Edição 309 - de 29 de janeiro a 4 de fevereiro de 2009

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São Paulo, de 29 de janeiro a 4 de fevereiro de 2009 www.brasildefato.com.br Ano 7 • Número 309 Uma visão popular do Brasil e do mundo Circulação Nacional R$ 2,50 No dia 27 de janeiro, o governo da Itália chamou de volta o seu embaixador no Brasil, Michele Valensi- se, para consultá-lo sobre a negativa brasileira de extraditar o escritor Cesare Battisti. Na véspera, o pro- curador-geral da República, Antonio Fernando Souza, havia recomendado ao STF a extinção do processo e a libertação de Battisti. Em análise, o jornalista Rui Martins explica que a ati- tude não passa de jogo de cena do governo italiano para esconder os efeitos da crise econômica em seu país. Págs. 2 e 6 Itália usa caso Battisti para distrair sua população Fórum Carajás condena modelo predatório na Amazônia Cerca de 500 pessoas participaram, entre os dias 24 e 27 de janeiro, do Fórum Social Carajás, sediado em Parauapebas (PA). Durante o encontro, elas visitaram regiões onde operam grandes empresas, como a Vale, e denunciaram o avanço predatório do capital sobre a Amazônia. Pág. 3 Devido à influência que o chamado “lobby sionista” exerce nos EUA, ações e recursos de organizações pró-israelenses no país determinam a política es- tadunidense em relação ao Estado judaico. Pág. 10 Lobby sionista orienta política dos EUA ISSN 1978-5134 MST é homenageado por ocasião dos seus 25 anos No dia 24, governadores, deputados, intelectuais e di- rigentes políticos nacionais e internacionais participaram em Sarandi, Rio Grande do Sul, de ato político-comemo- rativo dos 25 anos do Mo- vimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Entre os presentes estiveram os governadores Roberto Requião e Jackson Lago, além de Aleida Guevara e Anita Prestes. Págs. 4 e 5 O térreo do prédio onde funcionou o antigo Depar- tamento de Ordem Política e Social do Estado de São Paulo (Deops/SP) passou por uma reforma e foi rei- naugurado, no dia 24 de janeiro, como Memorial da Resistência. Para Ivan Sei- xas, do Fórum de ex-Presos e Perseguidos Políticos de São Paulo, “resgatar o prédio e transformá-lo num símbo- lo de resistência é a manifes- tação de quem luta pela de- mocracia e não quer apagar as pistas de sangue deixadas por carrascos impunes até os dias de hoje”. Pág. 12 Ontem, centro de tortura. Hoje, espaço de memória Obama não promoverá grandes mudanças As primeiras medidas to- madas pelo novo presidente dos EUA, Barack Obama, in- dicam que não haverá mui- tas alterações em sua gestão, tanto em relação à política interna como externa. A opi- nião é do economista Nildo Ouriques. “Essa é a transi- ção mais conservadora da história dos EUA”, destaca, em entrevista. Pág. 11 Sob a forte chuva da ca- pital paraense Belém, uma grande marcha deu início, no dia 27 de janeiro, ao 9º Fórum Social Mundial. Mais de 100 mil pessoas de- vem participar, até 1º de fe- vereiro, dos debates sobre as mudanças climáticas – prin- cipalmente na Amazônia –, a crise econômica e o futuro da hegemonia estaduni- dense no governo de Barack Obama. Porém, as ativida- des relacionadas ao encontro começaram em meados de janeiro, com os fóruns mun- diais de Mídia Livre, Teolo- gia da Libertação, Saúde e dos Juízes. Págs. 7, 8 e 12 Fóruns paralelos dão início ao FSM 2009 Carta Magna é aprovada com 60% dos votos, num comparecimento recorde de 85% da população às urnas. Entre outros pontos, o novo texto proíbe latifún- dios agrícolas para além de 5 mil hectares. Pág. 9 Constituição é aprovada na Bolívia Reprodução Fernão Lopes Douglas Mansur/Novo Movimento Lucivaldo Sena/Agência Pará Na abertura do 9º Fórum Social Mundial, em Belém (PA), milhares de pessoas saíram da Praça do Cais em direção à Praça do Operário Douglas Mansur/Novo Movimento Cerca de 2 mil pessoas participaram do ato político-comemorativo Mina da Vale, em Carajás, fotografada durante visita dos participantes do Fórum

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Uma visão popular do Brasil e do mundo Cerca de 500 pessoas participaram, entre os dias 24 e 27 de janeiro, do Fórum Social Carajás, sediado em Parauapebas (PA). Durante o encontro, elas visitaram regiões onde operam grandes empresas, como a Vale, e denunciaram o avanço predatório do capital sobre a Amazônia. Pág. 3 Reprodução Fernão Lopes São Paulo, de 29 de janeiro a 4 de fevereiro de 2009 www.brasildefato.com.brAno7•Número309 Douglas Mansur/Novo Movimento ISSN 1978-5134

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São Paulo, de 29 de janeiro a 4 de fevereiro de 2009 www.brasildefato.com.brAno 7 • Número 309

Uma visão popular do Brasil e do mundoCirculação Nacional R$ 2,50

No dia 27 de janeiro, o governo da Itália chamou de volta o seu embaixador no Brasil, Michele Valensi-se, para consultá-lo sobre a negativa brasileira de extraditar o escritor Cesare Battisti. Na véspera, o pro-curador-geral da República, Antonio Fernando Souza, havia recomendado ao STF a extinção do processo e a libertação de Battisti. Em análise, o jornalista Rui Martins explica que a ati-tude não passa de jogo de cena do governo italiano para esconder os efeitos da crise econômica em seu país. Págs. 2 e 6

Itália usa casoBattisti paradistrair suapopulação

Fórum Carajáscondena modelopredatório naAmazôniaCerca de 500 pessoas participaram, entre os dias 24 e 27 de janeiro, do Fórum Social Carajás, sediado em Parauapebas (PA). Durante o encontro, elas visitaram regiões onde operam grandes empresas, como a Vale, e denunciaram o avanço predatório do capital sobre a Amazônia. Pág. 3

Devido à influência que o chamado “lobby sionista” exerce nos EUA, ações e recursos de organizações pró-israelenses no país determinam a política es-tadunidense em relação ao Estado judaico. Pág. 10

Lobby sionistaorienta políticados EUA

ISSN 1978-5134

MST é homenageado por ocasião dos seus 25 anos

No dia 24, governadores, deputados, intelectuais e di-rigentes políticos nacionais e internacionais participaram em Sarandi, Rio Grande do Sul, de ato político-comemo-rativo dos 25 anos do Mo-

vimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Entre os presentes estiveram os governadores Roberto Requião e Jackson Lago, além de Aleida Guevara e Anita Prestes. Págs. 4 e 5

O térreo do prédio onde funcionou o antigo Depar-tamento de Ordem Política e Social do Estado de São Paulo (Deops/SP) passou por uma reforma e foi rei-naugurado, no dia 24 de janeiro, como Memorial da Resistência. Para Ivan Sei-xas, do Fórum de ex-Presos e Perseguidos Políticos de São Paulo, “resgatar o prédio e transformá-lo num símbo-lo de resistência é a manifes-tação de quem luta pela de-mocracia e não quer apagar as pistas de sangue deixadas por carrascos impunes até os dias de hoje”. Pág. 12

Ontem, centrode tortura.Hoje, espaçode memória

Obama não promoverágrandes mudanças

As primeiras medidas to-madas pelo novo presidente dos EUA, Barack Obama, in-dicam que não haverá mui-tas alterações em sua gestão, tanto em relação à política

interna como externa. A opi-nião é do economista Nildo Ouriques. “Essa é a transi-ção mais conservadora da história dos EUA”, destaca, em entrevista. Pág. 11

Sob a forte chuva da ca-pital paraense Belém, uma grande marcha deu início, no dia 27 de janeiro, ao 9º Fórum Social Mundial. Mais de 100 mil pessoas de-vem participar, até 1º de fe-vereiro, dos debates sobre as mudanças climáticas – prin-cipalmente na Amazônia –, a crise econômica e o futuro da hegemonia estaduni-dense no governo de Barack Obama. Porém, as ativida-des relacionadas ao encontro começaram em meados de janeiro, com os fóruns mun-diais de Mídia Livre, Teolo-gia da Libertação, Saúde e dos Juízes. Págs. 7, 8 e 12

Fórunsparalelosdão início aoFSM 2009

Carta Magna é aprovada com 60% dos votos, num comparecimento recorde de 85% da população às urnas. Entre outros pontos, o novo texto proíbe latifún-dios agrícolas para além de 5 mil hectares. Pág. 9

Constituição é aprovada na Bolívia

Reprodução Fernão Lopes

Douglas Mansur/Novo Movimento

Lucivaldo Sena/Agência Pará

Na abertura do 9º Fórum Social Mundial, em Belém (PA), milhares de pessoas saíram da Praça do Cais em direção à Praça do Operário

Douglas Mansur/Novo Movimento

Cerca de 2 mil pessoas participaram do ato político-comemorativo

Mina da Vale, em Carajás, fotografada durante visita dos participantes do Fórum

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A nova República de Salò

PARA JUSTIFICAR-SE, o terroris-mo de Estado fabrica terroristas: semeia ódio e colhe pretextos. Tudo indica que esta carnifi cina de Gaza, que, segundo seus autores, quer acabar com os terroristas, acabará por multiplicá-los. Desde 1948, os palestinos vivem condenados à hu-milhação perpétua. Não podem nem respirar sem permissão. Perderam sua pátria, suas terras, sua água, sua liberdade, seu tudo. Nem sequer têm direito a eleger seus governan-tes. Quando votam em quem não devem votar, são castigados. Gaza está sendo castigada.

Converteu-se em uma armadilha sem saída, desde que o Hamas ga-nhou limpamente as eleições em 2006. Algo parecido havia ocorrido em 1932, quando o Partido Comu-nista triunfou nas eleições de El Salvador. Banhados em sangue, os salvadorenhos expiaram sua má conduta e, desde então, viveram submetidos a ditaduras militares. A democracia é um luxo que nem to-dos merecem.

São fi lhos da impotência os fo-guetes caseiros que os militantes do Hamas, encurralados em Gaza, disparam com desajeitada pontaria sobre as terras que foram pales-tinas e que a ocupação israelense usurpou. E o desespero, à margem da loucura suicida, é a mãe das bra-vatas que negam o direito à existên-cia de Israel, gritos sem nenhuma efi cácia, enquanto a muito efi caz guerra de extermínio está negando, há muitos anos, o direito à existên-cia da Palestina.

Já resta pouca Palestina. Passo a passo, Israel está apagando-a do mapa. Os colonos invadem, e atrás deles os soldados vão corrigindo a fronteira. As balas sacralizam a pi-lhagem, em legítima defesa.

Mesma receitaNão há guerra agressiva que não

diga ser guerra defensiva. Hitler invadiu a Polônia para evitar que a Polônia invadisse a Alemanha. Bush invadiu o Iraque para evitar que o Iraque invadisse o mundo. Em cada uma de suas guerras defensivas, Is-rael devorou outro pedaço da Pales-tina, e os almoços seguem.

O apetite devorador se justifi ca pelos títulos de propriedade que a Bíblia outorgou, pelos 2 mil anos de perseguição que o povo judeu sofreu e pelo pânico que geram os palesti-nos à espreita.

Israel é o país que jamais cum-pre as recomendações e as resolu-ções das Nações Unidas, que nun-ca acata as sentenças dos tribunais internacionais, que burla as leis internacionais, e é também o úni-co país que legalizou a tortura de prisioneiros.

Quem lhe deu o direito de negar

todos os direitos? De onde vem a impunidade com que Israel está executando a matança de Gaza? O governo espanhol não conseguiu bombardear impunemente o País Basco para acabar com o ETA, nem o governo britânico pôde arrasar a Irlanda para liquidar o IRA. Por acaso a tragédia do Holocausto im-plica uma apólice de eterna impu-nidade? Ou essa luz verde provém da potência manda-chuva que tem em Israel o mais incondicional de seus vassalos?

O exército israelense, o mais mo-derno e sofi sticado do mundo, sabe a quem mata. Não mata por engano. Mata por horror. As vítimas civis são chamadas de “danos colaterais”, segundo o dicionário de outras guer-ras imperiais. Em Gaza, de cada dez “danos colaterais”, três são crianças. E somam aos milhares os mutilados, vítimas da tecnologia do esquarteja-mento humano, que a indústria mi-litar está ensaiando com êxito nessa operação de limpeza étnica.

Cem a umE como sempre, sempre o mesmo:

em Gaza, cem a um. Para cada cem palestinos mortos, um israelense.

Gente perigosa, adverte outro bombardeio, a cargo dos meios massivos de manipulação, que nos

convidam a crer que uma vida isra-elense vale tanto quanto cem vidas palestinas. E esses meios também nos convidam a acreditar que são humanitárias as 200 bombas atô-micas de Israel, e que uma potência nuclear chamada Irã foi a que ani-quilou Hiroshima e Nagasaki.

A chamada “comunidade interna-cional” existe? É algo mais que um clube de mercadores, banqueiros e guerreiros? É algo mais que o nome artístico que os Estados Unidos ado-tam quando fazem teatro?

Diante da tragédia de Gaza, a hi-pocrisia mundial se ilumina uma vez mais. Como sempre, a indiferença, os discursos vazios, as declarações ocas, as declamações altissonantes, as posturas ambíguas rendem tribu-to à sagrada impunidade.

Diante da tragédia de Gaza, os países árabes lavam as mãos. Como sempre. E como sempre, os países europeus esfregam as mãos.

A velha Europa, tão capaz de be-leza e de perversidade, derrama al-guma que outra lágrima, enquanto secretamente celebra essa jogada de mestre.

Porque a caçada de judeus foi sem-pre um costume europeu, mas há meio século essa dívida histórica está sendo cobrada dos palestinos, que também são semitas e que nunca foram, nem são, antissemitas. Eles estão pagando, com sangue constan-te e sonoro, uma conta alheia.

Nota do autor: este artigo é dedi-cado a meus amigos judeus assassi-nados pelas ditaduras latino-ame-ricanas que Israel assessorou.

debate Eduardo Galeano

Operação Chumbo Impunecrônica Augusto Juncal

COM A GARANTIA da permanên-cia do ex-ativista Cesare Battisti no Brasil, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, através do seu ministro da Justiça, Tar-so Genro, do próprio presidente e de alguns outros componentes do seu primeiro escalão – como o ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH), Paulo Vannuchi –, dará um importante passo na consolidação das nossas instituições democráticas. Mesmo aqueles que, como nós, podem divergir de diversos aspectos das políticas que vêm sendo encami-nhadas, não terão como deixar de reconhecer a postura do estadista, e a correção da decisão.

A grande mídia comercial, doutor Gilmar Mendes e seus assemelhados

As pressões contra o Planalto não são poucas. Internamente, inútil falar da grande mídia co-mercial (a mais desmoralizada das instituições brasileiras) e de outros protagonistas – igual-mente desmoralizados – como o presidente do Supremo Tribunal (STF), doutor Gilmar Mendes. Es-te mostrou-se tão pressuroso em conceder dois habeas corpus em 48 horas ao senhor Daniel Dantas, quanto rápido foi no envio, para a

Procuradoria Geral da República, de um pedido de parecer sobre a questão, logo depois do ministro Tarso ter anunciado sua decisão (14.1.2009) de conceder refúgio humanitário a Battisti. Ou seja, a mesma agilidade que usou pa-ra soltar o mafi oso, aviou para manter preso o ex-militante de es-querda. No entanto, na terça-feira passada (27.1.2009), o procurador geral da República, doutor Anto-nio Fernando de Souza, aconse-lhou o STF a arquivar o processo de extradição de Battisti, que se encontra preso no Complexo Peni-tenciário de Papuda (DF). O caso ainda será julgado pela Corte.

