Recentemente, em
um livro-depoimento, Jorge Rafael Videla, presidente da Argentina entre 1976 e 1982
declarou “(...)Pongamos que eran siete mil u ocho mil las personas que debían morir para
ganar la guerra contra la subversión(...)”. Os resultados dessas ações estão sendo conhecidos
aos poucos pelo depoimento de sobreviventes, por documentos revelados, e por edifícios
denunciados.
É comum surgir questões como: por que estes locais devem ser considerados bens
culturais? Ou por que tais locais devem ser preservados por sua importância política e social e
não pela arquitetônica? A função pública dos edifícios reconhecidos como bens culturais deve
ser um compromisso do Estado com a sociedade, a fim de não revalidar visões comuns e
antigas sobre o patrimônio, que só julgavam a monumentalidade, a excepcionalidade, o
Figura 11 - Placa afixada no saguão de entrada do Ed.
Maria Antônia. Foto: Deborah Neves
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sentimento de identificação com uma única ideia de nação, ou ainda, as práticas que por
limitações econômicas se restringiam a uma parte privilegiada da sociedade, e, portanto,
fugindo ao interesse comum e coletivo. Faz-se oportuno encerrar esse artigo com a citação da
historiadora Sheila Schvarzman, responsável pela instrução do processo do Arco Tiradentes,
muito pertinente para todos os casos de preservação de locais que se relacionam com os
períodos das ditaduras civis-militares, seja no Brasil, seja na Argentina:
O que este estudo nos traz de fundamentalmente novo é a visão do tombamento não
apenas como um instrumento de preservação da memória, da história, e como
guardião de bens culturais que se constituem em suporte de valores que formam
sentido em nossa sociedade, mas também como co-partícipe na identificação e
manutenção de um espaço de recordação e homenagem de uma realidade histórica
que muitos prefeririam negar, justamente porque o edifício não existe mais. Desta
forma, o tombamento do arco 'reconstitui' o bem, reconhece , lembra e homenageia
períodos da história e procedimentos que se gostaria enterrados e demolidos,
como as próprias paredes do presídio.” (SCHVARZMAN, 1985: 39)
Referências:
CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Parecer. In: CONDEPHAAT. Processo 23384/85, São Paulo,
1986, p.202-205.
FREIRE, Alípio. O Presídio Tiradentes - Espaço de confinamento e resistência política: um
depoimento. APUD SCHVARZMAN, Sheila. O Presídio Tiradentes. In: CONDEPHAAT.
Processo 23345/85, São Paulo, 1985, p.32-37.
__________. Depoimento pessoal enviado por e-mail. Acervo pessoal.
GUGLIELMUCCI, Ana; CROCCIA, Mariana; MENDIZÁBAL, María Eugenia. Patrimonio
hostil: reflexiones sobre los proyectos de recuperacion de ex centros clandestinos de
detencion en la Ciudad de Buenos Aires. In: Actas del “Primer Seminario Internacional
Politicas de la Memoria”, Centro Cultural de la Memoria Haroldo Conti, Archivo Nacional
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