Nada de novo nas manobras do doutor Gilmar. Foi exatamente para cumprir papéis como esse que foi alçado ao STF pelo douto presidente Fernando Henrique Cardoso: esconder as falcatruas do “ilibado” tucano e seus apanigua-dos e promover desestabilizações contra os opositores.

Presidente, premiê e todo o primeiro escalão italiano adentram no perigoso terreno da galhofa

Desde o fi m da era Mussolini, a

Itália não conhecia nada sequer parecido com o ridículo em que foi lançada pelo seu atual presidente, senhor Giorgio Napolitano, e pelo seu premiê, senhor Silvio Berlus-coni. Até porque, desde o fi nal da 2ª Guerra, a direita italiana jamais conseguiu a expressão que ga-nhou nesta última década. O caso Battisti vai acabando lentamente e de forma patética, para os go-vernantes daquele país. Comendo mortadela e arrotando peru, os herdeiros políticos e ideológicos do Duce metem, a cada dia mais, os pés pelas mãos. Logo após a declaração do procurador geral da República, aconselhando ao STF o arquivamento do processo de ex-tradição de Battisti, num jogo de cena de circo mambembe, o chan-celer italiano, senhor Franco Frat-tini, no próprio dia 27, chamou a Roma seu embaixador em Brasília, senhor Michele Valensise, “para consultas”.

“Se entrega, Corisco!”O ministro da Defesa, senhor

Ignazio La Russa, por sua vez – como se estivesse às vésperas de uma nova invasão da Abissínia (1935) ou já às portas de Adis-

Abeba –, disse que não se rende-rá à decisão do Brasil, e que seu governo deverá “tentar todos os caminhos possíveis e imagináveis” para conseguir a extradição do ex-ativista.

Não temos dúvida de que os fas-cistas italianos são capazes de per-correr todos os caminhos imaginá-veis, e sobretudo os inimagináveis: apesar da fragorosa derrota dos anos de 1940, os fascistas italianos jamais saíram de cena. Nos anos de 1960, 1970 e até em 1980, de-dicaram-se a atentados terroristas e até mesmo a uma tentativa de golpe de Estado.

Assim, ao invés de tentarem atropelar as instituições brasilei-ras, os governantes italianos deve-riam esclarecer, julgar e punir os autores e responsáveis por atenta-dos como a bomba contra o Banco Nacional da Agricultura, em Milão (dezembro de 1969), que deixou 16 mortos e 88 feridos; a bomba co-locada no trem Roma - Munique (agosto de 1974), que resultou em 12 mortos e 44 feridos; e a bomba colocada na Estação Ferroviária de Milão (agosto de 1980), que teve como saldo 85 mortos e 200 feridos. Esta última ação foi execu-

tada por um comando que reuniu a Loja Maçônica P2 e a Máfi a (dados pesquisados através do Google).

Enquanto isso...Enquanto isso, no Brasil, discreta-

mente, o ministro da Defesa, doutor Nelson Jobim, os comandantes das três armas e outros ministros de corte assemelhado, preparam um documento (cuja primeira versão entregaram enquanto proposta ao presidente Luiz Inácio) de uma “Es-tratégia Nacional de Defesa – Paz e Segurança para o Brasil”. Calcado na velha Doutrina de Segurança Nacio-nal, o texto (que pode ser acessado no site ), em muitos pontos, avança bem além do que se conheceu na mais recente ditadura, especialmen-te no que diz respeito ao papel de polícia interna atribuído às Forças Armadas. Estranhamente (?), mi-nistros que não poderiam estar au-sentes da elaboração de uma política de Defesa para o Brasil – como o da Justiça e o da SEDH –, não foram convidados a compor a seleta comis-são. Para coroar a questão, doutor Jobim pretende lançar a proposta fi nal do texto no dia 31 de março (45 anos do golpe de 1964).

Enfi m, cada governo tem La Russa que faz por merecer.

(Sobre Battisti, ler página 6)

de 29 de janeiro a 4 de fevereiro de 20092

editorial

Um Cão Paraíba“A REAL? Vô dizê qual é a real. A real é que eu vou quebrar a cabeça dessa véia com esse porrete. Vou abrir cabeça dela em duas parte. Essa véia estúpida, alimentando seu cachorro estúpido, na varan-da de sua casa estúpida, nessa cidade estúpida. E eu vô chutar esse cachorro estúpido. Estúpido e atropelado. Bem atropelado. E essa véia, com esse seu choro estúpido, porque seu cachorro estúpido está morto e atropelado. Que senão tivesse mais atropelado do que já tá eu também dava uma porrada com esse porrete nesse cachorro estú-pido. Aí eu queria ver essa véia fi car de conversa estúpida, enquanto joga um biscoito estúpido pro ar pro cachorro estúpido dar um pulo estúpido e pegar o biscoito.

Que ódio dessa véia. O ódio é uma coisa estúpida também. E a violência as veiz é estúpida as veiz não é. Agora não é. Se eu abrir a cabeça dessa véia com esse porrete não vai ser estúpido porque eu estou abrindo a cabeça de uma véia que é muito estúpida. Meu pai também é um velho estúpido. Tem muito pouco, quase não tem nada, não tem nada mesmo e tem medo de perder o que tem. Meu pai tem medo de perder o que não tem. E isso é muito estúpido. Eu não tenho nada. Portanto não tenho nada a perder. Eu tenho eu. E já tô perdido faz é tempo. Por isso eu posso fazer qualquer coisa muito estúpida, como quebrar a cabeça de uma velha estúpida. Bem aventurados os que atiram primeiro. Isso não é estúpido porque o cara que falou isso não é um cara estúpido. O cara que falou isso é o cara. Meu pai não é o cara. Mas é meu pai. Mesmo estúpido é meu pai. É trabaiadô. Meu pai é trabaidô e estúpido. Explorado por essa usina do caraio. Veio de longe, da Paraíba, pra trampá aqui nessa bosta. Enquanto o véio sangra nessa usina do caraio, essa véia estú-pida joga biscoitinho no ar pro seu cachorro estúpido saltar e pegar. Agora, essa porra de cachorro não vai mais saltar pra pegar biscoito. Tá atropelado e muito atropelado. E se essa porra dessa véia estúpi-da continuar chorando e falando merda, aí eu abro de veiz a cabeça dela. O que foi que você falou, sua véia do caraio? Meu pai veio da

Paraíba, veio com dignidade e tudo. Mas a dignidade dele foi assim, no suor do trampo, nesse trampo estúpido dessa usina do caraio. Repete sua véia cuzona, repete o que você disse, que eu abro sua cabeça com esse porrete agora mesmo. Não adianta arregalar seus óio feio do caraio para mim não. Que pra eu descer com essa barra na sua cabeça, é dois palito. É só repetir o que você falou. Ah! Agora num falou nada. Falou sim. Eu ouvi. Você conhece a Paraíba? Co-nhece? Conhece porra nenhuma. Ah! Não falou por mal? Lembrou que falou, então? Sua carcaça véia. Não falou por mal. Falou por que então? Por bem? Quer saber, só num vou abrir sua cabeça porque você lembra minha mãe. Só por isso, sua véia estúpida do caraio.”

Bira vociferou tudo isso e jogou a barra de ferro no chão, dando um pontapé furioso no cachorro atropelado e morto. A dona do ca-chorro, uma velha de 65 anos, deu um grito, de susto, medo e dor. Ameaçou chamar a polícia. Protegeu o cadáver canino de um segun-do chute, debruçando-se sobre ele. Um segundo chute que não viria. Bira já se afastava com sua fúria já bandeira à meio mastro. Andava e praguejava contra a velha estúpida e seu cachorro estúpido. Saiu bem a tempo. Logo chegou um policial. Muito solícito, arranjou uma tábua, colocou o cachorro sobre ela e acompanhou a velha estúpida até sua casa. A velha, ainda em choque, vinte por cento de choque do atropelo de seu cão e oitenta por cento de choque da barra de ferro sobre sua cabeça, não perdeu tempo e tornou a falar chorosa e pro-fundamente sofrida, em tom de voz muito baixo, ao pé do ouvido do policial, olhando para os lados: com tanto paraíba nessa usina, justo meu cachorro que tinha que ser atropelado? O policial ouviu atento, sorriu e balançou afi rmativamente a cabeça.

Era meio dia. A sirene da usina soou. Os trabalhadores, em sua maioria paraibanos, se aglomeraram com suas marmitas. Entre eles, o pai de Bira.

Augusto Juncal é integrante da torcida organizada Gaviões da Fiel e militante do MST.

Meu pai veio da Paraíba, veio com dignidade e tudo. Mas a dignidade dele foi assim, no suor do trampo, nesse trampo estúpido dessa usina do caraio

Diante da tragédia de Gaza, a hipocrisia mundial se ilumina uma vez mais

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de 29 de janeiro a 4 de fevereiro de 2009 3

brasil

Nilton Viana e Vinícius Mansur

enviados a Parauapebas (PA)

EM DEFESA da Amazônia, da biodiversidade e da so-berania popular. Com esse lema, cerca de 500 pessoas de diversas regiões do Brasil e representantes de 24 paí-ses participaram das ativi-dades do Fórum Social Ca-rajás. O evento – prepara-tório ao Fórum Social Mun-dial, que acontece entre os dias 27 de janeiro e 1º de fe-vereiro, em Belém (PA) – co-meçou no dia 24 e se encer-rou no dia 27.

Logo na abertura ofi cial do evento, na manhã do dia 25, um clima de expectativas to-mou conta de todos. No co-meço do evento, o auditório

do enviado a Parauapebas

A região de Carajás, loca-lizada no sudoeste do Pará, dentro da Amazônia, preci-sa de ajuda para evitar o ca-os ambiental e social. Esse foi o recado deixado por mo-vimentos sociais, sindicatos, entidades da sociedade ci-vil e algumas autoridades do poder público reunidas, en-tre os dias 24 e 27 de janeiro, no Fórum Social Carajás.

O coordenador da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Isi-doro Revers, conhecido como Galego, salientou que os proje-tos empresariais que vêm des-truindo a Amazônia tentam se vender, com muita propagan-da, como sustentáveis e assim confundem os cidadãos.

De modo a se contrapor a esse modelo, faz-se neces-sária uma ampla articula-ção. Para o representante da CPT, o grande problema das comunidades dessas re-giões que fi cam na fronteira de expansão do capital trans-nacional é que elas têm a res-ponsabilidade de fazer o en-frentamento com o mode-lo e ao mesmo tempo pre-cisam lutar para sobreviver. “Eu acho que nós precisamos fazer um grande pacto no en-frentamento, fundamental-

dos enviados a Parauapebas

Próximo de um dos lo-cais de celebrações do Fó-rum Social de Carajás, cerca de 270 famílias cultivam ali-mentos em uma área antes reservada ao gado do ban-queiro Daniel Dantas. A ter-ra pertence ao Estado e es-tava sendo explorada irre-gularmente pelo grupo do milionário. Os camponeses, ligados ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), ocuparam a área em julho de 2008, logo após a Operação Satiagraha, uma ação conjunta do Mi-nistério Público Federal e da Polícia Federal que apontou Dantas como cabeça de uma organização criminosa espe-cializada em lavagem de di-nheiro. O acampamento foi chamado de Dalcidio Juran-dir, homenagem a um im-portante escritor amazonen-se, e tem uma estrutura sim-ples, com casas de palha e poços artesianos escavados na terra. A escola na parte central é a única construção de madeira.

Para tentar intimidar as famílias, os fazendeiros uti-lizam empresas de seguran-ça privada que agem como

mente, a essa concentração do capital na mão de pou-quíssimas empresas”, opina.

As denúncias apontaram os impactos da pecuária, da ex-ploração de madeira, de mo-noculturas como a soja, mas principalmente da instalação de hidrelétricas e de projetos de mineração na região.

Modelo capitalistaAté a década de 1960, os ci-

clos de exploração da fl ores-ta exigiam a sua preservação. Hoje, quase a totalidade dos empreendimentos deman-dam a derrubada.

A cada tonelada de miné-rio de ferro exportada, o Bra-sil fi ca com apenas R$ 40,

denuncia Ariovaldo Umbe-lino, professor de geografi a da Universidade de São Pau-lo (USP). De acordo com ele, são explorados na Amazônia cobre, ferro, estanho, alumí-nio, zinco e níquel.

Os impactos ambientais das hidrelétricas também foram alvo de denúncias dos parti-cipantes do fórum. Estimam-se que 306 novas hidrelétri-cas serão construídas na re-gião amazônica até 2030, no projeto de expansão energéti-ca do governo federal.

Ariovaldo considera mui-to importante a realização do fórum no centro desse inves-timento que o capital tem fei-to na Amazônia. Para ele, es-

milícias e atuam de formatruculenta, além de outrasestratégias bastante agressi-vas. “Até semente de capimjogaram de avião em nos-sas roças”, relata Manoel Si-mões, um dos coordenado-res do acampamento.

O grupo Dantas começoua atuar no Pará há cerca detrês anos, comprando terrase investindo em gado maci-çamente. A estimativa é deque o banqueiro, apontadocomo criminoso pelas au-toridades, detenha cerca de500 mil hectares e 1 milhãode cabeças de boi. A fazendaocupada era controlada pelafamília Mutran, um dos gru-pos mais poderosos do Pará.Eles haviam obtido a con-cessão para explorar casta-nha-do-pará, mas desmata-ram toda a área para abrirespaço para o gado e ven-deram as terras para Dan-tas. De acordo com o secre-tário estadual de Meio Am-biente do Pará, Valmir Or-tega, as terras pertencemao Estado e devem ser utili-zadas para reforma agrária.O caso segue na Justiça en-quanto os camponeses quefi zeram a ocupação colhemmilho, mandioca, feijão ediversos outros alimentos.(NV) e (VM)

Fórum social ecoa grito dos povosArticulação das comunidades é necessária para conter devastação

Famílias cultivam alimento em fazenda que era de Daniel Dantas

do Centro de Treinamento da HSS-TWA, em Parauape-bas (PA), fi cou pequeno para os grandes problemas e con-tradições da região.

A mística, ao som de uma fl auta, deu o tom dramáti-co da realidade vivida pelos povos da região. “O que se-rá de ti, Amazônia?” Essa foi a pergunta, seguida de cenas da saga do massacre de El-dorado dos Carajás, episódio ocorrido em 17 de abril de 1996 e no qual 19 trabalha-dores rurais sem-terra foram brutalmente assassinados pela Polícia Militar do Es-tado, a mando do então go-vernador Almir Gabriel (PS-DB). “A Amazônia pede jus-tiça!”, exclamaram os parti-cipantes da mística, acres-centando que ainda há vida na região. Num clima con-

tagiante, ecoou em todos os presentes o grito de alerta: “Amazônia livre!”. A cerimô-nia se encerrou com a pala-vra de ordem: “Contra o im-perialismo, soberania popu-lar na Amazônia”.

A dirigente do Movimen-to dos Trabalhadores Ru-rais Sem Terra (MST) no Pa-rá, Maria Raimunda, deu bo-as-vindas aos participantes e disse que a realização des-se fórum é muito importan-te porque trata-se de um es-paço no qual se pode fami-liarizar com todos os proble-mas vividos pelos povos da região. “Aqui temos grandes construções, projetos e con-tradições que queremos de-bater com vocês, para que possam conhecer a vida e a luta dos povos, das comuni-dades”, afi rmou. De acordo

com ela, é preciso construir uma grande rede em defesa dos povos da Amazônia, com modelo sustentável, respei-tando o meio ambiente e a biodiversidade.

Organizado pela Via Cam-pesina, com o apoio da pre-feitura local, o Fórum Cara-jás é um espaço que busca debater com a sociedade bra-sileira e internacional os cri-mes que o modelo capitalista comete contra a Amazônia e todos os que nela vivem. Pa-ra o prefeito de Parauapebas, Darci José Lermen (PT), a realização desse fórum é uma conquista dos movimentos sociais e dos povos da região. Ele acredita que, a partir des-se evento, os graves proble-mas da Amazônia ganharão projeção nacional e interna-cional. “Não somos mais uma

voz isolada. Não estamos so-zinhos. É muito importante sentir isso. Porque, apesar de sermos pequeninos, temos a capacidade de incomodar. E se incomodamos é porque estamos no caminho certo”, comemorou.

AtividadesAs atividades do Fórum

Carajás prosseguiram no dia 25 com uma visita, à tar-de, às minas de ferro da Vale e ao Parque Zoobotânico de Carajás. No dia 26, os parti-cipantes fi zeram visita ao as-sentamento Vila Palmares II, com mística, discursos e lançamento das pedras fun-damentais da construção do Instituto de Agroecologia La-tinoamericano (Iala) e do es-tádio Che Guevara; e à tarde encerrou com ato político e

Em defesa da Amazônia, da soberaniapopular e da biodiversidadeFÓRUM SOCIAL CARAJÁS Cerca de 500 pessoas debatem os impactos da atividade econômica, em especial mineral, na região

lançamento da pedra funda-mental do Bosque Interna-cional de Solidariedade, naCurva do “S”, em Eldoradodo Carajás.

Durante os debates dos pai-néis, as mesas foram com-postas pelo prefeito DarciLermen, por integrantes doMST, pelo professor Raimun-do Cruz (UFPA), por Frederi-co Drummond (chefe do Ins-tituto Chico Mendes de Con-servação da Biodiversidade)e Monica Baltodano (Nicará-gua), entre outros.

Umas das propostas suge-ridas durante os debates pa-ra ser levada ao Fórum SocialMundial é que fosse aumen-tada a Compensação Finan-ceira pela Exploração Mine-ral (Cfem) dos atuais 2% so-bre a produção líquida para4% da bruta.

se aporte tem as suas raízes ainda no período da ditadura civil-militar, mas, aos pou-cos, foi se consolidando.

Violência Nós últimos 30 anos, mais

de 870 trabalhadores e lide-ranças foram assassinados na região, como no caso do massacre de Eldorado dos Carajás. Além disso, Ario-valdo denuncia que, quando o capital chega na fronteira e explora os bens naturais, o período de atuação desse ca-pital é extremamente curto, porque o que explora é um bem que não se reproduz.

“O minério demorou bi-lhões de anos para existir e, agora, está sendo tirado num período de 30, 40 anos, o que vai nos sobrar? Uma enorme cratera aberta na natureza e a grande contaminação nos rios. E sem nenhum ganho, porque toda essa riqueza foi exportada. Ficará o caos so-cial e ambiental”, adverte o geógrafo.

“Será que a humanidade precisa de tanto ferro assim? Para quê? Para continuar construindo automóvel, que vai precisar de cada vez mais petróleo? A humanidade não pode se preocupar em proje-tar meios de transporte mais coletivos?”, questiona. (NV)

Integrantes de movimentos sociais realizam mística no monumento da Curva do “S”, local do massacre de Eldorado dos Carajás, em 1996

Para o Fórum, região de Carajás precisa de ajuda

Fotos: Douglas Mansur/Novo Movimento

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saiu na agênciawww.brasildefato.com.br

Encontro MSTControle das sementes, da água e da biodiversidade e

investimentos na produção dos agrocombustíveis e da celulose. Esses são os cinco grandes projetos de expan-são do capital no campo, conforme opinou João Pedro Stedile, da coordenação nacional do MST, durante um dos painéis do 13º Encontro Nacional do MST, realiza-do em Sarandi (RS).

Desafi os do FSMEm sua nona edição, o Fórum Social Mundial (FSM) tem

como desafi o atualizar-se frente à “luta real” contra o neoli-beralismo e à nova confi guração política da América Latina. A avaliação é do cientista social e fi lósofo Emir Sader, que acre-dita que o fórum fi cou atrasado ao se posicionar apenas como um “espaço de resistência”.

Dinheiro públicoA Votorantim Celulose e Papel comprou 28,03% do ca-

pital da Aracruz Celulose. A operação totalizou R$ 2,71 bi, sendo que R$ 2,4 bi serão desembolsados pelo BNDES. Luis Rampazzo, do Centro de Estudos Ambientais, lamenta a uti-lização de dinheiro público para ajudar grandes empresas: “Com metade desse dinheiro despejado em grandes compa-nhias e nos bancos, já começaríamos a resolver os proble-mas climáticos do planeta”.

Alerta necessárioNa inauguração do Memo-

rial da Resistência, em home-nagem aos que lutaram con-tra a ditadura militar, no dia 24 de janeiro, em São Paulo, o ex-preso político Ivan Seixas lembrou a incipiente democracia existente no Bra-sil. Ele disse: “Vemos com preocupação o presidente do Supremo Tribunal Federal se transformar no porta-voz das forças do atraso e da defesa dos torturadores dos tempos da ditadura”. Até quando?

Delação médicaEntidades que integram

a Marcha Mundial de Mu-lheres denunciam que a criminalização das mulheres que optam pelo aborto está aumentando em várias regi-ões do Brasil, inclusive com a delação de médicos para a polícia e o Judiciário. O en-frentamento da questão pela via do processo criminal é o pior possível – é a repressão e a intolerância no lugar do atendimento e da orientação. Puro atraso.

Fascismo tucano A governadora Yeda Cru-

sius, do PSDB, envergonha a tradição democrática do Rio Grande do Sul ao utilizar a Brigada Militar para uma operação imoral e inconsti-tucional, seja no contingente armado que barrou e pediu documentos aos participan-tes do 13º Encontro Nacional do MST, no assentamento Novo Sarandi, seja no sobre-voo rasante do evento por helicópteros da corporação. Pura intimidação.

Genocídio tucanoRegistrado como mais um

caso de “resistência seguida de morte”, a Polícia Militar do Estado de São Paulo exe-cutou, no dia 18 de janeiro, em Campinas, três jovens que ocupavam uma perua Kombi, na estrada de acesso ao bairro das Andorinhas. Tinham 24, 21 e 15 anos, vol-tavam de um jogo de futebol e foram confundidos com ladrões. A PM alega que eles estavam armados, o que é negado pelos familiares.

fatos em foco Hamilton Octavio de Souza

Brasil selvagemResponsável pela investi-

gação e denúncia de grupos de extermínio que atuam em Pernambuco, o advogado Manoel Bezerra Matos Neto, vice-presidente estadual do PT e membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB, foi assassinado no dia 24, na praia de Pitimbu, na Paraíba. Ele havia apontado a partici-pação de policiais nos grupos de extermínio. Mais um crime para a impunidade!

Rede indígenaLançado no Fórum Social

Mundial, o projeto Celulares Indígenas procura ampliar a rede de índios online e in-tensifi car o intercâmbio de vídeos, fotos e mensagens sobre o modo de vida e as lutas dos vários povos indí-genas do Brasil. Todo o ma-terial audiovisual produzido por essa rede, inclusive so-bre os eventos do FSM, es-tará disponível no novo por-tal www.indiosonline.org. Força total!

Democracia nãoA grande imprensa liberal

burguesa do Brasil continua atacando o processo de trans-formação em andamento na Bolívia: os principais jornais trataram o referendo da nova Constituição com desdém, ironia ou simplesmente como um documento gerador de confl itos e divisões – embora tenha sido aprovada por 60% dos eleitores. Tudo indica que vão continuar apoiando as elites brancas e separatistas do país vizinho.

Receita empresarialO jornal Folha de S. Pau-

lo deu destaque ao artigo de Benjamin Steinbruch, presidente da Companhia Siderúrgica Nacional, no qual afi rma: “Em momentos críticos como agora, é bom lembrar que a economia passa a eliminar empregos por razões objetivas, não por maldade de empregadores. Empregos não se criam com gritos e passeatas”. Só faltou pedir para o trabalhador de-sempregado morrer de fome em silêncio!

de 29 de janeiro a 4 de fevereiro de 20096

brasil

O primeiro-ministro italiano, Silvio Berlusconi

Reprodução

Rui Martins

CESARE Battisti é agora um simples pretexto utiliza-do pelo governo neoliberal e antiestrangeiros do primei-ro-ministro italiano, Silvio Berlusconi, para mascarar a crise capitalista de seu país, com consequências em ter-mos de desemprego, baixa do poder aquisitivo e amea-ça de falência de empresas.

A carta do presidente Luiz Inácio Lula da Silva enviada ao seu colega italiano e o pa-recer do procurador-geral da República Antonio Fernan-do Souza em favor do arqui-vamento do pedido de ex-tradição de Battisti coloca-ram um fi m na questão. Po-rém, o governo da Itália con-tinua com encenações diver-sas que são, na verdade, me-didas de distração destina-das apenas ao consumo in-terno para evitar o ridículo diante da população, depois de duas negativas de extra-dição – pela França e agora pelo Brasil.

Amistoso ameaçado?A situação chegou a ser cô-

mica quando o subsecretário das Relações Exteriores da Itália, Alfredo Mantica, ame-açou cancelar a participação da Itália no amistoso de fu-tebol contra o Brasil, marca-do para o dia 10 de fevereiro em Londres (Inglaterra).

Pouco tempo depois, o go-verno italiano percebeu que o esporte bretão não era um bom caminho, e o subsecre-tário do Conselho de Mi-nistro, Rocco Crimi, com a maior cara de pau, afi rmou que uma anulação do amis-toso nunca tinha sido colo-cada em questão.

Embaixador acionadoMesmo depois do presi-

dente brasileiro ter escrito ao seu colega italiano, cau-cionando a decisão do mi-nistro da Justiça, Tarso Gen-ro, o governo italiano conti-nuou com sua pantomima para dar aos italianos a im-pressão de usar mecanismos de pressão sobre o Brasil.

Assim, o primeiro-minis-tro Silvio Berlusconi cha-mou o embaixador italiano em Brasília (DF) para con-sultas. Mero gesto de de-

sespero, porque, na Euro-pa, a imprensa enfatizou a reação brasileira de que tal medida não iria afetar em nada as relações entre os dois países.

Na verdade, tal medida, sem qualquer possibilida-de de modifi car a decisão brasileira, tem por objetivo dar aos italianos uma com-pensação, depois do gover-no Berlusconi ter prometi-do levar às prisões italianas os dois últimos italianos dos anos de 1970 envolvidos em ações armadas.

Primeiro revésMarina Petrella, que per-

tenceu à Brigada Vermelha, tinha sido internada num hospital parisiense, em es-tado semicomatoso, alguns dias antes de ser extradi-tada. Diante disso, o presi-dente francês, Nicolas Sa-rkozy, atendendo a inter-venções de sua cunhada e de sua esposa, que são ita-lianas, decidiu perdoar a antiga extremista, que tam-bém fora perdoada pelo fa-lecido presidente François Mitterrand, pois rompera há mais de vinte anos com suas antigas atividades, in-tegrando-se na sociedade francesa como professora e constituindo família.

O segundo era Cesare Battisti, preso no Brasil des-de março de 2007, cuja ex-tradição parecia certa. En-tretanto, depois das decla-rações do senador Eduardo Suplicy (PT/SP) e do depu-tado federal Fernando Ga-beira (PV/RJ), criou-se um movimento em seu favor, que se acentuou no fi m de 2008 com o apoio da ala es-querda do PT, sensibilizou intelectuais e culminou com a decisão do ministro Tarso Genro de negar a extradição à Itália e conceder refúgio humanitário de Battisti.

LibertaçãoApesar de protestos da im-

prensa e governo italianos, o presidente Lula logo refor-

çou a decisão de seu ministro e declarou aos italianos ser uma decisão brasileira so-berana. Durante a recessão das festas de fi nal de ano, o presidente do Supremo Tri-bunal Federal (STF), minis-tro Gilmar Mendes, arguiu quanto ao mérito da decisão de Tarso Genro em lugar de conceder imediatamente a libertação de Battisti, recla-mada por seu advogado Luiz Eduardo Greenhalgh.

Atendendo a um pedi-do do ministro brasileiro da Justiça, o procurador-geral da República entregou seu parecer sobre o caso Bat-tisti em favor de um arqui-vamento do pedido de ex-tradição, dada a decisão de Tarso Genro. Por sua vez, o STF deverá tomar uma po-sição até o dia 2 de fevereiro quanto ao pedido de liberta-ção de Battisti.

Encontra-se no Brasil a escritora francesa Fred Vargas, líder do comitê francês e europeu de defesa de Battisti, que conta tam-bém com o apoio do fi lóso-fo francês Bernard-Henru Levy e do escritor Gabriel García Márquez.

França intocadaO jornal francês Le Figa-

ro, no seu noticiário onli-ne, publicou com destaque a decisão italiana de cha-mar o embaixador no Bra-

sil, sem acrescentar comen-tários. Na verdade, o presi-dente francês tinha prome-tido a Lula que não reagiria no caso de Battisti – preso, no Rio de Janeiro, há quase dois anos, numa operação policial franco-brasileira – não ser extraditado.

Deve-se também destacar que a Itália não fez qualquer ameaça à França, quan-do Sarkozy perdoou Mari-na Petrella. Mas quanto ao Brasil, diversas ameaças fo-ram reativadas nesses úl-timos dias, como a da Itá-lia não apoiar a entrada do Brasil no G8. Ameaça esta transmitida à imprensa pe-lo ministro italiano do Inte-rior, Roberto Maroni.

DesdobramentosO ministro italiano da

Justiça, Franco Frattini, considera inaceitável a não-extradição de Battisti e dis-se ao jornal Corriere della Sera que estudará com o embaixador que outras op-ções são possíveis para ob-ter a extradição.

O editorialista do jornal afi rma que a decisão de cha-mar o representante não re-solve nada, nem terá con-sequência, e coloca a Itália num beco sem saída, pois o país terá de reenviá-lo a Bra-sília. Entretanto, diz o edito-rialista Sergio Romano, “es-sa é uma dessas reações rá-pidas que os homens políti-cos costumam ter em situa-ções análogas”.

“O Brasil se sente pode-roso em consequência de seu sucesso econômico e do modelo que ele representa”, acrescenta o editorialista. Mesmo que o STF decidis-se em favor de uma extra-dição, ela não seria conce-dida, pois o presidente Lu-la já considerou defi nitiva a decisão do ministro da Jus-tiça, qualifi cando-a também de soberana.

Rui Martins é jornalista brasileiro radicado em Berna,

na Suíça.

A Itália gesticula,mas é só encenaçãoDIPLOMACIA Reação do governo europeu, que chamou no dia 27 seu embaixador no Brasil, não passa de jogo de cena para esconder efeitos da crise

A situação chegou a ser cômica quando o subsecretário das Relações Exteriores ameaçou cancelar a participação da Itália no amistoso contra o Brasil

Mesmo que o STF decidisse em favor de uma extradição, ela não seria concedida, pois o presidente Lula já considerou defi nitiva a decisão do ministro da Justiça

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brasil

Renato Godoy de Toledoenviado a Belém (PA)

A CHUVA torrencial, típica das tardes de Belém (PA), não impediu que cerca de 100 mil pessoas mar-chassem, no dia 27 de janeiro, da Estação das Docas até a Praça do Operário, no centro da capital pa-raense, durante a abertura do Fó-rum Social Mundial 2009, que vai até o dia 1º de fevereiro.

Como é usual, a principal carac-terística da passeata foi a diversida-de. Esta se manifesta tanto nas et-nias dos participantes, quanto nas bandeiras e causas empunhadas.

Para se ter uma idéia, em nível nacional, marcharam na mesma avenida evangélicos, membros da Força Sindical, militantes do PS-TU, sem-terra e até membros de um movimento cuja principal rei-vindicação é a adoção do calendá-rio inca. Internacionalmente, a di-versidade também é observada, ainda que, obviamente, cada orga-nização traga um número menor de participantes.

Comparativamente às outras edições brasileiras do Fórum, em Porto Alegre (2001, 2002, 2003 e 2005), pôde ser observada clara-mente uma massiva participação de povos tradicionais. De acordo com a organização do evento, cerca de 3 mil indígenas estão em Belém.

Simbolicamente, no início da marcha, uma celebração afro-re-ligiosa, realizada por participan-tes africanos, marcou a passagem do Fórum da África, ocorrido em 2007 no Quênia, para o Fórum amazônico, que foi recebido pelos indígenas. Logo após o rito, a chu-va forte veio, e persistiu durante quase uma hora.

De todos os cantosAntes da chuva, Mzonke Po-

ni, membro de uma associação de sem-teto sul-africana, dizia-se en-tusiasmado com sua primeira vi-sita ao Brasil. “Estamos aqui pa-ra buscar alternativas e partilhar experiências interessantes de pro-cessos que estão sendo construídos em países como Bolívia e Venezue-la. Temos uma coisa muito boa pa-ra ver aqui no Brasil, que é o pro-grama de combate ao HIV, algo que o nosso país precisa”, revela Poni, que se admira com a receptividade da cidade de Belém.

O francês Mathieu Colloghan, da organização Les Alternatifs, já es-tá em seu 8º Fórum. Do primeiro, o ativista lembra que ouviu o en-tão governador gaúcho Olívio Du-tra (PT) afi rmar que o processo do Fórum iria surtir efeito em 20 anos

do enviado a Belém (PA)

Além dos cerca de 100 mil parti-cipantes do Fórum Social Mundial, a cidade de Belém (PA) também re-cebe, entre os dias 27 de janeiro e 1º de fevereiro, a “visita” de 230 agen-tes da Força de Segurança Nacio-nal, ligada ao Ministério da Justiça. Essa força federal atua ao lado de 7 mil outros agentes de segurança, en-tre policiais militares e guardas civis metropolitanos. O foco das ações po-liciais, de acordo com o governo, é coibir a violência contra os partici-pantes do Fórum.

Para tanto, foram reforçados o efe-tivo policial nas ruas e os equipamen-tos da polícia. Cerca de 200 pistolas elétricas Taser foram adquiridas pe-la PM paraense. Essa arma tem a “pe-culiaridade” de interromper a trans-missão de informação do cérebro ao restante do corpo. Assim, o atingido passa alguns segundos desacordado, tempo sufi ciente para que o agente de segurança o algeme. Já a Força de Se-gurança Nacional trouxe a Belém um verdadeiro arsenal de guerra: cães fa-rejadores, helicóptero e equipamen-tos antibombas.

A presença policial se dá sobretu-do nas áreas centrais de Belém, onde há pontos turísticos como o Mercado ver-o-peso, e no território do Fórum Social Mundial, onde as universida-des federal do Pará e Rural da Ama-zônia estão cercadas por muros e la-deadas por bairros pobres de Belém, como Guamá, Terra Firme e Sacra-menta. Nesses bairros, e em outros periféricos, foram proibidas tempo-rariamente as festas de “tecnobrega”, ritmo em voga no Norte do país, que mistura ritmos regionais com a músi-ca eletrônica.

A reportagem presenciou uma blitz policial na avenida Perimetral, que perpassa as duas universidades em que ocorre o Fórum. Oito policiais, um deles com arma em punho, abor-davam todos os moradores da região que passavam de bicicleta pelo local. Em uma hora, ninguém foi detido.

Tal como a Polícia Federal, a PM pa-raense também batiza as suas opera-ções. A que visa conter a violência ur-bana durante o Fórum ganhou o no-me de “Armagedon”. Desde o dia 16 de janeiro, a operação realizou 123 prisões, 22.754 abordagens, 59 pri-sões por roubo e 97 fechamentos de bares. De acordo com o coronel Lei-tão, da PM, “a ‘Armagedon’ é um res-gate do direito do cidadão ir e vir com tranquilidade”. (RGT)

Eduardo Sales de Limaenviado a Belém (PA)

Agenda política unifi cada. Esse foi o mote que permeou os debates ocorridos entre re-presentantes de diversas orga-nizações sociais ligadas à saú-de no 3º Fórum Social Mun-dial da Saúde, realizado na Universidade Estadual do Pa-rá (Uepa) nos dias 25 a 27 de janeiro. “Nossa ação tem que se pautar por missões estra-tégicas maiores”, afi rmou um dos coordenadores do evento, Armando De Negri.

A unifi cação da agenda po-lítica dessas organizações so-ciais, entretanto, não é tão simples no âmbito interna-cional. De acordo com Negri, as difi culdades para que ocor-ra um consenso acerca da uni-versalidade do direito à saúde ocorrem porque muitos po-vos não vivenciaram, na prá-tica, tal experiência. Isso, para

Sob a chuva da Amazônia,todos os povos reunidos

Belém tem policiamento recordeGoverno do Estado adota medidas proibitivas como fechamento de bares e cancelamentos de festas nas periferias

FÓRUM SOCIAL MUNDIAL Representantes do mundo celebram o “outro mundo possível”

ou mais. “Na época, pensei que aquilo era um exagero, mas hoje vejo que iremos mudar o mundo aos poucos”, opina.

Sua organização autodenomina-se altermundista, autogestionária, feminista e ecologista. Assim, nes-sa edição deve se envolver em de-bates sobre a Amazônia, que, pa-ra Colloghan, é um tema “muito complicado”. “É muito fácil para o mundo dizer ao Brasil: ‘não to-quem mais na Amazônia’. No en-tanto, essa é uma atitude imperia-lista. O problema do desmatamen-to diz respeito ao mundo. Deve ha-ver um esforço dos países para re-solvê-lo, mas não podemos deixar que essas decisões sejam tomadas em Washington ou Paris”, aponta.

Morador de uma região que em muitos aspectos está distante de Paris, mas com objetivos próxi-mos aos de Colloghan, o indígena Wellington Gavião, do povo Ga-vião, que vive na região de Ji-Pa-rará (RO), acredita que esse Fórum servirá mais como um espaço de denúncia, sobretudo para chamar a atenção do governo federal sobre

as barragens que estão sendo cons-truídas no rio Madeira. “Sabemos que as coisas não se resolvem ra-pidamente, mas aproveitaremos o espaço para denunciar”, promete.

Já o indiano Rahul Kumar, da organização Terra Viva, espera que o Fórum sirva para que se crie uma consciência local, mas ressalta que o processo não pode parar por aí. O encontro, para ele, funcionará co-mo um espaço para discutir “mu-danças profundas e, sobretudo, al-ternativas ao neoliberalismo”. Para chegar a Belém, Kumar embarcou em quatro vôos diferentes, que ao todo duraram 22 horas.

SolidariedadeUm tema muito lembrado na pas-

seata foi a invasão israelense em Gaza. Alguns representantes do pa-ís atacado estiveram presentes na manifestação. Um deles, Madhat Al Jagmoup, membro do sindica-to de fazendeiros da Palestina e Na-jah, destacou a necessidade de fi n-darem-se os ataques ao seu país. Na avenida Presidente Vargas, Na-jah exibia um cartaz com os dizeres:

“Break the siege in Gaza” (rompam o cerco a Gaza, em tradução livre).

Para o marroquino Hamid Elkam, do Fórum Alternatives Sud, o evento “será mais uma oportuni-dade, em meio a um espaço dialéti-co, para que os altermundistas ela-borem uma alternativa à globaliza-ção neoliberal”. Mas, para ele, os objetivos do FSM só irão se concre-tizar se houver, posteriormente ao encontro, uma prática militante.

Donos da casaOs anfi triões belenenses, sem dú-

vida, foram os que mais engrossa-ram a marcha de abertura do Fó-rum, com faixas com pautas locais e blocos que exaltam a cultura local, sempre embalados pelo carimbó.

Para o marceneiro Charles de Souza, o Fórum mudou a rotina da cidade. “O grande ponto positivo de trazer luz à questão amazônica é o de envolver todo mundo na de-fesa da fl oresta. Sozinho, o povo do Pará não consegue barrar o desma-tamento”, conclui (colaborou Edu-ardo Sales de Lima, enviado espe-cial a Belém-PA).

ele, gera uma acomodação en-tre essas populações e facilita a manutenção da visão neoli-beral em relação à saúde em várias regiões do planeta.

Assim, Negri compreende que algumas concepções, co-mo a de que o direito à saú-de pública deve ser direciona-do somente para os pobres, ou de que deve existir uma polí-tica exclusiva de atenção aos pobres, podem criar políticas sem efeito ou paliativas. “A primeira ruptura é entender que o direito à saúde é univer-sal, por isso deve chegar a to-dos e todas, em qualquer re-gião do mundo”, reforça.

Ao retomar os entraves que o neoliberalismo causa às es-truturas de saúde nos países pobres, Negri, que é também coordenador do Movimen-to Saúde dos Povos, chama a atenção para o tema do fi nan-ciamento público. Na con-tramão da ideologia neolibe-ral – inserida nos programas de saúde de muitos países, orientando os orçamentos a partir da dívida fi scal –, ele propôs às cerca de mil pes-soas presentes na Uepa, entre elas o ministro da Saúde, Jo-

sé Gomes Temporão, a ruptu-ra dessa lógica. Para ele, o or-çamento de um país precisa ser pautado por outra dívida, a social. Por isso, é categóri-co: “O problema do fi nancia-mento de saúde é político”.

Controle socialMas, além de cobrar um fi -

nanciamento digno para as necessidades de cada região, cidade ou hospital, o controle

social do fl uxo de investimen-tos públicos e da própria prá-tica dos profi ssionais de saúde foi considerado nesse fórum tão necessário quanto a ques-tão orçamentária.

O ministro da saúde, José Gomes Temporão, tratou de elogiar a sociedade brasilei-ra, que, segundo ele, “mudou de patamar na luta política pela saúde nos últimos trinta anos”. “Enquanto o neolibera-

lismo propunha, e ainda pro-põe, a liberdade de mercado, foi por meio da participação popular que o SUS [Sistema Único de Saúde] foi criado, baseado no fi nanciamento pú-blico, no controle social, entre outros eixos”, afi rmou.

No entanto, apesar de o SUS ser celebrado pelo gover-no, e por parte das organiza-ções sociais ligadas à saúde, como uma experiência posi-

tiva, Paulinho Parreira, pre-sidente da Organização Não-Governamental Sempre Vi-va, da cidade de Nova Xavan-tina (MT), aponta seus pon-tos fracos. Sua ONG fi scaliza os recursos da União, de es-tados e municípios e luta pe-la transparência no envio e no aproveitamento dos recur-sos públicos, sobretudo quan-do o dinheiro vem da União para as cidades. “Nossa cida-de chegou a ter um superfatu-ramento de remédios de pres-são que chegou a 1.900%”, re-corda. Parreira critica que em muitas cidades pequenas, os conselhos de saúde e os pró-prios vereadores estão alinha-dos ao poder e aos interesses de grandes empresas farma-cêuticas e políticos locais.

Dada essa realidade, Ar-mando De Negri reforça a importância do controle so-cial sobretudo na questão do fi nanciamento à saúde. Para ele, não basta somente o go-verno “despejar” rios de di-nheiro se boa parte é desvia-da por políticos locais. Mes-mo assim, ele, lembrando que 36% do PIB é fruto de impos-tos, acredita que a política de fi nanciamento precisa ser re-considerada, assim como o controle social sobre esse fi -nanciamento precisa ser re-forçado por parte de organiza-ções independentes e de con-selhos de saúde.

Fórum pede participação popular na saúdePara organizador, desafi o é unifi car agenda política

Universalidade do direito à saúde: problema de fi nanciamento é político

Cláudio Santos/Ag.PA

Apesar da chuva, milhares de pessoas participaram da caminhada de abertura do 9º Fórum Social Mundial

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brasil

Renato Godoy de Toledo

enviado a Belém (PA)

ENTRE jornalistas, comu-nicadores populares e mili-tantes pela democratização da mídia, cerca de 600 pes-soas participaram do 1° Fó-rum Mundial de Mídia Livre, nos dias 26 e 27 de janeiro, às vésperas da abertura do Fórum Social Mundial, em Belém (PA). O evento dá se-quência, agora internacional, ao 1° Fórum de Mídia Livre, realizado no Rio de Janeiro (RJ) em junho de 2008.

Os debates contaram com exposições de membros de veículos do campo do “mi-dialivrismo” – termo re-cém-cunhado para defi nir essa maneira de se fazer jornalismo – e com ativida-des autogestionadas, suge-ridas pelos participantes.

Além da troca de experi-ências entre diferentes ór-gãos de imprensa do Brasil, América Latina e Europa, foram realizadas análises acerca da atuação da mídia comercial e do papel da crise fi nanceira internacional no mercado editorial. Também foi alvo de críticas a maneira como a imprensa corporati-va aborda a crise, de manei-ra a fomentar a histeria no sistema fi nanceiro.

Mídia e criseIgnacio Ramonet, do Le

Monde Diplomatique, reali-zou uma comparação entre as perspectivas da imprensa al-ternativa hoje e no primeiro FSM, em 2001. “Naquela épo-ca tínhamos um discurso pes-simista sobre a ditadura midi-ática aliada ao poder fi nancei-ro, que dominavam a socieda-de. Agora, temos um cenário diferente: os meios alternati-vos se desenvolveram e o ne-oliberalismo, com a crise, foi golpeado e, na minha opinião, morto. Os grandes meios já estão sofrendo muito com a situação. Enfi m, os meios dominantes já não dominam tanto assim”, avalia.

Dezenas de rádios comunitárias marcaram presença no Fórum de Mídia Livre. Os comunicadores populares exigiram o fi m da repres-são da Polícia Federal contra essas entidades. O professor da Fa-culdade Cásper Líbero (São Paulo – SP) Sérgio Amadeu citou um acontecimento recente referente à legislação de radiodifusão que pode ser um alento às rádios comunitárias do Brasil. E o exemplo vem dos EUA. “Nos Estados Unidos, os espaços em branco entre as frequências das redes de televisão foram liberados pelo governo pa-ra que as comunidades os utilizem. Essa é a melhor forma de ocu-par todo o espectro. Isso é uma decisão técnica, porque diminui a interferência e pode ser importante para que consigamos, aqui, uti-lizar os espaços em branco das rádios. Por que só nos EUA que as emissoras das comunidades não derrubam aviões?”, diz, referindo-se à principal alegação das emissoras e das entidades patronais para exigir o combate às “rádios piratas”. (RGT)

do enviado a Belém (PA)

Para fazer uma mídia in-dependente de qualidade, os participantes do 1º Fórum Mundial de Mídia Livre fo-ram quase unânimes ao de-fender uma maior destina-ção de verbas publicitárias do poder público para o se-tor. Entretanto, um membro das Brigadas Populares de Belo Horizonte (MG) discor-dou dessa fonte de fi nancia-mento. “Se quisermos ser re-almente independentes, não podemos depender de verbas do setor público ou privado”, defendeu, no plenário.

Porém, entre os participan-tes da mesa, a opinião do mi-litante mineiro não obteve apoio. Renato Rovai, editor da Revista Fórum, explicou por que acredita na importância de anúncios governamentais nos órgãos de imprensa inde-pendente. “Quando não vamos

Eduardo Sales de Limaenviado a Belém (PA)

“Além da pobreza, vejo que o que liga a África ao Brasil, e ao mun-do todo, é a ecologia, a proteção do meio ambiente”. A frase é de Mô-nica Umeh, afro-religiosa ligada à Congregação Irmãs de Notre Dame. Umeh se reuniu com outros 500 reli-giosos e leigos, provenientes de todos os continentes, para participar do 3º Fórum Mundial de Teologia e Liber-tação (FMTL). O evento ocorreu en-tre os dias 21 e 25 de janeiro, no Cen-tro Cultural Tancredo Neves (Cen-tur) em Belém (PA), tendo como te-ma “Ecologia e Espiritualidade”.

“Tanto o FMTL como o Fórum So-cial Mundial [FSM] serão úteis pa-ra tirar o Pará e a Amazônia do ano-nimato”, acredita a irmã Margarida Pantoja, do Comitê Irmã Dorothy. A religiosa nasceu numa cidade ri-beirinha do interior do Pará chama-da São Domingos do Capim e se co-move ao tentar explicar como as co-munidades da fl oresta se relacionam com os recursos naturais. “A gente se mistura com isso”, conclui.

A Teologia da Libertação, compre-endida como uma teologia contex-tual, tanto foi alimentada como deu forças para que diversas teologias em várias localidades do mundo fossem desenvolvidas. Trata-se de um fa-lar de Deus e de Jesus Cristo segun-do realidades locais. A “mistura” com a natureza, citada por irmã Margari-da, pode ser um exemplo dessa práti-ca religiosa contextual, ao considerar a fl oresta como parte de si mesmo e do próprio Deus.

Somando as peculiaridades locais, a Teologia da Libertação requer lu-ta por justiça social. Por isso, em seu discurso de abertura do FMTL,

do enviado a Belém (PA)

A organização concedeu um es-paço para o Comitê Irmã Dorohty dentro do FMTL. A articulação sur-giu com o objetivo de acompanhar e pressionar a Justiça paraense pa-ra que o caso do assassinato da frei-ra estadunidense, morta a mando de fazendeiros da região de Anapu (PA), tenha uma conclusão exem-plar. Após quatro anos de existência, o comitê também vem impulsionan-do a criação de outras organizações que lutam pela paz, tanto na cidade como no campo.

A irmã Jane Dwier, integrante do Comitê que vive no Brasil des-de 1972, faz questão de esclarecer, entretanto, que o objetivo do grupo não é o de “santifi car” a irmã Doro-thy. “Não queremos fazer da Dorothy o único símbolo, mas uma porta para que o povo possa caminhar em meio à justiça e também fazer justiça aos outros que foram mortos”, explica.

Irmã Jane lembra que ainda exis-tem outros mártires da luta pela terra, além daqueles que estão vi-vos. “Mártires são Juarez, Daniel, Isaac, do lote 86, que lutam pelo lo-te há mais de seis anos. Eles plan-tam cacau, pimenta, café, arroz e feijão e precisam enfrentar homens que se dizem donos da terra e que espalham gado e plantam capim no lote”, argumenta. (ESL)

o padre Sérgio Torres, um dos ide-alizadores do encontro, apontou-a como uma teologia carregada da mensagem de amor ao próximo, mas com uma novidade: o compro-misso dos cristãos pela transforma-ção da sociedade.

Na urgência da hora, entretan-to, o próprio planeta impôs um no-vo compromisso. Trata-se da neces-sidade de uma práxis sobre a ecolo-gia e a espiritualidade, temas cen-trais do Fórum. Torres aponta para a necessidade de nos voltarmos pa-ra um novo tipo visão de mundo. “O paradigma ecológico supera o antro-pocentrismo, reinterpreta a subjeti-vidade da modernidade, introduzin-do o conceito de diversidade e mútua dependência de relações”, explicou Torres para os cerca de mil presentes no Centro Cultural Tancredo Neves.

Por sua vez, também presente no encontro, a senadora e ex-minis-tra do Meio Ambiente Marina Silva (PT/AC) acrescentou que esse an-tropocentrismo do homem, o de su-perar limites para reparar suas fra-gilidades, já chegou ao ponto de se

deparar com os limites da nature-za. “Vivemos uma crise civilizatória. Não só estamos perdendo os recur-sos naturais como a previsibilidade dos fenômenos naturais”, lembrou.

Pacha MamaNa mesma perspectiva da necessi-

dade de um outro modo de tratar o meio ambiente, o fi lósofo Leonardo Boff optou por recordar os benefícios que o uso sustentável da terra pelos indígenas trouxe para a biodiversida-de da região. “Grande parte da Ama-zônia foi manejada pelos indígenas; a plantação de babaçu é um dos gran-des exemplos”, exemplifi ca.

O sacerdote de etnia quíchua Alci-dez Catota concordou com Boff so-bre o manejo responsável da terra pelos indígenas. “No cotidiano da vi-da encontramos Deus; seja nos ani-mais, na água, nas lavouras”. No Equador, os indígenas formam 48% do povo, somando 7 milhões de indí-genas de 13 povos.

Ao fi m da conversa com o Brasil de Fato, Costa faz uma dura crítica ao modelo neoliberal, que, para ele,

vende Pacha Mama (Mãe Terra). “Mesmo com a Nova Constituição, aprovada pelo governo de Rafael Correa, não se respeita as terras in-dígenas, sobretudo por causa da ex-ploração das mineradoras. E o pior é que não há enfrentamento por parte do nosso povo, pois muitas lideran-ças estão sendo cooptadas”, afi rma o sacerdote, pertencente à Diocese de Latacunga e que também faz parte da Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie).

“Para quem?”A relação dos indígenas com a na-

tureza foi citada na maioria dos de-bates. Suas práticas cotidianas no que se refere à alimentação e tra-tamento das fl orestas foram mui-to elogiadas. Por isso, a irmã Jane Dwier, amiga de Dorothy Stang, propôs duas novas perguntas que, na verdade, elucidam o que é a lu-ta de classes. “Quando se pensa em desenvolvimento, deve-se pergun-tar ‘para quem’ e ‘como’” (colaborou Renato Godoy de Toledo, enviado a Belém-PA).

Ecologia e espiritualidade para além das religiões3º Fórum Mundial da Teologia da Libertação: fl oresta, água e terra também são sagrados

Comitê Dorothy no FMTLEntidade também estimula a criação de outras organizações que lutam pela paz

“Não queremos continuar sendo alternativos, queremos ser hegemônicos e majoritários”, afi rmou Pascual Serrano, do jornal espanhol Rebelión

Mídia Livre: tomar a hegemoniaFÓRUNS PARALELOS Veículos de imprensa alternativa debateram por dois dias os rumos da crise fi nanceira e do jornalismo

Para o professor Bernardo Kucinski, da Universidade de São Paulo, a mídia é cor-responsável pela crise fi nan-ceira e promove uma cober-tura, em geral, insufi cien-te sobre os principais moti-vos que a desencadearam. “A grande imprensa passou a alimentar a crise, com uma abordagem catastrofi sta que leva os empresários a demi-tir”, considera.

Sobre a cobertura geral do jornalismo econômico,

o professor aponta um pro-cesso de domesticação da imprensa pelo mercado fi -nanceiro. “As vozes disso-nantes foram afastadas da grande imprensa. Há um processo conduzido pelos grandes bancos de capaci-tar jornalistas econômicos. [Esse fi lão do jornalismo] está sendo cada vez mais ocupado por jornalistas com relações com as fontes obsequiosas do mercado fi -nanceiro. Há uma tentativa de direcionar os rumos da crise”, explica.

Para sair da margemDe modo a fazer um con-

traponto a essa cobertura, faz-se necessário o fortaleci-mento dos meios de comu-nicação “ainda” alternativos. “Ainda”, porque o Norte dos veículos de mídia livre não deve ser a permanência na marginalidade, mas sim con-quistar a hegemonia.

Outro debate que per-meou diversas exposições foi a questão de como a mí-dia alternativa deve se posi-cionar diante da sociedade.

ao Estado pedir, exigir o que é nosso, alguém vai lá e o faz”, explica. Esse alguém, na visão do jornalista, via de regra são os órgãos de imprensa mais “venais”, como a Editora Abril.

Como principal exemplo do uso do Estado pelas corpora-ções editoriais, Rovai citou o exemplo da revista Nova Es-cola da Abril. Recentemente, a publicação “comemorou” a marca de 1 milhão de exem-plares impressos. Cerca de 90% desse montante é com-prado pelos governos munici-pais, estaduais e federal para distribuir nas escolas. Assim, de acordo com Rovai, a revis-ta tem o intuito de “ensinar o professor a dar aula”, com um conceito de educação à manei-ra dos Civita.

Altamiro Borges, que re-presentou o Portal Verme-lho, considera absurdo o fa-to de o governo federal, em2008, ter repassado verbaspublicitárias na ordem deR$ 1,7 bilhão para empre-sas como Abril, O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo e Organizações Globo. “Enfi m, R$ 1,7 bilhão para alimentarcobras”, completa. (RGT)

Foi consensual a idéia de que a principal batalha visa a fa-zer com que o caráter margi-nal desses veículos seja pro-visório. Joaquím Constan-zo, da agência uruguaia IPS, afi rma que, para tanto, deve se articular em redes as ini-ciativas que surgem com as novas tecnologias da infor-mação. “Para disputar a he-gemonia real, temos de agru-par as experiências individu-ais da internet”, defi niu.

De acordo com Sandra Russo, do diário argentino Página 12, o principal ini-migo do jornalismo indepen-dente hoje é o senso comum. “Nosso principal desafi o é recuperar a linguagem. A co-municação não deve ser pan-fl etária e cansativa. Por ve-zes, nos propomos a conven-cer aqueles que já estão con-vencidos”, opinou.

Sobre o objetivo máxi-mo do midialivrismo, Pas-cual Serrano, do jornal es-panhol Rebelión, concluiu: “Não queremos continu-ar sendo alternativos, que-remos ser hegemônicos e majoritários”.

A polêmica das verbas publicitáriasO equilíbrio entre a sobrevivência e a independência

Rádios comunitárias

Transmissão da rádio alemã Matraconda durante o seminário de comunicação compartilhada

A senadora Marina Silva e o teólogo Leonardo Boff falam durante o Fórum

Fotos: Eunice Pinto/Ag. Pará

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ARTIGO

de 29 de janeiro a 4 de fevereiro de 2009 9

américa latina

Fernanda Chavescorrespondente do Brasil

de Fato em La Paz (Bolívia)

No último dia 25, o povo boliviano deu uma mostra su-prema de sua cultura demo-crática ao aprovar por voto sua Constituição Política, pe-la primeira vez na história. De 8h às 18h, homens e mulhe-res se dirigiram as zonas elei-torais acompanhados de seus fi lhos e cachorros, transfor-mando o domingo num dia de recreação, dado à tranquili-dade em que se encontravam as ruas em La Paz. Impedidos de circular, os transportes pú-blicos deram lugar às bicicle-tas, skates e carrinhos de bo-necas que acompanhavam as numerosas famílias que atra-vessavam alguns quarteirões da cidade altiplana, indo ou vindo das urnas.

Nas escolas públicas do po-puloso bairro de São Pedro, o que se viam eram pequenas fi -las bem ordenadas que fl uíam rapidamente. Ao eleitor de-vidamente identifi cado e re-gistrado naquela seção e aos demais presentes, o mesário apresentava a cédula aberta, demonstrando que não havia marcas prévias, e a entrega-va ao cidadão, que, em posse dela, se dirigia a um gabinete para marcar sua opção, após assinar ao lado de seu nome. Ao retornar, dirigia-se à urna e depositava o seu voto. Uma marca azul de tinta no dedo sacramentava o exercício ci-dadão, além de valer, tradi-cionalmente, como um meca-nismo de controle para evitar dupla votação.

Na metade do dia, as orga-nizações que enviaram um to-tal de 311 observadores inter-nacionais iniciaram a emis-são de boletins confi rman-do o êxito da jornada eleito-ral. “Presenciamos uma elei-ção exemplar, que mostra a extraordinária vocação dos bolivianos em submeter suas decisões políticas de acordo com a vontade popular”, re-gistrou o relatório do Merco-sul. OEA, Unasul, União Eu-ropeia e o Consejo de Exper-tos Latinoamericanos emiti-ram comunicados com o mes-mo teor. Logo mais, à noite, o presidente da Corte Nacional Eleitoral, José Luis Exeni, ra-tifi cou a posição dos organis-mos internacionais, garantin-do a lisura do pleito.

Polêmica da tintaAinda assim, algumas emis-

soras privadas de TV, em seus programas sensacionalistas, insistiam em questionar a efi -cácia da tinta usada enquanto mecanismo de segurança. Re-pórteres desses canais insis-tiam em comprovar, usando baldes, detergentes e outros produtos químicos, que a tin-ta poderia ser lavável, como se fosse esse o único contro-le contra fraudes eleitorais.

- Bolívia se defi ne como “Estado unitário social de di-reito plurinacional comunitário, livre, independente, soberano, democrático, intercultural, descentralizado e com autonomias”;- A religião católica deixa de ser a religião ofi cial e o Estado se proclama independente de credo, reconhe-cendo a liberdade de religião;- Tornam-se ofi ciais os idiomas dos povos indígenas;- O projeto amplia de 1 para 89 artigos sobre direitos, classifi cando-os em fundamentais, civis, políticos, so-ciais e econômicos e de povos indígenas;- Os meios de comunicação não poderão conformar monopólios e deverão respeitar os princípios de vera-cidade e responsabilidade, e difundir os valores das di-ferentes culturas do país;- Aos clássicos poderes Executivo, Legislativo e Judi-ciário, se agrega o Poder Eleitoral;- Para ser deputado ou senador, a idade mínima vai de 25/35 para 18 anos;- A justiça comunitária passa a ser reconhecida como parte do Poder Judiciário;- Dois de cada sete membros do Tribunal Supremo Eleitoral devem ser de origem indígena ou camponesa;- Pela primeira vez se reconhece autonomia nos depar-tamentos, regiões especiais e territórios indígenas;- Serviços básicos (água, luz, telefone etc.) são declara-dos direitos humanos;- Proíbe-se latifúndios agrícolas para além de 5 mil hectares;- Os recursos naturais renováveis e não-renováveis são declarados de caráter estratégico. Sua propriedade não poderá ser concedida a empresas, salvo para extensões limitadas de terras para fi ns agrícolas.

“O que presenciamos foram eleições exemplares, que demonstram a extraordinária vocação dos bolivianos por submeter suas decisões políticas à vontade popu-lar. E, quanto à polêmica da tinta, entendo que não se-ja necessário essa marca como controle, já que os cida-dãos estão inscritos em uma única mesa eleitoral e, ao votar, assinam o documento, como fazemos no Brasil”. Doutor Rosinha (chefe da delegação do Mercosul).

“Destacamos o espírito democrático do povo boli-viano, que votou de maneira massiva, livre e sem pres-sões no referendo, demonstrando vocação democrá-tica e compromisso cidadão nas tomadas de decisões transcendentais para seu país. Destacamos a logística eleitoral implementada e o absoluto respeito às restri-ções estabelecidas, assim como a transparência dos ju-rados. Não observamos qualquer ato que tenha preju-dicado o processo em sua integridade”. Hector Osorio Isaza (presidente da Missão de Observação Eleitoral – Conselho da Colômbia).

“O processo realizado na Bolívia consolida e reafi rma a institucionalidade eleitoral como sustentação do sis-tema democrático. A jornada eleitoral transcorreu pa-cifi camente, e a responsabilidade demonstrada pelos bolivianos não deixa dúvidas a respeito do bom esta-do da sua democracia. Felicitamos as Cortes Eleitoral e Departamentais, que manifestaram um alto grau de efi ciência e imparcialidade em suas gestões”. Nicanor Moscosa Pezo (presidente da Ceela)

“Destacamos o ambiente de paz que imperou em to-do país. Pedimos à cidadania que siga cumprindo com seu dever cívico, em clima de tranquilidade e respeito, envidenciado durante a jornada eleitoral”. Raul Lagos (chefe da Missão da OEA)

Fernão Lopes

A Bolívia atravessa um pe-ríodo novo em sua conturba-da e complexa história. Além das conquistas políticas, houve profundas mudanças na sociedade, com destaque para questões culturais que puseram em xeque vários pi-lares da colônia e da moder-nidade no país.

O processo recente de lu-tas sociais intensas culmi-nou com a crise do neolibe-ralismo e o ascenso de no-vas forças sociais. Evidências são encontradas em episó-dios marcantes, tais como: a Guerra da Água, em 2000; o fevereiro de 2003 e a Guerra do Gás, de outubro do mes-mo ano, terminando com a deposição do ex-presidente Goni – Gonzalo Sánchez de Lozada. Em 2005, a Bolívia elegeu Evo Morales, o pri-meiro presidente de origem indígena na história desse país de maioria indígena – Aymara, Quechua, Guarani e tantas outras etnias.

As mudanças ocorridas em menos de seis anos, especial-mente no cotidiano da po-pulação de origem indígena, são inomináveis. Muito se comenta que antes essas pes-soas assumiam uma posição

A tentativa de desmoralizar a efi cácia do sistema eleito-ral por parte de alguns meios de comunicação foi objeto de crítica do chefe da delegação do Mercosul, deputado Dou-tor Rosinha (PT-PR).

O texto constitucional aprovado dará mais poderes aos povos indígenas, abrirá caminhos às autonomias re-gionais e consolidará o con-trole estatal sobre a econo-mia. Os principais pontos da nova Carta, consolidada por uma Assembleia Cons-tituinte e impulsionada pelo presidente Evo Morales Ay-ma, focam a questão religio-sa, a estrutura dos três pode-res e o tema fundiário. Após os anúncios dos primeiros re-sultados, o presidente decla-rou: “Hoje, 25 de janeiro de 2009, se refunda uma no-va Bolívia, com igualdade de oportunidades para todos os bolivianos. Aqui se acabou o Estado colonial”.

De acordo com o mineiro Primo Quilale, a vitória do “sim” foi muito importan-te para a valorização dos tra-balhadores: “Antes, só se ex-portava nossa matéria-prima. A nova Constituição nos dá uma luz de que vamos agre-gar valor aqui, criar empregos e aportar mais recursos”, dis-se durante a comemoração, na Praça Murillo, onde mi-lhares de pessoas dançavam, cantavam e sacudiam suas bandeiras whipalas (aquelas com quadrados coloridos).

OposiçãoMas nem tudo são fl ores.

Nos departamentos de San-ta Cruz, Beni, Pando e Tarija, onde a nova Constituição foi rechaçada, os líderes da direi-ta conclamaram o povo a não aceitar o resultado nacional e sua aplicação nessa região. Historicamente administra-da pela elite, pelo agronegó-cio e grandes empresários, essa região concentra gran-de quantidade de latifúndios. No texto constitucional apro-vado, as terras privadas deve-rão ter no máximo 5 mil hec-tares. No entanto, a aplicação não será retroativa, ou seja, os antigos latifundiários não serão atingidos – apesar de, a partir de agora, terem que garantir o cumprimento per-manente da função econômi-ca e social da terra, sob pena de expropriação.

No momento, o que está na cabeça do povo é a pergunta: “Como será o amanhã? A ple-na implementação da nova Constituição em todo terri-tório boliviano dependerá da correlação de forças que for estabelecida entre o governo e a oposição, sendo que nin-guém arrisca um prognósti-co a esta altura. O que se diz hoje na Bolívia é que tudo po-de acontecer. Mas, indepen-dentemente destes questio-namentos, o povo agora quer saber de comemorar.

Bolívia diz “sim” à nova ConstituiçãoREFERENDO Carta Magna boliviana é aprovada com 60% dos votos, num comparecimento recorde de 85% da população às urnas

de submissão social, em que baixavam a cabeça ao cruzar pessoas não-índias na rua. Havia uma negação do pas-sado, da cultura indígena e camponesa. Em pouco tem-po ocorreu uma guinada em que movimentos sociais e or-ganizações de base coletiva e indígena mudaram o sentido de cidadania e de participa-ção política.

E como seriam os cambios (mudanças) a partir dessa cosmovisão? Não se trata de um regresso ao passado antes da invasão espanhola, mas de compreender que a pró-pria cultura é um processo de construção contínua e in-tegrado sobremaneira ao ter-ritório e à ruralidade. O atual processo questiona comple-tamente o sistema de valores e de funcionamento da mo-dernidade. E não por acaso sua crise coincide com a ou-tra crise, a fi nanceira, por que passa o capitalismo global.

A crise da modernidade se expressa na ausência de res-postas por parte da esquerda clássica, por uma crise am-biental, de produção, de con-sumo, do próprio sentido da sociedade humana ocidental. O que a revolução andina, in-dígena e originária – na Bo-lívia, no Equador, no México – tem a ensinar ao mundo é

que não é a humanidade que está em crise, mas sim o mun-do ocidental.

Não se pode entender a fundo o processo de resistên-cia e de mudança que está vi-vendo a Bolívia sem compre-ender o caráter anticolonial – descolonizador – e de um enfrentamento na raiz con-tra a crise da modernidade. O vácuo de respostas que deixa essa crise tem levado a diversos caminhos, tal como os levantes islâmicos – que também tem como principal bandeira a negação do mo-dernismo. Mas o levante an-dino tem novas proposições para esse enfrentamento, e que podem levar o mundo a uma nova via: da diversidade e de uma sociedade baseada no respeito à natureza.

Essa cosmovisão não ne-ga todos os sentidos do mo-derno, do ocidental. Na nova Constituição boliviana, não se trata de acabar com o direito à propriedade privada; mas se reconhece e se dá força e poder ao modo tradicional de propriedade, a coletiva.

As particularidades das vá-rias culturas andinas come-çam a ser reconhecidas pela instituição ocidental que é o Estado, mas as bases come-çam a ser alteradas. Um ou-tro exemplo é o reconheci-

mento da Justiça originária, colocada em pé de igualdade com a Justiça ocidental; ou-tro é a Medicina originária, que passa a ser estimulada e não mais combatida e nega-da pela Medicina ortodoxa. Em ambos os casos busca-se uma expansão para contem-plar o mundo rural, originá-rio, em contraste a uma socie-dade com uma legislação que somente reconhece o cidadão urbano, com suas instituições urbanas e ocidentais.

A nova Constituição é des-colonizadora porque consi-dera outras lógicas. E a so-ciedade ocidental não con-segue suportar que seus va-lores fundamentais sejam negados, pois não sabe lidar com o diferente, que sempre considerou inferior.

Bolívia e Equador são ago-ra um laboratório político do continente, com suas mu-danças constitucionais e um processo de participação po-pular sem precedentes na história da esquerda, con-seguindo assim dar um sen-tido novo à própria ideia de socialismo do século 21. Os últimos anos têm apontado nessa direção. Os próximos, com novas Constituições, da-rão novos frutos que muito terão a ensinar para outros povos do mundo.

A revolução descolonizadora

O que diz o novo texto O que disseram os observadores

Bolivianos votam em escola em El Alto, cidade ao noroeste da capital La Paz

Fernão Lopes

Comemoração na Praça Murillo, em La Paz

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Olmert, em um discurso na ci-dade de Ashkelon:

“Na noite entre quinta e sex-ta [8 e 9], quando Rice que-ria liderar a votação no Conse-lho de Segurança no sentido de um cessar-fogo, não queríamos que ela votasse a favor. Fiz uma ligação e disse: ‘ponha o presi-dente Bush na linha’. Falaram que ele estava num discurso na Filadélfi a. Eu disse que não me importava. ‘Preciso falar com ele agora’. Ele saiu do palan-que e me atendeu. Eu falei a ele que os EUA não poderiam vo-tar a favor de uma resolução co-mo aquela. Ele, imediatamente, ligou para a secretária de Esta-do e disse a ela para não votar a favor”, contou Olmert.

Baroud conclui o raciocínio: “Imagine, o Olmert se gaban-do de como ele, num telefone-ma, conseguiu mudar comple-tamente toda a agenda da polí-tica externa dos EUA. Isso nos indica que essa não é uma rela-ção de simbiose”. Para ele, o re-lacionamento entre o governo estadunidense e o lobby pró-Israel é, ao contrário, “de inte-resses claros, transações de ne-gócios e, às vezes, manipulação e intimidação”.

Lobby A dimensão que tal lobby al-

cança foi detalhada no artigo – depois transformado em livro – O Lobby de Israel e a Políti-ca Externa dos EUA, publicado na London Review of Books, em março de 2006. Nele, os cien-tistas políticos John Mearshei-mer e Stephen Walt resumem a questão: “outros grupos de in-teresse específi cos conseguiram infl uenciar a política externa, mas nenhum lobby conseguiu desviá-la para tão longe do que o interesse nacional indicaria, e, ao mesmo tempo, convencer os estadunidenses de que os in-teresses de seu país e os do ou-tro – no caso, Israel – são essen-cialmente idênticos”.

Segundo Baroud, historica-mente, os EUA apoiavam uma agenda “equilibrada” para o Oriente Médio, para garantir na região uma relativa estabi-lidade que atendesse seus inte-resses. O jornalista cita o exem-plo da invasão francesa, britâ-

de 29 de janeiro a 4 de fevereiro de 200910

internacional

Igor Ojedada Redação

MUDANÇA. A palavra-chave na campanha eleitoral do no-vo presidente dos Estados Uni-dos, Barack Hussein Obama, parece que não será levada em conta no que diz respeito a um tema fundamental: a política externa estadunidense para o Oriente Médio.

Pelo menos não a julgar por sua primeira declaração a res-peito dos ataques realizados por Israel à Faixa de Gaza, que deixou 1.400 mortos, em sua maioria, civis, incluindo inúme-ras crianças: “Israel tem o direi-to de se defender”, disse o man-datário, referindo-se aos fogue-tes lançados pelo grupo islâmi-co Hamas na fronteira entre a Palestina e o Estado judeu.

A afi rmação de Obama, en-tretanto, não foi novidade pa-ra muitas pessoas. Afi nal, pou-cos acreditavam que a força do “novo” que o ex-senador vem carregando consigo seria sufi -ciente para suplantar a estrei-ta aliança existente há décadas entre EUA e Israel.

Estreita para alguns, estranha para outros. Estes últimos con-sideram que há tempos as polí-ticas estadunidenses no Orien-te Médio não seguem seus pró-prios interesses, e sim os do Es-tado judaico. A explicação? O enorme poder de infl uência que o chamado “lobby sionista” exerce nos EUA.

“Mesmo a partir de um pon-to de vista imperialista, os Es-tados Unidos não têm um inte-resse particular em apoiar o ge-nocídio israelense em Gaza. Is-so é prejudicial para os EUA no Oriente Médio, pois o país es-tá desesperadamente tentando criar uma aparência de ‘estabi-lidade’ para lidar com a destrui-ção no Iraque e o fervor anties-tadunidense na região”, analisa Ramzy Baroud, jornalista pales-tino-estadunidense.

IntimidaçãoUm episódio ocorrido no

início deste ano ilustra o con-trassenso da política dos EUA para o Oriente Médio. No dia 8 de janeiro, o Conselho de Segurança (CS) da Organiza-ção das Nações Unidas (ONU) aprovou uma resolução que exigia o imediato cessar-fogo na Faixa de Gaza e a retirada das forças israelenses do ter-ritório palestino, que estava sendo alvo de ataques.

Quatorze dos 15 países-membros do CS aprovaram a resolução; somente os EUA se abstiveram, mesmo tendo si-do a própria secretária de Es-tado estadunidense, Condole-ezza Rice, a preparar o docu-mento. O esclarecimento para fato tão inusitado foi dado por ninguém menos que o primei-ro-ministro israelense Ehud

da Redação

O jornalista palestino-estadunidense Ramzy Ba-roud defi ne o lobby pró-Israel nos EUA não co-mo um organismo uni-tário, que possui lobistas pagos nas dependências do Congresso e do Execu-tivo, embora isso também exista. De acordo com ele, tamanha força é resultado de uma “vasta infra-estru-tura de indivíduos e orga-nizações que penetraram em toda instituição pos-sível, governamental ou não, que pode, de algu-ma maneira, infl uenciar, pressionar ou defender a agenda israelense”.

Para Baroud, não se tra-ta somente de alguns mi-lhões em contribuições pa-ra as campanhas eleitorais, mas de um “complexo e bem organizado aparato de muitos grupos, imensos recursos e um grande nú-mero de organizações de apoio e indivíduos que tra-balham em sincronia, to-dos focados em uma cau-sa, a de Israel”.

Para atingir seus objeti-vos, essa “rede” conta com duas estratégias centrais: infl uir sobre o Estado e sobre o debate público. Assim, além do trabalho junto ao Congresso e ao Executivo estaduniden-ses, o lobby sionista pos-sui “ramifi cações” na mí-dia e nas universidades.

De acordo com os cien-tistas políticos John Me-arsheimer e Stephen Walt, autores do artigo O Lobby de Israel e a Política Exter-na dos EUA, de março de 2006, campanhas de en-vio de emails e cartas e de realização de boicotes são organizadas contra parla-mentares, meios de comu-nicação, jornalistas e pro-fessores universitários que contrariam os interesses israelenses. No caso de de-putados ou senadores “re-beldes”, além disso, a es-tratégia é cortar o fi nan-ciamento econômico e di-recioná-lo a seu adversá-rio político.

Promessa de ObamaNo entanto, o fato de o

lobby pró-Israel nos EUA não possuir um corpo uni-

• Desde a 2ª Guerra Mundial, Israel recebeu dos EUA mais de 140 bilhões de dólares (em 2004)• Durante a Guerra de Yom Kipur (1973), os EUA enviaram a Israel 2,2 bilhões de dólares em assistência militar de emergência• Anualmente, Israel recebe 3 bilhões de dólares em assistência direta (20% do orçamento estadunidense para a ajuda externa)• Israel é autorizado a gastar 25% da ajuda que recebe na própria indústria de defesa• Os EUA já forneceram a Israel quase 3 bilhões de dólares para o desenvolvimento de sistemas de armamento, além de equipamentos de guerra como helicópteros

Anualmente, o Estado judaico recebe dos Estados Unidos 3 bilhões de dólares em assistência direta (20% do orçamento estadunidense para a ajuda externa)

Os Estados Unidos, o Oriente Médio e o lobby sionistaISRAEL Ações e recursos de organizações pró-israelenses determinam, em grande medida, a política estadunidense em relação ao Estado judaico e seus vizinhos

nica e israelense contra o Egito em 1956, quando o então pre-sidente estadunidense, Dwight Eisenhower, exigiu a imediata retirada de Israel da Península do Sinai e da Faixa de Gaza.

“Desde então, os interesses dos EUA na região permanece-ram intactos. Mas o que mudou para que o governo dos EUA apareça como uma ramifi cação do Knesset [o parlamento de Is-rael]? O que mudou foi a força do lobby israelense e o nível de infl uência dos ‘amigos’ de Isra-el no Congresso, no Executivo e na grande mídia.”

AssistênciaOs resultados de tamanha ar-

ticulação foram aparecendo e se consolidando ao longo dos anos. De acordo com o artigo de Mearsheimer e Walt, desde 1976, o Estado judeu é o maior receptor anual de assistência direta, econômica e militar vin-da dos EUA, o que o faz o maior benefi ciário desde a Segunda Guerra Mundial, com um total de 140 bilhões de dólares (em 2004).

No plano militar, os estaduni-denses já enviaram a Israel qua-se 3 bilhões de dólares para o desenvolvimento de sistemas de armamento, além de equipa-mentos de guerra como helicóp-teros Blackhawk e jatos F-16.

Além disso, a ajuda nessa área também vem se dando em oca-siões de confl ito, como a Guer-ra de Yom Kipur (1973), quando 2,2 bilhões de dólares em assis-tência militar de emergência fo-ram concedidos.

Outro exemplo aconteceu em maio de 2002. Após Isra-el ter invadido novas áreas na Cisjordânia, a Câmara de Re-presentantes dos EUA apro-vou uma concessão de 200 milhões de dólares ao Esta-do judeu para serem usado no combate ao terrorismo.

DiplomaciaAnualmente, o Estado judai-

co recebe 3 bilhões de dólares em assistência direta (20% do orçamento estadunidense pa-ra a ajuda externa). Desse to-tal, o país está autorizado a gastar 25% na própria indús-tria de defesa, privilégio ex-clusivo entre os receptores de ajuda estadunidense.

A colaboração econômica e militar vem acompanhada, ain-da, do apoio no campo diplomá-tico. Ainda de acordo com Me-arsheimer e Walt, desde 1982, os EUA vetaram 32 resoluções do Conselho de Segurança da ONU que eram críticas a Israel, número maior que o total de ve-tos de todos os outros membros do organismo que possuem tal poder. Além disso, os estaduni-denses obstruem todos os esfor-ços dos países árabes para que a Agência Internacional de Ener-gia Atômica (AIEA) inspecione o arsenal israelense.

tário não signifi ca que não exista uma organização bastante forte e infl uente por trás dele. É o caso do Comitê de Assuntos Pú-blicos Israel-estaduniden-ses (AIPAC, na sigla em in-glês), entidade que possui 60 mil membros. Segundo o artigo de Mearsheimer e Walt, uma enquete realiza-da em 1997 com os mem-bros do Congresso revelou que o AIPAC é considera-do o segundo lobby mais poderoso de Washington, atrás apenas da Associação Estadunidense de Aposen-tados. Em 2005, um estu-do do National Journal chegou a uma conclusão parecida.

“Quando o AIPAC – que derrama nos congressis-tas estadunidenses mui-tos milhões de dólares em contribuições de cam-panha, tudo isso com um objetivo em mente, uma agenda direitista pró-Is-rael – realiza suas confe-rências anuais, a maioria dos membros da Câmara e do Senado, integrantes do Executivo, os maiores re-presentantes de ambos os partidos, centenas de em-baixadores estaduniden-ses e muitos mais afl uem de todo o país e de todo o mundo para marcar o lou-vor a Israel, no mais bizar-ro e inédito modo de tra-tamento dos EUA a qual-quer outro lobby ou orga-nização infl uente”, protes-ta Ramzy Baroud.

De fato, no dia 4 de ju-nho de 2008, logo após obter a indicação do Parti-do Democrata para a can-didatura à presidência dos EUA, Barack Obama par-ticipou de um encontro na sede da entidade, no qual prometeu “eliminar” a ameaça representada pelo Irã ao Estado judeu. “Não há ameaça maior para Is-rael e para a paz e a esta-bilidade na região que o Irã”, declarou.

De acordo com os cien-tistas políticos Mearshei-mer e Walt, essa infl uên-cia do lobby sionista sobre o Executivo estadunidense não é nova. Um dos exem-plos citados é o da gestão Bill Clinton (1993-2001), que contava com impor-tantes nomes pró-Isra-el nos setores dedicados à

política para o Oriente Mé-dio: entre eles, Martin In-dyk, ex-vice diretor de pes-quisa do AIPAC e co-fun-dador do Winep, institui-ção de orientação pró-sio-nista; Dennis Ross, que ingressou no Winep após deixar o governo, em 2001; e Aaron Miller.

CongressoOs três estavam “entre

os colaboradores mais ínti-mos de Clinton na reunião em Camp David, em julho de 2000, o que fez com que os negociadores palestinos se queixassem de estarem tratando com ‘duas equi-pes israelenses’”, segundo os autores do artigo.

Já em relação ao Con-gresso, a força do lobbypró-Israel é ainda maior.Um exemplo claro ocor-reu durante o governo deGeorge W. Bush (2001-2009). Em 16 de novem-bro de 2001, após pres-sões do presidente esta-dunidense para que Is-rael fl exibilizasse sua po-sição em relação aos ter-ritórios ocupados na Pa-lestina, 89 senadores (deum total de 100) envia-ram-lhe uma carta exigin-do que sua administra-ção não impedisse Israelde fazer retaliações con-tra os palestinos. Segun-do eles, o Executivo deve-ria, ainda, declarar publi-camente seu apoio ao Es-tado judeu. Na ocasião, oThe New York Times afi r-mou que tal carta teve ori-gem em uma reunião an-terior entre líderes da co-munidade judaica estadu-nidense e importantes se-nadores, e que o AIPACesteve bem ativo no for-necimento de conselhospara sua elaboração.

“O mais revelador é o fa-to de que, fora uma men-ção aqui ou ali, o poder desse lobby mal é coberto na mídia dos EUA, o que mostra o seu nível de infl u-ência. Apesar desse imen-so poder, muitos estaduni-denses sequer se dão con-ta que tal lobby existe, en-quanto outros argumen-tam que isso é um ‘mito’, chegando ao ponto de cha-mar qualquer um que de-seje criticar esse poder e infl uência de anti-semita”, questiona Baroud. (IO)

Nas entranhas do poderLobby sionista nos EUA conta com uma rede de organizações e indivíduos que penetram nas instituições do Estado com o objetivo de estabelecer uma linha pró-Israel na política externa estadunidense

Os EUA e o lobby sionista*

Blackhawk e jatos F-16• Desde 1982, os EUA vetaram 32 resoluções do Conselho de Segurança da ONU que eram críticas a Israel. Esse número é maior que o total de vetos de todos os outros membros do organismo• Os eleitores judeus representam cerca de 3% da população estadunidense, mas são os responsáveis por levantar 60% dos recursos fi nanceiros destinados às campanhas dos candidatos democratas à presidência, de acordo com o Washington Post• Em maio de 2002, após Israel ter invadido novas áreas na Cisjordânia, a Câmara de Representantes dos EUA aprovou uma concessão de 200 milhões de dólares ao Estado judeu, para ser usado no combate ao terrorismo

* Fonte: John Mearsheimer e Stephen Walt: The Israel Lobby and U.S. Foreign Policy (London Review of Books, março de 2006).0

Grupo de judeus ortodoxos em ponto de ônibus do Brooklyn, bairro de Nova York

Reprodução

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de 29 de janeiro a 4 de fevereiro de 2009 11

internacional

Patrícia Benvenutida Redação

EM SEUS primeiros dias co-mo presidente dos Estados Unidos, Barack Obama orde-nou o fechamento do centro de detenção de Guantánamo no prazo de um ano. Logo em seguida, declarou que seu país continuará apoiando o “direi-to de Israel de se defender de ameaças legítimas, pois nes-ses últimos anos o [movimen-to islâmico] Hamas lançou di-versos foguetes na região”, re-ferindo-se à ofensiva militar israelense em Gaza, que em 22 dias matou 1.400 palesti-nos, a maioria civis, e deixou mais de 5.000 feridos.

Na avaliação do economis-ta Nildo Ouriques, professor do Departamento de Econo-mia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), as primeiras medidas do man-datário estadunidense indi-cam que ele não irá promo-ver grandes mudanças em sua gestão, tanto em relação à po-lítica interna quanto externa. “Sobre o Obama não há na-da ainda, só o benefício da ilu-são”, afi rma Ouriques, em en-trevista ao Brasil de Fato. Em relação à base militar lo-calizada em Cuba, o econo-mista afi rma: “O que ele fez foi suspender por 120 dias os tribunais de Guantánamo. E ele não tem que fechar as pri-sões, tem que devolver Guan-tánamo para os cubanos”.

Já a respeito das declara-ções do presidente dos EUA sobre Israel, Ouriques pon-tua: “Israel tem 300 bom-bas atômicas, recebe mais de 1 bilhão de dólares por ano dos Estados Unidos. Então, acreditar que a história co-meça com os foguetes do Ha-mas a Israel é esquecer que o Hamas chegou ao poder por uma eleição limpa, ganhou e foi bloqueado por Israel, pe-las Nações Unidas e pelos Es-tados Unidos”.

O economista também é pouco otimista em relação à composição do governo Oba-ma, que acredita ser “ultra-conservador”. Segundo ele, “essa é a transição mais con-servadora da história dos Es-tados Unidos. Eu não recordo de outro presidente, democra-ta ou republicano, que mante-ve em postos-chave fi guras do outro partido”.

Brasil de Fato – Poderia fazer uma avaliação sobre as declarações feitas nos primeiros dias do novo presidente dos Estados Unidos, como a promessa de fechamento de Guantánamo?Nildo Ouriques – Sobre o Obama não há nada ainda, só o benefício da ilusão. Ele não fechou Guantánamo. O que ele fez foi suspender por 120 dias os tribunais de Guantá-namo. Em segundo lugar, ele não tem que fechar as prisões, tem que devolver Guantána-mo para os cubanos. Isso é fundamental, mas não está em seus planos. Então, agora há o benefício da ilusão, o negro na presidência dos Estados Uni-dos, o adeus ao Bush...

Mas a mídia é totalmente favorável a ele, é o Jesus Cris-to que chegou na Terra. Mas medidas, nenhuma. As medi-das concretas foram, para a América Latina, a manuten-ção do subsecretário para a América Latina do Bush, que é do partido Republicano. Em segundo lugar, no mun-do das fi nanças ele colocou, em postos-chave da econo-mia, todo mundo do “big bu-siness”, do mundo das fi nan-ças. Então, o que fez o Oba-ma até agora foi muito nega-tivo, não teve mudança.

Ele assinou uma ordem executiva

para o fechamento de Guantánamo...

O que tem de imediato da ordem presidencial é a sus-pensão dos juízos do centro de detenção, que não está sob ju-risdição estadunidense. Pro-vavelmente o que ele vai fazer é transferir os prisioneiros pa-ra os Estados Unidos e dar um juízo dentro da lei estaduni-dense, porque em Guantána-mo as leis são de exceção.

Comentando a ofensiva de Israel contra os palestinos em Gaza, Obama afi rmou que os israelenses têm o direito de se defender contra os foguetes do Hamas. Como avalia essa declaração?

Israel tem 300 bombas atô-micas, recebe mais de cerca de um bilhão de dólares por ano dos Estados Unidos. Então, acreditar que a história come-ça com os foguetes do Hamas é esquecer que ele chegou ao poder por uma eleição limpa, que ganhou. Essa história de começar a crônica com os fo-guetes do Hamas é ocultar o

essencial da história. Basta ler o livro do [jornalista britâni-co Robert] Fisk sobre o Líba-no ou a Grande Guerra pela Civilização. A primeira coisa é a vitória do Hamas em uma eleição democrática, que foi boicotada pelos Estados Uni-dos e por Israel. Israel tem o direito de se defender, e os pa-lestinos têm o direito à pátria, que é anterior e, mais ainda, à sua terra. Estamos iguais – aliás, a desigualdade segue.

Qual a expectativa para o governo Obama em termos de política externa? E em relação à Gaza?

Não são os Estados Unidos, é o Estado. Não é o Obama, é governo do Estado. Tem que ser leninista, o pessoal esque-ce Lênin. Tem Estado e tem governo, e o Estado é o bloco do poder. E, sobre tudo que o Obama está fazendo até ago-ra, não tem nenhuma medi-da destinada a equilibrar as forças no Oriente Médio, que implica no seguinte: o Irã tem direito à bomba atômica, não somente o Paquistão e Isra-

el; Israel tem que ser desar-mado, e os territórios ocu-pados têm que ser todos de-socupados, se é para falar sé-rio. Não tem medida nenhu-ma até agora.

E a promessa de retirada de tropas do Iraque?

Promessas têm, mas, com governo, eu não dou o me-nor valor para promessas. O Obama era promessa até on-tem. Desde ontem, ele tem a caneta. E eu, como analista, tenho que analisar o que ele faz, e não o que ele diz que vai fazer. E ele não fez nada até agora. Aliás, a mídia fez muito mais por ele do que ele próprio.

No sentido de propaganda?

É claro. A mídia é um mo-delo de propaganda, não tem nada a ver com jornalismo. O jornalismo é uma coisa que não existe. O que existe é um modelo de propaganda.

Como avalia a cobertura da imprensa brasileira?

Foi vergonhosa. A cobertu-

“As medidas concretas foram, para a América Latina, a manutenção do subsecretário para a América Latina do Bush, que é do partido Republicano”

“Essa é a transição mais conservadora da história dos Estados Unidos”SUCESSÃO NOS EUA Em entrevista ao Brasil de Fato, o economista e professor Nildo Ouriques afi rma que as primeiras medidas do mandatário estadunidense indicam que ele não irá promover grandes mudanças em sua gestão

Quem éO economista Nildo Ou-riques é professor do de-partamento de Economia e presidente do Instituto de Estudos Latino-americanos da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

ra da imprensa brasileira foi um lobby pró-Obama e pró-judaico. Foi ridículo, as vo-zes críticas dos Estados Uni-dos não apareceram.

Ainda sobre a política externa, acredita que o governo de Obama manterá o embargo a Cuba?

Não há nada sobre isso, nem uma declaração, na-da na campanha, absoluta-mente nada. Só um jogo du-ro contra a Venezuela, con-tra tudo que eles consideram que é ameaça.

Obama, inclusive, afi rmou em uma de suas declarações que (o presidente da Venezuela, Hugo) Chávez tem sido um entrave para o desenvolvimento da América Latina...

Como o Chávez vai ser um entrave? Entrave são os Esta-dos Unidos. Eu considero que o Obama é um entrave para o desenvolvimento dos Estados Unidos. Ele considera que o Chávez é um entrave para o desenvolvimento da Améri-ca Latina, e eu considero que o Obama é um entrave para o desenvolvimento dos Estados Unidos e do mundo. Pronto. Qual o valor da afi rmação do Obama e da minha? Nenhu-ma. É propaganda, é um pre-sidente dos Estados Unidos fazendo propaganda. Quem autorizou os Estados Unidos a julgar o Chávez? Nos Esta-dos Unidos, o habeas corpus está suspenso, há prisões ex-tra judiciais, intervenção no correio eletrônico, tortura... O que tu achas de tortura reconhecida pelo Estado? O que tu queres mais? Invasão no Iraque, invasão no Afega-nistão. Como é que nós le-vamos a sério considerações do Estado mais terrorista do mundo, os Estados Unidos? Como eles vêm falar para nós que alguém é entrave, Evo [Morales], Rafael [Correa]...

“É um governo ultra conservador, e essa é a transição mais conservadora da história dos Estados Unidos. Eu não recordo de outro presidente, democrata ou republicano, que manteve em postos-chave fi guras do outro partido”

Há perspectivas de haver um diálogo maior com lideranças da América Latina?

Aí eu estou com o Fidel e com o Raul, que disseram: “Tomara que ele tenha”. Tu-do que a gente quer é que os Estados Unidos abandonem o terrorismo de Estado e co-mecem a dialogar. Eu gosta-ria que o Obama começasse um diálogo porque, desde que os Estados Unidos se afi rma-ram como potência, eles usam o porrete. Eu gostaria que fos-se diferente, mas não me ilu-do. Eu acho que não existe es-sa possibilidade.

E qual é sua avaliação em relação à composição do governo de Obama?

É um governo ultra con-servador, e essa é a transiçãomais conservadora da histó-ria dos Estados Unidos. Eunão recordo de outro presi-dente, democrata ou republi-cano, que manteve em pos-tos-chave fi guras do outropartido. Porque a vitalidadedo sistema estadunidense é:quando os republicanos en-tram, saem todos os demo-cratas. Quando os democra-tas entram, saem todos osrepublicanos. Agora, o quea gente está vendo é ele con-servando um monte de gente.Por isso eu digo que é a tran-sição mais conservadora den-tro dos Estados Unidos.

E quanto à política interna, como deve ser sua postura diante da crise? Quais devem ser suas principais medidas?

É uma crise tremenda. Ima-gine 44 milhões de estaduni-denses sem plano de saúde, 2,16 milhões de presidiários, mais 4 milhões com mandado judicial, são 6 milhões. A eco-nomia destruída, o desempre-go em alta, a tarefa interna é gigantesca. Mas ele fortaleceu os monopólios, mais um paco-te de 400 bilhões agora para os monopólios, sem garantia de que as empresas vão man-ter os empregos. Os monopó-lios enquadraram ele.

Uma das promessas foi o acesso universal à saúde...

Não esqueça de que o Bill Clinton, quando assumiu jun-to com a Hillary – que é espe-cialista em sistemas de saú-de –, por um ano e meio ela também propagandeou tudo, e depois foi enquadrado nos monopólios privados do siste-ma de saúde.

Para o senhor, então, a fi gura do Obama até agora não representa mudança?

Nenhuma. Eu vou esperar daqui a três meses e nós va-mos ver. Se ele mudar para melhor, eu vou fi car muito fe-liz, vou reconhecer e saudar. Mas até agora nada, e o que eu vejo é muito ruim.

Reprodução

Reprodução

Rep

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ção

Divulgação

No Afeganistão, pessoas se reúnem para ver Obama se tornar o 44º presidente dos EUA

Militar estadunidense subs-titui a foto de Bush pela de

Obama em quadro na base de Guantánamo; abaixo, iraquia-nos assistem à posse de Oba-

ma em um café em Bagdá

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de 29 de janeiro a 4 de fevereiro de 200912

cultura

Jonathan Constantinode São Paulo (SP)

APÓS CERCA de um ano e meio de luta e pressão do Fó-rum Permanente de ex-Pre-sos e Perseguidos Políticos do Estado de São Paulo junto ao Governo do Estado, foi rei-naugurado, no dia 24 de janei-ro, o Memorial da Resistência, no térreo da Estação Pinaco-teca, antigo prédio do Depar-tamento de Ordem Política e Social do Estado de São Pau-lo (Deops/SP).

Após reforma, o memorial reabre com uma nova concep-ção museológica para preser-vação da memória “de milha-res de combatentes, que nunca aceitaram a opressão das clas-ses dominantes e seus instru-mentos ditatoriais”. De acordo com o jornalista Ivan Seixas, diretor do Fórum, “resgatar es-se velho prédio e transformá-lo num símbolo de resistên-cia é a manifestação de quem luta pela democracia e não quer esconder nossa história. E nem apagar as pistas de san-gue deixadas por carrascos im-punes até os dias de hoje”.

Reconstituição das celasCom a pressão realizada pe-

lo Fórum, conseguiu-se a mu-dança do nome do memorial e a realização de uma signifi -cativa reforma. Em agosto de 2007, foi apresentado o pro-jeto de remodelamento, e sua implantação iniciou-se em agosto de 2008.

Na reforma foram reconsti-tuídas celas, a fi m de apresen-tar as reais condições a que os presos eram submetidos. Com

da Redação

“A necessidade de que o Mi-nistério Público promova a persecução criminal necessá-ria para a responsabilização dos autores de crimes con-tra a humanidade praticados durante a ditadura militar no Brasil, com a criação de for-ça tarefa para este fi m”. Es-se é um dos pontos defendi-dos na “Carta a Belém”, docu-mento redigido e aprovado ao fi nal do 5º Fórum Mundial de Juízes, evento que contou com a participação de juízes, advo-gados e procuradores de vá-rios países. A carta sintetiza os princípios discutidos durante os três dias do encontro, en-tre eles “a necessidade da in-terpretação técnico-jurídica da Lei de Anistia”.

Um dos palestrantes do evento, ocorrido entre 23 e 25 de janeiro, em Belém (PA), foi o chileno Juan Guzmán, que tratou da intervenção do Po-der Judiciário durante e após a ditadura de 1973 a 1990, no

O juiz e procurador da República em Roma, Giancarlo Capaldo, fa-lou sobre os crimes prati-cados na “Operação Con-dor”, aliança político-mi-litar entre os vários regi-mes militares da América do Sul (Brasil, Argentina, Chile, Bolívia, Paraguai e Uruguai), cujo objetivo era coordenar a repressão aos opositores do regime. Após denúncias de paren-tes de desaparecidos polí-ticos, Capaldo passou a in-vestigar 25 casos de cri-mes que envolviam italia-nos e que aconteceram nos cinco países. Apesar dos pedidos, o governo brasi-leiro não colaborou com as investigações, interrogató-rio e extradição de alguns acusados pelo desapareci-mento de dois ítalo-argen-tinos na década de 1980 – Horácio Domingo Cam-piglia e Lorenzo Ismael Viñas. Há alguns meses, a Justiça reconheceu a res-ponsabilidade indireta do governo brasileiro e deter-minou o pagamento de in-denizações às famílias de vítimas italianas.

Chile. O magistrado foi quem investigou os casos de tortura e homicídios praticados pelo ditador Augusto Pinochet. “A repressão que o Chile sofreu pode ser resumida na práti-ca indiscriminada de prisões, na utilização de torturas mais sofi sticadas e no desapareci-mento de pessoas como for-ma de terrorismo por parte do Estado”.

Segundo o juiz, “o Judiciá-rio colaborou com a perpetra-ção dos crimes cometidos por agentes do Estado nesse perí-odo. Deveriam ter sido inves-tigados e julgados os magis-trados que delinquiram como cúmplices nos crimes de se-questro, assassinato e tortu-ra”. Para ele, a troca de expe-

riências entre juízes de gera-ções e nacionalidades diversas é sempre válida e importan-te. “Brasil, Itália, Chile e Es-panha, em especial, são países progressistas e, como tais, as-sumem compromisso com os povos originais e usam o Di-reito para fi ns sociais, com o objetivo de pregar a igualda-de entre as nações, priorizan-do os tratados internacionais do direitos humanos”.

Agentes violadoresO procurador regional da

República do Estado de São Paulo, Marlon Weichert, e a procuradora da República no Estado de São Paulo, Eugênia Fávero, também discutiram a responsabilização dos agen-

tes públicos violadores dos direitos humanos durante a ditadura militar no Brasil. Ambos são autores de uma ação civil pública contra dois ex-comandantes do Doi-Codi de São Paulo – Carlos Alberto Brilhante Ustra e Audir San-tos Maciel –, que os respon-sabilizam por crimes come-tidos durante a ditadura civil militar. “Se os países vizinhos encontraram um caminho ju-rídico para ir contra essa im-punidade e trazer alguma so-lução à ferida aberta, preci-samos conhecê-lo. Estamos convencidos de que esse ca-minho existe e é perfeitamen-te compatível com a Cons-tituição Federal brasileira”, afi rmou Eugênia Fávero.

Fórum de juízes defende responsabilização de crimes da ditaduraCarta fi nal do encontro defende “a necessidade da interpretação técnico-jurídica da Lei de Anistia”

Operação Condor

No Brasil, dois casos de res-ponsabilização criminal – pela morte de José Luiz da Cunha e do jornalista Vladimir Herzog – foram arquivados sob o ar-gumento de que o Brasil não ratifi cou a convenção da ONU sobre a imprescritibilidade de crimes contra a humanidade. “Mas o Chile também não ra-tifi cou e foi condenado. Nes-se cenário, tenho convicção de que, se os familiares das vítimas acionarem a Comis-são Interamericana contra a omissão do Estado brasileiro, esses casos chegarão à Corte e o Brasil será condenado”, afi r-mou Marlon Weichert. (com informações da Agência Car-ta Maior e da página do Fó-rum Mundial de Juízes).

Para que não se esqueça, jamais

MEMÓRIA E VERDADE Prédio onde funcionava centro de tortura vira museu de resgate da história de presos políticos

ajuda de ex-presos, também foram refeitas inscrições nas paredes para resgatar as fra-ses de resistência e solidarie-dade que haviam sido apaga-das. Também foram instala-dos equipamentos audiovisu-ais por meio dos quais os visi-tantes podem informar-se so-bre o que foi o espaço.

Na avaliação de Seixas, pa-ra cumprir seu papel históri-co e didático, o memorial de-ve ter um destino militan-te. “Projetos e programações devem sensibilizar a socieda-de sobre a importância da lu-ta pela Anistia, a Justiça de Transição e os Direitos Hu-manos para a Democracia. Pa-ra nós, do Fórum dos ex-Pre-sos e Perseguidos Políticos, o objetivo maior é completar a transição democrática, conso-lidar e aprofundar a democra-cia”, salientou.

Sem precedentesSegundo Kátia Filipini, mu-

seóloga da Estação Pinacote-ca do Estado, “não temos co-nhecimento de nenhum ou-tro projeto do tipo, no Brasil. O que sabemos é que há um museu na Argentina, liga-do à Escola Superior de Me-cânica da Armada (Esma), e que no Chile há um projeto em implantação”.

Sobre a importância do memorial como instrumen-to de preservação e resgate da memória, ela afi rma que “o museu é uma boa tentati-va nessa luta, e, como seu fo-co principal é a ação educati-va e cultural, desde já estão em projeto seminários, de-bates e palestras para contri-buir nesse sentido”.

De acordo com o secretário da Cultura, João Sayad, pre-sente à solenidade de inau-guração, a recaracterização do memorial deveria ter si-do ainda mais dramática, pa-ra retratar melhor o que foi aquele período. Para ele, o modo como as celas haviam sido apresentadas na últi-ma reforma assemelhavam-se mais a salas confortáveis de um hotel. Estiveram pre-sentes à solenidade de inau-guração o governador do Es-tado de São Paulo, José Ser-ra; os secretários da Cultura, João Sayad, e da Justiça e De-fesa da Cidadania, Luiz Antô-nio Marrey; o presidente da Comissão de Anistia, Paulo Abrão, que representou o mi-nistro da Justiça, Tarso Gen-ro; o diretor da Pinacoteca do Estado, Marcelo Araújo; e Rogério Sottili, representan-do o ministro Paulo Vannu-chi, da Secretaria Especial de Direitos Humanos; além de Raphael Martinelli, que, jun-tamente com Ivan Seixas, fa-lou em nome do Fórum Per-manente de ex-Presos e Per-seguidos Políticos do Estado de São Paulo.

HistóricoLocalizado no Largo Ma-

noel Osório, próximo à esta-ção Luz da Companhia Pau-lista de Trens Metropolitanos (CPTM), o prédio, onde hoje funciona a Estação Pinacoteca – anexo da Pinacoteca do Es-tado –, foi projetado em 1914 por Ramos de Azevedo, desti-nado a ser um armazém para a Ferrovia Sorocabana.

Porém, em 1949, duran-te o governo do General Eu-

rico Gaspar Dutra, o Deops/SP, criado 25 anos antes com a fi nalidade de combater os movimentos sociais e outras manifestações originárias de “ideologias exóticas”, como o anarquismo e o sindicalismo, é transferido para o prédio do antigo armazém. Assim, pas-sa a ser o cenário sombrio no qual se desenrolaram diver-sos atentados de lesa-huma-nidade, amplifi cados duran-te a ditadura civil-militar de 1964-1984.

Inaugurado em 2002 com o nome de Memorial da Li-berdade, o atual Memo-rial da Resistência passou por inúmeros processos de transformação, o que acar-retou a descaracterização do prédio. Foram destruídas duas celas, localizadas no térreo, chamado “Fundão”, que era formado por antigas celas reforçadas que funcio-navam como solitárias. Além disso, o espaço recebeu pin-turas modernas e sofi stica-

das, foram destruídos os ba-nheiros que eram utilizadospelos presos e raspadas ins-crições deixadas nas paredesdas celas por presos políticosde diversas gerações.

As reformas e nome atribuí-do ao memorial, então, desen-cadearam o descontentamen-to de grupos ligados às vítimas da violência durante a ditadu-ra militar, de modo especial, do Fórum Permanente de ex-Presos e Perseguidos Políticos do Estado de São Paulo.

Acima, prédio da Estação Pinacoteca (antigo Deops), onde está localizado o Memorial da Resistência; abaixo, manifestação contra o Golpe Militar em 1964

Arquivo Brasil de Fato

O presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Carlos Ayres Britto; na foto ao lado, à esquerda, a senadora Marina Silva participa de outro painel

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